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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./set 2023  Epub 19-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.21928 

Artigos

EDUCAÇÃO FÍSICA, LINGUAGEM E A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA

PHYSICAL EDUCATION, LANGUAGE AND THE SOCIAL FUNCTION OF THE SCHOOL

EDUCACIÓN FÍSICA, LENGUAJE Y LA FUNCIÓN SOCIAL DE LA ESCUELA

Thalita Regina de Oliveira Portela, Doutoranda em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-9516-976X

Wilson Alviano Júnior, Doutor em Educação2 
http://orcid.org/0000-0002-5599-9865

1Doutoranda em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Juiz de Fora, Minas Gerais - Brasil

2Doutor em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Juiz de Fora, Minas Gerais - Brasil


Resumo

O presente artigo busca discutir sobre a inserção da Educação Física como componente curricular pertencente à área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Para tanto, utilizou-se uma revisão de literatura com objetivo de avançar na compreensão de uma perspectiva que justifique esse pertencimento a essa área e como esse fato possibilita a aproximação do componente curricular com a Função Social da Escola, com a formação cidadã e com a compreensão das diferenças. Defende que a linguagem, através de seus sistemas de significação, atua como agente regulador e produtor de corpos e identidades, afetando, de forma direta, o trato pedagógico destinado aos conteúdos da Educação Física na Educação Básica, que deve ter como seu objeto de estudo a cultura corporal. Por fim, destaca que esta compreensão do componente curricular permite sua integração a função social da Escola.

Palavras-chave educação física; função social da escola; linguagens; códigos e suas tecnologias.

Abstract

This article discuss the insertion of Physical Education as a curricular component belonging to the area of Languages, Codes and its Technologies, with the objective of advancing in the understanding of a perspective that justifies this belonging to this area and how this fact allows the approximation of the component curriculum with the Social Function of the School, with citizen training and with the understanding of differences. It argues that language, through its systems of meaning, acts as a regulatory agent and producer of bodies and identities, directly affecting the pedagogical treatment destined to the contents of Physical Education in Basic Education, which must have as its object of study the body culture. Finally, it emphasizes that this understanding of the curricular component allows its integration into the social function of the School.

Keywords: physical education; social function of the school; languages; codes and its technologies.

Resumen

Este artículo busca discutir la inserción de la Educación Física como componente curricular perteneciente al área de Lenguajes, Códigos y sus Tecnologías, con el objetivo de avanzar en la comprensión de una perspectiva que justifica esta pertenencia a esta área y cómo este hecho permite la aproximación del componente curricular con la Función Social de la Escuela, con la formación ciudadana y con la comprensión de las diferencias. Argumenta que el lenguaje, a través de sus sistemas de sentido, actúa como agente regulador y productor de cuerpos e identidades, incidiendo directamente en el tratamiento pedagógico destinado a los contenidos de Educación Física en la Educación Básica, que debe tener como objeto de estudio la cultura del cuerpo. Finalmente, destaca que esta comprensión del componente curricular permite su integración a la función social de la Escuela.

Palabras clave educación física; función social de la escuela; lenguajes; códigos y sus tecnologías.

1 Introdução

Entendemos que a linguagem, através de seus sistemas de significação, atua como agente regulador e produtor de corpos e identidades. Por esse motivo, passamos a concebê-la enquanto um “repositório-chave de valores e significados culturais” (Hall, 2016, p. 17). Isso porque, somente é possível compartilhar significados através do acesso à linguagem. Além disso, seu funcionamento está imbricado na cultura, uma vez que a linguagem só existe em um mundo cultural. Ou seja, é o pertencimento a uma mesma cultura que vai permitir que os significados sejam interpretados de maneira igual ou semelhante. Do contrário, o significado se torna inteligível. Nesse sentido, dizer que pessoas ou grupos “pertencem” a uma mesma cultura significa dizer que eles interpretam o mundo de maneira semelhante e que compartilham significados passíveis de compreensão do outro. A cultura é, essencialmente, uma “prática de significação” (Silva, 2006, p. 17).

Assim, com base na teorização pós-estruturalista, reconhecemos que a cultura ocupa lugar privilegiado na construção dos significados e, uma vez que a cultura passa a ser concebida como aquela que permite a produção e o compartilhamento dos significados, a linguagem passa a ser a responsável por sua difusão. Segundo Hall (2016, p. 18)

a linguagem é capaz de fazer isso porque ela opera como um sistema representacional. Na linguagem fazemos uso de signos e símbolos - sejam eles sonoros, escritos, imagens eletrônicas, notas musicais e até objetos - para significar ou representar para os outros indivíduos nossos conceitos, ideias e sentimentos. A linguagem é um dos “meios” através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura. A representação pela linguagem é, portanto, essencial aos processos pelos quais os significados são produzidos(...).

Representação, nesse caso, não tem o sentido reflexivo outrora atribuído a este conceito, não é um mero “processo mental” (Silva, 2006, p. 32). Em acordo com Neira (2018), admitimos a representação como o resultado da produção de significados a partir dos discursos. No entanto, é importante ressaltar que tal produção não se dá de forma isolada, particular e muito menos neutra. Pelo contrário,

os significados organizam-se em sistemas, em estruturas, em relações. Esses sistemas, essas estruturas, essas relações, por sua vez, apresentam-se, organizam-se como marcas linguísticas materiais, como tramas, como redes de significantes, como tecidos de signos, como textos, enfim. Do ponto de vista analítico, quando nos aproximamos desses textos para destacar precisamente sua dimensão de prática de significação, para flagrar as marcas de suas condições de produção, para tornar visíveis os artifícios de sua construção, para “decifrar” os códigos e as convenções pelas quais esses significados particulares foram produzidos, para descrever seus efeitos de sentido, passamos a vê-los como discurso e os atos, as atividades, o trabalho de sua produção como prática discursiva (Silva, 2006, p. 18).

Portanto, se defendemos que os significados são produzidos em um contexto sociocultural, devemos reconhecer que tais processos se dão em um campo de disputa, no qual diferentes grupos lutam para a manutenção ou subversão dos significados, o que, por fim, pode caracterizar mesmo uma luta por uma concepção de mundo e de sociedade. Por consequência, seja de forma implícita ou não, todo significado carrega as marcas dessas disputas e reconhecer isso é o que nos permite enxergar além da superfície para conhecer as condições de sua produção. Partindo disso, Silva (2006) nos alerta para a importância de analisarmos os caminhos que permitiram que um significado fosse concebido como “natural”. É o caso de significados que foram socialmente hegemonizados e, por conta disso, as marcas de suas produções foram disfarçadas, escondidas, esquecidas, mas nunca apagadas. Nesse sentido, a linguagem, a partir da teorização pós-estruturalista, tem tanto o poder de fazer emergir quanto o de fazer omitir.

Cabe reconhecer, entretanto, que há outras formas - também legítimas - de se conceber a linguagem. Stuart Hall (2016) destaca três diferentes compreensões, a reflexiva, a intencional e a construtivista. A reflexiva, como o nome já indica, é aquela que defende a linguagem como “reflexo”, ou seja, o significado preexiste à linguagem, a qual apenas o comunica. Nesse sentido, os significados são fixos, inquestionáveis, imutáveis. É uma compreensão bastante compartilhada socialmente e tenta sempre fechar as possibilidades de disputa pelo significado. É a concepção que busca disfarçar as marcas presentes nos significados, tentando incansavelmente atribuir aos significados uma condição de “natural”. Para a abordagem reflexiva, a representação, assim como a linguagem, é apenas um reflexo da essência do significado. Um entendimento que difere do nosso, já que ao reconhecer que os significados são ativamente produzidos, negamos qualquer possibilidade de naturalizá-los.

Diferente da concepção reflexiva, a intencional não defende que o um sentido pré-estabelecido dos significados. Acredita-se que a linguagem é a expressão individual do desejo do sujeito. Nessa perspectiva, os significados se tornam únicos, pessoais. Como se cada sujeito construísse seu próprio mapa conceitual, a depender de sua intenção ao comunicar algo. É uma abordagem que se afasta muito daquilo que aqui defendemos, uma vez que acreditamos que é justamente o compartilhamento de significados que permite a comunicação com o outro. Se cada indivíduo tivesse autonomia de produzir seus próprios significados, quem garantiria sua inteligibilidade?

Por fim, Hall (2016, p. 41-42) descreve a abordagem construtivista, a qual parte do pressuposto de que “o sentido não está no objeto, na pessoa ou na coisa, e muito menos na palavra. Somos nós quem fixamos o sentido tão firmemente que, depois de um tempo, ele parece natural e inevitável”. Nesse sentido, admite-se que os significados não são naturais ou pré-determinados, mas sim construídos na e pela linguagem. Não há espaço para significações individuais, como propõe a abordagem intencional, muito menos aceita-se uma suposta essência das coisas. Desse modo, é a concepção que mais se aproxima daquilo que aqui denominamos de linguagem.

No entanto, não há um consenso ou uma compreensão única dentro da abordagem construtivista. Destacamos dois autores que concebem o significado enquanto construído socioculturalmente e suas duas interpretações de linguagem, sendo eles Ferdinand Saussure, o criador da semiótica, que até hoje exerce grande influência ao pensarmos em linguística, e Michel Foucault, com sua interpretação discursiva. Uma não exclui ou supera a outra, mas vão propor formas diferentes de compreender a linguagem. Enquanto a semiótica de Saussure vai se dedicar a compreender de que maneiras o sentido é produzido pela linguagem, Foucault se preocupou não apenas com a produção dos sentidos, mas - e sobretudo -, com as condições em que tal produção se deu e com as relações de poder nela envolvida. Para Foucault, os processos de produção de sentido permitem a criação de discursos que têm por finalidade regular modos de ser e agir dos sujeitos (Hall, 2016).

Apesar de nunca ter se assumido enquanto um filósofo pós-estruturalista, Foucault e suas obras têm orientado análises pós-estruturalistas em diversos campos de conhecimento, justamente porque suas reflexões colocam em xeque pontos caros ao pós-estruturalismo, como a própria neutralidade atribuída à linguagem. Nesse sentido, para Foucault a linguagem deixa de lado o status de instrumento de ligação entre o pensamento e a coisa pensada e ganha um outro sentido, assumindo seu papel construtivo do pensamento e, portanto, do sentido.

Nessa perspectiva a representação também ganha outra direção, passando a ser compreendida como uma forma de ligar o sentido e a linguagem à cultura. Representar, então, é usar da linguagem para expressar algo sobre o mundo, “é a produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (Portela, 2020, p. 86). Segundo Hall (2016, p. 31, grifo do autor) “representar envolve o uso da linguagem, de signos e imagens que significam ou representam objetos”.

Tendo em conta o que procuramos expor até aqui e nossa postura epistêmica, assumimos que a construção das identidades e a enunciação das diferenças se dão por meio da produção de sentido e dos sistemas de representação, os quais estão involuntariamente ligados à cultura. Logo, considerar as condições de produção das identidades e diferenças e dos significados a elas atribuídos é algo central em análises que se reivindicam pós-estruturalistas. Nessa perspectiva, analisar um significado desconsiderando a cultura na qual ele foi construído não se mostra relevante, uma vez que aqui importa mais conhecer as relações de poder envolvidas em suas produções. Assim, justificamos nosso interesse em uma análise pós-estruturalista da linguagem por assumir que ela nos dará condições de compreender como funcionam as “estruturas de desigualdade e opressão” (Giroux, 2008, p. 93) e como elas vêm construindo identidades e diferenças no espaço escolar.

2 Objetivos e metodologia

Pretendemos, com este texto, discutir sobre a inserção da Educação Física como componente curricular da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, objetivando auxiliar a compreensão sobre o pertencimento a essa área. Além disso, com as análises aqui realizadas, pretendemos demonstrar como esse outro olhar para a Educação Física permite uma aproximação com a função social da escola, com a formação cidadã e com a construção de uma escola que reconheça as diferenças.

Para tanto, lançamos mão de uma revisão de literatura e de análises baseadas nos Estudos Culturais e na teorização pós-estruturalista, entendendo que tais abordagens teóricas possibilitam avançar na defesa de uma Educação Física socialmente contextualizada e culturalmente orientada.

3 Educação Física Como Linguagem

Anunciando seu papel enquanto produtora de cultura e significados e reafirmando a sua importância para a compreensão e entendimento do ser humano, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) alocaram a Educação Física enquanto parte da área de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, juntamente com Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras Modernas, Artes e Informática (BRASIL, 2000). A linguagem, nesse documento, é compreendida como

A capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato da linguagem é a produção de sentido (Brasil, 2000, p. 5).

A presença da Educação Física enquanto componente curricular obrigatório da Educação Básica ainda gera bastante debate, sobretudo ao que concerne à sua função, característica essa que nos coloca sempre em um lugar à margem em relação a outras disciplinas. Não são raros questionamentos como “para que servem as aulas de Educação Física?”. Não há um consenso sobre a função da Educação Física na escola, o que por si só não revela grande problema. No entanto, se um/uma docente não sabe defende a legitimidade da Educação Física na escola, aí sim, temos um problema. Outras disciplinas têm bem delimitadas as suas funções, com as quais podemos concordar, ou não. Porém, é o que permite que a elas seja conferido um status de relevância.

Mas e a Educação Física, o que ela está fazendo na escola? Possivelmente diversas pessoas dirão que seu papel se resume ao ensino dos esportes ou até mesmo à formação de atletas. Outras, talvez, a entendam como ferramenta auxiliar no controle da obesidade, a fim de manter os indivíduos mais saudáveis. É possível que se coloque em xeque até mesmo seu papel enquanto componente curricular obrigatório. Entendemos que a incerteza que permeia o campo de conhecimento advém tanto da sua história, na qual, em diferentes períodos, recebeu distintas atribuições e sentidos, quanto de um esvaziamento na própria formação de professores.

Se existem, de maneira geral, dificuldades conceituais em se fazer a defesa do componente curricular como obrigatória na Educação Básica, a situação se torna ainda mais complexa se a pergunta versasse sobre sua alocação enquanto na área de Códigos, Linguagens e suas Tecnologias. Ladeira e Darido (2003) tecendo considerações iniciais sobre essa designação, conversaram com docentes do ensino básico e revelaram que nenhum dos entrevistados soube responder o que significava a Educação Física enquanto linguagem, menos ainda souberam relacionar essa concepção aos conteúdos trabalhados nas aulas. Assim, reconhecemos uma fragilidade epistemológica no campo da Educação Física que, em meio a tantas disputas por significação, segue tendo papel secundarizado e ocupando espaço marginalizado dentro das escolas e documentos oficiais. Andar nessa corda bamba coloca a Educação Física em uma necessidade iminente de luta para reafirmar sua importância dentro do sistema educacional brasileiro. Um recente exemplo disso foi a grande pressão para que a disciplina deixasse de ser obrigatória para o Ensino Médio, exigindo uma grande mobilização a favor de sua permanência.

Sendo assim, entendemos que, muito embora a alocação da Educação Física como componente da área de Códigos, Linguagens e suas Tecnologias não seja algo recente, o movimento que sai em defesa desse reconhecimento ainda caminha a passos curtos. Movimento esse que busca atribuir ao ensino da Educação Física um caráter cultural, admitindo as práticas corporais como manifestações culturais, reconhecendo seus significados existentes e abrindo espaço para seu compartilhamento, problematização e produção de outros significados possíveis. No entanto, e talvez até mesmo por ser uma discussão pouco enfrentada, o que se tem constatado é uma grande confusão sobre o que de fato significa ter a Educação Física como parte da área de Códigos e Linguagens e suas Tecnologias e, para além disso, como tal perspectiva afetaria o trabalho docente.

Nesse sentido, a formação inicial parece falhar com os futuros e futuras docentes ao não fornecer uma formação pedagógica consistente, que lhes ofereça uma base teórica sólida para auxiliar o trabalho futuro. Assim, professores e professoras acabam saindo dos cursos de formação de docentes em Educação Física sem o aprofundamento necessário para levar para às escolas uma Educação Física crítica e socialmente contextualizada. Desse modo, podem chegar às escolas reproduzindo práticas excludentes, baseadas em noções de Educação Física que desconsideram seu caráter cultural e de produtora de significados. Por uma falta de aprofundamento teórico que lhes permita uma tomada de decisão consciente a respeito da abordagem curricular na qual se inspirarão, podem ocorrer confusões que culminem em aulas socialmente e teoricamente descontextualizadas.

Essas possíveis confusões acabam permitindo a deslegitimação da disciplina e da sua função dentro das escolas, operando de forma a reforçar significados deturbados de Educação Física. Um exemplo disso é o que Nunes (s/d) observou ao analisar as questões sobre a Educação Física abordadas nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Nunes verificou a existência de questões sobre temas da saúde, da motricidade e da aptidão física, mas nenhuma sobre a Educação Física na escola e sua função pedagógica. Tal dado é alarmante, considerando que a referida prova é elaborada com base no ensino de Educação Física e naquilo que apresentam os documentos curriculares nacionais, inclusive em relação à cultura corporal, seu objeto de intervenção.

O reconhecimento da cultura corporal como o objeto da Educação Física não é algo recente, tendo aparecido com ênfase no trabalho de Soares et al. (1992). Bracht (2007) defende que a Educação Física é a responsável por realizar uma reflexão pedagógica sobre a cultura corporal, compreendendo as práticas corporais como produtoras e produto de significados culturais. Mas como agir quando esse não é o entendimento compartilhado entre a maioria dos professores e professoras? Parece-nos que a Educação Física se encontra em um campo de conflitos entre diversas teorias curriculares, as quais têm lutado para conquistar uma hegemonia.

Dentre elas observamos aquelas que seguem uma visão biológica das práticas corporais, o que acarreta num entendimento de que todas as pessoas têm um desenvolvimento igual e, portanto, precisam ter acesso aos mesmos conteúdos, ignorando totalmente a existência das diferenças. No entanto, Daolio (1995) alerta que é um erro ler um corpo como semelhante apenas levanto em consideração aspectos biológicos. Diversos corpos, se analisados somente nessa perspectiva, podem parecer semelhantes em um primeiro momento. Mulheres brasileiras, se comparadas biologicamente com quaisquer outras, podem apresentar diversas semelhanças. No entanto, como afirmamos anteriormente, é necessário olhar para além das semelhanças e distinções físicas, procurando conhecer os significados atribuídos a esses corpos em suas culturas, pois somente dessa maneira poderíamos interpretá-los. Então, pensar em um currículo que delimita padrões a serem seguidos a partir de um binarismo de gênero (neste caso), é um erro e resulta em processos de ensino desiguais.

Cabe salientar que, ao delimitar um binarismo de “certo/errado”, não buscamos incorrer ao erro que ativamente condenamos. Reconhecemos que muitas vezes o que percebemos como “certo” ou “errado” é resultado de uma visão de mundo, de sociedade e de educação escolar. No entanto, quando o que se considera “certo”, na verdade, supõe a desumanização de outra pessoa, ou seja, se determinada visão de mundo considera como correta uma conduta que retira os direitos de outra pessoa, ou mesmo que busque seu extermínio, não podemos nos permitir aceitá-la, caindo na cilada de uma falsa ética usualmente utilizada como justificativa de práticas desiguais.

Neira e Nunes (2009) enxergam nos currículos biologizantes um papel reprodutor de identidades desejáveis, atuando efetivamente na construção e manutenção de padrões de feminilidade, masculinidade, sexualidade e, consequentemente, demarcando as diferenças de gênero, raça, etnia e classe social. Tal demarcação acontece a partir da forma como priorizam práticas culturais dos povos dominantes em detrimento das práticas dos grupos subalternizados as quais, na maioria das vezes, sequer chegam às escolas a às diretrizes curriculares nacionais. O que não significa que tais práticas não ocupem os espaços escolares de outras maneiras, pois se nas aulas de Educação Física o funk não é privilegiado enquanto prática corporal e cultural, nos corredores das escolas ele está cada vez mais presente. Algo que se mostra como reflexo da construção cultural e social da nossa sociedade, que coloca à margem tudo aquilo que considera “inferior”, “menor”, mas as culturas subalternizadas seguem resistindo e ocupando espaço.

Por conta disso, acreditamos e aqui defendemos uma perspectiva de Educação Física multiculturalmente orientada, que se abra para o debate e para as diversas culturas que se misturam no espaço escolar. Uma Educação Física que não se cale diante das diferenças e desigualdades, valorizando diversas manifestações culturais em suas aulas e auxiliando na formação de sujeitos críticos e solidários. Nesse sentido, o posicionamento contra as diversas formas de discriminação às quais diferentes grupos sociais são submetidos é extremamente importante, mas não podemos parar aí. É necessário que reconheçamos, sim, as desigualdades, mas, para além disso, é impreterível que valorizemos as diferenças, abrindo espaço para que elas ocupem as escolas.

Nesse sentido, vemos na Educação Física cultural uma possibilidade de ação docente que vislumbre uma sociedade cada vez menos desigual. Neira (2011a) informa que, ao se inspirar nas teorias pós-críticas, esta perspectiva visa questionar os marcadores sociais e apostar em uma atuação política a favor da diferença, através da legitimação de outras formas de manifestações culturais tantas vezes invisibilizadas. Assim,

O currículo cultural da Educação Física é concebido como espaço-tempo de encontro das culturas corporais, construção de identidades e diferenças, questões de discriminação e preconceitos étnicos, de gênero, orientação sexual, habilidade ou padrão corporal, entre outros; possibilita uma leitura dos grupos de pequena representação, hierarquizados pelos sistemas hegemônicos - econômico, político, social e cultural - diferenciados pelas suas atitudes e interesses; intenta identificar a opressão e a subalternização de culturas e sujeitos, erros históricos no processo de formação identitária dos negros, da mulher, dos homossexuais, dos pobres, dos deficientes e daqueles vistos como incapazes, molengas, fracos, lerdos etc. (Neira, 2011, p. 202).

Portanto, é precisamente a questão da diferença que irá se estabelecer como pressuposto do currículo cultural. É a reivindicação do reconhecimento de que no espaço escolar são produzidos significados e que a linguagem, enquanto parte desse processo, é utilizada como instrumento para definir identidades e demarcar diferenças. É nesse sentido que defendemos a Educação Física como disciplina do campo dos Códigos, Linguagens e suas Tecnologias, colocando a cultura no centro dos processos e buscando evidenciar as relações de poder que atribuem às práticas corporais menor ou maior valor. Seguindo essa perspectiva, Silva (2006, p. 24) informa que “conceber as práticas culturais como relações de poder implica, pois, ver o campo da produção de significado e de sentido como contestado, disputado, conflitivo” e é assim que enxergamos o campo da Educação Física hoje, sendo disputado por diferentes perspectivas teóricas.

Por fim, consideramos importante nos colocar em acordo com a perspectiva da Educação Física cultural por entender que ela objetiva dar aos e às estudantes as condições necessárias para ler, produzir e interpretar os significados atribuídos às diversas manifestações culturais. É o que Neira (2019) destaca ao explicitar que nessa concepção o que se objetiva é possibilitar a leitura e análise dos processos de produção e reprodução das práticas corporais e das representações que carregam seus e suas participantes, entendendo que esse processo se dá por meio dos discursos encontrados no campo. Compreender isso é de grande pertinência para que possamos propor uma problematização dos processos de construção de identidade e da diferença, pois só a partir do entendimento de que há forças de poder atuando nestas construções que poderemos buscar combatê-las. Portanto, conceber a Educação Física enquanto linguagem, para nós, é reafirmar sua posição enquanto produtora de significados, discursos, identidades e diferenças.

4 A crise da identidade

O debate acerca das identidades vem sendo travado há algum tempo entre aqueles e aquelas que flertam com a ideia do indivíduo moderno com sua identidade fixa, centrada, imutável, e aqueles e aquelas que acreditam que a identidade de um sujeito é, na verdade, uma multiplicidade de identidades fragmentadas, mutáveis, deslocadas, descentralizadas e sensíveis às mudanças sociais. Pensamentos como esse último oferecem certo estranhamento, uma vez que a identidade “fixa” ainda é tida como referência em nossa sociedade, sendo uma concepção hegemonizada há muito tempo. Por isso, colocar em xeque a noção de um sujeito centrado é algo extremamente complexo, pois torna-se necessário suspender tudo aquilo que historicamente nos foi ensinado, para passar a olhar o sujeito a partir de uma nova perspectiva, a qual coloca no centro do debate a questão da cultura e do poder. Stuart Hall entendeu esse movimento como uma “crise de identidade” e afirmou que as sociedades modernas passaram por uma mudança estrutural ao final do século XX e que isso

está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (Hall, 2006, p. 9).

Para avançarmos no debate delimitamos, com o auxílio de Hall (2006), três concepções de identidade, sendo: a identidade do sujeito do iluminismo; a identidade do sujeito sociológico; a identidade do sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo - sempre descrito enquanto homem - apresenta uma concepção de sujeito fixo, centrado, unificado, dotado de razão e consciência e tendo em si um núcleo interior, uma essência. Advinda do nascimento e sendo desenvolvida ao longo da vida, essa essência é entendida como sendo a identidade. Portanto, essa noção de sujeito entende a identidade como algo puramente individual, autônomo e autossuficiente.

Já a noção de sujeito sociológico trouxe à tona a complexidade do mundo moderno e o entendimento de que a identidade não era nem autônoma, nem autossuficiente, mas sim construída na relação com outras pessoas, tendo essas relações o dever de mediar e transmitir valores, símbolos e sentidos, ou seja: transmitir a sua cultura. Hall (2006) reforça que nesta perspectiva ainda existe a ideia de o que sujeito possui uma essência, mas que essa sofre transformações a partir do contato com outras pessoas. Assim, surge uma concepção de identidade que é construída a partir da interação entre o sujeito e o mundo em que ele ou ela vive.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (Hall, 2006, p. 11-12).

Indo um pouco além deste entendimento de sujeito sociológico e recusando a ideia de que em cada pessoa há uma suposta essência, chegamos na conceituação do sujeito pós-moderno. Nesta perspectiva também é superada toda a noção de que uma identidade é sempre fixa, imutável e estável, passando a confrontar uma visão de sujeito com múltiplas identidades. É justamente essa afirmação que por vezes desestabiliza a sociedade: a existência de um sujeito fragmentado. Isso porque, tratar um sujeito dentro de uma perspectiva que considera tão fortemente suas subjetividades não é tarefa fácil, sobretudo quando falamos de uma sociedade e, por conseguinte, de uma cultura que compartilham, desde sempre, significados de identidade que vão de encontro à essa compreensão. O que se percebe é que as pessoas necessitam se prender em significados fixos, que ofereçam um mínimo de “segurança”, como quem diz “isso eu entendo”. Deslocar a visão que se tem de identidade fixa, para passar a reconhecer uma identidade múltipla e, por vezes, contraditória, exige suspender algumas verdades, confrontando a ideia de que todas as identidades - mesmo aquelas que se reivindicam fixas - sofrem mudanças ao longo dos anos e das experiências vividas.

Nesse sentido, Hall (2006) reforça que uma identidade fixa, unificada, estável e coerente é uma invenção, dado que, de acordo com as mudanças dos sistemas de significação e representação, todas as pessoas enfrentam, involuntariamente, uma multiplicidade de identidades com as quais podem se identificar ao longo da vida. Boaventura de Sousa Santos (2013) corrobora esse entendimento e, também reconhecendo as identidades como flexíveis, mutáveis e resultantes de processos de identificação, afirma que mesmo as noções de identidade mais consolidadas, como a de homem e mulher ou identidades nacionais, são parte de uma disputa de significação e estão em constante transformação.

Por compartilhar esse entendimento, Silva (2006, p. 26) defende que o social e o político são inerentes às identidades, ou seja: a construção de uma identidade é completamente dependente das relações sociais e da maneira como uma sociedade se posiciona politicamente. O autor alerta ainda que, nesse olhar,

a identidade não está constituída em torno de um núcleo de autenticidade, de uma experiência cultural primordial, que definiria as diferentes culturas. A própria diferença é sempre o resultado - nunca definitivo - de um processo de construção. Por isso, essa concepção de identidade é fundamentalmente histórica - nós somos o que nos tornamos, o que significa que podemos também nos tornar, agora e no futuro, outra coisa. A identidade cultural tem uma história, não é algo que simplesmente, que naturalmente, exista (Silva, 2006, p. 26).

Assim, uma vez que não há mais uma essência presente em cada sujeito, passamos a considerar que a construção da identidade se dá de forma relacional, histórica e cultural, podendo um sujeito assumir distintas identidades ao longo de sua vida. Um exemplo disso é a questão da sexualidade. Embora grande parte das pessoas tenha sua identidade afetivo-sexual formada dentro de uma lógica heteronormativa, ou seja, aquela que espera que homens sintam atração por mulheres e que mulheres sintam o mesmo por homens, muitas pessoas, mesmo tendo assumido em algum momento uma identidade heterossexual, podem passar a reivindicar uma identidade homossexual, bissexual, pansexual etc. Entendemos aqui que assumir uma identidade padrão é, muitas vezes, uma situação forjada de maneira violenta, que atribui às pessoas papéis a serem seguidos, sob uma justificativa de que aquilo é “natural” quando, na verdade, é só o resultado de uma construção social que nega a existência de outras sexualidades. É justamente neste campo que a questão da identidade social ganha força, a partir de grupos sociais minoritários que lutam pelo direito à

participação no jogo da política da identidade. A política da identidade está no centro das disputas por representação e por distribuição de recursos materiais e simbólicos, novas identidades sociais emergem, identidades reprimidas se rebelam, se afirmam, colocando em questão, deslocando, a identidade unificada e centrada do indivíduo moderno: macho, branco, heterossexual... Mudanças estruturais alteram radicalmente a paisagem cultural e que essa identidade reinava soberana, assentada numa localização aparentemente firme e segura. Essa localização é abalada, essa identidade hegemônica entra claramente em crise (Silva, 2006, p. 26-27)

Nesse sentido, reforçamos mais uma vez a importância de reconhecer os processos pelos quais as identidades são formadas, dando principal atenção às relações de poder que neles atuam, determinando padrões de comportamento e forjando identidades a partir de processos de representação desiguais. Sendo igualmente importante reconhecer os processos de resistência que os grupos sociais subalternizados têm protagonizado, enfraquecendo estruturas hierárquicas e disputando significados outrora dados como fechados.

5 Identidades e diferenças: a luta pelo poder de significar

Diante do exposto anteriormente, podemos afirmar que se antes a identidade era entendida como uma afirmação positiva daquilo que se é “sou mulher” e a diferença como aquilo que o outro é “ele é homem” - sendo a identidade o ponto de referência -, agora se torna necessário entendê-las enquanto resultados de atos de construções discursivas. Silva (2009, p. 77) elucida que dizer isso significa reconhecer que elas necessariamente precisam ser nomeadas e que “é apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença”. Assim, sendo a linguagem uma prática significante (Hall, 2016), é através dela que são atribuídos os significados às identidades e às diferenças.

No entanto, diferente do que antes se pensou, Silva (2009) afirma que a diferença passou a ser o ponto de referência no processo de produção das identidades. Nessa perspectiva, o “processo de formação da identidade está sempre referido a um outro”. Sou o que o outro não é; não sou o que o outro é” (Silva, 2006, p. 26). Assim, o autor defende que todo processo de significação se dá a partir de uma cadeia de diferenciação. Em outras palavras, é o mesmo que dizer que uma casa é uma casa por não ser um prédio, por não ser uma fazenda, por não ser um carro, ela é por não ser. Nesse exemplo, o significado atribuído à casa passa por todas aquelas coisas que ela não é, não chegando nunca naquilo que de fato ela é. Nesse entendimento, a língua é compreendida como um sistema de diferenciação.

Além de construídas no interior desse sistema de diferenciação, identidades e diferenças são parte de um processo de adiamento linguístico. Ou seja, sua presença é sempre adiada. Jacques Derrida (1991) denominou esse fato de “metafísica da presença”, que de maneira resumida é a falsa noção de que um signo carrega a presença daquela coisa que ele significa, sendo essa ilusão necessária para que o signo funcione. No entanto, reconhecemos que só isso não garante inteiramente o seu funcionamento. Como já explicitamos anteriormente, para que um signo se torne inteligível, é necessário que ele seja compartilhado por inúmeras pessoas no interior de uma cultura.

É importante ressaltar que tal processo não busca resultar em um produto acabado. Um signo, mesmo que carregue um significado socialmente compreendido como fixo, jamais o será. Assim funciona também o processo da construção das identidades. Segundo Silva (2006, p. 25), tal como a cultura, a identidade também não é um produto finalizado, mas sim um “objeto de uma incessante construção”, sendo esse processo sempre incerto e imprevisível.

Por isso é tão importante reconhecer as relações de poder que atuam nos processos de significação, pois é justamente quem exerce o poder de classificar que vai impor aos demais as suas identidades e diferenças, sendo essa uma maneira de hierarquizar os grupos sociais, atribuindo valores aos distintos a cada grupo. Silva (2009) reconhece que essa classificação acontece por meio de um processo de normalização de identidades, que define um padrão a ser seguido, a partir do qual se institui as diferenças.

Tal processo de normalização de significados atribuídos às identidades e diferenças estará presente, também, nos conteúdos trabalhos em sala de aula. É necessário partir do pressuposto de que nossos alunos e alunas levam para as escolas aquilo que aprendem, também, fora delas. Justamente por isso é impreterível conhecer quais os significados a respeito das práticas corporais são compartilhados entre os sujeitos que ocupam e constroem nossas aulas. Se desconsideramos isso, podemos reforçar significados socialmente hierarquizados que acabam por produzir desigualdades. Nesse sentido, não basta conhecer quais os significados são postos e circulação, mas, para além disso, é necessário que seja construído um espaço em que esses significados possam ser questionados, problematizados, desconstruídos e reconstruídos. Portanto, é fundamental que repensemos o trato pedagógico que damos aos nossos conteúdos, partindo de um reconhecimento a Educação Física enquanto um espaço de construções de identidades, diferenças e culturas para evitar que caiamos em armadilhas de um ensino esvaziado de sentido.

Nesse sentido, Neira e Nunes (2011) explicitam que é justamente a partir de práticas esvaziadas de significado que são reforçadas identidades e diferenças padrões e alertam que

ao planejar ações didáticas visando garantir a aprendizagem de todos, inserindo-os em estágios universais de desenvolvimento, corre-se o risco de reforçar as diferenças. (...) O professor pode discursar sobre a importância da participação coletiva, do respeito aos tempos de aprendizagem de cada um e garantir que todos peguem na bola, dancem ou brinquem. Porém, se não for analisado e discutido o design competitivo, materialista e imagético da sociedade pós-moderna, promotora de uma cultura que afirma os melhores como eficientes, sem dúvida, o significado pedagógico das atividades propostas estará comprometido. A simples oferta de práticas corporais visando o alcance de objetivos comportamentais implica em uma experiência formativa que concretiza, com certa excelência, as relações de saber-poder e as identidades projetadas pelas pedagogias tecnicistas nas quais se inspiraram (Neira; Nunes, 2011, p. 683).

É o que acontece se observamos as relações de gênero e os conteúdos da cultura corporal. Pensando sobre isso, Altmann (2015) observou que meninas e meninos levavam para as escolas vivências muito distintas sobre os conteúdos estudados. Isso não se dá ao acaso. É o resultado de relações de poder que buscam atribuir o interesse e a habilidade esportiva aos meninos, enquanto às meninas são atribuídos outros interesses. Logo, simplesmente ofertar uma prática em nossas aulas não nos dará conta de, no mínimo, desestabilizar os significados de feminilidade e masculinidade socialmente compartilhados. Enquanto docentes é urgente que deixemos de tomar como natural a suposta preferência de meninos pelo futebol e das meninas pela queimada, pois, ao tomarmos como intrínseco o que na verdade é o resultado de uma construção cultural, acabamos por reforçar a falsa noção de naturalidade que o signo carrega.

É evidente que todo esse processo traz bastante complexidade, uma vez que nós mesmos nos forjamos a partir de tais discursos. Abandonar o que nos foi ensinado e buscar outras formas de compreender o mundo, os sujeitos e a Educação Física são tarefas difíceis. Por isso, além buscarmos a construção de uma prática pedagógica comprometida com a luta pelas diferenças, é necessário batalhar pela sua efetivação nos currículos escolares. Uma vez que muitos currículos ainda afirmam

a ginástica, o esporte, um modelo de saúde, os padrões de movimento e as funções perceptivas oferecem formas corretas de ser, tais propostas não apenas validam seus pressupostos, como instituem identidades e diferenças. Os discursos presentes nesses currículos afirmam a feminilidade desejada, a masculinidade adequada, a classe social digna e a etnia verdadeira, renegando qualquer outra possibilidade (Neira, 2011b, p. 198).

Por conta disso, defendemos como indispensável a construção de documentos curriculares, tanto da educação básica quanto da educação superior, a partir de perspectivas de mundo e sociedade que reconheçam as mais diversas identidades, diferenças e culturas presentes em nossa sociedade. Não podemos seguir ignorando a ausência dessas discussões na formação docente, tampouco nas nossas práticas pedagógicas. Se temos real comprometimento com a desconstrução dos preconceitos, com uma sociedade e educação menos desiguais, com um fazer docente que considere distintas e diversas culturas em seus planejamentos, é urgente que nos coloquemos em defesa de uma Educação Física socialmente contextualizada e culturalmente orientada.

A partir do desenvolvimento da análise acima buscamos reiterar nosso compromisso com as diferenças e com uma Educação Física enquanto espaço de aprendizagem e construção de significados, trazendo a cultura na centralidade de seus conteúdos e propostas. Reforçamos diversas vezes a importância de se reconhecer as relações de poder que atuam sobre os sujeitos, para que assim possamos questioná-las e subvertê-las. Propomos, portanto, que as diferenças deixem de habitar as margens (quando muito) dos processos educativos e que ganhem reconhecimento e centralidade em nossas aulas.

Considerações finais

A partir do que foi exposto ao longo do texto, afirmamos que almejamos contribuir com o reconhecimento da Educação Física enquanto produtora e reprodutora de significados, admitindo sua atuação direta e efetiva na construção dos sujeitos que constroem o espaço escolar. Levando isso em consideração, reforçamos a importância de se colocar a cultura na centralidade da nossa ação didática, buscando privilegiar as mais distintas práticas culturais em nossos cotidianos, transformando esses momentos em reflexões conjuntas com nossos alunos e alunas sobre as desigualdades presentes em nossa sociedade.

Não pretendemos delimitar esse posicionamento como o único caminho possível, ou aquele que deveria ser seguido por todas as pessoas, mas enxergamos nele a possibilidade de um fazer docente que abre espaço para o debate, que reconhece diversas práticas culturais e, para além disso, que as traz para dentro dos currículos. Um caminho que não é simples e que não vem com uma prescrição indicando como fazer. Um caminho que entende que cada realidade apresenta uma demanda específica e distintas maneiras de lidar com as questões propostas. No entanto, é um caminho que se reivindica político, de resistência, para, dessa maneira, comprometer-se verdadeiramente com a formação de pessoas críticas, solidárias, preparadas para uma atuação combativa das desigualdades do mundo e sensíveis às questões da diferença.

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Recebido: 01 de Abril de 2022; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

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