1 Introdução
Trata-se de parte de uma pesquisa qualitativa, em andamento (2017-2020), sobre a formação da atitude autora e leitora da criança. Faço aqui um recorte para apresentar uma leitura verbo-visual do livro Lygia Clark: linhas vivas, tendo em vista contribuir com a formação de leitores, na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Pretendo analisar o signo-palavras (texto verbal) e o signo-visual (figuras) do livro Lygia Clark: linhas vivas, das autoras Renata Sant’Anna e Valquíria Prates, coleção Arte à primeira vista, publicado pela Editora Paulinas, em 2006. O livro é acompanhado de um caderno-ateliê no mesmo formato cuja finalidade, segundo as autoras, Sant’Anna e Prates (2006), s.p.), é constituir-se como espaço de experiências para as crianças realizarem “atividades inspiradas na produção artística de Lygia Clark”.
O objetivo a que me proponho é desvelar os sentidos gerados no processo de ler-interpretar o texto em sua verbo-visualidade, a fim de contribuir para a exploração desse tipo de texto com crianças pequenas na escola, tendo em vista a formação do pequeno leitor na escola. Para começar, traço um breve tópico sobre algumas concepções de infância.
2 A infância, a criança e seu desenvolvimento
Trago a infância em três questões: a infância, a criança e seu desenvolvimento. Isso requer buscar múltiplas interações da criança com a realidade que vão das sensoriais às intelectuais. Imagens mentais se cruzam e intercruzam com pensamentos, memória, consciência; a criança percebe, descobre e significa o espaço, o outro e a si mesmo. Nesse sentido, a fruição da palavra (signo verbal) e da arte (signo visual) podem contribuir com o desenvolvimento infantil.
Kramer enfatiza a infância como um “campo temático de natureza interdisciplinar”, sem uniformidade, abre um leque de leituras, diferentes abordagens, múltiplos posicionamentos, diversas estratégias. A autora ressalta que a temática infância como campo interdisciplinar “só pode ser gerada se as ciências humanas e sociais se tornam dialéticas, tomando o sujeito social - neste caso, a criança - no âmago da vida social e da pesquisa”. (KRAMER, 2001, p. 28).
Para Vigotski (2010), a linguagem tem um papel fundamental na formação das funções superiores psicológicas, como o pensamento abstrato, a imaginação, a atenção etc. O entorno da criança tem um papel fundamental em seu desenvolvimento, ele é em si uma condição que objetivamente determina o desenvolvimento da criança, mas não diretamente, uma vez que é a relação dela com o meio que determina como ela se desenvolve. Essa relação é dialética, pois “Um mesmo acontecimento recaindo em crianças com idades diferentes, refletindo-se na sua consciência de modo absolutamente diferente, tem para a criança um significado diferente”. (VYGOTSKY, 2010, p. 689).
Em relação à escrita e leitura, só a apropriação das máximas qualidades da cultura escrita pela criança na escola de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental pode alavancar seu desenvolvimento. As atividades precisam ser planejadas com essa finalidade, pois os sentidos que as crianças atribuem à escrita e à leitura exercem sobre o processo de apropriação desses objetos é condição para seu desenvolvimento pleno.
Passo à apresentação da artista Lygia Clark e seu livro.
3 Lygia Clark: linhas vivas - a artista e a obra
A artista contemporânea Lygia Clark foi uma das fundadoras do neoconcretismo, reconhecida internacionalmente, e, paradoxalmente, tão pouco conhecida ou até mesmo desconhecida pelas crianças e pelos professores nas escolas brasileiras.
De acordo com Fervenza (2005, p.8), Lygia Clark (1968) foi uma artista propositiva, ela mesma afirmava com ênfase: “somos os propositores: nossa proposição é o diálogo”, assim valoriza a arte como processo em que “o único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu ato”.
Ela instaurou a arte com um novo significado: uma experiência vivenciada nas interações corpo-objeto, capaz de estruturar o homem e sua relação com o mundo. Sua obra nos instiga ao diálogo, diante dela não somos meros contempladores frente a um objeto artístico sem vida e movimento, contrariamente, no espaço em que nos deparamos com esse objeto-ato, somos convocados a ser-evento único na relação com o outro (Bakhtin, 2012). Para a artista, a experiência sensível é corporal mas é também mental, e por isso se realiza no nível da consciência.
De acordo com Antunes (2015, p. 184), não são expectadores, mas participantes, pois,
Trata-se de realizar a obra com coautores críticos por meio de uma proposta de trabalho participativo e recuperação do sensório na contramão daquele embotamento da sensibilidade gerado pelo consumo dos produtos de entretenimento e distração.
Nessa perspectiva, Lygia Clark não se atenta aos resultados, mas aos processos produtivos em que os participantes interagem com o objeto proposto por ela que ganham novos sentidos. O livro Lygia Clark: Linhas Vivas é a interação das linguagens verbal e visual e, sobretudo, uma proposta instigante para as crianças mergulharem na narrativa e nas figuras poetizadas. O resultado é uma obra singular, única, provocadora. Uma obra aberta a múltiplos sentidos dados pelos leitores.
O que chamo de narrativa poetizada são os efeitos do processo de narrar das autoras do livro e da própria artista que habilmente dispõem as palavras no diálogo com as figuras de Lygia que por sua vez também são poetizadas nessa relação. Pound (1995, p. 37) trata da plurissignificação das palavras no contexto situacional em que se materializam, e acabam por produzir "a dança do intelecto entre as palavras".
Há uma imersão no poético da capa do livro a sua contracapa provocada pelos efeitos de rima, jogo de palavras, cores, formas etc. Apenas para dar visibilidade a esses efeitos poéticos, cito alguns: a rima em “De lá ... para cá”; a escolha de palavras que inovam a frase, como em “É a pintura rompendo os limites da tela”; e, principalmente a forma de segmentar o texto na página, de que trato mais adiante.
O objeto livro apresenta capa e contracapa em vermelho ao fundo, medindo 21 por 21 centímetros. As letras que compõem o nome das autoras e da editora estão em branco; já parte do nome da artista no título em cinza. A capa e contracapa têm fundo vermelho, destacando-se uma obra em tons de cinza. No título, Lygia Clark (em letras maiores) e linhas vivas (letras menores). Na parte inferior, os nomes das autoras e da Editora.
As autoras, Renata Sant’Anna e Valquíria Prates são apresentadas na contracapa do livro. As fotos de crianças das autoras aliadas ao texto explicativo remetem à infância de ambas, das relações delas com a leitura, o desenho, a pintura. Conheceram-se em um museu de arte e decidiram juntas desenhar/escrever a história da arte para crianças. As autoras Renata Sant’anna1 e Valquíria2 produziram e publicaram juntas: Regina Silveira: o olho e o lugar; Frans Crajcberg: a obra que não queremos ver; Leonilson: Gigantes com flores; Mira Schendel: atravessura.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 1 Capa do livro
A base teórica está fundamentada em autores como Bakhtin (2012); Vigotski (2010); Ponzio (2012); Goulart (2009); Kramer (2001), entre outros.
4 A leitura de Lygia Clark: linhas vivas - cores, texturas, palavras em diálogo
Goulart (2009), baseando-se em Bakhtin, mostra que a linguagem é por sua natureza dialógica. O dialogismo é o princípio que rege os fundamentos bakhtinianos e, nessa perspectiva, a condição do sentido de um discurso é o dialogismo. Duplamente dialógico, o dialogismo se realiza na interação verbal que pressupõe o diálogo entre quem enuncia e aquele a quem se destinam os enunciados, o enunciatário, e, também, no interior do discurso, em sua interdiscursividade.
Assim, tendo como referência o pensamento bakhtiniano, entendo que o princípio dialógico percorre o texto verbo-visual de tal forma que a leitura deste livro pode ser uma leitura que chamo de verbo-visual porque se faz com palavras e figuras como um só texto, uma única trama alinhavada por signos verbais e signos visuais dada a sua verbo-visualidade.
Para falar de signos verbais e visuais, trago Volochínov (2017, 91-92), que, ao tratar sobre a ciência das ideologias e a filosofia da linguagem, principia esclarecendo que “Qualquer produto ideológico [...] reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites”. Para o autor, “tudo que é ideológico possui uma significação [...] é um signo”. E conclui que “onde não há signo também não há ideologia”. Prossegue Volochínov afirmando que “qualquer corpo físico pode ser concebido como a imagem de algo [...]. Essa imagem artístico-simbólica de um objeto físico é transformada em um signo. Prosseguindo, Volochínov (2017, p. 93) define os signos como “objetos únicos e materiais [...]” que adquirem “uma significação que ultrapassa os limites da sua existência particular”. Como parte da realidade, o signo “também reflete e refrata uma outra realidade, [...] sendo por isso mesmo capaz de [...] percebê-la de um ponto de vista específico”. (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 93).
Partindo dessa conceituação, defino os signos verbais e visuais do livro Lygia Clark: linhas vivas como parte da realidade, algo que significa alguma coisa como objeto único, que reflete e refrata essa realidade plurissignificando-a ideologicamente, pois, de acordo com Volochínov (2017, p. 94), “o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos”.
Os signos verbais e visuais do livro aqui analisado criam uma cadeia ideológica interminável, de criação e de compreensão, um signo se dirige a outro em seu processo de nascimento, as interações de consciências individuais: as autoras, a artista, os leitores. Segundo Volochínov (2017, p. 96), “Um signo só pode surgir em um território interindividual”

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 2 Lygia Clark: artista e personagem numa só pessoa
O livro expressa uma arte em movimento: “novas maneiras de fazer arte”, um ato em processo, inacabado, no grande tempo vai ganhando novos sentidos. Ponzio (2012, p. 9-10), no prefácio ao texto Para uma filosofia do ato responsável de Bakhtin, analisa minuciosamente a concepção de ato. Ato como “um passo, como iniciativa, movimento, ação arriscada, tomada de posição”.
Um ato deve adquirir um plano unitário singular para ser capaz de refletir-se em ambas as direções - no seu sentido ou significado e em seu ser; ele deve adquirir a unidade de dupla responsabilidade - tanto pelo seu conteúdo (responsabilidade especial), como pelo seu Ser (responsabilidade moral). E a responsabilidade moral, além disso, deve ser trazida (deve entrar) em comunhão com a responsabilidade moral única e unitária como um momento constituinte dela. Esse é o único meio pelo qual a perniciosa divisão entre cultura e vida pode ser superada. (BAKHTIN, (1993, p. 20)
Logo no começo da leitura verbo-visual, deparo-me com os sentidos das palavras - signos verbais - e, das figuras - signos visuais -, como um ato, movimento espiral, tomada de posição da artista Lygia Clark que rompe com a arte contemplação/ consumo para encarnar a arte como ato responsivo.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 3 Opção pelo preto, branco e cinza, em desenhos e composições
E me desloco na página 6 e 7 (figura 3), para o diálogo com a própria artista que as autoras trazem para o leitor, criando um tríplice diálogo, explico, diálogo de leitora com as autoras do livro, diálogo com o texto verbo-visual e, surpreendentemente, com a própria Lygia Clark que se faz presente inteira com suas palavras: “Comecei no preto e branco [...] e fazia preto, branco e cinza”.
Minha leitura verbo-visual me remete a Bakhtin em um texto de Ponzio (2012, p. 14) para quem “o existir evento irrepetível e o ato de que participa são, fundamentalmente, exprimíveis [...] uma singularidade aberta a uma relação de alteridade consigo própria e com os outros, uma singularidade em ligação com a vida do universo inteiro, que inclui em sua finitude o sentido do infinito [...]”. Entendo que se trata da constituição do sujeito.
Já para Vigotski, de acordo com Freitas et al. (2015, p. 51),
Falar de sujeito em Vigotski é tratar de um ser em constante metamorfose. Apoiado na carga genética inerente a cada um, o ser se torna único em contato com o outro. É na coletividade, no acesso aos costumes, informações, valores e objetos presentes e disponibilizados por cada sociedade que o ser humano vai construindo sua concepção de mundo e de si próprio, se (re)criando enquanto sujeito humano.
Como leitora do livro, assumo minha condição de sujeito que lê em diálogo com as autoras, com a artista e com aqueles que lerão este artigo. Meus olhos se voltam para a página 8 e 9 do livro para ler/ver simultaneamente.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 4 Transição de cores
Em cena, Lygia Clark prossegue seu diálogo feito de palavras, formas, cores e texturas e opta por excluir as cores de sua obra. Suas palavras se revestem de sentido junto às figuras de um quadro colorido na página à esquerda, onde lemos “de lá” e para a página à direita, “para cá” onde predominam os tons de branco, cinza e preto.
Recorro novamente ao pensamento bakhtiniano para quem o “dever”, de acordo com Ponzio (2012, p. 15), significa não o dever universal, “mas, no sentido [de] que eu sozinho, e nenhum outro no meu lugar, devo responsavelmente fazer”. A minha leitura verbo-visual é um “evento único, singular, irrepetível, que caracteriza o ato, aquela unidade basilar da existência de cada um, no seu valor e na sua unidade de vivo devir e de auto-determinação”.
Dou seguimento à minha leitura verbo-visual, como ato responsável e responsivo. Nas páginas 10 e 11, leio/vejo que Lygia Clark abandona as molduras. Reflito interiormente o que isso significa não só para sua arte, mas também para as possibilidades de levar sua obra para a escola.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 5 Sem moldura, as figuras de Lygia se libertam
Entram no diálogo as autoras do livro, que narram de maneira a poetizar suas palavras, e criam efeitos estéticos em suas relações com as figuras, nestas páginas desapegadas de molduras. Sant’Anna e Prates (2016) referem-se às possibilidades da obra de Lygia habitarem novos e inusitados lugares.
Bakhtin, do ponto de vista de Ponzio (2012, p. 20) me faz pensar que o genérico “adquire sentido e valor a partir do lugar único do singular, do seu reconhecimento, na base do seu ‘não-álibi no existir’ [...].
Avanço em minha leitura verbo-visual, e a inexistência de um álibi no meu existir-evento me faz pensar que Lygia Clark assim viveu e produziu sua arte única, singular e irrepetível. Também as autoras do livro que escolherem assumir a posição e o lugar de mediar a arte contemporânea para crianças, e, finalmente, nas possíveis leituras que podem fazer as crianças, me dou conta do ato em sua singularidade e insubstituabilidade, ato que jamais pode ser indiferente, ato-consciência que me forma como pessoa e educadora e que pode formar crianças autoras e leitoras.
Ao virar a página 11 para a página 12 e 13, encontro à esquerda uma figura da artista, à direita o texto formatado entre retângulos em tons de cinza: os signos verbais e os signos visuais se abraçam, misturam-se e se interpenetram.
Leio num continuum, releio obedecendo às palavras distribuídas nas linhas. E descubro que estou sendo conduzida em minha leitura verbo-visual para um grande acontecimento. Há um suspense criado pela escolha das autoras em segmentar o texto de forma a deixá-lo inconcluso, inacabado. No final uma interrogação fecha a página: Que espaços? Sou instigada a continuar caminhando em minha leitura verbo-visual para encontrar esses espaços que habitam a obra de Lygia Clark.
Depois de algum
tempo, ela
abandonou as
formas tradicionais
de pintar - a tela,
os pincéis e a tinta de
bisnaga - e começou
a construir suas pinturas com módulos de cor.
Eram pedaços de madeira
que a artista
cortava, lixava e pintava
com pistola,
organizando-os e
colando-os em uma
superfície, como um
quebra-cabeça.
Entre um módulo e
outro, a artista
descobriu as linhas.
Linhas que
existem também
em outros
espaços.
Quais espaços?
Sigo adiante em minha leitura verbo-visual, e descubro nas páginas 14 e 15 que espaços foram esses que Lygia percorreu: entre uma porta e uma moldura, duas lajotas, tábuas. Minha imaginação produz outros espaços onde sua arte pode fazer habitar. Mas, os espaços buscam a infinitude, e a narrativa das autoras segue poetizando, e sendo poetizada pelas figuras de Lygia, nos “espaços das linhas orgânicas” [...] Lygia construiu maquetes de salas e quartos”. (SANT’ANNA; PRATES, 2006, p. 14-15).
O mesmo recurso estético empregam as autoras nas páginas 16 e 17. Aparentemente, o texto se fragmenta, mas trata-se de criar os efeitos de imprevisibilidade para que, ao chegar no final da linha, eu me mantenha atenta e, conforme vou percorrendo as palavras do texto, orginalmente distribuídas entre as figuras de Lygia Clark, um leque de possibilidades se abre para novas leituras. A artista reinventa novas maneiras de fazer arte, e as autoras prosseguem em sua narrativa poetizada.
Retomo a leitura verbo-visual e vou ao encontro dos Casulos, com inicial maiúscula, porque eles são únicos, singulares assim como Lygia Clark e sua obra inteira. Nesse estágio de sua arte inovadora, a pintura da artista escapa da tela e ganha espaços e tempos no “grande tempo” bakhtiniano, isto é um tempo indefinível que se estende num fio de finitude.
As linhas teceram outra
invenção: os Casulos.
Eles não são nem
pinturas, nem
esculturas.
Feitos de placas de
metal dobradas ou
placas de madeira
coladas, umas sobre as
outras, uma ficam entre
uma coisa e outra.
(SANT’ANNA; PRATES, 2006, p. 16)
Os novos espaços que a obra de Lygia Clark ocupa têm a ver com o lugar que ela ocupa, o lugar de onde vê o mundo e a si mesma e a sua arte. Segundo Bakhtin (2012, p. 118-119),
O lugar que eu apenas eu ocupo e onde ajo é o centro, não somente no sentido abstratamente geométrico, mas como o centro emotivo-volitivo concreto do mundo, na qual o momento espacial e temporal - o lugar real e único e irrepetível, o dia e a hora reais, únicos, históricos do evento - é momento necessário, mas não exclusivo de minha centralidade real, uma centralidade para mim mesmo. [...] esta minha participação desde um ponto concreto-singular do existir cria o peso efetivo do tempo e o valor evidente e palpável do espaço, torna todas as fronteiras importantes, não casuais, válidas: o mundo como um todo unitário e singular, vivido de maneira real e responsável.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 6 A pintura sai da tela e ocupa novos espaços
Chego aos Casulos, para a artista nem pintura nem escultura.

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 7 Os casulos
Os casulos da natureza, de uma aparência muito semelhante à seda, são construídos por lagartas que se transformam em borboletas. Para Sant’Anna e Prates (2006, p. 18), “Como na natureza, as obras de Lygia nasciam umas das outras”.
Faço uma pausa em minha leitura verbo-visual e vou pesquisar sobre os casulos. Retorno e infiro que os Casulos de Lygia Clark são os espaços que possibilitam a transformação de sua pintura, ao ultrapassar os estreitos limites de uma tela para ganhar o mundo, como as borboletas. Outra pausa em minha leitura verbo-visual para buscar o voo das borboletas e descubro que
[...] todos os anos, durante o outono, milhares de borboletas da espécie Danaus plexippus saem dos Estados Unidos e do Canadá e voam em direção ao México, onde gostam de passar o inverno. Essa jornada costuma levar vários meses e nenhuma outra espécie de inseto percorre tão longas distâncias. Popularmente conhecidas como borboletas-monarca, elas batem suas asas ao longo de uma distância de mais de 3,2 mil quilômetros. [...] elas têm um sofisticado sistema de navegação, que funciona como um GPS biológico. (CHC, 2019).
Nas páginas 20 e 21, me vejo diante de algo parecido ao origami, mas, diferentemente dele essas dobraduras lembram formas geométricas à espera que eu as movimente com meu corpo. Dos Casulos nascem os Bichos, esculturas de Lygia Clark feitas em alumínio ou cobre, que se articulam nas interações de seus participantes. Ela “torna-se uma das pioneiras na arte participativa ao convidar o observador a ‘brincar’ com os bichos, manipulando-os, dialogando e descobrindo possibilidades de formas para essas estruturas”. (BLOG, 2019). Sua obra passa a ser vista não apenas com os olhos, mas com as mãos, os participantes descobrem que esses “bichos precisam de nosso toque”. (SANT’ANNA; PRATES, 2006, p. 20).
A intenção era produzir os Bichos em série, fazer várias réplicas e vendê-las nas ruas, para que pertencessem a muitos habitantes, não só aos habituados aos museus e galerias de arte.
Suas partes de metal
(alumínio ou cobre)
parecem asas, unidas
por dobradiças que
lembram a espinha
dorsal dos animais.
Essa espinha permite
o movimento da obra,
que só acontece com
a nossa participação.
Lygia rompeu com a idéia de
que a arte deve ser apenas
observada, e propôs que as
pessoas tocassem nessas
esculturas móveis, livres do
pedestal, chamadas Bichos.
Objetos que antes pertenciam
apenas aos olhos,
agora podem ser vistos
com as mãos.
E surgem os trepantes, bichos sem dobraduras.
(SANT’ANNA; PRATES, 2016, p. 20)

Fonte: Livro Lygia Clark: linhas vivas. Sant’Anna; Prates. (2006). http://www.lygiaclark.org.br
Figura 8 Novas criaturas: Trepantes
Mudanças de Lygia:
das mãos que tocam os Bichos
para as obras que tocam o corpo.
[...]
As obras de borracha evoluíram.
Surgiram objetos de outros materiais: elástico,
pedra, sacos com água, penas e isopor.
Objetos que colocados sobre o corpo causavam
diferentes reações. As pessoas experimentavam
sensações físicas que despertavam uma relação mais
intensa com o próprio corpo.
A arte movendo o diálogo
Entre o objeto e o corpo.
Lygia Clark chega ao corpo como topos, corpo coletivo. Não se trata mais de um objeto artístico nem de uma arte perene. É o processo do fazer arte em movimento nas interações com seus participantes, coautores de sua proposta inovadora.
5 Algumas considerações: possibilidade de uma leitura verbo-visual na escola
De volta ao início deste artigo, penso que o objetivo que me propus, desvelar os sentidos gerados no processo de ler-ver o texto em sua verbo-visualidade, a fim de contribuir para a exploração desse tipo de leitura/escrita com crianças na escola, pode contribuir para sua formação leitora e autora.
Em relação ao desenvolvimento da criança, a linguagem verbo-visual do livro e as leituras que dele se podem fazer trazem uma boa contribuição para o desenvolvimento das crianças, visto que são as máximas qualidades da arte verbal e visual que devem ser oferecidas a elas para a formação de sua personalidade e inteligência.
A arte propositiva de Lygia Clark (1968), assentada no diálogo, como processo em que seu sentido é a experiencia, o ato de fazer e a forma como as autoras deram vida a essa arte favorecem a exploração do texto verbo-visual às crianças, uma vez que um objeto se revela em seu processo.
As possibilidades de exploração do livro se abrem em várias direções, uma delas é o sentido de uma leitura que pode ser vivenciada pelas crianças nas interações corpo-objeto, fundamentais para a constituição da criança como sujeito no mundo. O tateamento que podem fazer as crianças que leem/veem com o corpo para aprenderem cores, texturas, formas, linhas, vivenciando a experiência do livro.
A aprendizagem do gênero narrativa poetizada, seus efeitos estilísticos adequadamente utilizados pelas autoras do texto, inclusive trazendo falas de Lygia Clark que colaboram para essa poetização da narrativa.
Enfim, aponta caminhos possíveis que podem fazer as crianças como sujeitos de linguagem no diálogo entre signos verbais e visuais, e a atividade de refletir e refratar os signos em sua realidade, plurissignificando-os. Nesse percurso, descobrem que os signos formam uma cadeia interminável, aberta ao nascimento de novos signos gerados por elas próprias, em diálogo com as autoras do livro, a artista Lygia Clark e os participantes da sala de aula. Conclui-se que a exploração do livro Lygia Clark: linhas vivas cria possibilidades de as crianças se apropriarem da arte literária e visual em sua relação dialógica.