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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./sept 2023  Epub 19-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.23656 

Artigos

TEMAS CONTEMPORÂNEOS TRANSVERSAIS EM UMA PERSPECTIVA CRÍTICA: PROFESSORES EM PROCESSO DE EMPOWERMENT

CONTEMPORARY TRANSVERSAL THEMES FROM A CRITICAL PERSPECTIVE: TEACHERS IN THE PROCESS OF EMPOWERMENT

TEMAS TRANSVERSALES CONTEMPORÁNEOS DESDE UNA PERSPECTIVA CRÍTICA: DOCENTES EN PROCESO DE EMPODERAMIENTO

Adriane Lorrane Feitosa Campos dos Santos, Mestre em Educação Matemática1 
http://orcid.org/0000-0002-9022-5224

Edmilson Minoru Torisu, Doutor em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-7383-387X

1Mestre em Educação Matemática, Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, Ouro Preto, Minas Gerais - Brasil

2Doutor em Educação, Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, Ouro Preto, Minas Gerais - Brasil


Resumo

Este artigo tem como objetivo investigar de que forma a exploração de temas transversais por um grupo de professores(as), em uma perspectiva crítica, pode contribuir para o empowerment de cada um(a) dos(as) participantes. O conceito de empowerment é tomado da trama teórica que compõe a Educação Matemática Crítica e suas interseções com a pedagogia de Paulo Freire. Os seis participantes do estudo são professores e professoras de Matemática das redes pública e privada do Estado do Rio de Janeiro. Nos sete encontros, que ocorreram de forma remota por causa do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, os participantes discutiram acerca dos temas transversais e refletiram sobre algumas possibilidades de exploração deles em aulas de Matemática. Como resultado, questões de Matemática foram elaboradas, de forma coletiva, tendo os temas transversais como pano de fundo. Os dados foram coletados por meio de gravações em áudio, vídeo e questionário. A análise se baseou em uma forma adaptada do trabalho com temas geradores, destacando os momentos de investigação, tematização e problematização. Ela revelou que os professores, ao longo dos encontros, passaram de uma consciência ingênua a uma consciência crítica, no que se refere ao uso de temas transversais em aula de Matemática, como caminho para o empowerment.

Palavras-Chave consciência crítica; empowerment; temas transversais.

Abstract

This article aims to investigate how the exploration of transversal tThemes by a group of teachers, in a critical perspective, can contribute to the empowerment of each one of the participants. The concept of empowerment is taken from the theoretical framework that makes up Critical Mathematics Education and its intersections with Paulo Freire's pedagogy. The six study participants are Mathematics teachers from public and private schools in the State of Rio de Janeiro. In the seven meetings, which took place remotely due to the social isolation imposed by the covid-19 pandemic, the participants discussed cross-cutting themes and reflected on some possibilities for exploring them in Mathematics classes. As a result, mathematics questions were collectively elaborated, having the cross-cutting themes as a background. Data were collected through audio and video recordings and a questionnaire. The analysis was based on an adapted way of working with generative themes, highlighting the moments of investigation, thematization and problematization. She revealed that the teachers, throughout the meetings, went from a naive conscience to a critical conscience, with regard to the use of cross-cutting themes in mathematics classes, as a path to empowerment.

Keywords: critical consciousness; empowerment; transverse themes.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo investigar cómo la exploración de temas transversales por parte de un grupo de docentes, en una perspectiva crítica, puede contribuir al empoderamiento de cada uno de los participantes. El concepto de empoderamiento se toma del marco teórico que conforma la Educación Matemática Crítica y sus intersecciones con la pedagogía de Paulo Freire. Los seis participantes del estudio son profesores de Matemáticas de escuelas públicas y privadas del Estado de Río de Janeiro. En los siete encuentros, que se realizaron de manera remota debido al aislamiento social impuesto por la pandemia del covid-19, los participantes discutieron temas transversales y reflexionaron sobre algunas posibilidades para explorarlos en las clases de Matemáticas. Como resultado, las preguntas de matemáticas fueron elaboradas colectivamente, teniendo como trasfondo los temas transversales. Los datos fueron recolectados a través de grabaciones de audio y video y un cuestionario. El análisis se basó en una forma adaptada de trabajar con temas generativos, destacando los momentos de investigación, tematización y problematización. Reveló que los docentes, en el transcurso de los encuentros, pasaron de una conciencia ingenua a una conciencia crítica, en cuanto al uso de temas transversales en las clases de matemáticas, como camino de empoderamiento.

Palabras clave: conciencia crítica; empoderamiento; temas transversales.

Introdução

Nas últimas décadas, muito tem se discutido sobre cidadania. No bojo dessas discussões, uma se sobressai, qual seja, aquela que coloca a escola como um dos principais espaços para a formação do(a) estudante cidadão(ã).

A palavra “cidadão” remonta à Antiguidade, com destaque para seu significado na Civilização Grega. Nela, cidadão remetia a alguém que gozava de direitos como liberdade, igualdade e virtudes republicanas. Sendo assim, o exercício da cidadania se dava por meio do exercício desse conjunto de direitos (mas também deveres). Da Grécia Antiga até os dias de hoje, a concepção de cidadania foi se modificando, até porque ela se faz com mudanças sociais, resultado de lutas, dívidas históricas e contradições (COSTA; IANNI, 2018). Contudo, a despeito de mudanças, a ideia de cidadania de hoje ainda tem liberdade e igualdade como parte de seus pilares.

A depender do país, do regime político, do momento histórico, da cultura, muitas podem ser as compreensões do que vêm a ser liberdade e igualdade. Portanto, torna-se difícil não considerar o contexto no qual se dá a celeuma em torno do tema “cidadania”.

No Brasil, por exemplo, de acordo com Dagnino (2004), foi a partir da Constituição de 1988 que houve uma expansão do processo de democratização do país, ampliando a cidadania. A autora considera que essa expansão emerge como resultado da reação de setores da sociedade civil à Ditadura Militar, nas décadas de 1970 e 1980, sobretudo por meio dos movimentos sociais, que tiveram grande importância na luta pelos direitos dos brasileiros e das brasileiras. Nessa época, a escola se transformou em espaço de denúncia da opressão, das injustiças, das desigualdades; por essa razão, deveria formar sujeitos engajados na luta pela cidadania (DAGNINO, 2004). Isso é uma evidência de que, desde muito tempo, a escola tem sido um dos espaços em que se pretende (ou se deve pretender) formar estudantes que lutem pela liberdade e pela igualdade. Indagamos: como isso se dá?

A formação cidadã acontece com vistas à capacitação do indivíduo para responder aos problemas que surgem no seu entorno, assumindo uma posição de comprometimento consigo mesmo e com a sociedade (ZABALA, 2002). Pensando nisso, uma possível resposta à pergunta feita ao final do parágrafo anterior pode ser: trazer à discussão temas contemporâneos transversais, que são:

[...] assuntos que não pertencem a uma área do conhecimento em particular, mas que atravessam todas elas, pois delas fazem parte e a trazem para a realidade do estudante. Na escola, são os temas que atendem às demandas da sociedade contemporânea, ou seja, aqueles que são intensamente vividos pelas comunidades, pelas famílias, pelos estudantes e pelos educadores no dia a dia, que influenciam e são influenciados pelo processo educacional (BRASIL, 2019, p. 7).

A discussão e a reflexão em torno desses temas podem levar o(a) estudante a uma compreensão ampliada da realidade em que vive, para poder nela intervir. Contudo, essa é uma tarefa a ser realizada a várias mãos, em todas as disciplinas escolares.

Particularmente em Matemática, considerada por muitos como uma disciplina que se encerra em si mesma, explorar Temas Transversais (TT) pode, para ao mais ortodoxos, macular a imagem de ciência perfeita atribuída a ela. Essa concepção equivocada pode levar o professor a uma prática engessada, na qual se ensina a Matemática pela Matemática, sem aventar a possibilidade de tê-la como aliada na discussão e reflexão de temas/problemas relevantes que dizem respeito a todos e todas e que contribuem na caminhada pela cidadania.

Diante desse cenário, surge a questão: professores de Matemática que desejam uma prática de sala de aula que explore TT para além das fórmulas e algoritmos estão preparados para isso? É comum que, na formação inicial de professores de Matemática, pouco ou nada se discuta sobre esses temas. Isso leva o professor a seguir dois caminhos distintos: acomoda-se e nada faz ou passa a protagonizar a luta por novos conhecimentos que o habilitem a explorar esses temas.

Considerando que o(a) professor(a) é aquele(a) que pode promover uma Educação Matemática, na qual sejam incluídos os TT, mas ao mesmo tempo considerando sua precária formação nesse assunto, o principal objetivo deste artigo, recorte de uma dissertação de mestrado, é investigar de que forma a exploração de TT por um grupo de professores(as), em uma perspectiva crítica, pode contribuir para o empowerment de cada um(a) dos(as) participantes.

Para o estudo, utilizaremos como referencial teórico a Educação Matemática Crítica (EMC), da qual alguns construtos terão destaque, como o conceito de empowerment. Ideias defendidas por Paulo Freire, que guardam interseção com a EMC, complementam nosso apoio às discussões e análises.

O artigo está assim dividido: após a introdução, na primeira seção, traremos uma discussão acerca dos TT. Na segunda, apresentaremos as ideias centrais em EMC. Na sequência, a metodologia será apresentada, seguida da descrição e análise dos dados. Por fim, as considerações finais e referências.

Temas transversais

Na introdução, fizemos referência a movimentos da sociedade civil contra a Ditadura Militar que tiveram papel fundamental na expansão do processo de democratização do país. A escola, que normatizava o ensino e cerceava a liberdade de professores e dela própria, no gerenciamento do processo educativo (VENERA, 2009), transformou-se em um espaço de denúncia de injustiças e desigualdades comprometido com a formação de pessoas engajadas na luta pelos direitos do cidadão (DAGNINO, 2004). Entretanto, para perseguir esse objetivo, a escola precisa de aliados, pois é uma tarefa a ser tecida a várias mãos.

Ainda na introdução, defendemos que explorar TT nas várias disciplinas escolares pode ser um caminho promissor para a formação cidadã pretendida pelas instituições escolares. Em documentos oficiais, os TT foram recomendados, pela primeira vez, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documento elaborado pelo Ministério da Educação e do Desporto em 1997 cujo objetivo era orientar políticas públicas para a educação básica e ações educativas em âmbito nacional.

De acordo com os PCN, “pretende-se que esses temas integrem as áreas convencionais de forma a estarem presentes em todas elas, relacionando-as às questões da atualidade e que sejam orientadores também do convívio escolar” (BRASIL, 1998, p. 27). A transversalidade pressupõe que nenhuma área sozinha é suficiente para explorar os temas em sua totalidade. Abordá-los em sala de aula é discutir a respeito das questões sociais, voltadas à vida do aluno fora e dentro do ambiente escolar (SANTOS, 2019). Em um primeiro momento, os temas elencados como transversais foram: ética, saúde, orientação sexual, meio ambiente, trabalho e consumo e pluralidade cultural.

Mais recentemente, em 2019, foi publicada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um:

[...] documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2019, p. 7).

Nesse documento, os TT surgem com o nome de Temas Contemporâneos Transversais (TCT), cujo objetivo é garantir que o estudante não termine sua educação formal tendo visto “[...] apenas conteúdos abstratos e descontextualizados, mas que também reconheça e aprenda sobre os temas que são relevantes para sua atuação na sociedade” (BRASIL, 2019, p. 7). Os TCT são divididos em seis macroáreas temáticas: ciência e tecnologia, meio ambiente, economia, multiculturalismo, saúde e cidadania e civismo. Elas, por sua vez, são divididas em subáreas. Por exemplo, a macroárea “multiculturalismo” se subdivide em diversidade cultural e educação para a valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras. A macroárea “economia”, engloba as subáreas trabalho, educação financeira e educação fiscal.

A BNCC não apresenta um caminho para a exploração dos TT na prática. Ela os apresenta e sinaliza que “existem múltiplas possibilidades didático-pedagógicas para a sua abordagem, que podem integrar diferentes modos de organização curricular. Tais possibilidades envolvem três níveis de complexidade: intradisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar” (BRASIL, 2019, p. 18). Cabe às escolas “incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de Temas Contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora” (BRASIL, 2019 p. 19).

Notemos que a citação atribui à escola a tarefa de encontrar propostas para a abordagem dos TT. Naturalmente, essa responsabilidade respinga naquele(a) que está em sala de aula: o(a) professor(a). Contudo, estará ele(a) preparado(a) para essa demanda?

No capítulo III, artigo 8o, item VIII da Resolução no 2 de 20 de setembro de 2019 do Conselho Nacional de Educação, que apresenta as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), considera-se o seguinte, acerca dos fundamentos pedagógicos destinados à formação inicial de professores para a educação básica:

VIII - compromisso com a educação integral dos professores em formação, visando à constituição de conhecimentos, de competências, de habilidades, de valores e de formas de conduta que respeitem e valorizem a diversidade, os direitos humanos, a democracia e a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas (BRASIL, 2019, p. 5).

A citação defende que a formação inicial do(a) professor(a) seja pautada na aquisição de competências, habilidades e valores que dialoguem com as discussões em torno dos TT. A nosso ver, um(a) professor(a) formado(a) nessa perspectiva poderá fazer reverberar, em sua prática em sala de aula, o que aprendeu na graduação. Porém, suspeitamos que nem sempre a formação transversal do professor tem sido contemplada na graduação, tampouco na formação continuada. Concluímos que, embora os TT sejam recomendados como parte do repertório de conhecimentos a serem adquiridos pelos(as) professores(as) em formação, e que eles(as) possam, na prática futura, levar esses temas à discussão, com vistas à formação do estudante para a cidadania, tudo parece utopia. De acordo com Mello (2009), muitos professores não exploram TT porque não se sentem confortáveis ou porque não sabem como fazê-lo.

Este artigo caminha na direção de trazer, junto a um grupo de professores de Matemática, discussões acerca dos TT. Mais que aprender sobre eles, é nosso interesse que os participantes criem maneiras de explorar os temas em um processo que possa incrementar o seu empowerment. Este termo, emblemático para nosso estudo, foi tomado da trama teórica do que tem sido denominado Educação Matemática Crítica. A próxima seção é dedicada à discussão sobre esse referencial teórico.

Educação matemática crítica

Para Skovsmose (2012), o embrião das discussões sobre Educação Matemática Crítica (EMC) surgiu juntamente com as novas tendências e movimentos que ocorreram na década de 1970, como a Guerra do Vietnã, lutas a favor do feminismo e contra o racismo, que contribuíram para o crescimento de uma nova esquerda. Em meio a esses acontecimentos, a EMC vem promover reflexões em torno das formas de adestramento em situações de ensino e aprendizagem, como aquelas que ocorrem como resultado de práticas que se servem de receitas prescritas, manuais e procedimentos predefinidos nos quais se faz o que é dito, sem questionamentos (SKOVSMOSE, 2012). Diferentemente disso, a EMC está preocupada com um ensino de Matemática que contribua para a emancipação das pessoas por meio da reflexão crítica.

Contudo, a Teoria Crítica (TC), com a qual a EMC tentava dialogar, era guiada pelas ideias de emancipação, ao passo que a Matemática era guiada por interesses técnicos. Técnica não parecia ser algo que pudesse levar à emancipação. Então, para se afirmar como campo de discussão teórica, a EMC teve que se apoiar sobre suas próprias bases epistemológicas (SKOVSMOSE, 2012). Foram necessárias formulações teóricas próprias para criar um quadro conceitual para a EMC. Além da TC, a EMC foi influenciada pela pedagogia de Paulo Freire, que propunha uma educação libertadora, criativa e emancipadora como caminho contra a opressão. Em Matemática, considerada uma área árida e técnica, passou-se a vislumbrar novas perspectivas de ensino, que pudessem levar as pessoas a um processo emancipatório de leitura e escrita do mundo - ler no sentido de compreendê-lo, e escrever no sentido de agir sobre ele.

Skovsmose (2001, 2007, 2012) defende que o objetivo da EMC é desenvolver a matemacia, um tipo de competência que possibilita às pessoas questionar o papel da Matemática na sociedade. Trata-se de um tipo de alfabetização matemática que inclui suporte para a cidadania crítica, a exemplo da literacia de Paulo Freire. À EMC interessa questionar qualquer glorificação da Matemática, tida como um meio capaz de alavancar a ciência e, por consequência, o progresso. Por esse viés, a Matemática se torna quase um ídolo cujos resultados nunca são questionados (SKOVSMOSE, 2012).

A EMC pode servir para promover o empowerment dos estudantes na luta contra forças opressoras e em favor da justiça social (SKOVSMOSE, 2012). O empowerment é um processo no qual uma pessoa ou comunidade torna-se mais forte e mais confiante contra algo que a oprime, podendo levar a ações que contribuam para a solução de problemas sociais e para a libertação (POWELL, 2017). Nessa concepção, empowerment se aproxima da ideia de esclarecimento de Kant, para quem o sujeito esclarecido luta contra seu estado de menoridade para alcançar a emancipação.

Nas escolas, encontramos formas de ensinar caracterizadas pelo modelo tradicional de ensino de Matemática que “pode ter, ao contrário da proposta da Educação Crítica, um caráter apassivante, levando os alunos a perderam sua capacidade de crítica, algumas vezes tornando-os alienados” (PAIVA; SÁ, 2011, p. 2); e completaríamos, adestrados. Essa abordagem se insere naquilo que Skovsmose (2000) denomina paradigma do exercício. Uma aula guiada por esse paradigma apresenta o seguinte roteiro: o professor explica o conteúdo; após essa fase, propõe uma lista infindável de exercícios mecânicos, na maioria das vezes com uma única resposta; os estudantes executam a lista de forma mecânica. Os estudantes não opinam. A comunicação praticamente não existe e, quando ocorre, se insere no padrão sanduíche, no qual o professor pergunta, o aluno responde e a sua resposta é avaliada pelo professor como certa ou errada e não se reflete sobre os temas (SKOVSMOSE, 2000; ALRØ; SKOVSMOSE, 2006). O ensino baseado no paradigma do exercício se assemelha à educação bancária criticada por Freire.

Como alternativa ao paradigma do exercício, Skovsmose (2000) propõe os cenários para investigação. Neles, propõem-se “ações investigativas que primam por desenvolver a capacidade Matemática dos alunos por meio de situações-problema geradas, inclusive, fora do contexto da disciplina Matemática, abrindo espaço para identificar a Matemática presente em outros contextos” (BENNEMANN; ALLEVATO, 2012, p. 111).

Desde o início das discussões em EMC, muitos interlocutores ao redor do mundo têm se debruçado sobre estudos utilizando seus conceitos e suas ideias centrais, mas, ao mesmo tempo, fazendo avançar as discussões. Isso é desejável porque o mundo está em constante mudança, e isso repercute sobre a forma como lidamos com tudo que nele acontece. De acordo com Marcone e Milani (2020, p. 276):

[...] a EMC, apesar de ainda apegada às suas raízes, como o movimento estudantil e o movimento feminista, bem como as práticas de sala de aula, continua sendo revigorada trazendo novas temáticas para reflexão, como a educação financeira e a inclusão de pessoas com deficiência, mantendo-se atual após mais de quatro décadas.

Em outras palavras, os conceitos centrais em EMC se mantêm vivos, às vezes com novos contornos, novas interpretações. Isso é importante para que a teoria possa iluminar os dados de pesquisas de tendências diversas em Educação Matemática. Um exemplo disso é o estudo apresentado neste artigo, que investiga de que modo a exploração de TT em um grupo de professores e professoras de Matemática do Ensino Básico contribui para o seu empowerment. Na nossa análise, conectamos o conceito de empowerment, assim como compreendido em EMC, com o de consciência crítica, de Paulo Freire.

Na próxima seção, apresentaremos a metodologia do estudo.

Metodologia

Na parte empírica desta pesquisa, promovemos encontros virtuais com professores da Educação Básica para discussão e reflexão em torno de TT e de possibilidades de sua exploração em aulas de Matemática, em uma perspectiva crítica. Como referencial teórico analítico, recorremos à EMC como lente para analisar os dados obtidos nesses encontros. O principal objetivo do estudo foi investigar de que modo a exploração desses temas por um grupo de professores e professoras de Matemática pode contribuir para o seu empowerment.

A metodologia adotada na pesquisa foi de caráter qualitativo, pois valorizou o contato direto do pesquisador com a situação que estava sendo estudada, além de fazer uso de ferramentas como questionários e encontros para obtenção dos dados (GODOY, 1995).

Os(as) participantes do estudo foram seis professores(as) de Matemática de escolas municipais, estaduais, federais e particulares, nos níveis de ensino Fundamental, Médio e Superior. Antes de iniciarmos os encontros para a discussão em torno dos TT, realizamos uma reunião para prestarmos esclarecimentos sobre a pesquisa e para que os(as) participantes pudessem se conhecer. Àqueles que se propuseram a participar foram enviados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para serem assinados. A cada um foi atribuído um nome fictício. Vale lembrar que, antes de iniciarmos a pesquisa, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da universidade que abriga o programa de pós-graduação ao qual ela se vincula, sob CAAE 49090621.1.0000.5150.

Para melhor caracterizar os(as) participantes, elaboramos o Quadro 1, a partir das respostas a algumas perguntas de um questionário aplicado antes do primeiro encontro.

Quadro 1 Características dos(as) professores(as) participantes 

Características dos(as) professores(as) participantes
Professores Formação Experiência profissional Tempo de atuação Conhecimento a respeito dos Temas Transversais
Ana Licenciatura em Matemática Ensino Fundamental / Reforço escolar / Pré-vestibular
(Ensino Público)
Dois anos Não.
Júnior Licenciatura em Matemática Ensino Fundamental / Ensino Médio
(Ensino Particular)
Quatro meses Sim, aprendi na graduação.
Carlos Licenciatura em Matemática Ensino Fundamental / Reforço escolar
(Ensino Público)
Quatro anos Não possuo.
Joana Mestranda em Educação Matemática Ensino Fundamental
(Ensino Público)
Um ano Não.
Otávio Especialista em Ensino de Matemática Ensino Fundamental / Ensino Superior (Pedagogia e Matemática)
(Ensino Público)
Cinco anos Sim. O primeiro contato foi no Ensino Médio, e a graduação trouxe esses temas de forma mais específica.
Fernando Pós-graduado em Ensino de Matemática Ensino Fundamental
(Ensino Público)
Três anos Não tenho conhecimento. Não adquiri conhecimento sobre esse assunto durante minha graduação.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Dos(as) seis (6) professores(as), quatro não conheciam os TT. Um dos dois professores que afirmaram conhecer esses temas informou que o contato foi na graduação e o outro, no Ensino Médio e na graduação.

Após acordo com todos e todas, o dia escolhido para os encontros foi a sexta-feira, à noite. Ao todo, foram sete encontros, via plataforma Google Meet, nos quais, entre outras coisas, foram explorados os TT economia, multiculturalismo, saúde, meio ambiente.

Os dois primeiros encontros em grupo foram voltados à apresentação dos TT em documentos oficiais, como PCN e BNCC. Em cada um dos demais encontros, um TT era discutido pelo grupo, culminando com a elaboração conjunta de uma ou mais questões de Matemática, tendo como pano de fundo esse tema. A escolha do tema era feita pelos participantes no encontro anterior ao qual ele seria discutido.

Para a coleta de dados, gravamos os encontros em áudio e vídeo (um recurso da plataforma Google Meet), tudo com a autorização prévia dos(as) participantes. Além dessas gravações, recorremos à aplicação de questionários, via Google Forms. O questionário inicial foi enviado antes de iniciarmos os encontros em grupo, enquanto o questionário final foi enviado somente após o último encontro. Para Ribeiro (2008), a aplicação de questionários possui pontos fortes para a pesquisa, como: garante o anonimato e deixa em aberto o tempo para que as pessoas possam pensar sobre as suas respostas.

Destacamos, entre os dados, as falas de professores(as) ao longo de discussões, muitas vezes acaloradas, para a elaboração das questões. Elas revelaram muito sobre o impacto dos encontros em suas formações. Podemos destacar, também, a “não fala” de alguns(mas). O seu silêncio não era consequência de timidez. O silêncio era momento de aprendizagem. Em silêncio, ouvindo os outros(as), podemos aprender muito.

Descrição e análise de dados

Em EMC, empowerment é um sentimento, individual ou coletivo, que nos encoraja a lutar contra forças opressoras. Na concepção freiriana, empowerment significa libertação. Libertação, por sua vez, significa passar de uma consciência ingênua a uma consciência crítica.

Essas duas formas de apresentar esse conceito são muito próximas. Isso evidencia o diálogo entre as discussões em EMC e as discussões em torno das ideias da pedagogia de Paulo Freire. Aliás, esse diálogo foi explicitado em outros momentos desse artigo. Sendo assim, parece coerente caminharmos em uma análise que possa evidenciar a passagem de uma consciência ingênua a uma consciência crítica, como aquilo que promove o empowerment.

Iniciando uma caminhada rumo a uma consciência crítica

Os dois primeiros encontros foram dedicados a discussões sobre BNCC, Novo Ensino Médio, PCN e TT. O desconhecimento desses documentos pode gerar insegurança nos professores em início de carreira. Entre os(as) participantes, Otávio era o que possuía mais tempo de docência: cinco anos. Algumas falas1 desses encontros revelam essas inseguranças:

Joana: Eu não sabia por onde começar com a minha turma. Estava no 7º ano e os alunos não sabiam multiplicação. Não me senti segura para ensinar como funcionava, nem vi essa base na graduação, focada demais em cálculos (referindo-se às disciplinas de cálculo na graduação).

Ana: Não me sinto preparada para atuar dentro de sala de aula. A graduação não me ajudou. Tiveram conteúdos que aprendi na marra, dentro de sala de aula mesmo.

Otávio: A gente aprende teoria durante a graduação [mas] não temos preparo para o prático. Não somos oportunizados de ter essa questão prática de sala de aula (Primeiro encontro).

Essas falas se referem a dificuldades causadas pela separação entre teoria e prática em aulas de Matemática, dicotomia que existe na formação de professores desde a década de 1930, de acordo com Moriel Junior e Cyrino (2009). Os(as) professores(as) pouco sabiam sobre a BNCC e, quando sabiam, era algo imposto. Uma fala de Carlos traduz esse tipo de formação:

Carlos: No município em que trabalho, estou fazendo cursos sobre a BNCC. Sou obrigado a fazer, assim como todos os professores. Os cursos estão sendo on-line. [...]. É um vídeo gravado e só. Não tem como discutir. É só assistir o vídeo que eles mandaram e pronto. Não é um curso. É uma ordem (Primeiro encontro).

A fala de Carlos revela como tem sido a formação continuada de professores no Brasil. Estamos falando de cursos impostos de cima para baixo, que ignoram os interesses profissionais dos docentes. Sua autonomia e sua liberdade são fruto de uma democracia negativa (TRAGTENBERG, 2012 apudCEZAR, 2022), legitimada no sistema educacional pelas relações de poder, que colocam os professores na condição de dominados.

No segundo encontro, os TT foram discutidos de forma mais sistemática, a partir do Guia Prático dos Temas Contemporâneos Transversais, uma novidade para a maioria.

Ana: O bom do encontro de hoje é que eu aprendi de fato o que é ‘inter’, ‘intra’ e ‘transdisciplinar’.

Júnior: Eu pretendo me aprimorar para poder trabalhar melhor esse tema nas minhas aulas. Educação financeira é importante, e, com a nossa troca, terei mais ideias.

Revelam-se nessas falas novas aprendizagens e intenções de ação rumo a mudanças da prática, do mundo e da relação com ele. Em certa medida, isso está em sintonia com o conceito de práxis de Freire (2020). Para esse educador, o ser humano reflete e, após refletir, age para se transformar e transformar a realidade. Esse movimento de interpretar a realidade (no caso dos professores, a sua prática) e, como resultado dessa reflexão, agir para que ela (a realidade) se transforme, Freire denomina práxis. Em EMC, o conceito de práxis está próximo do conceito de alfabetização matemática, ou seja, “interpretar um mundo estruturado por números e figuras, e capacidade de se atuar nesse mundo” (SKOVSMOSE, 2012, p. 19).

Entretanto, agir sobre o mundo, mudar a realidade, requer cautela e preparo. Requer uma conscientização crítica, que é o desenvolvimento crítico da tomada de consciência sobre o que acontece na realidade (FREIRE, 2016). O desejo de saber mais sobre os temas discutidos nos encontros parece esboçar um início de conscientização crítica dos professores e das professoras. Início porque conscientizar-se é um processo paulatino, no qual passamos de um estado inicial de consciência ingênua para outro, de consciência crítica. Quanto mais conscientes nos tornamos, mais nos aproximamos da realidade da qual somos parte e vice-versa.

Nos primeiros encontros, o pouco conhecimento demonstrado pelo grupo acerca de documentos oficiais e a apresentação dos TT neles parecem ser evidência de uma consciência ingênua. Após leituras e discussões, muito foi aprendido e esclarecido, o que assegura, em alguma medida, maior confiança para lidar com isso em sala de aula. Pareceu o início de um caminho rumo à consciência crítica.

No caminho rumo à consciência crítica: uma aproximação ao método Paulo Freire

No terceiro encontro o TT explorado foi economia: trabalho, educação financeira e educação fiscal. Os professores deveriam discutir e elaborar, de forma conjunta, questões de Matemática tendo o tema como pano de fundo. Como explorar economia em aula de Matemática? O que levar em consideração? Duas falas de Carlos e uma de Ana podem nos ajudar a encontrar respostas a essas perguntas.

Carlos: A escola em que trabalho é em periferia, muito precária e os alunos não têm perspectiva nenhuma. No ensino híbrido, eles nem faziam nada porque não tinham internet para ter a aula e quando voltavam na semana seguinte já não lembravam o que tinham visto antes.

Carlos: Acho importante ser uma questão simples, que eles tenham vontade de realizar, porque meus alunos têm dificuldades e defasagens. Então precisa ser uma questão tranquila, mas que tenha ali conteúdos que eles possam enxergar no dia a dia.

Ana: É bom colocar valores da nossa realidade, colocar valores dos imóveis reais.2

Carlos, Ana e os(as) outros(as) professores(as) acreditam que é importante, ao elaborar uma questão, levar em consideração as condições de aprendizagem dos estudantes e seus conhecimentos prévios e que, além disso, ela tenha sentido para eles. Skovsmose (2007) critica as salas de aula de muitas pesquisas empíricas em Educação Matemática, nas quais os estudantes têm livros didáticos, computadores e não têm fome, ou seja, a aprendizagem se dá em um contexto ideal. Essas salas, denominadas pelo autor de salas de aula prototípicas, não representam a realidade da maioria dos estudantes pelo mundo, incluindo os alunos e as alunas dos(as) professores(as) referidos(as) neste texto.

Carlos também revela que seus(suas) alunos(as) “não têm perspectiva nenhuma”. Acreditamos que o professor se refere a perspectivas para o futuro. A maneira como uma pessoa vislumbra seu futuro, em termos de oportunidades, perspectivas, é denominada em EC de foreground (SKOVSMOSE, 2007, 2012). No caso de alguns estudantes dos(as) professores(as) do estudo, o foreground pode estar arruinado. “Um foreground arruinado não significa que não existe um foreground, mas que o foreground parece estar sem nenhuma oportunidade atrativa e realista” (SKOVSMOSE, 2007, p. 4). O foreground pode refletir a situação do estudante e as contradições e conflitos que dela emergem.

Ao revelar as condições de vida de seus alunos, os(as) professores(as) também revelam sobre as situações que podem afetar seus foregrounds. Mais que isso, revelam também uma sensibilidade para perceber o outro e, talvez, contribuir para que ele melhore suas perspectivas, ou seus foregrounds, a partir de suas ações em sala de aula.

Compreender que seus alunos não fazem parte de uma sala de aula prototípica, que seus foregrounds não vislumbram um futuro atrativo, que é importante se aproximar da realidade desses alunos ao abordar conteúdos matemáticos e escolher um tema que possa cumprir esse papel parecem evidenciar que os professores e as professoras do grupo estão caminhando para uma consciência crítica, ao apreender sobre a realidade. Essas apreensões acerca de seus alunos e alunas, aliadas a algumas compreensões de como os TT podem contribuir para a formação desses e dessas discentes, ao servirem de pano de fundo de questões de Matemática, se aproximam do que Freire (2014) denomina investigação e tematização, duas etapas do trabalho com os chamados temas geradores, rumo a uma consciência crítica.

Gadotti (1991) considera que, no trabalho com temas geradores, a etapa de investigação é aquela na qual se faz o levantamento de temas e palavras de grande relevância na vida dos educandos. Para o mesmo autor, a tematização se manifesta no momento em que o tema é apresentado ao grupo, abordado a partir de uma situação real, denominada situação figurada ou codificada (GADOTTI, 1991).

Acreditamos que, em nossa análise, estamos fazendo uma releitura das etapas de Freire. Na investigação, por exemplo, antes de avaliar possibilidades de TT a serem explorados, ocupamo-nos de uma compreensão mais acurada do que são esses temas e como são evocados em documentos oficiais do governo. Diferentemente do que acontece com alunos, público ao qual se refere Gadotti (1991), as escolhas dos temas não foram feitas pelos professores e pelas professoras e não foram escolhas aleatórias. Os(as) docentes conheciam seus alunos e, por isso, tinham certa autoridade para falar por eles. Na nossa interpretação, a tematização ocorreu à medida que os temas foram sendo eleitos para determinada questão.

Após a investigação e a tematização, o próximo passo seria aquele da problematização. Segundo Mühl (2019 apudCEZAR, 2022), a problematização compreende o momento do desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o tema em debate a partir da identificação de situações desafiadoras ou de problemas concretos que envolvam a vida dos alfabetizandos. No presente estudo, estamos compreendendo a etapa da problematização composta pelos momentos de elaboração, de forma conjunta, das questões matemáticas que exploram o tema escolhido pelo grupo e seus desdobramentos.

Problematizando a partir de questões construídas em conjunto

Do terceiro ao sétimo encontro, os professores e as professoras se reuniram para elaborar, coletivamente, questões a partir de um tema escolhido por eles e elas. A nosso ver, esses encontros compuseram subetapas da problematização, que contribuíram para que a consciência crítica dos participantes desse um salto qualitativo em relação aos temas abordados, ao elaborarem questões que os tinham como pano de fundo.

A primeira questão elaborada pelo grupo, cujo TT era economia, fazia alusão à compra de uma casa construída por meio de um programa do governo federal, que oferece algumas facilidades para a população de baixa renda. Embora a situação da questão seja artificial (semirreal), para a elaboração de seu enunciado os professores tomaram alguns cuidados importantes, como sugerir um bairro que não fosse localizado em uma zona nobre, um valor possível de ser poupado por quem não recebe um alto salário e um valor de imóvel compatível com as condições do morador, além de taxas de juros cujos valores foram pesquisados na internet. Em alguma medida, levaram em consideração as condições de aprendizagem de seus alunos e de suas alunas.

As discussões para a elaboração da primeira questão foram proveitosas e outras ideias foram surgindo. Fernando sugeriu uma questão que explorasse novas formas para poupar dinheiro. Ana sugeriu explorar inflação. Outra questão com foco no ICMS foi elaborada. Joana propôs que cada questão tivesse uma introdução que discorresse um pouco sobre o tema abordado e apresentou um exemplo: “antes da questão dos juros, do ICMS, botar um texto introdutório sobre o que é/como funciona. [...] nem eu sabia, imagina eles”.

Notamos que até mesmo os professores inicialmente menos participativos passaram a propor ideias interessantes como a de Joana. Tomando como base as questões elaboradas pelo grupo e as falas dos professores, notamos avanços no seu processo de conscientização crítica. Para Freire (1967, p. 60):

[...] a conscientização crítica se caracteriza [...] pela profundidade na interpretação dos problemas. [...] pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições.

O quarto encontro explorou o tema “multiculturalismo e diversidade cultural”. A questão elaborada trouxe à tona a celeuma em torno da intolerância religiosa, refletida em uma decisão da Prefeitura de Campo Grande, no Rio de Janeiro. A partir dela, todas as religiões receberiam uma verba para construir seus museus. Na divisão, às religiões de matriz africana coube o menor valor. Carlos opina sobre como a questão pode ser explorada, para além da Matemática:

Carlos: [...] Perguntar o que eles acham dos valores decretados a cada religião. Explorar o que cada aluno pensa em relação a isso. Aí veremos a reflexão desse aluno em torno desse tema. Com toda certeza gerará discussões muito boas. Essa questão duraria uma aula inteira.

Ana informa que entre 2014 e 2019 a intolerância religiosa aumentou. Ela acredita que esse aumento pode ter relação com o governo. A sugestão do Carlos está relacionada à ideia de identificar e compreender de que maneira os números podem informar sobre aquele tema, ou seja, ler o mundo por meio da Matemática. Ana problematiza a intolerância por meio de um viés político. Otávio comenta sobre suas experiências em sala de aula, ao explorar temas como racismo e igualdade de gênero. Tudo isso gera discussões que levam à aprendizagem por meio do diálogo, compreendido como um tipo de comunicação em que os participantes se encontram, o que implica ouvir e influenciar o outro, em um processo de mudança (CISSNA; ANDERSON, 1994 apudALRØ; SKOVSMOSE, 2006).

As falas de Otávio, Ana e Carlos, que sugerem, de alguma forma, a necessidade de compreender o contexto no qual o problema se insere, parecem estar de acordo com o que Santiago e Batista Neto (2011) consideram a respeito do movimento de problematização. Para os autores, a problematização parte da “realização de estudo do contexto/realidade individual e coletiva, seja de pessoas, de grupos ou de circunstâncias” (SANTIAGO; BATISTA NETO, 2011, p. 10). De acordo com esses mesmos autores, a problematização pode conduzir a demandas de ações e de intervenções. A nosso ver, ao levar para a sala de aula, ainda que adaptadas para o contexto, questões como as elaboradas nos encontros, o professor fará uma intervenção provocada pelo processo de problematização.

No quinto encontro, o tema explorado foi preconceito racial, e duas questões foram elaboradas. No sexto encontro, foi explorado o tema saúde. Questões sobre Papilomavírus Humano e gravidez na adolescência foram propostas.

Na nossa interpretação, a exploração dos TT no grupo contribuiu para o empowerment dos(as) professores(as), na medida em que contribuiu para o desenvolvimento de sua consciência crítica em relação a esses temas. Tal consciência foi sendo engendrada conforme os encontros aconteciam, guiados por um tipo de comunicação baseada no diálogo. Nessa perspectiva, professores(as) expunham suas ideias e ouviam as dos outros. Muitas vezes, mais ouviam e aprendiam, em um ouvir silencioso, do que falavam. A reflexão crítica em torno dos TT, primeiro para se apropriar deles e, depois, para elaborar questões tendo-os como pano de fundo, foi um caminho que rendeu bons frutos nas etapas de investigação, tematização e problematização.

A problematização, compreendida como os momentos de elaboração das questões, inseriu os professores em um terreno desconhecido, uma zona de risco. Contudo, o trabalho coletivo pode ter gerado um sentimento de segurança, que foi desenvolvendo-se aos poucos, para explorar os temas transversais e enfrentar essa zona. Embora com alguns sismos, esse enfrentamento contribuiu para que os professores desenvolvessem a capacidade de ler e escrever o mundo por meio da Matemática. A leitura ocorreu por meio da compreensão do modo como poderiam ser explorados temas transversais nas aulas. A escrita se manifestou nas questões elaboradas. Quando propostas em aula, tais questões podem suscitar discussões e novas aprendizagens para além da Matemática, mas a partir dela. Compreendemos isso como uma forma de agir sobre o mundo. Essas ações podem reverberar para além dos muros da escola, quando os estudantes repercutem esses novos saberes no seu entorno.

Entretanto, embora a nossa análise tenha evidenciado um caminho seguido pelos professores rumo a uma consciência crítica acerca da exploração de temas transversais em sala de aula, acreditamos que esse caminho ainda é longo. Como nos ensina Freire, somos seres inacabados, inconclusos. Estaremos sempre caminhando...

Considerações finais

Neste artigo, apresentamos parte de uma pesquisa que investigou contribuições que emergiram da exploração de TT por um grupo de professores e professoras de Matemática, para seu processo de empowerment. Era nossa expectativa que as discussões travadas nos encontros pudessem revelar, aos professores e às professoras, novos caminhos para explorar os temas transversais com maior segurança. Os encontros foram guiados por um tipo de comunicação baseada no diálogo, na qual Ana, Júnior, Joana, Carlos, Fernando e Otávio compartilharam ensinos e aprendizagens. Em alguns momentos, nossas vivências e nossas memórias nos colocavam como aquele que fala. Em outros, como aquele que ouve. Nesse movimento, todos aprendemos. Aprendemos a ler e, em alguns casos, escrever o mundo. A nosso ver, esse é um caminho para o empowerment.

O processo de pesquisa foi árduo e nos ofereceu desafios. O primeiro que apareceu no meio do caminho foi a pandemia da covid-19. Os encontros, que seriam presenciais, precisaram ser rearranjados para o formato remoto.

Uma consideração importante a ser feita sobre este estudo é que ele não tinha a pretensão declarada de ser uma ação de formação continuada, mas se revelou como tal. Contudo, não estamos falando de uma formação continuada nos moldes tradicionais, em que a participação dos professores é compulsória, mas uma participação voluntária.

Buscamos, com esta pesquisa, destacar como é possível estabelecer diálogo entre a Matemática e temas importantes que estão fora do ambiente escolar, levando-os para a sala de aula. Contudo, ainda há muito que ser discutido em Educação Matemática sobre os TT.

Encerramos este trabalho com a esperança de termos contribuído, ainda que pouco, com a educação em nosso país, assolada pelo descaso do governo federal. Esperamos que, ao longo desta pesquisa, nosso respeito, carinho e comprometimento com a educação tenham se revelado em cada movimento, porque entramos neste projeto imbuídos desses sentimentos. Finalizamos com a fala de um dos nossos colegas, Otávio: “A Matemática está inserida em todo contexto social possível. [...] As problemáticas levantadas nos temas transversais não podem ser discutidas de forma rasa e somente como uma questão puramente numérica, deve ser concisa, bem discutida e bem refletida, tanto por parte do professor quanto do aluno”.

1Não houve edição das falas e as apresentamos neste texto sempre em itálico.

2Essa fala foi anterior à elaboração da primeira questão, que tinha relação com a compra de um imóvel.

Agradecimentos

À Universidade Federal de Ouro Preto pela ajuda financeira por meio do Edital 13/2020 de auxílio financeiro a pesquisadores.

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Recebido: 19 de Janeiro de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

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