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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.65 São Paulo apr/june 2023  Epub 16-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n65.24256 

Resenhas

RACHEL BESPALOFF, “DA ILÍADA”, BELO HORIZONTE: EDITORA ÂYINÉ, 2022, 104 PGS.

Alexandre Marzullo, Doutorando em Estudos de Literatura1 
http://orcid.org/0000-0003-3504-6458

1Doutorando em Estudos de Literatura, Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, Rio de Janeiro - Brasil

BESPALOFF, RACHEL. “DA ILÍADA”. BELO HORIZONTE: EDITORA ÂYINÉ, 2022. p. 104


“Da Ilíada” é um ensaio de Rachel Bespaloff (1895-1949), filósofa e ensaísta de origem ucraniana-francesa. Bespaloff foi autora de uma obra que, apesar de esparsa, permanece crítica e historicamente relevante, tendo sido uma das primeiras estudiosas de Kierkegaard na França; seus artigos sobre o filósofo dinamarquês, publicados na década de 1930, se tornaram bastante influentes para a recepção de Kierkegaard naquele país. Ao mesmo tempo, Bespaloff foi também uma das primeiras leitoras de Heidegger em língua francesa; sua conexão e estudo de ambos pensadores, em parte, se deveu à sua presença no círculo intelectual em torno do filósofo russo Lev Shestov, próximo de Edmund Husserl e correspondente de Martin Heidegger. Por intermédio de Shestov, Bespaloff conheceu e manteve longa correspondência com figuras como Jean Wahl, Daniel Helévy, Benjamin Fondane, Gabriel Marcel e, posteriormente, Jean-Paul Sartre.

Apesar disso, à exceção do livro em tela, seus escritos permanecem sem tradução para a língua portuguesa. Razão pela qual “Da Ilíada”, publicado pela Editora Âyiné no Brasil em 2022, supre uma lacuna dupla: primeiro, no que diz respeito não só à ensaística de Rachel Bespaloff e seu vigor como leitora crítica e pensadora, mas também, a seu tempo, no que concerne a uma bem-vinda pluralidade de visões acerca da poética de Homero no século XX. Bespaloff não empreende trilhas sopesadas ao ler Homero; sua experiência do texto é uma experiência de compromisso, uma experiência ética que a exige em primeiro plano, junto aos personagens e ao enredo, e às demais filigranas estéticas que compõem aquilo de que sua leitura a torna parte. Trata-se de um procedimento enfaticamente potente, poético mesmo; mas que precisa, por ímpeto próprio, descartar determinados lugares-comuns para florescer.

A começar, o recurso à heroicidade aristocrática da Ilíada. Apesar da “nobilidade” da Ilíada ser um valor defendido por boas referências críticas, como é o caso do poeta britânico Matthew Arnold (1822 - 1888) -, o verniz altivo que frequenta certas apreensões do poema de Homero é rapidamente posto por terra por Bespaloff. Sua análise prima, antes, pelo desassossego, preferindo enfatizar afetos como a angústia ao invés da dignidade da honra. Para Bespaloff, em Homero estamos diante de “uma forma de pensamento essencialmente ética, desde que se aceite que essa palavra apenas designa a ciência dos momentos de completa angústia, em que a ausência de escolha dita a decisão” (BESPALOFF, 2022, p. 82). Escrevendo em um momento relativamente contemporâneo ao célebre ensaio de Simone Weil, “A Ilíada ou o poema da força” (1939; 2020)1, que Bespaloff, por sinal, certamente leu, a ensaísta ucrâno-francesa demonstra concordar com Weil acerca da ideia de força como a grande protagonista, movente e semovente, da epopeia grega. Mas diverge de Weil quanto à concepção final do que seria este império de força a permear a guerra e os atos divinos e humanos ao longo do poema. Uma discordância muito sutil, mas que é tão filosófica quanto estética.

Simone Weil percebe a “Ilíada” a partir de uma leitura da matéria poética como um suporte, ou mais precisamente, como um exemplo para um pensamento sobre a existência humana e a capacidade da virtude2. Assim, um poeta do porte de Homero teria realmente o condão de ser um mentor de civilizações, graças à capacidade de seus versos em admoestar, com vividez e profundidade, o abuso daquilo que nos teria sido concedido pelos deuses - a lei universal e conglobante da prudência. Nota-se, aí, já uma certa apreensão do que seria um quociente trágico na arte poética grega de período homérico. É uma lei misteriosa a que rege a fatalidade após a transgressão, escusando os deuses de qualquer milagre. E talvez, como nas tragédias posteriores a Homero, a fatalidade seja ela mesma o fado. O que significa, por sua vez, que não há lugar para a razão, e que o arrependimento é vazio, apesar de humano; esta resignação final talvez seja o que no século XIX tenha sido percebido como bravura ou honra dos heróis tristes da Ilíada. Mas nesse caso, o que se passaria com a ideia de justiça? Há justiça onde o arrependimento é puramente vão? Simone Weil responde em um gesto único: para Weil, a força é a exclusão do pensamento, e “onde o pensamento não tem lugar, a justiça e a prudência tampouco” (WEIL, 2020, p. 1021).

Todavia, a força não se define apenas negativamente, isto é, não se define apenas pelo que ela não é; ao contrário. Ao qualificar a “Ilíada” como um poema de força, Simone Weil se faz bastante clara no que quer dizer: ”A força é o que transforma em coisa qualquer um a ela submetido” (2020, 1011). Qual seja, não há força para os homens que, no limite, não se torne uma força de dissolução - o que significa dizer que não há força, em maior ou menor grau, que não seja um ímpeto para a morte.

Quando se exerce a força até o fim, ela faz do homem uma coisa no sentido mais literal, piois transforma-o em cadáver. Havia alguém, e um instante depois, não há ninguém. É um quadro que a Ilíada volta e meia nos apresenta (...). A amargura desse quadro, nós a saboreamos pura, sem que nenhuma ficção reconfortante venha alterá-la, nenhuma imortaldiade consoladora, nenhuma baça auréola de glória ou pátria. (WEIL, 2020, pp. 1011-1012)

Por sua vez, Rachel Bespaloff revela uma leitura ao mesmo tempo mais sutil e mais radical da epopeia de Homero. E é a sutileza de seu aparato instrumental, de sua operacionalidade crítica, sua finesse de método, que fazem seu texto erguer-se como leitura obrigatória e formacional a qualquer interessado seja na Ilíada de Homero, seja na própria e difícil tarefa da crítica literária - ou da própria poética de um pensamento filosófico.

Tanto para Bespaloff quanto para Weil, a Ilíada é sim um poema da força. Mas esta, para Bespaloff, é uma espécie de entidade sem face que “se conhece e se beneficia de si mesma apenas no abuso em que abusa de si mesma, no excesso em que se consome” (BESPALOFF, 2022, p. . Essa “autoconsumação da força em si mesma” está ausente na leitura de Weil, e faz-se presente em Bespaloff como o atributo próprio daquilo que é forte. A força é recursiva por ser força; ela é forte à toda prova, e inclusive contra si mesmo. É isto, precisamente, o que nela desafia a condição humana, pois a condição humana é seu sustentáculo, o humano é o báculo da força. E assim, a força refulge e se consome em um movimento que se nos parece duplo, mas que na realidade é um único e grande ato: sua própria beleza, sua própria fulguração concorrem com sua autoconsumação como uma labareda formidável que, por ser labareda, terá de se extinguir ao consumir aquilo mesmo que a mantém em chama. O destino dos homens, báculo de carne, então, é o fogo, e logo depois, nada mais.

Baspeloff revela, de tal modo, uma ambiguidade para a ideia de força, com uma textura digna de uma elaboração Kierkegaardiana. Razão pela qual Rachel Bespaloff dirá, ainda no primeiro capítulo de seu ensaio, que “a força aparece na Ilíada ora como a realidade suprema, ora como a ilusão suprema da existência.” (BESPALOFF, 2022, p. 15). No mesmo diapasão, o fatalismo em Homero tem muitas vezes o semblante de uma punição, mas Bespaloff percebe que há uma transcendentalidade na maior parte dos atos individuais - pois não foram os deuses, afinal, os motivadores de toda a intriga que causou a guerra? “Eles são causa de tudo e responsáveis por nada” (2022, p. 41). E por conta disso, o cálculo da responsabilidade individual, humana, se torna ele mesmo fragilizado pela extrema humanidade daqueles que erram. Pois a humanidade está explícita em Homero, sem nenhuma vertigem moral. E se “em toda a Ilíada”, como escreve Bespaloff, “a imagem do destino está estreitamente associada àquela do castigo” (2022, p. 14), é importante que nos atentemos para o fato de que é a imagem do destino, e não a do humano, que a ensaísta referencia. Em outras palavras: o sentimento de fatalidade que Bespaloff percebe na Ilíada é, na realidade, uma representação homérica da inescapabilidade da História.

E assim, por consequência, Bespaloff circunscreve todo o movimento moral que Simone Weil percebe na Ilíada, mas o endereça não ao leitor, ou a uma exortação de prudência para os pósteros, e sim à própria matéria inafastável do poema: sua própria capacidade de poesia. Ou seja: é ao poeta que o grande dever moral se anuncia, é o poeta quem está em jogo, em sua capacidade de linguagem levada ao extremo de uma vertigem íntima. Pois é ele que detém a responsabilidade de, pela “desobrigação suprema da poesia” (BESPALOFF, 2022, p. 17), desentranhar-nos da inescapabilidade da História, e fazer da interioridade um instante que, pela virtude do absurdo, permaneça. Especializar-se, enfim, “nessa arte de tornar a carne transparente, de despir as paixões de um discurso breve, de dizer o extremo com modéstia e o excesso sem excesso: o mergulho no abismo da guerra, mas também o salto na paz das constelações” (BESPALOFF, 2022, p. 63).

Se o ensaio de Simone Weil orientou a leitura da Ilíada ao longo do século XX, sendo recentemente publicado como paratexto de uma edição da epopeia com tradução de Trajano Vieira, é o texto de Rachel Bespaloff quem nos abre novamente a epopeia grega, e o pó que tudo recobre levita, desfaz-se como cinza. Brilham os versos. E com eles, cega-nos a faísca das lanças debaixo de Apolo redivivo, mentor de todo aedo. É a verdade: estamos em Ílion, Ílion nos toma, Ílion nos forma.

1WEIL, Simone. “A Ilíada ou o poema da força” in HOMERO, Ilíada (trad. Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34, 2020.

2“Os que sonharam que, graças ao progresso, dali em diante [isto é, da era homérica em diante] a força pertencia ao passado, viram nesse poema um documento [...]”. WEIL, 2020, p. 1011. (grifos do autor).

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