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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.65 São Paulo apr/june 2023  Epub 16-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n65.23363 

Artigos

ESTIGMATIZAÇÃO, ROTULAÇÃO E DESVIO EM NOSSA SENHORA DO NILO, DE SCHOLASTIQUE MUKASONGA (2017)

STIGMATIZATION, LABELING AND DEVIATION IN NOSSA SENHORA DO NILO, BY SCHOLASTIQUE MUKASONGA (2017)

ESTIGMATIZACIÓN, ROTULACIÓN Y DESVIACIÓN EN NOSSA SENHORA DO NILO, POR SCHOLASTIQUE MUKASONGA (2017)

Elodia Honse Lebourg, Mestra em Educação1 
http://orcid.org/0000-0001-8521-0389

Filipe Cotta Barbosa, Mestre em Educação2 
http://orcid.org/0000-0003-1689-5323

Priscila de Oliveira Coutinho, Doutora em Sociologia3 
http://orcid.org/0000-0002-7178-2789

Maria Amália de Almeida Cunha, Doutora em Educação4 
http://orcid.org/0000-0002-0233-3883

1Mestra em Educação, Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Ouro Preto, Minas Gerais - Brasil.

2Mestre em Educação, Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, Mariana, Minas Gerais - Brasil

3Doutora em Sociologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil

4Doutora em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil


Resumo

Este artigo analisou os processos de estigmatização, rotulação e desvio no ambiente escolar, tomando como objeto heurístico o romance Nossa Senhora do Nilo, da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga (2017). Articulando testemunho e elaboração ficcional, a escritora expôs as marcas do colonialismo diante das relações culturais, sociais e religiosas ao ilustrar o cotidiano de uma escola católica exclusiva para meninas (filhas da elite política e econômica hutu de Ruanda, em sua maioria) em meio ao conflito entre tutsis e hutus que resultou em uma guerra civil (1990-1994) e, posteriormente, no genocídio de Ruanda (1994). O artigo está dividido em três seções. Na primeira, tratamos de como a autora elabora o trabalho da memória em sua obra literária. Na segunda, apresentamos os conceitos de estigmatização, rotulação e desvio à luz de obras clássicas, mas também de estudos contemporâneos sobre o tema. Na terceira seção, analisamos o capítulo “O nariz da Virgem”, de Nossa Senhora do Nilo, articulando-o aos fenômenos da estigmatização e da rotulação que, naquele contexto, contribuiu para que estudantes tutsis fossem perseguidas e mortas no liceu, com o consentimento silencioso ou declarado dos professores e dirigentes da instituição. Nas considerações finais, refletimos sobre a fecundidade de estudos que conjuguem analiticamente os campos da Sociologia e da Literatura.

Palavras-chave: educação; estigma; literatura; sociologia.

Abstract

This article analyzed the processes of stigmatization, labeling and deviation in the school context, taking as a heuristic object the novel Nossa Senhora do Nilo, by the Rwandan writer Scholastique Mukasonga (2017). Articulating testimony and fictional elaboration, the writer exposed the marks of colonialism in the face of cultural, social and religious relations by illustrating the daily life of a Catholic school exclusively for girls (daughters of the Hutu political and economic elite of Rwanda, for the most part) amid the conflict between Tutsis and Hutus that resulted in a civil war (1990-1994) and later in the Rwandan genocide (1994). The article is divided into three sections. In the first, we deal with how the author elaborates on the work of memory in her literary. In the second, we discuss the concepts of stigmatization, labeling and deviance in the light of classic works, as well as more recent studies on the subject. In the third section, we analyze the chapter “O nariz da virgem”, from Nossa Senhora do Nilo, linking it to the phenomenon of stigmatization and labeling that, in that context, contributed to Tutsi students being persecuted and killed in high school, with their consent either silent or declared by the professors and directors of the institution. In the final considerations, we reflect on the fruitfulness of studies that analytically combine the fields of Sociology and Literature.

Keywords: education; stigma; literature; sociology.

Resumen

Este artículo analizó los procesos de estigmatización, etiquetado y desviación en el ámbito escolar, tomando como objeto heurístico la novela Nossa Senhora do Nilo, de la escritora ruandesa Scholastique Mukasonga (2017). Articulando testimonio y elaboración ficcional, la escritora expuso las marcas del colonialismo frente a las relaciones culturales, sociales y religiosas al ilustrar la vida cotidiana de una escuela católica exclusivamente para niñas (hijas de la élite política y económica hutu de Ruanda, en su mayoría parte) en medio del conflicto entre tutsis y hutus que desembocó en una guerra civil (1990-1994) y más tarde en el genocidio de Ruanda (1994). El artículo está dividido en tres secciones. En el primero, nos ocupamos de cómo la autora elabora el trabajo de la memoria en su obra literaria. En el segundo, presentamos los conceptos de estigmatización, etiquetado y desviación a la luz de obras clásicas, pero también de estudios contemporáneos sobre el tema. En la tercera sección, analizamos el capítulo “O nariz da Virgem”, de Nossa Senhora do Nilo, vinculándolo a los fenómenos de estigmatización y etiquetaje que, en ese contexto, contribuyeron a que estudiantes tutsi fueran perseguidos y asesinados en la escuela secundaria, con su consentimiento, en silencio o declarado por los profesores y directores de la institución. En las consideraciones finales, reflexionamos sobre la fecundidad de los estudios que combinan analíticamente los campos de la Sociología y la Literatura.

Palabras clave: educación; estigma; literatura; sociología.

Introdução

Este artigo pretende, por meio de uma perspectiva sociológica, refletir sobre os conceitos de estigmatização, rotulação e desvio no ambiente escolar, tomando como objeto heurístico o romance Nossa Senhora do Nilo, da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga (2017). Em todos os seus livros1, a autora mencionou, com maior ou menor abrangência, a vida escolar em Ruanda, em uma espécie de memória etnográfica que narra os horrores, bem como o testemunho daquele que ficou conhecido como o último genocídio do século XX.

Publicada originalmente em 2012, Nossa Senhora do Nilo se desenrola, prioritariamente, em um liceu homônimo. Considerado uma instituição voltada para a formação da futura elite feminina de Ruanda, o liceu funcionava como um colégio interno, era administrado por religiosos católicos e recebia estudantes meninas ou jovens, “filhas de ministros, de militares de alta patente, de homens de negócios, de ricos comerciantes” (MUKASONGA, 2017, p. 5). A maioria dessas estudantes era de origem hutu, mas o liceu aceitava a matrícula de algumas poucas tutsis, alunas cotistas cuja presença servia para mostrar um certo distanciamento da Igreja dos conflitos que ela se esforçava para rotular convenientemente como étnicos, ou seja, próprios de uma espécie de essência histórica ruandesa e desvinculados da colonização belga.

Para expor nossa argumentação, dividimos o texto em três seções. Na primeira, tratamos de como Mukasonga elabora o trabalho da memória (individual e coletiva) por meio de sua obra literária. Na segunda, apresentamos os conceitos de estigmatização, rotulação e desvio à luz de pesquisadores clássicos, sobretudo de Erwin Goffman (1981) e Howard Becker (2008). Também trouxemos contribuições mais contemporâneas, com trabalhos sobre estigmatização no contexto escolar (CROIZET; MARTINOT, 2003; SCHILLING; MIYASHIRO, 2008; JUNQUEIRA, 2010). Na terceira seção, enfocamos o capítulo “O nariz da Virgem”, de Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), para perceber como a estigmatização e a rotulação naquele contexto contribuíram para que estudantes tutsis fossem perseguidas e mortas no liceu, com o consentimento silencioso ou declarado daqueles que dirigiam a instituição e de seus professores. Por fim, nas considerações finais, refletimos sobre a fecundidade de análises que articulam os campos da Sociologia e da Literatura.

1 O trabalho da memória na obra de Scholastique Mukasonga

“Em vez de escritora, prefiro me chamar de contadora de histórias, como deveriam ser as mães ruandesas, porque, como diz o ditado, ‘umuntu uca umugani ntagira inabi ku mutim’, quem conta uma história não tem ódio no coração” (LUCAS, 2020, p. 3). Na entrevista concedida a Julian Lucas (2020, p. 13), a escritora Scholastique Mukasonga localiza a si mesma no campo literário como uma contadora de histórias, ao destacar a dimensão ancestral da sua literatura: “tudo o que tenho a fazer é cavar o baú dos contos de minha mãe”, ela diz. A escrita da autora ruandesa se deu na urgência do cumprimento de um dever de registro das memórias que ela temia perder. Trata-se também de uma literatura enraizada no luto: Mukasonga perdeu quase toda a sua família no massacre da etnia tutsi, à qual pertencem. Embora o genocídio tivesse ocorrido ao longo da guerra civil, de 1990 a 1994, o conflito entre hutus e tutsis foi gestado ao longo das décadas anteriores, e deve ser compreendido no âmbito das transformações forçadas pelo processo de colonização. É o que a autora ruandesa nos esclarece:

após a colonização, os europeus interpretaram a história de Ruanda em termos de raças, invasão e feudalismo. Foi o nascimento de um mito etnológico, amplamente difundido na literatura acadêmica e missionária, que criou uma divisão catastrófica. Os tutsis tornaram-se estranhos em seu próprio país, estrangeiros que era necessário caçar ou exterminar. Haveria “verdadeiros ruandeses” - hutus com direito à terra - e aqueles que não estão em casa, os tutsis. A criação belga de uma carteira de identidade étnica em 1931 selaria a divisão (LUCAS, 2020, p. 9).

Enquadrando o massacre não como conflito étnico, mas como genocício cujas raízes sócio-históricas se situam no processo de colonização, Mukasonga o retira do registro etnicista que atribui as mazelas africanas às suas especificidades geoculturais para localizá-lo como consequência de processos de dominação dos estados pós-coloniais. Essa interpretação está afinada com visões que comparam o genocídio ruandês ao genocídio armênio e ao holocausto. Junto de outros analistas, Jean-Pierre Chretien (1995, p. 131) denominou o caso ruandês de “nazismo tropical”, em uma analogia para “fazer as pessoas compreenderem que a África não pode estar localizada fora de uma reflexão estritamente histórica. Suas especificidades geoculturais não devem nos cegar para a natureza exemplar de situações, além de qualquer exotismo de superfície”.

A literatura de Mukasonga, ao revelar os longos processos subterrâneos cuja eclosão surpreendeu o mundo entre os anos 1990 e 1994, faz face a perspectivas essencialistas e despolitizantes do conflito. A escritora procede, então, tanto nos seus primeiros livros, diretamente autobiográficos, quanto no romance aqui analisado, a um esforço de evocação da memória individual, que é também trabalho da memória coletiva. Mukasonga admite explicitamente que se esforça em colaborar para o enquadramento da memória coletiva quando apresenta sua esperança de uma Ruanda reconstruída sob as bases daquela mesma tradição da qual ela diz herdar sua maneira particular de contar histórias:

meu projeto seria escrever sobre uma Ruanda desimpedida, porque não se quer ser refém da história. Não é que vamos apagar os anos entre 1960 e 1994. Mas para construir uma casa, você precisa de um alicerce. Para construir uma Ruanda sólida é preciso ir ao passado, à Ruanda de outros tempos [...]. Então, vou escrever sobre a nova Ruanda - isso é uma obrigação - mas com base na tradição ruandesa. Não no vazio (LUCAS, 2020, p. 12-13).

Na obra da autora, o elemento autobiográfico, portanto, é primordial. Ele compõe não somente a sua estética, mas também está atrelado à função que atribui à sua literatura, ciente que é da estreita ligação fenomenológica entre memória e identidade (POLLACK, 1992). Em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), ela manipula criativamente a contiguidade entre ficção e realidade, ao produzir, naquele terceiro continente - nem o ficcional nem o documental -, o que Ivan Jablonka (2017, p. 7) nomeia de literatura do real, que “abriga um pensamento histórico, sociológico e antropológico rico em diversificadas ferramentas de inteligibilidade: uma maneira de compreender o presente e os passados que afloram sob ela”.

O romance de Mukasonga (2017) também possui uma excelência descritiva que, muitas vezes, se aproxima da força imagética de uma fotografia (SONTAG, 2003). A propósito desse diálogo entre o relato escrito e a fotografia (esta que só tem uma língua, ao contrário da literatura), há uma passagem da obra em que ele se apresenta. Logo no início, a autora narra um episódio em que três meninas, de diferentes etnias, fazendo a limpeza da biblioteca do liceu, encontram, por acaso, as fotografias da inauguração do colégio. Elas notaram que a fotografia já decorara a sala de espera, o que se podia perceber pelas marcas retangulares e pálidas na parede. Embora escondidas e riscadas (canetas vermelhas marcavam os tutsis retratados), as imagens documentam, com incontestáveis traços de dignidade e distinção, a participação de um conjunto de autoridades da etnia tutsi naquele evento. Assim, o desarquivamento das fotografias nos fala sobre o resgate, pela imagem fotográfica, dos recursos insidiosos que operaram o extermínio cultural, político e econômico iniciado nos anos de colonização europeia e ainda em prática no período pós-colonização (RODRIGUES, 2020).

A literatura pode ser o espaço exemplar para articulação das memórias individuais e coletivas, quando os acontecimentos vividos ou percebidos pessoalmente discorrem em lugares da memória - os locais de comemoração e ensino, de peregrinação religiosa, os monumentos, o mercado, a praça etc. - e encontram personagens prenhes de elementos que habitam o inconsciente coletivo. A memória herdada pela autora possui traços na memória coletiva, que, uma vez elaboradas literariamente, passarão a habitar o imaginário de seus leitores, especialmente dos ruandeses, que os reconhecerão, se não na sua própria experiência, nos relatos de seus ancestrais.

Em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), o desvelamento do processo de estigmatização dos tutsis parece-nos cumprir uma tarefa pedagógica fundamental, pois apresenta subsídios narrativos que possibilitam a compreensão dos processos sociais que produziram a progressiva desumanização das mulheres, crianças e homens daquela etnia. Embora a Sociologia precise se valer de “ficções metodológicas” (JABLONKA, 2017, p. 13) para nomear o percebido na realidade, muitas vezes não temos os recursos narrativos ou os detalhes descritivos que trariam a inteligibilidade dessas noções e conceitos. A riqueza das descrições do social, com o alcance das filigranas do real, costuma combinar mais com a liberdade expressiva da Literatura do que com a narrativa explicativa da Sociologia. Pretendemos, nas seções seguintes, unir essas duas frentes para analisar os processos de estigmatização no contexto escolar.

2 Estigmatização, rotulação, desvio e educação escolar

Em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), a escola é o cenário privilegiado. Nele, o estigma dirigido ao outro, tido como “parasita”, errático, estrangeiro na própria pátria, ganha força na voz, crenças e atitudes dos personagens. A rica e perspicaz narrativa nos leva a perceber como a violência, seja ela física ou psíquica, reifica os sujeitos a ela submetidos. Antes, porém, de nos debruçarmos sobre os aspectos narrativos, vamos nos dedicar aos conceitos de estigmatização, rotulação e desvio.

Em Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Erwin Goffman (1981) discorreu sobre as articulações sociais responsáveis por assegurar e reproduzir marcas que impactam os indivíduos. Os estigmatizados, portadores de traços entendidos como falhas de caráter, não são aceitos socialmente de forma plena entre os seus pares; pelo contrário, são percebidos como pessoas moralmente inferiores e desqualificadas diante das convenções sociais. Assim, passam a ser indesejados pelos outros indivíduos que supervalorizam o seu “defeito” para além dos seus outros atributos. Para o pesquisador, há três variações responsáveis por fomentar o descrédito dos indivíduos estigmatizados: as deformidades físicas; os desvios de caráter; e o estigma tribal, relacionado à raça, à religião ou à nação - o que mais se relaciona à realidade apresentada em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017).

A contribuição sociológica de outro teórico da abordagem do interacionismo simbólico, Howard Becker (2008), criador da teoria da rotulação social, também nos interessa pela possibilidade de compreensão dos tratamentos discriminatórios respaldados em parte pela sociedade. O pesquisador assinalou a importância de dimensionar a construção social do desvio a partir de seu caráter político, ou seja, para compreender o desviante, também é necessário investigar o que e quem está na base da concepção desse desvio. Aqui, não é somente o “crime” que importa, mas o papel social daqueles que contribuem para a formalização dos comportamentos considerados desviantes.

Sua análise é fundamental para a compreensão da importância atribuída aos padrões de comportamentos de determinadas sociedades, bem como dos seus mecanismos para a legitimação. Interessado em estudar o impacto social de atitudes que não condizem com a expectativa regular, sua teoria analisa como os indivíduos rotulam ou recebem o rótulo de desviantes. Para o pesquisador, a condição de desviante só existe devido à criação de regras por grupos sociais e pela reação dos sujeitos diante das condutas consideradas inadequadas. Além disso, as regras não são verdades absolutas e estão expostas aos conflitos inerentes às sociedades (BECKER, 2008).

Já Fernanda Junqueira (2010) fez uma releitura desses clássicos acima mencionados valendo-se de um estudo de abordagem interacionista para analisar os tipos de expressão violentas e criminosas no espaço escolar, a partir da noção de construção social do desvio. Seu objeto empírico são estudantes de uma escola estadual na cidade de Juiz de Fora-MG. Sua opção pela abordagem interacionista considera que toda moralidade é socialmente construída a partir dos grupos sociais e seus contextos históricos. Esse argumento é oportuno para a reflexão que faremos a respeito de como o conflito entre hutus e tutsis se refletiu no liceu Nossa Senhora do Nilo.

Ao justificar seu interesse por analisar a estigmatização e a rotulação na escola, Junqueira (2010) destacou a importância desse espaço como instância educadora, referência de socialização secundária e meio que reflete toda a diversidade de interações e relações ali estabelecidas e que estão em contínua transformação. As escolas são, ainda, ambientes de classificação e de nomeação dos variados atores sociais que as frequentam. Nelas, as identidades e as trajetórias dos indivíduos são, frequentemente, ressignificadas e sofrem múltiplas influências. Além disso, os espaços escolares testemunham diversos tipos de expressões violentas e desencontros, que se expressam por meio de confrontos, de estigmatizações e de rotulações, como no caso do liceu retratado na obra de Mukasonga (2017).

Na escola selecionada para a realização do seu trabalho de campo, Junqueira (2010) observou que as situações de violência se relacionavam diretamente aos processos de classificação de certos grupos de estudantes, sobretudo, por seus professores. Os profissionais entrevistados pela pesquisadora informaram que o aumento percebido nas situações de criminalidade e de violência na instituição estavam relacionados às transformações da sociedade. Segundo eles, essas mudanças afetavam negativamente a escola e os estudantes, especialmente os jovens - o que reforça uma noção depreciativa e delinquente da juventude, amplamente discutida em outros estudos sobre o tema2. Também observamos isso em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), quando, mesmo diante da construção de um conflito que poderia vir a culminar no assassinato das estudantes tutsis matriculadas no liceu, a equipe escolar ou se absteve de agir preventivamente ou encorajou essa intenção, como no caso do Padre Herménégilde, ainda que fosse considerado a “caridade em pessoa”, conforme descreveremos melhor a seguir.

Também cabe ressaltar o levantamento bibliográfico realizado por Jean-Claude Croizet e Delphine Martinot (2003) referente às pesquisas responsáveis por refletir sobre a estigmatização, a discriminação e sua relação intrínseca com a autoestima dos indivíduos envolvidos. Esse estudo da Psicologia Social evidenciou o doloroso e desafiador percurso enfrentado por estigmatizados, especialmente por grupos minoritários, durante o processo de construção da autopercepção. Segundo os pesquisadores, os indivíduos discriminados tendem a apresentar mais problemas referentes à saúde mental e, igualmente, ao enfraquecerem a sua autoestima, sofrem mais nas relações pessoais e sociais. Há algumas estratégias adotadas por indivíduos discriminados que auxiliam na preservação da sua autoestima diante da necessidade de defenderem sua integridade, embora essas estratégias demandem um enorme custo social. Acreditamos que esse argumento também possa nos ajudar a compreender melhor a personagem Modesta, uma jovem “meio” tutsi que colaborava com os planos da colega hutu Gloriosa, conforme apresentaremos em seguida.

A última contribuição teórica que apresentamos se refere ao estudo sobre crianças e jovens marcados pelo encarceramento de um dos seus pais, realizado por Flávia Schilling e Sandra Miyashiro (2008). Com base na teoria de Goffman (1981) e de Zygmunt Bauman (1999), as pesquisadoras desenvolveram um debate sobre os conceitos de estigma e de preconceito com o intuito de promover uma reflexão sobre as origens históricas (advindas das teorias pseudocientíficas do eugenismo e do higienismo), no Brasil, do olhar pejorativo voltado para os filhos de presidiários.

Para compreender o movimento de legitimação desse estigma, Schilling e Miyashiro (2008) apresentaram observações e indagações a respeito dos conceitos de “normalidade” e “anormalidade” que, de forma frequentemente aceita, se referem aos desviantes das normas e/ou aos indivíduos que causam desconforto pela sua diferença relacionada à sua cultura, ao seu comportamento ou aos seus traços físicos. A condição de “normalidade” diz respeito justamente à adequação às normas e aos padrões estabelecidos pela sociedade. Entretanto, há indivíduos que não estão inseridos nos grupos dos reconhecidos como anormais e, tampouco, nos grupos dos normais: os filhos de presidiários, por exemplo, transitam entre esses grupos em sua ambiguidade e demonstram que a condição de estigma diz respeito ao contexto sociocultural e varia de acordo com as circunstâncias em que se está inserido.

O entendimento de Schilling e Miyashiro (2008) a respeito das contradições dos espaços escolares é pertinente para a discussão que estamos tecendo. Embora percebidas como espaços exemplares para a formação de uma sociedade inclusiva, por vezes, as instituições escolares carecem de ações críticas capazes de extrapolar as construções históricas e culturais de determinadas sociedades. Os efeitos nocivos advindos das relações preconceituosas, do estigma e da discriminação exercem, sobre os indivíduos que as frequentam, impactos tanto nas suas atitudes sociais, quanto na sua forma de lidar com as suas questões subjetivas.

Com base nessas contribuições conceituais sobre estigmatização, rotulação e desvio, refletiremos, a seguir, sobre os mecanismos que operam e legitimam os discursos discriminatórios. Para isso, conforme mencionamos, analisaremos um capítulo do romance de Scholastique Mukasonga (2017).

3 Estigmatização, rotulação e desvio no liceu Nossa Senhora do Nilo

O trecho de Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017) que enfocamos narra a jornada de Gloriosa, uma estudante hutu, membro do partido do povo majoritário e filha de um ministro do governo de Ruanda, para alterar os traços da imagem de Nossa Senhora do Nilo, que ficava próxima ao liceu homônimo. No capítulo “O nariz da santa”, a autora contou que a jovem havia notado que o rosto da imagem tinha o nariz afunilado, como o dos tutsis e, por isso, não queria mais rezar para a estátua. Ao longo da obra, acompanhamos as práticas religiosas católicas das estudantes do liceu - entre elas, Gloriosa -, mas essa devoção não foi suficiente para barrar seu desejo de mudar o rosto da imagem sacra, ainda que isso significasse vandalizá-la. Isso nos remete a uma observação de Goffman (1981), para quem os impactos no convívio social são capazes de causar danos profundos para os estigmatizados, quanto mais visíveis são suas marcas físicas ou quando são transmitidas por descendência familiar. No caso de Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), essas marcas estavam presentes nos semblantes das estudantes hutus e tutsis e, como vimos, até no nariz da santa.

Gloriosa havia, então, decidido que conversaria com seu pai, que já vinha implementando seu propósito de “des-tutsizar” as escolas e o governo de Ruanda, para tomar alguma providência a respeito da santa. Também convocou Modesta - sua amiga e amante, de origem “meio” tutsi - para ajudá-la a substituir o nariz da santa por um parecido com o dos hutus, mais alargado. Ao ser questionada por Modesta, que estava assustada com a ideia e temia algum tipo de repreensão, Gloriosa respondeu que considerava sua atitude um gesto político e que esperava até ser parabenizada.

A aceitação de Modesta em participar dessa empreitada merece nossa atenção. Filha de mãe tutsi e de pai hutu, a jovem não se encaixava plenamente em nenhum dos dois “lados”. Por ser “meio” tutsi, sua sobrevivência nunca estava assegurada no contexto do conflito étnico. Para refletir sobre sua adesão, ainda que insegura, aos planos de Gloriosa que poderiam colocar sua vida ainda mais em risco, recorremos a Baumann (1999), que assinala que os indivíduos estigmatizados refletem a ambivalência e a insegurança de suas identidades por compartilharem o estigma herdado e, ao mesmo tempo, por viverem com a sua incompatibilidade. O resultado é a fragilização da sua identidade, em que o indivíduo reconhecido como estranho desenvolve a descrença em si, bem como sofre com o descrédito dos que o cercam.

Reconhecemos, aqui, que a estrutura social não separa o estigmatizado do indivíduo que se relaciona com ele, o que Goffman (1981, p. 6) denomina como “estigma de cortesia”, em que o indivíduo enfrenta múltiplas consequências no desenvolvimento das suas relações sociais, uma vez que deixa de ser considerado “criatura comum e total” e passa à condição de “pessoa estragada e diminuída”, daí a improvável amizade entre as duas jovens, que se caracterizava por uma relação de dependência mútua, de afetos sexuais e, em muitas situações, de sujeição de Modesta à amiga hutu.

Retomando a narrativa de Mukasonga (2017), vemos que o plano de deformar a imagem da santa estava pronto: na noite anterior à costumeira peregrinação que as estudantes do liceu e alguns membros da comunidade fariam para rezar aos pés da imagem, Gloriosa e Modesta quebrariam o nariz da Nossa Senhora do Nilo e, no lugar dele, modelariam um nariz hutu. Para garantir que a ideia seguiria como o esperado, as duas decidiram ir até a nascente onde a imagem estava fixada. Na tentativa de chegarem a ela, Gloriosa acabou caindo sobre Modesta e ambas se machucaram, se sujaram e rasgaram suas roupas. Para explicarem o estado em que se encontravam, Gloriosa decidiu que informariam terem sido atacadas por tutsis inyenzis3 que habitavam as montanhas e que tentaram as estuprar. Conhecer a resposta de Gloriosa, proferida diante da perplexidade de Modesta, é fundamental para nossa reflexão:

meu pai sempre diz que a gente precisa repetir sem parar que ainda existem inyenzis, que eles estão sempre prontos para voltar, que se infiltram entre a gente, que os tutsis que sobraram esperam impacientes, e até os meio tutsis, como você. Meu pai diz que a gente deve sempre assustar as pessoas (MUKASONGA, 2017, p. 215).

Nesse ponto, a contribuição de Becker (2008, p. 22) pode nos auxiliar a compreender o que está por trás da fala do pai de Gloriosa, repetida pela jovem, quando assinala que grupos sociais estabelecem determinadas regras que, quando não são cumpridas, caracterizam o desvio e servem para rotular seus infratores como outsiders: “o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’”. Sabemos que esse fenômeno de estigmatização e rotulação se manifestou no decorrer do conflito que resultou no genocídio dos tutsis, em Ruanda, na década de 1990, uma vez que, durante anos, operou, sobre eles e sem seu consentimento, um discurso que os comparava a baratas, que os acusava de serem adoradores do diabo, assassinos e estupradores que deveriam ser eliminados. Gloriosa, provavelmente, estava se aproveitando desse contexto para se livrar do castigo por ter saído do liceu à noite e sem permissão.

Retomando a síntese do trecho, depois de terem passado a noite em um abrigo e retornarem ao liceu, Gloriosa contou sua versão a uma das freiras e à madre superiora e acusou os inyenzis pelo suposto crime cometido contra ela e Modesta. A cada vez que repetia a história, exagerava nos detalhes e passou a afirmar que eles tinham um plano de atacar o liceu e de estuprar, torturar e matar todas as estudantes e as religiosas. Ao seu lado, Modesta chorava e acabou não sendo ouvida. A denúncia da estudante hutu foi considerada suficiente para mobilizar a instituição, os políticos e a polícia local, que formaram um conselho de guerra. Logo, as aulas foram suspensas, facas da cozinha foram distribuídas aos empregados e as estudantes passaram a noite em vigília na capela, com o padre Herménégilde. Em poucas horas, os boatos já contavam que “o presidente tinha havia sido assinado, que os inyenzis tinham atravessado o lago, que os russos tinham dado a eles armas monstruosas, que eles iriam matar todo mundo” (MUKASONGA, 2017, p. 217).

O que Scholastique Mukasonga (2017) conta em seguida é que, embor a o liceu não tenha sido atacado por tutsis naquela noite - e nem em nenhuma outra -, Gloriosa continuou a narrar e a exagerar a história do ataque. Para militares que ocuparam o liceu, afirmou ter reconhecido Jean Bizimana, um tutsi dono de uma lojinha, como um dos seus agressores. O moço foi preso e levado imediatamente a uma prisão no norte do país, de onde, segundo o prefeito, teria poucas chances de retornar. Os militares também vasculharam os terrenos da região, não encontraram nenhum inyenzi, mas afirmaram que “foi uma boa operação: nunca é demais lembrar aos tutsis que, aqui em Ruanda, eles são apenas baratas, inyenzis” (MUKASONGA, 2017, p. 220). O episódio também foi publicado em um jornal, com a manchete: “duas alunas heroicas põem em fuga criminosos perigosos que tinham vindo semear a desordem no país” (MUKASONGA, 2017, p. 220-221). Aqui, podemos inferir o quanto narrativas fantasiosas, como a de Gloriosa, reforçadas pela adesão da imprensa e de grupos militares, podem ter colaborado para que a estigmatização dos povos tutsis se acentuasse. Em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), ela foi suficiente para instalar uma situação de caos e de perseguição completamente manipulada pela estudante hutu.

O propósito de “des-tutsizar” a escola, promovido por Gloriosa, continuou. Semanas depois, às vésperas da peregrinação, ela e Modesta tentaram substituir efetivamente o nariz da santa. No entanto, ao martelar o rosto da imagem, Gloriosa se desequilibrou e acabou quebrando-a completamente. Dessa vez, as duas voltaram ao liceu sem chamar a atenção. Gloriosa optou por aguardar a comoção gerada pela peregrinação no dia seguinte, diante da imagem esfacelada, para bradar, ao lado da madre superiora:

minhas amigas, não é em meu nome que falo aqui, mas em nome do partido, do Partido do povo majoritário. [...] nós sabemos bem: os que cometeram esse crime foram os nossos inimigos de sempre, os algozes de nossos pais e de nossos avós, os inyenzis. São os comunistas, os ateus. Eles são guiados pelo diabo. Como na Rússia, querem queimar igrejas, matar os padres e os religiosos, perseguir os cristãos. Eles estão em todo canto, tenho até medo de que estejam aqui entre nós, em nosso liceu. Mas confio no senhor prefeito e em nossas forças armadas, eles sabem fazer bem o seu trabalho. Mas o que eu gostaria de dizer é que, em breve, teremos uma nova estátua da Nossa Senhora do Nilo e ela será uma ruandesa de verdade, com o rosto do povo majoritário. [...] Mas nosso liceu, vocês sabem, ainda está cheio de parasitas, de impurezas, de imundices, que fazem este lugar ser indigno para receber a verdadeira Nossa Senhora do Nilo. Sem mais demora, precisamos começar o trabalho. Precisamos limpar tudo (MUKASONGA, 2017, p. 229-230, grifos nossos).

Novamente, Gloriosa se valeu da estigmatização sofrida pelos tutsis para insuflar os ânimos das colegas. A leitura do seu chamado para que começassem um trabalho de “limpeza” étnica no liceu é o prenúncio de que as páginas seguintes conteriam relatos de violência e medo. Nesse sentido, percebemos o quanto os danos da estigmatização, da rotulação e do preconceito exercem forte influência na estrutura de determinada realidade por promoverem identidades corroídas. Ao fomentar a exclusão de membros do corpo social, de acordo com Goffman (1981), essas categorias têm auxiliado a afastar as minorias étnicas, religiosas e sociais dos espaços de prestígio e das vias de competição. Portanto, a classificação adotada por determinados grupos inferioriza o outro grupo e legitima a opressão e, em casos mais graves, até o assassinato, como na história que estamos analisando.

Nos dias seguintes, Gloriosa colocou seu plano de “limpeza” em ação com a ajuda de policiais, de políticos, de jovens militantes do partido do povo majoritário e, principalmente, do padre Herménégilde. Também contou com o silêncio da madre superiora, das freiras e de todos os professores do liceu. Aqui, retomamos o caso da escola analisada por Junqueira (2010), que observou que muitos professores haviam estabelecido estratégias de classificação dos estudantes e distinguiam aqueles considerados “problemáticos” dos demais. Ao enfatizar a construção social do desvio, a pesquisadora ressaltou que, na instituição investigada, os indivíduos considerados desviantes eram aqueles que, de alguma forma, não se adequavam aos padrões aceitos e determinados socialmente. Essa categorização passava a orientar ações discriminatórias que resultavam em sua diferenciação e segregação, uma conclusão que pode nos ajudar a compreender o silêncio dos professores do liceu diante das ameaças concretas às vidas das estudantes tutsis.

Também recorremos à pesquisa de Schilling e Miyashiro (2008), que evidenciou o mecanismo do estigma que impacta filhos de encarcerados ao herdarem as imagens de aversão e preconceito, uma vez que o estigma do progenitor presidiário se estende para os seus filhos. Esse entendimento pode se relacionar à noção da herança étnica dos tutsis, que justificou, no caso da obra analisada que, no interior de uma instituição escolar, fosse planejada a execução de um grupo de jovens estudantes sem que os religiosos, os professores e os funcionários se manifestassem contrários a isso. A esse respeito, segundo Bauman (1999, p. 79), quando os sinais do estigma são fortemente consolidados em uma sociedade, devido às suas construções sócio-históricas, “uma categoria só pode deixar de ser estigmatizada se o significante do estigma for reinterpretado como inócuo ou neutro”. Assim, na produção de Mukasonga (2017), além da nítida ausência de acolhimento por parte do ambiente escolar diante das questões preconceituosas vivenciadas por estudantes tutsis, a falta de interesse em abordar tais tópicos discriminatórios favoreceu a perpetuação da estigmatização que, em último momento, propiciou os trágicos eventos.

Para materializar sua proposta “des-tutsizante”, Gloriosa determinou que essas jovens deveriam ficar isoladas das hutus e também entre si, e que só poderiam comer as sobras dos alimentos preparados no liceu. Dias depois, um violento ataque ocorreu e algumas dessas estudantes conseguiram fugir, mas várias foram agredidas. Na narrativa, não fica claro quantas foram assassinadas, mas Verônica, estudante tutsi, foi atacada por vários homens e morta por empalamento. Naqueles dias, a imagem da Nossa Senhora do Nilo, com semblante hutu, chegou ao liceu e Gloriosa revelou a uma colega que seu propósito, na verdade, era o de matar duas colegas de sala que eram tutsis (uma delas era Verônica), pois “não suportava a ideia de vê-las ao lado dela na entrega solene dos diplomas” (MUKASONGA, 2017, p. 254).

Nesse sentido, a análise empreendida por Becker (2008) a respeito da estigmatização reforça o compromisso de combater uma imposição vertical de definições, de ampliar a compreensão dos diversos grupos sociais e de evidenciar a pluralidade de valores além do padrão vigente na sociedade. Por isso, ela também amparou a nossa reflexão sobre os processos de exclusão das estudantes tutsis do liceu Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017) ao lançar luz sobre a historicidade dos padrões dominantes em alguns casos impostos por indivíduos poderosos - como no caso dos professores e de algumas estudantes hutus. Ao conhecermos a real intenção de Gloriosa, ressaltamos que aqueles considerados desviantes não são, necessariamente, indivíduos que infringiram uma regra social. Para muitas pessoas rotuladas com algum tipo de desvio, o desviante seria justamente aquele que tomou a iniciativa da tipificação (BECKER, 2008), o que procede quando analisamos a atuação da estudante Gloriosa, que criou estratégias para assassinar várias de suas colegas dentro do liceu, e também o genocídio de Ruanda, que, entre outras formas de violência, culminou com o assassinato de cerca de 800.000 pessoas em 100 dias.

Considerações finais

Em Nossa Senhora do Nilo (MUKASONGA, 2017), a representação de um liceu composto majoritariamente por filhas da elite hutu ruandesa e marcado pela hostilidade diante de alunas tutsis é capaz de exemplificar os mecanismos de produção e reprodução do estigma social. Segundo Goffman (1981), quando um indivíduo é estigmatizado, ou quando recebe o “estigma de cortesia”, são múltiplas as consequências sofridas por ele no desenvolvimento das suas relações sociais. No mesmo sentido, para compreender como os discursos que rotulam são socialmente sustentados, é necessário analisar quais são os padrões físicos e comportamentais estipulados como superiores por uma determinada sociedade. De acordo com Becker (2008), para entender o sujeito rotulado/desviante, é fundamental compreender as lógicas sociais que imperam na sua realidade, bem como o papel exercido pelos rotuladores dentro dos mecanismos de satisfação das expectativas padrões. Ou seja, as convenções que ditam quem é desviante ou não fazem parte de um contexto que deve ser sócio-historicamente compreendido.

Na obra literária aqui estudada, quando olhamos para o tratamento pejorativo propagado pelas estudantes hutus e consentido pelos funcionários do liceu, é fundamental analisarmos a produção histórica dos conflitos ocorridos notadamente ao longo do século XX em Ruanda. A obra de Mukasonga nos ajuda a compreender como tal produção, antes de ganhar a abrangência de um genocídio, foi gestada em diversos microcosmos, como a escola, instância socializadora e formadora que tanto pode ser um importante espaço para a promoção da igualdade e do respeito à diversidade quanto uma poderosa máquina de julgamento e punição sociais.

Trabalhos empíricos e obras literárias demonstram a complexidade e a diversidade dos obstáculos encontrados pela educação escolar na luta contra os processos discriminatórios. Dessa forma, quando o ambiente escolar carece de planejamentos críticos que tencionem as enraizadas convenções sociais responsáveis por promover a exclusão e a intolerância, a escola pode, como vimos, reproduzir esses padrões violentos. Ao compreender as particularidades das categorias de estigma, rótulo e desvio, o ambiente escolar pode potencializar os seus instrumentos no fomento de uma educação inclusiva que, por sua vez, seja capaz de desenvolver uma educação de tolerância e de respeito ao outro, ao diferente.

1Os outros livros publicados por Scholastique Mukasonga e traduzidos para o português são Baratas (2004), A mulher de pés descalços (2008) e Um belo diploma (2020).

2A esse respeito, ver: CARRANO, Paulo. Identidades culturais juvenis e escolas: arenas de conflitos e possibilidades. In: MOREIRA, Antonio Barbosa; CANDAU, Vera Maria (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 182-211; DAYRELL, Juarez. A escola “faz” a juventude? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100 - Especial, p. 1.105-1.128, out. 2007; DAYRELL, Juarez. Juventude, socialização e escola. In: DAYRELL, Juarez et al. (Orgs.). Família, escola e juventude: olhares cruzados Brasil - Portugal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 298-321; SPOSITO, Marilia Pontes. Ação coletiva, cultura e juventude no Brasil. Considerações preliminares. In: DAYRELL, Juarez et al. (Orgs.). Família, escola e juventude: olhares cruzados Brasil-Portugal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 394-406.

3Termo pejorativo para designar os tutsis como baratas.

Referências

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Recebido: 29 de Novembro de 2022; Aceito: 05 de Abril de 2023

Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editora Científica: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista

Editora Científica: Profa. Dra. Marcia Fusaro

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