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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.65 São Paulo apr/june 2023  Epub 16-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n65.24174 

Resenhas

DESAFIANDO A PASSIVIDADE NA EDUCAÇÃO: DESCONSTRUINDO A FORMAÇÃO ESPETACULAR EM UM MUNDO EM CONSTANTE MUDANÇA: CECHINEL, André; MUELLER, Rafael Rodrigo. Formação espetacular!: educação em tempos de Base Nacional Comum Curricular. Salvador: EDUFBA, 2022

Elaine Conte, Doutorado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-0204-0757

Amarildo Luiz Trevisan, Pós-doutor em Humanidades2 
http://orcid.org/0000-0002-3575-4369

1Doutorado em Educação - UFRGS, Universidade La Salle - UniLaSalle, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil

2Pós-doutor em Humanidades - UC3M, Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil

CECHINEL, André; MUELLER, Rafael Rodrigo. DESAFIANDO A PASSIVIDADE NA EDUCAÇÃO: DESCONSTRUINDO A FORMAÇÃO ESPETACULAR EM UM MUNDO EM CONSTANTE MUDANÇA. Formação espetacular!:, educação em tempos de Base Nacional Comum Curricular.. Salvador: EDUFBA, 2022.


O texto versa sobre a publicação recente do livro “Formação espetacular!: educação em tempos de Base Nacional Comum Curricular” (2022), de autoria de André Cechinel e Rafael Rodrigo Mueller. Os autores trabalham na área de Educação, sendo André Cechinel, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Letras da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Tradução da UFSC. Já Rafael Rodrigo Mueller atua como professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Eles se interessam por temas caros à política educacional, tendo nos últimos tempos desenvolvido pesquisas relacionadas aos temas da nova BNCC. A obra é voltada para estudantes e professores universitários e aborda, em suas 209 páginas e dois grandes capítulos, a crítica à escola espetacular neoliberal de nível médio por meio de uma espécie de currículo sem currículo.

O texto surge do campo das políticas educacionais e discute os paradoxos da educação, que incluem debates e questões sobre conteúdos enfáticos e objetos autônomos irreconciliáveis com as demandas exteriores. Os autores destacam que os professores e estudantes aprendem a ser empreendedores de si, gestores de si e de sua própria imagem em um mundo onde a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) impacta conhecimentos em rede, cujas regras são incertas e fluidas. O livro reflete que o problemático não é o aumento das imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem, referindo sua contribuição para o contexto teórico e prático da Educação, em especial da nova BNCC.

A crítica à sociedade capitalista, bem como as demandas por esclarecimento dos paradoxos da formação espetacular1 são indicados por Lucídio Bianchetti, já no prefácio, ao mostrar as ideologias antigas e as contradições de uma sociedade civilizada, orientada para duas classes de pessoas: a classe operária - que subsiste da força do trabalho manual (braçal) e a classe erudita - que vive da renda de suas propriedades ou do produto de funções de um trabalho intelectual. Retomando o contexto dos paradoxos inscritos nas reformas de Primeiro e Segundo Graus, desde 1971, em plena ditadura, o autor lança provocações para entendermos a reforma da BNCC2 do ensino médio por remodelagens cosméticas.

Na introdução, Cechinel e Mueller (2022) convidam os leitores para repensar o modelo vigente de educação para adequação, ajustamento e conformação ao novo ensino médio, rumo a um projeto de educação que conduza à emancipação coletiva através da capacidade indispensável de contestar as injustiças sociais e de se opor à adesão precipitada às reformas travestidas de fetiches neoliberais. Também, apresentam uma síntese da obra.

Na primeira parte do livro, intitulada Educação e Espetáculo, os autores evidenciam os vínculos entre educação e a categoria de espetáculo, bem como “duas experiências daquilo que poderíamos chamar, a partir de Siegfried Kracauer, de uma sociologia da superfície, um exercício de visitação de casos concretos de como espetáculo e educação se fundem num acontecimento político e societal conformador” (CECHINEL; MUELLER, 2022, p. 18). Nesta parte são apresentados, no primeiro item, o legado e os desafios da Educação como falso negativo, pois, “a potência do espetáculo atual reside no fato de que ele governa não apenas o mundo que ele produz, mas também o sonho que as suas vítimas criam para escapar de seu reinado” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2002, p. 29). Na tentativa de superar tal cenário, os autores vislumbram com Debord, “uma ideia de formação humana a contrapelo, isto é, o tipo de formação ou educação necessário para a luta contra o espetáculo e as imagens e procedimentos a ele associados” (2022, p. 25).

Assim, convergem ainda com o tema da positividade, da excitação e da transparência, enquanto liberdade de informação totalizante, subordinada aos regimes operacionais de coação sistêmica, limitando os processos sociais próprios ao desenvolvimento da humanidade. “A atenção constantemente estimulada produz não um olhar mais cuidadoso, mas uma distração convertida em vício”, exposta via BNCC na cultura digital e vinculada num projetar-se das tecnologias para fins pedagógicos, bem como numa “tática de positivação das mídias e de gestão da atenção, da distração e, portanto, dos afetos” (2022, p. 55).

Desse modo, argumentam que a positividade, a excitação e a transparência são temas comuns no mundo contemporâneo, que promovem a liberdade de informação totalizante, mas que estão subordinados aos regimes operacionais de coação sistêmica, limitando assim os processos sociais próprios ao desenvolvimento humano. E anunciam que “há uma crença instituída no seio da sociedade do espetáculo de que a educação seria o meio fundamental não só de manutenção de uma cotidianidade possível, mas de superação de possíveis entraves e contradições inerentes a essa forma social” (CECHINEL; MUELLER, 2022, p. 35). No entanto, eles acreditam que a atenção constantemente estimulada não produz um olhar mais cuidadoso, mas, sim, uma distração que se torna um vício. Esse vício está presente na cultura digital, que é promovida pela BNCC e em tecnologias projetadas para fins pedagógicos. E veem isso como uma estratégia de tornar as mídias e tecnologias digitais mais positivas e atraentes, a fim de gerenciar a atenção e distração das pessoas, afetando suas emoções e sentimentos. É uma forma de manipular a percepção das pessoas sobre o conteúdo apresentado, buscando criar uma associação positiva com as tecnologias e mídias utilizadas, mesmo que isso possa afetar negativamente a sua concentração e capacidade de discernimento.

O projeto do novo Ensino Médio, com as competências específicas, torna os processos educativos instrumentais e os procedimentos avaliativos padronizados em formulações globais, com maior sintonia com os exames conduzidos pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) e pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). No entanto, as escolas públicas, sem conseguir ofertar os cinco itinerários formativos previstos para o protagonismo juvenil, condenam os estudantes de baixa renda a um processo de escolarização desigual, que aumenta a precarização das condições sociais profundamente deficitárias.

No segundo item da primeira parte debatem sobre As protoformas do espetáculo, que caracterizam os regimes de especialização e autonomização das imagens do mundo, “em seus desdobramentos da relação entre o espetáculo, [...] a separação, a ubiquidade da imagem e do som, a velocidade, o consumo perceptivo, o vínculo entre estímulo e atenção, entre tantos outros” (CECHINEL & MUELLER, 2022, p. 47). O ornamento e espetáculo enclausura o sujeito numa imagem estética autonomizada e independente que se refere apenas a si mesma, numa espécie de culto da distração, pois o ornamento se refere a uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.

Han (2017), um autor também utilizado como apoio de análise do livro, afirma que a hipervisibilidade, os canais rasos da hipercomunicação e a coação que explora o visível da bela aparência (fitness, operação beleza) são obscenos porque aniquilam o questionamento, as diferentes interpretações, os traços de negatividade da alteridade e a reflexão estética, para maximizar a exposição otimizada. Daí que, “a absolutização do valor expositivo se expressa como tirania da visibilidade. O problemático não é o aumento das imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem. [...] E é nisso que está seu poder e violência”. (p. 35). Han afirma ainda que a excessiva exposição, os canais superficiais da hipercomunicação e a pressão que explora a aparência atraente (fitness, beleza operacional) são obscenos, pois anulam a capacidade de questionar, as diferentes interpretações, os traços de negatividade da alteridade e a reflexão estética, a fim de maximizar a exposição otimizada. Portanto, é uma crítica à sociedade contemporânea, que valoriza excessivamente a exposição pública e a visibilidade em detrimento de outros valores, como a privacidade, a reflexão e a alteridade. Segundo o autor, essa "tirania da visibilidade" é expressa na hipervisibilidade e na hipercomunicação presentes na cultura contemporânea, que exploram a bela aparência e eliminam o questionamento, a reflexão estética e as diferentes interpretações.

Ou seja, Han defende que o problema não está no aumento das imagens em si, mas na pressão para que se tornem imagens e sejam expostas publicamente. Essa pressão icônica tem poder e violência, pois subordina as pessoas e as coisas ao valor expositivo, reduzindo-as a imagens e afetando sua singularidade e complexidade. Assim, salienta a importância de questionar a tirania da visibilidade e buscar outras formas de valorização da vida e da cultura que possibilitam espaços de cultivo da introspecção, da intimidade e da empatia. Por isso, uma educação para além da positividade do espetáculo (com fim em si mesmo) implicaria “a formulação de uma crítica potente para o tempo presente” capaz de confrontar as violências circulares do isolamento, da separação e do fluxo perpétuo do trabalho, restituindo a inutilidade da arte à sensibilidade da condição humana (CECHINEL; MUELLER, 2022, p. 26). Além disso: “Desarticular o domínio do espetáculo significa, pois, alimentar uma disposição contrária àquela da aceitação passiva ou sem réplica da luta contínua por visibilidade no domínio desse mesmo espetáculo[...]” (2022, p. 29).

Desse modo, defendem a ideia de que a educação não deve ser vista como um fim em si mesmo, mas sim como uma ferramenta para a formulação de uma crítica potente ao tempo presente e para a desconstrução do domínio do espetáculo. Eles destacam que essa educação deve estar pautada na valorização da arte como uma forma de sensibilizar a condição humana e de confrontar as violências circulares do isolamento, da separação e do fluxo perpétuo do trabalho.

Ao afirmarem que desarticular o domínio do espetáculo significa alimentar uma disposição contrária àquela da aceitação passiva ou sem réplica da luta contínua por visibilidade no domínio desse mesmo espetáculo, os autores estão ressaltando a importância de se romper com tal lógica que permeia a sociedade contemporânea, e que se manifesta na busca incessante pela visibilidade e pelo sucesso a qualquer custo. Eles enfatizam que a educação deve ser capaz de fomentar uma atitude crítica e de resistência a essa lógica, de modo a possibilitar a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

E destacam que essa crítica é particularmente relevante em um momento em que a escola e a universidade são cada vez mais submetidas a uma racionalidade puramente mercadológica, que busca formar trabalhadores adaptados às demandas e às idiossincrasias do mercado. A reforma do Ensino Médio, O projeto da Escola sem Partido e a nova Base Nacional Comum Curricular são exemplos dessas reformas, que têm como objetivo moldar o ensino de acordo com as necessidades mercadológicas, em detrimento de uma formação crítica e emancipatória.

Os autores discutem, na segunda parte do livro, denominada Competências socioemocionais e formação autofágia, a BNCC e a centralidade das chamadas competências socioemocionais no novo currículo escolar delineado para a educação básica. A segunda parte é composta por três capítulos (Parcerias para o Novo Ensino Médio; Projetos de vida e sonhos diurnos; Competências terapêuticas para uma formação autofágica), sendo que o primeiro se concentra na trajetória política que levou à aprovação da BNCC. Os dois últimos capítulos abordam o papel das competências socioemocionais e do conceito de "projeto de vida" no contexto neoliberal do mercado de trabalho. Através do estudo dessas competências, é possível perceber que a educação atual tem como objetivo preparar os alunos para lidar com as contradições sociais que enfrentarão no futuro do ponto de vista da sociedade do espetáculo, ou seja, preocupados com as performances cosméticas.

Assim, enquanto as imagens artesanais, gestuais, mímicas, sonoras, leituras e narrações hermenêuticas derivam de ações de distanciamento do mundo e revisão da própria realidade, com simpatia ou oposição, a formação espetacular se realizaria como uma desculturalização [por contaminação]: “Se o propósito e dever da arte é realizar-se como uso na vida comum, a sua circulação nas esferas das instituições culturais, absorvidas e controladas, por sua vez, pela necessidade de produzir visibilidade e dinheiro, representa o fim da arte e a impossibilidade da sua encarnação na vida cotidiana” (CECHINEL; MUELLER, 2022, p. 33).

Em resumo, "Formação Espetacular!: Educação em Tempos de Base Nacional Comum Curricular" é uma obra relevante para quem se interessa por políticas educacionais e os desafios da educação em tempos de mudanças sociais e tecnológicas constantes. A crítica à escola espetacular neoliberal de nível médio é apresentada de forma didática, e os autores oferecem reflexões importantes sobre a BNCC e as competências socioemocionais, entre outros temas relevantes para a educação atual.

Trata-se de um livro de linguagem acessível e de fácil leitura, que reflete sobre os saberes alicerçados na própria natureza política da formação em sociedade, a qual incorpora o modus operandi da burguesia em reformas educacionais. Enfoca ainda o tema da manipulação espetacular por ideologias em tempos de formação da liberdade de informação, de poder participar autonomamente, mesmo na passividade generalizada, sem autoavaliação, que pega carona na manutenção do status quo.

1Termo inspirado na sociedade do espetáculo, visto que “o espetáculo é a conservação da inconsciência (alienação, apatia) na mudança prática das condições de existência” (DEBORD, 1997, p. 21).

2Vale destacar que a BNCC brasileira, que será examinada nesta obra, “representa exatamente a exacerbação da ideia de afirmação de si - por meio de categorias como protagonismo individual e projeto de vida -, como princípio formativo social geral”, abdicando o papel do Estado, fragilizando a formação integral dos estudantes e a autonomia dos profissionais da educação (CECHINEL; MUELLER, 2022, p. 73).

Referências

BIANCHETTI, Lucídio. Prefácio. In: CECHINEL, André & MUELLER, Rafael Rodrigo. Formação espetacular!: educação em tempos de Base Nacional Comum Curricular. Salvador: EDUFBA, 2022, pp. 7-14. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Senado Federal, 2018. [ Links ]

CECHINEL, André; MUELLER, Rafael Rodrigo. Formação espetacular!: educação em tempos de Base Nacional Comum Curricular. Salvador: EDUFBA, 2022. [ Links ]

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Giachini. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. [ Links ]

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. Tradução de Francis Wuillaume, Leo Vinicius. Conrad, 2002. [ Links ]

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