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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./set 2023  Epub 19-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.24154 

Artigos

ABORDAGENS DOCENTES SOBRE AS DROGAS NO CONTEXTO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: UMA ANÁLISE A RESPEITO DO LAR DO GAROTO

TEACHING APPROACHES TO DRUGS IN THE CONTEXT OF THE SOCIO-EDUCATIONAL SYSTEM: AN ANALYSIS ABOUT THE LAR DO GAROTO

ENFOQUES DE ENSEÑANZA SOBRE DROGAS EN EL CONTEXTO DEL SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: UN ANÁLISIS SOBRE EL LAR DO GAROTO

Thaís Farias de Almeida, Doutoranda em Educação1 
http://orcid.org/0000-0001-7252-3941

Ivonaldo Neres Leite, Pós-Doutor em Sociologia2 
http://orcid.org/0000-0001-7451-968X

1Doutoranda em Educação, Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, Paraíba - Brasil

2Pós-Doutor em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, Paraíba - Brasil


Resumo

Este artigo é um recorte de uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), cuja pesquisa foi realizada no Centro Socioeducativo Lar do Garoto, um estabelecimento localizado no município de Lagoa Seca, estado da Paraíba, onde adolescentes autores de atos infracionais cumprem medida socioeducativa de internação. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências Médicas da UFPB sob o parecer nº 5.255.702, em 22 de fevereiro de 2022. Na investigação, objetivamos analisar como a questão das drogas tem sido abordada no contexto escolar dos adolescentes que se encontram no Lar do Garoto. Metodologicamente, a pesquisa foi operacionalizada por entrevistas semiestruturadas com professores da escola em funcionamento na própria unidade socioeducativa. O material empírico resultante das entrevistas foi escrutinado conforme os procedimentos da Análise Temática de Braun e Clarke (2006). Dentre os resultados, vislumbramos diferentes abordagens sobre drogas, tanto orientadas pela lógica proibicionista da ‘guerra às drogas’, como por enfoques que a rejeitam. Conclusivamente, assinala-se a necessidade do oferecimento de formação continuada aos professores da socioeducação a respeito das drogas, tendo em conta os desafios inerentes ao tema e ao contexto dos adolescentes atendidos pelo sistema socioeducativo.

Palavras-chave: adolescência; drogas; socioeducação.

Abstract

This article is an excerpt from the master's thesis defended in the Postgraduate Program in Education at the Federal University of Paraíba (UFPB), whose research was developed in the Socio-Educational Center Lar do Garoto, an educational establishment located in the municipality of Lagoa Seca, state of Paraíba, where adolescents who committed infractional acts are in execution of a socio-educational measure of internment. The study was approved by the Human Research Ethics Committee of the Medical Sciences Center of UFPB under opinion nº 5.255.702, on February 22, 2022. In the investigation, we aimed to analyze how the issue of drugs has been addressed in the school context of adolescents who are at Lar do Garoto. Methodologically, the research was operationalized through semi-structured interviews with teachers from the school operating in the socio-educational unit. The empirical material resulting from the interviews was scrutinized according to the procedures of the Thematic Analysis by Braun and Clarke (2006). Among the results, we observed different approaches of drugs, both guided by the prohibitionist logic of the “war on drugs”, and by approaches that reject it. Conclusively, it is emphasised the need to offer continuing formation to the socio-educational teachers about drugs, considering the challenges inherent to the theme and the context of adolescents assisted by the socio-educational system.

Keywords: adolescence; drugs; socioeducation.

Resumen

Este artículo es un extracto de la tesis de maestría defendida en el Programa de Posgrado en Educación de la Universidad Federal de Paraíba (UFPB), cuya investigación fue realizada en el Centro Socioeducativo Lar do Garoto, un establecimiento educativo ubicado en el municipio de Lagoa Seca, estado de Paraíba, donde los adolescentes que delinquen cumplen una medida socioeducativa de internamiento. El estudio fue aprobado por el Comité de Ética en Investigación Humana del Centro de Ciencias Médicas de UFPB bajo el dictamen nº 5.255.702, en 22 de febrero de 2022. En la investigación, tuvimos como objetivo analizar cómo la cuestión de las drogas ha sido abordada en el contexto escolar de los adolescentes que se encuentran en Lar do Garoto. Metodológicamente, la investigación fue operativizada por medio de entrevistas semiestructuradas a docentes de la escuela que funciona en la propia unidad socioeducativa. El material empírico resultante de las entrevistas fue escudriñado según los procedimientos del Análisis Temático de Braun y Clarke (2006). Entre los resultados, visualizamos diferentes enfoques de las drogas, tanto guiados por la lógica prohibicionista de la “guerra contra las drogas”, como por enfoques que la rechazan. A modo de conclusión, se apunta la necesidad de ofrecer formación permanente a los docentes de socioeducación en materia de drogas, teniendo en cuenta los desafíos inherentes a la temática y el contexto de los adolescentes atendidos por el sistema socioeducativo.

Palabras clave: adolescencia; drogas; socioeducación.

1 Introdução

A temática das drogas tem estado presentes na formulação de políticas por parte dos governos e da sociedade, que visam controlar o uso e o comércio de determinadas substâncias entre a população. Contudo, a questão é constantemente tratada sob uma perspectiva de repressão, principalmente desde a administração do ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon (1969-1974) no início dos anos 1970, o qual se referiu as drogas como “inimigas da sociedade”.

Nesse contexto, estudos sócio-históricos relacionados ao tema das drogas destacam que a chamada ‘guerra às drogas’ e a política proibicionista são fracassos que “não têm impedido o crescimento do consumo, gerando ainda um efeito adicional e perturbador: o aumento da violência e a preparação de terreno para a disseminação de outras modalidades de crime” (LEITE, 2018, p. 20).

Observamos, além disso, que todo o fenômeno em torno da proibição do uso e da comercialização das drogas tem provocado mais violência, bem como o encarceramento em massa e o extermínio de jovens e negros moradores das periferias, acarretando, portanto, consequências danosas para as pessoas pertencentes às classes populares.

Diante disso, percebemos a urgência de “descolonizar” a temática das drogas do mapa discursivo proibicionista imposto pela visão bélica sobre o assunto, tendo a educação um importante papel nesse sentido, tanto no contexto formal como no não formal. A escola, por exemplo, é um espaço de convivência e socialização, pelo qual se propicia a aprendizagem e a discussão de conteúdos fundamentais para o desenvolvimento da sociedade, como verifica-se no caso das drogas.

Por conseguinte, a pesquisa apresentada neste artigo teve o objetivo de analisar como a questão das drogas tem sido abordada no contexto escolar, mais especificamente no contexto dos adolescentes que se encontram no Centro Socioeducativo Lar do Garoto, uma unidade socioeducativa destinada a adolescentes autores de atos infracionais localizada no município de Lagoa Seca, estado da Paraíba.

Ressaltamos que os resultados do presente estudo integram uma pesquisa de mestrado mais ampla, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que teve o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências Médicas da UFPB, sob o parecer nº 5.255.702, no dia 22 de fevereiro de 2022.

A pesquisa teve como foco a Escola Cidadã Integral Socioeducativa (ECIS), responsável pelo atendimento escolar dos adolescentes no próprio Lar do Garoto, que conta com um coordenador pedagógico e 18 professores. Desse universo, realizamos entrevistas semiestruturadas com o coordenador pedagógico da ECIS, tendo em vista a importância da sua função no referido contexto, como também com 7 docentes que declararam ter uma maior proximidade com a temática das drogas e/ou que já abordaram o assunto com os socioeducandos em sala de aula.

No que concerne à análise e interpretação do material das entrevistas efetuadas com os professores da ECIS do Lar do Garoto, utilizamos a técnica da Análise Temática de Braun e Clarke (2006), que possui a finalidade de identificar, analisar, interpretar e relatar padrões (temas) a partir dos dados coletados, estabelecendo ainda uma relação das falas dos sujeitos com a literatura.

Por fim, consideramos que a pesquisa contribui com a construção de elementos científicos para o meio acadêmico e para os profissionais de diversas áreas, como da Educação e das Ciências Humanas e Sociais, em especial no tocante à abordagem das drogas no contexto da socioeducação, isto é, junto aos adolescentes em situação privativa de liberdade.

2 O sistema socioeducativo brasileiro: origem e funcionamento

No fim do século XIX, o Brasil iniciou a transição de um país rural-agrário para um país urbano-industrial, vivenciando o aumento da população nas cidades ao passo que se elevava o número de pessoas sem acesso ao trabalho. Assim, os adolescentes e jovens excluídos socialmente por não se encaixarem nas regras sociais e por não estarem inseridos no mundo do trabalho se tornaram uma “preocupação” das autoridades públicas em razão de representarem uma “ameaça” à ordem social (SILVA, 2005).

Meninos e meninas empobrecidos passaram a circular pelos centros urbanos das cidades brasileiras (CUSTÓDIO, 2009). O espaço público, como os parques, as praças e as ruas, antes percebidos como ambientes de aprendizagem, sociabilidade e desenvolvimento social, se transfiguraram em locais para brincadeiras, algazarras e violências, em que crianças, adolescentes e jovens eram tidos como “potencialmente perigosos” (SILVA, 2005).

Na época, o discurso era caracterizado pela dualidade, ora em defesa da criança e do adolescente e ora em defesa da sociedade, com o objetivo de vigiar o “menor” para evitar sua degradação, educar para moldá-lo ao hábito do trabalho e de obediência às regras e recuperá-lo, visando sua reabilitação ou reeducação por meio do trabalho e da instrução, a fim de retirá-lo da delinquência (RIZZINI, 2008).

No ano de 1927, foi promulgado o Código Mello Mattos, em referência ao primeiro juiz de menores do Brasil e da América Latina, denominado José Cândido de Albuquerque Mello Mattos. Pelas suas disposições, a faixa etária dos 14 aos 18 anos de idade era passível de responsabilização pela prática de delitos, passando por um processo que incluía o recolhimento do “menor” em uma instituição disciplinar.

O referido dispositivo legal voltou-se ao grupo infanto-juvenil de classe pobre, constituído por crianças e adolescentes considerados carentes devido à manifesta incapacidade dos pais ou responsáveis para mantê-los; abandonados, tendo em conta a falta ou ausência dos pais ou responsáveis na sua representação legal; inadaptados, pelo desajuste da família ou da comunidade na qual viviam; e infratores ou delinquentes, ou seja, autores de atos infracionais (OLIVEIRA, 2015).

Mais adiante, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), revogou-se o Código Mello Mattos e o novo Código de Menores foi publicado em 1979, ampliando-se a tutela do Estado sobre os menores de 18 anos. Nesse contexto, o poder discricionário dos juízes que integravam o “Juizado de Menores” levou a ‘judicialização das questões sociais’, ou seja, se institucionalizavam os conflitos que tinham natureza social e não jurídica (SILVA, 2005).

Ao final da ditadura civil-militar, o Brasil passou por um processo de abertura política em que surgiram críticas ao modelo repressivo das políticas sociais destinadas às crianças e adolescentes, principalmente em relação às indiscriminadas internações determinadas pelos “Juizados de Menores” (OLIVEIRA, 2015), em que havia a repressão e a regulação do Estado na vida da população, produzindo e reproduzindo histórias de violência, maus-tratos, castigos, abandono, discriminação e segregação (NUNES; CORSINO, 2012).

No processo de redemocratização do país, os movimentos sociais direcionados à infância e adolescência intensificaram a luta para que um sistema de direitos destinados às crianças e adolescentes fosse instituído. Nesse período, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 afirmou o compromisso de promover as garantias necessárias para todas as crianças e adolescentes, inclusive com políticas sociais voltadas aos seus interesses.

Após os vários debates e as intensas mobilizações por parte de entidades e movimentos sociais, como o Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente, o Código de Menores de 1979 foi revogado no Brasil, sendo aprovada a Lei nº 8.069/90, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fundamentado na nova Doutrina da Proteção Integral (BRASIL, 1990).

No tocante às principais alterações promovidas pelo ECA, destacamos o sistema de garantia de direitos a serem assegurados para a infância e a juventude, particularmente em relação à responsabilização penal juvenil. Hoje, os menores de 18 anos são considerados penalmente inimputáveis, isto é, sem capacidade mental e discernimento para entender o caráter ilícito do fato praticado (BRASIL, 1940).

Dessa forma, os adolescentes estão passíveis de responsabilização, nos termos do ECA, caso venham a praticar conduta definida como crime ou contravenção penal na legislação brasileira, o que passa a ser chamado tecnicamente de “ato infracional”, não obstante haja a necessidade de se remeter principalmente ao Código Penal vigente para determinar qual foi a conduta ilícita praticada (BRASIL, 1990).

Assim, o juiz da Vara da Infância e Juventude que deve conduzir o procedimento especial para apurar o ato infracional cometido pelo adolescente, podendo-lhe aplicar alguma das chamadas medidas socioeducativas, uma resposta sancionatória do Estado em relação a infração perpetrada. Dentre elas, a internação em estabelecimento educacional é a mais rigorosa, pois irá privar a liberdade do adolescente por um período máximo de 3 anos (IBIDEM).

Como afirma Oliveira (2015, p. 47), “as ações socioeducativas devem possibilitar aos adolescentes um espaço pedagógico que os favoreçam pensar e criar possibilidades de superação das condições que os levaram a cometer o ato infracional”. No âmbito da medida restritiva de liberdade, o adolescente deve ter seu direito à educação garantido dentro da própria unidade de internação, na qual devem funcionar escolas comuns e profissionalizantes, sendo a frequência escolar também capaz de possibilitar ao socioeducando uma rotina minimamente convencional, além de lhe promover formação e desenvolvimento (BAZON et al, 2013).

Nesse sentido, podemos compreender a socioeducação como:

[...] o conjunto de processos de cunho educativo, teoricamente fundamentados, metodologicamente sistematizados, ideologicamente alicerçados na convicção de que o indivíduo pode se transformar através da ação educativa, direcionados a adolescentes e jovens, que praticaram atos delinquenciais, que possuem as seguintes finalidades: (i) a incorporação de valores e princípios éticos, morais e civis [...] (ii) a aquisição de competências pessoais, sociais e relacionais [...] (iii) a ressignificação dos sentidos atribuídos à infração [...] (iv) a construção de um projeto de vida [...] caracterizado pelo estabelecimento de um novo compromisso consigo mesmo, com a lei e com a coletividade e pelo cultivo de um sentimento de pertença a uma comunidade e seus valores (CUNHA; DAZZANI, 2018, p. 78).

Todavia, o atendimento socioeducativo demanda qualificação, principalmente no quesito da educação, devido a especial circunstância em que se encontram os socioeducandos, além do fato de a maioria destes entrarem nas unidades de internação apresentando um histórico acentuado de evasões escolares, idade defasada na vida escolar e uma estreita relação com as drogas (CNJ, 2012).

No sistema socioeducativo da Paraíba, por exemplo, verificou-se que, na década de 2002 a 2012, triplicou a quantidade de jovens envolvidos no tráfico de drogas, assim como aumentou o número de adolescentes que fazem o uso das substâncias (PARAÍBA, 2015). Particularmente no Centro Socioeducativo Lar do Garoto, campo empírico do nosso estudo, foi apontado por Lucena (2015) que 54% dos socioeducandos utilizavam drogas na época de sua pesquisa no respectivo local.

Diante disso, observamos a importância de se abordar as drogas no ambiente privativo de liberdade destinado aos adolescentes, sobretudo no cotidiano escolar, em que há uma maior interação e troca de conhecimentos. Com efeito, a questão que nos chamou a atenção como problema de pesquisa foi a seguinte: como a questão das drogas tem sido abordada no contexto escolar dos jovens e adolescentes que estão em cumprimento de medida socioeducativa de internação no Lar do Garoto, em Lagoa Seca/PB?

A seguir, apresentaremos o campo empírico da pesquisa e os resultados obtidos por meio da análise das entrevistas semiestruturadas realizadas com os docentes da escola em funcionamento na referida instituição, objetivando responder o problema posto.

3 O Centro Socioeducativo Lar do Garoto e a Escola Cidadã Integral Socioeducativa (ECIS)

O Centro Socioeducativo Lar do Garoto Padre Otávio Santos, também denominado de “Complexo Lar do Garoto e Internação Provisória”, é uma unidade de internação responsável por atender adolescentes e jovens do sexo masculino na faixa etária dos 12 aos 21 anos de idade que praticaram atos infracionais. A instituição está localizada no município de Lagoa Seca/PB, que fica a cerca de 130 km da capital João Pessoa.

O espaço do Lar do Garoto foi fundado na década de 1960 por meio de um padre de nome Otávio dos Santos, o qual realizava um trabalho de iniciativa filantrópica e religiosa com crianças órfãs, de baixa renda ou que haviam incorrido em delitos. Atualmente, a unidade é gerida pela Fundação de Atendimento Socioeducativo “Alice de Almeida” (FUNDAC), integrando a Rede de Atendimento da Política Socioeducativa do meio fechado do Estado da Paraíba (PARAÍBA, 2019).

Para fins de execução da medida socioeducativa de internação, o Lar do Garoto abarca 81 municípios da Paraíba, entre eles o de Campina Grande, o segundo maior do estado, que conta com mais de 413 mil habitantes (IBGE, 2021). Por sua vez, a referida unidade tem capacidade para 89 adolescentes, porém, até o mês de dezembro de 2022, o local contava com 21 socioeducandos, na média dos 17 anos de idade.

No decorrer do processo socioeducativo, os estudos são obrigatórios e possuem uma carga horária integral, sendo um item considerado relevante na avaliação semestral do adolescente, isto é, quando a equipe multidisciplinar, de agentes socioeducativos, direção, advogados, Ministério Público e o juiz da Vara da Infância e Juventude irão analisar a continuidade da medida ou a desinternação, sugerindo a sua extinção ou a progressão para uma medida mais branda (COURA; ALBUQUERQUE, 2020).

Na unidade, a escola responsável por prestar atendimento escolar aos adolescentes foi implementada após a ocorrência de uma “rebelião” em 2017, quando 7 adolescentes foram à óbito e 6 empreenderam fuga (G1, 2017). Devido a gravidade do episódio, condições de descaso foram evidenciadas na instituição, como diversas deficiências estruturais nas suas instalações e a situação de superlotação, uma vez que na época do acontecido existiam 204 socioeducandos no estabelecimento, número muito superior à infraestrutura disponível (MPF, 2017).

Com isso, medidas foram tomadas objetivando o cumprimento da garantia de direitos dos adolescentes no centro socioeducativo. Nesse contexto, a organização de uma escola teve elevada importância, principalmente para que os socioeducandos não precisassem sair da unidade a fim de ter acesso à educação. Assim, tendo em vista o caráter de urgência na implementação da escola na unidade, a contratação dos professores se deu através de um processo seletivo simplificado de análise curricular e entrevista.

A escola ter sido prioridade na reconfiguração do Lar do Garoto demonstra a importância da educação no desenvolvimento dos jovens e adolescentes, com intencionalidade pedagógica para que eles construam uma perspectiva distinta da que os levaram a prática do ato infracional. Ademais, a educação é um dos direitos que devem ser garantidos em situações de privação de liberdade, o que não vinha sendo efetivado na instituição e, infelizmente, só se teve em conta o descaso após a tragédia de 2017.

A Escola Cidadã Integral Socioeducativa (ECIS) do Lar do Garoto, implementada entre 2017 e 2018, funciona como um anexo da Escola Cidadã Integral Técnica (ECIT) Francisca Martiniano da Rocha, do município de Lagoa Seca. Isso significa que a ECIS está ligada administrativamente à referida ECIT, sendo o corpo docente vinculado a esta última. Dessa forma, ao iniciarem o cumprimento da medida socioeducativa de internação, os socioeducandos são matriculados na ECIT Francisca Martiniano da Rocha, mas frequentam as aulas e atividades na própria ECIS, ou seja, dentro da unidade.

Na ECIS, é utilizado o modelo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) devido ao alto índice de distorção idade/série percebido entre os socioeducandos, de mais de 90% (PARAÍBA, 2021). No cotidiano escolar, são ministradas as disciplinas obrigatórias da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as disciplinas eletivas, sendo também oferecidas atividades socioeducativas, como jogos de tabuleiro e a prática de esportes, ambas supervisionados pelos professores de Educação Física.

O corpo docente da ECIS é constituído por 18 professores(as), todavia, selecionamos 8 para a realização das entrevistas semiestruturadas, que resultaram na quantidade de 93 páginas transcritas. Salientamos que os docentes entrevistados foram identificados de maneira fictícia como E1, E2, E3, E4, E5, E6, E7 e E8 para ser mantido o sigilo de seus nomes. Por conseguinte, trataremos a respeito dos resultados da análise do material empírico, obtidos por meio das entrevistas, a fim de atender o nosso propósito.

4 Abordagens sobre drogas: perspectivas e práticas dos professores da ECIS do Lar do Garoto

A maioria dos adolescentes que se encontram no Lar do Garoto apresentam histórico de uso de drogas, sendo o primeiro contato motivado por diversos fatores, mas principalmente em razão de a família já consumir bebidas alcoólicas e outras substâncias, apresentando-as desde muito cedo para os adolescentes. Além disso, o tráfico de drogas na comunidade onde convivem os leva para esse caminho, como também a influência de amigos, a ideia de status e pertencimento a um grupo e a busca por uma sensação de bem-estar.

De forma unânime, os docentes afirmaram já terem presenciado os adolescentes comentarem sobre drogas, tanto em sala de aula, como em momentos de conversa e lazer, quando contam quais drogas mais consomem, os efeitos que ocasionam, onde podem ser encontradas, e questionam também se eles já usaram ou se têm vontade de experimentá-las.

Identificamos a palavra “abstinência” como de frequente repetição nas falas dos entrevistados, a qual está associada a falta que os adolescentes sentem em relação às drogas ao ingressarem na unidade socioeducativa. Juntamente a isso, os professores declararam já terem presenciado socioeducandos com sintomas decorrentes da abstinência, síndrome que o indivíduo desenvolve devido à cessação ou redução do uso pesado e prolongado da droga (REIS; LOUREIRO, 2015).

Devido a essa estreita relação dos adolescentes com as drogas, os professores que atuam na ECIS do Lar do Garoto consideram relevante abordar a temática no cotidiano escolar. Dessa forma, o assunto é discutido na medida em que surgem oportunidades ao longo das aulas, a depender do conteúdo a ser ministrado, bem como na semana do dia 20 de fevereiro, data em que foi instituído no Brasil o Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo.

Na referida semana, sob uma perspectiva interdisciplinar, cada professor planeja aulas e dinâmicas direcionadas ao tema dentro de sua área do conhecimento. Conforme as entrevistas, percebemos que uma parte dos docentes foca em abordar as questões sociais e políticas envolvidas no fenômeno das drogas e outra parte tende a discutir, principalmente, os efeitos colaterais do uso prolongado das substâncias. E5 e E7, por exemplo, sentem mais segurança em tratar dos aspectos sociais em torno da questão das drogas, muito em razão dos conteúdos que já costumam trabalhar em suas aulas:

E5: [...] eu também trabalho pensando muito a questão social das drogas, de como ela é utilizada socialmente, seja para excluir, seja para criminalizar, seja para encarcerar... As questões mais orgânicas né, eu não tenho nem competência ‘pra’ falar de quais são as reações biológicas que desenvolvem [...].

E7: Mas, por exemplo, quando a gente fala sobre desigualdade, eu já dei aula sobre desigualdade esse ano, então sempre vem aquela coisa do uso das drogas, ela ‘tá’ muito nessa questão social, né.

De acordo com E2, a disciplina Projeto de Vida possui especificidades que também permitem o docente abordar a temática das drogas com os socioeducandos. E2, que já foi lecionou esse componente, relatou ter trabalhado nele o assunto, mostrando as definições básicas das substâncias, aprofundando acerca dos seus componentes e em relação ao que elas podem acarretar para a vida deles, seguindo o “sentido de conscientização”.

Por sua vez, E3 afirmou que, quando entra no tema das drogas em sua disciplina, inicia a abordagem com a definição de droga e a distinção entre as drogas lícitas e ilícitas, para, posteriormente, discutir sobre outras temáticas relacionadas. Dentre os assuntos que E3 mencionou contemplar em suas abordagens, também há a questão dos efeitos colaterais provocados pelo uso das drogas, incluindo a dependência que pode ser desenvolvida e os sintomas da abstinência, bem como os tipos de efeito que as substâncias causam no organismo e as diferentes maneiras de consumi-las. Em seguida, tais aspectos são discutidos no âmbito de cada droga em específico.

Assim como E3, E8 comentou que os efeitos colaterais causados pelas drogas é um dos tópicos tratados quando resolve abordar a temática, além das consequências danosas que o consumo provoca na vida das pessoas:

[...] no mundo deles é como se existisse só coisa boa né, ele não vê aquilo como uma coisa que vai gerar problemas de saúde, vai gerar aquele vício, afastamento do âmbito familiar, eles veem como se fosse coisa boa. Eu percebo isso. Mas aí quando a gente chega e fala “ó, vai acarretar doenças...”, a gente mostra o que vai acontecer e eles ficam até surpresos, porque eles não conseguiam enxergar aquilo. Para eles era só um momento de brincadeira, uma ilusão né, na hora. Eles não conseguem enxergar que vem outras coisas futuras [...].

Seguindo com a análise do material empírico, observamos que o corpo docente, de maneira conjunta, busca a interdisciplinaridade ao planejar as atividades sobre o tema, as quais incluem também a ludicidade:

E2: [...] a gente trabalha em eletivas, trabalha na disciplina de biologia, enfim, trabalha de forma interdisciplinar, trabalha em Projeto de Vida.

E8: [...] é uma atividade interdisciplinar e que todo ano vai ter, todo ano a gente vai abordar sobre o tema [...] Teve até um joguinho que a gente fez de tabuleiro, também falando sobre as drogas. Era tipo assim, se você fumou maconha, volte duas casas, aí tinha uma consequência, porque às vezes aprende na brincadeira né, então a gente sempre ficava pesquisando sobre. Foi um momento bem interessante.

Tanto E4 como E6 citaram que costumam trazer nas suas aulas músicas do rap brasileiro, pois é o gênero que os adolescentes mais gostam de ouvir. Nesse sentido, cabe ressaltar a importância de o docente ter atenção à realidade dos estudantes, a fim de tornar o conteúdo mais atrativo, principalmente no âmbito do sistema socioeducativo, em que a maioria não frequentava a escola antes de iniciar o cumprimento da medida ou não a frequentava regularmente pela falta de interesse nos estudos.

E4: Eles sempre querem assistir minha aula por causa disso, porque eu coloco coisa que são do contexto deles. Agora claro, desmistificando, ‘pra’ eles entenderem, saber que dentro da música não é apologia à droga, nem de droga fala, né. Incentivar, fazer com que eles saiam da vida do crime, mostrar que eles são capazes, ou seja, são letras de superação né, que falam sobre superação.

E6: [...] eu pensei nessa estratégia né, como porta de entrada, vou começar com a música que eles gostam, e aí a professora de biologia trouxe a questão do documentário que fala, e depois ela deu aulas né, de efeitos das drogas no corpo humano, e assim a gente vai fazendo [...] Em relação a minha disciplina né, vou puxando ‘pra’ mim, eu trabalho muitos textos, gêneros textuais, e aí eu trago histórias reais, músicas né, alguns rappers, que têm as letras da música que falam de reabilitação, então eles gostam muito.

É possível identificar, nas narrativas dos professores, que eles buscam abordar o assunto das drogas por meio de uma linguagem comum, dentro do universo vocabular dos socioeducandos, inclusive utilizando suas formas de expressão. A propósito, E3 apresentou uma fala nesse sentido, ao mencionar que usa algumas gírias para se comunicar melhor com os adolescentes e promover mais engajamento na sala de aula: “a gente tem que chegar na linguagem deles [...] Uma linguagem bem coloquial, bem... assim, possível, a ideia de falar de gírias também é muito importante no contexto. Dizer “e aí, como é na sua quebrada?”, “fala aí na sua boca” [...]”.

Portanto, para E3, a melhor maneira de abordar as drogas com os adolescentes é utilizando uma linguagem mais simples e direta: “literalmente é chegar e falar. Como eles dizem, “na real, papo reto”. Por quê? Porque os meninos aqui, por ter déficit de... dificuldade de assimilar informações, enfim, a gente não pode chegar todo cheio de ‘pompa’. Então a gente tem que chegar na linguagem deles”.

Identificamos na fala de E1 que existe uma interação entre os socioeducandos e os professores a respeito do conhecimento sobre as drogas, tendo uma significativa reciprocidade. E1, por exemplo, afirmou que aprendeu muito no período em que ministrou uma disciplina eletiva com a temática na escola, pois os próprios adolescentes traziam informações que ela desconhecia: “já dei uma disciplina eletiva de drogas [...] Foi muito positivo. Primeiro porque eu aprendi muito com eles, muita coisa que eu não sabia que existia que eles mesmos falavam”.

Assim como afirmou E1, E3 e E8 relataram que a escola já ofertou uma disciplina eletiva específica sobre drogas, a qual se deu no ano de 2017:

E3: Eu tive já duas eletivas que abordavam o assunto [...].

E8: A gente criou uma eletiva ‘pra’ falar sobre as drogas né, porque na Escola Cidadã tem a parte que é diversificada e a gente pode montar uma disciplina e aí a gente já criou uma eletiva falando sobre as drogas [...].

Segundo as diretrizes operacionais do governo do estado da Paraíba para as Escolas Cidadãs Integrais, as eletivas devem apresentar interdisciplinaridade e integrar, pelo menos, dois professores e, no mínimo, duas disciplinas de áreas diferentes, tendo duração de um semestre. Ademais, devem ter como objetivo trabalhar temas, conteúdos e áreas que não foram alcançados nas disciplinas obrigatórias da base comum e técnica, promovendo o desenvolvimento de habilidades e competências (PARAÍBA, 2021).

Nesse sentido, a disciplina eletiva sobre drogas contou com rodas de conversa, confecções de cartazes e apresentações de vídeos com histórias de pessoas que iniciaram o uso de drogas e tiveram consequências danosas. A propósito, um dos vídeos utilizados foi relembrado por E8 na seguinte fala:

[...] a gente mostrou que um professor, acho que em São Paulo, na cracolândia, ele era professor bem sucedido e aí ele entrou no mundo das drogas e a gente trouxe esse vídeo, foi bem impactante ‘pra’ eles, porque eles viram que esse professor já tinha sua estrutura, já tinha seu ambiente familiar, seu trabalho, e a gente mostrou que quando ele entrou no mundo das drogas ele perdeu tudo, perdeu a família, perdeu tudo que ele tinha e ele foi morar nas ruas e aí eles viram que mexe com tudo né.

A partir dos relatos, é possível perceber que, para abordar os conteúdos na disciplina eletiva, foi utilizada uma perspectiva próxima ao difundido pela política da ‘guerra às drogas’, em que se enfatiza a dimensão negativa das substâncias, como ao se discutir somente acerca dos malefícios elas que provocam e ao associar o uso de drogas com a prática de crimes, sobretudo ao se falar das drogas ilícitas. Assim, outros fatores fundamentais de serem pontuados acerca do tema acabam sendo desconsiderados, como, por exemplo, as especificidades dos indivíduos que experimentam ou usam drogas, os danos decorrentes dos mercados de drogas ilegais e não regulados e a construção sócio-histórica em torno das políticas de drogas.

Por sua vez, E4 expôs que uma de suas abordagens consiste em falar a respeito do percurso do dinheiro oriundo das drogas ilícitas, para o adolescente compreender que, ao adquiri-las, ele está contribuindo com o tráfico e todas as violências decorrentes de sua prática: “Ele fuma o baseado dele lá, ele compra com o dinheiro dele, ele faz mal a alguém? [...] Atualmente faz. Ele financia o tráfico [...] Ele tem as mãos sujas de sangue também, indiretamente, né”.

Vale ressaltar que narrativas como a que se atribui uma culpa à pessoa que usa drogas por estar financiando o tráfico e outros delitos estão baseadas na lógica repressiva e reforçam a ideia de que quem faz uso de drogas ilícitas é responsável pela violência, acarretando ainda mais exclusão social, estigma e sofrimento para tais indivíduos (ANDRADE et al, 2018).

Nesse processo, todos que utilizam drogas ilícitas são tidos como outsiders (BECKER, 2019), gerando entraves para que eles consigam desenvolver suas escolhas de forma livre e com responsabilidade, sem sentir medo de assumir o uso das substâncias devido ao receio de sofrer a violência vinda por parte dos representantes estatais e de outras pessoas ao seu redor.

Complementando, E8 afirmou que, ao abordar as drogas, o professor deve mostrar as consequências que elas causam, tanto no âmbito da saúde como no da família, enfatizando que a droga “não é uma coisa boa”. Para tanto, E8 acredita que seria preciso transmitir para os adolescentes que usar drogas acarreta danos futuros, como o “vício”, a fim de que eles não se atenham apenas ao prazer momentâneo que elas oferecem.

Do mesmo modo, E3 entende que “causar medo” é uma boa estratégia para ser utilizada, abordando os efeitos a longo prazo que as drogas ocasionam no organismo e como é difícil cessar o uso. Porém, ao se depararem com esse discurso, os próprios adolescentes dizem que o(a) professor(a) está praticando “terrorismo” em relação às drogas, como relatou E3: “Então a gente trabalha muito com isso. Fazendo medo mesmo. Terrorismo, como eles dizem”.

Diante das percepções mostradas acima, vemos que a propagação do “temor às drogas” consiste em uma maneira de os professores falarem a respeito da temática. Todavia, é preciso levar em conta que as drogas fazem parte da vida social e do cotidiano desses adolescentes. Portanto, para eles, o uso de drogas é considerado mais vantajoso do que evitá-las por causa dos efeitos colaterais ocasionados.

De acordo com E5, os socioeducandos mostram ter mais interesse em conversar sobre o assunto, conhecer os efeitos das substâncias no organismo e porque eles acontecem, sendo ineficaz falar da temática sob uma perspectiva de proibição:

Eu acho que não seja eficaz dizer “ai, não pode”, “é proibido” [...] eles gostam de conversar sobre, não é que eles estejam sedentos por salvação, “ah, me salve com informação”, “eu vou deixar de usar drogas”... é porque eles gostam de conversar sobre isso, eles gostam de conhecer, eles gostam de saber a substância, eles gostam de saber os efeitos da substância no organismo, porque é uma forma de entender porque eles sentem tais coisas quando ‘tão’ usando tais substâncias.

Do mesmo modo, E6 opinou que o discurso proibicionista causa entraves na abordagem das drogas com os socioeducandos, assim como o emprego de termos estigmatizantes: “se a gente chegar com aquela abordagem e dizer “é errado, não pode, você é isso”, né, nomear eles de alguma coisa, já vai ter aquele entrave, e aí não vai fluir a aula”.

Em sequência, E7 apresentou um entendimento semelhante ao de E5 e E6, ao afirmar que a “demonização” e a “culpabilização” em relação ao uso das drogas deve ser evitada ao se abordar a temática. E4, por sua vez, acredita que deve ser realizado um trabalho educacional a partir da ideia de conscientização e do incentivo ao esporte, sem focar tanto em conteúdos acerca dos danos causados à saúde, uma vez que tais abordagens não são levadas em consideração pelos adolescentes, sobretudo porque existem alimentos e bebidas, por exemplo, que também provocam males ao corpo humano e as pessoas consomem normalmente.

Nesse sentido, E4 ainda destacou que há uma resistência por parte dos socioeducandos em concordar com discursos que enfatizam os aspectos negativos da maconha, por exemplo:

[...] E com relação aos adolescentes, seria fácil de conversar com eles, né. Agora alguns iriam não concordar. “Ah, maconha é isso e aquilo”. Porque é como eu disse a você, a banalidade. Aí ‘pra’ dizer que ela isso, que ela é aquilo, ele não vai concordar, ele vai ter uma resistência, certo? E se eu falar de saúde, eles vão, é como eu disse a você, tem refrigerante, tem outras coisas [...].

Diante da narrativa de E4, podemos perceber que as abordagens alimentadas pelo discurso proibicionista não apresentam efetividade com os socioeducandos. Assim, enfocar somente os elementos negativos em torno das substâncias pode causar um impacto naquele momento, mas não se mostra uma estratégia eficaz para atingir a finalidade pretendida pelos professores, qual seja, a de afastá-los do uso.

Cabe destacar que os professores foram unânimes em afirmar não terem recebido uma capacitação referente às drogas na sua formação profissional, sendo o aprofundamento do conteúdo e das formas de abordá-lo estimulado pela necessidade imposta pelo trabalho que passaram a exercer na unidade socioeducativa. Em alguns casos, dão suporte a esse conhecimento a vivência em escolas da periferia, as experiências de vida e os estudos realizados por conta própria.

Diante disso, destacamos a importância de serem oferecidas formações continuadas sobre drogas para os professores, tendo em vista ser uma questão frequentemente discutida no cotidiano escolar da unidade e ser um tema de interesse dos adolescentes, porém que carrega peculiaridades ao ser abordado no referido contexto. Isso porque a maioria dos socioeducandos ingressam no Lar do Garoto com um histórico de consumo abusivo em substâncias e, além disso, a conjuntura social na qual eles estão inseridos não favorece para que suas percepções em relação às drogas sejam mudadas.

Conforme assinalou E3, “o difícil é justamente essa quebra de paradigma aqui dentro [...] como é a realidade deles, eles acreditam que é o correto, que é fácil, que é simples. É difícil quebrar isso”. De forma similar, E4 afirmou que quando os socioeducandos cumprem a medida e retornam à sua comunidade “já veem outra realidade, a realidade da periferia, os assédios”. Logo, apesar dos conhecimentos abordados durante o cumprimento da medida socioeducativa, ao regressarem ao contexto em que vivem, os adolescentes voltam ao hábito de usar drogas e à realidade do tráfico.

O adolescente que cumpriu a medida socioeducativa sabe dos riscos que o envolvimento com as drogas pode provocar em vários âmbitos de sua vida, mas, ao voltar para o convívio em sociedade, esta reproduz diversos estigmas que não lhe possibilitam oportunidades para mudar de vida. Com isso, muitas vezes, o jovem ingressa novamente no tráfico visando conseguir dinheiro, satisfazer os desejos de consumo advindos da lógica capitalista, ou até mesmo para sobreviver.

Nesse contexto, ainda pode haver problemas familiares, a questão da dependência às drogas, que o faz recorrer ao tráfico para voltar a consumi-las, como também a sensação de pertencimento a um grupo, propiciada a partir do uso das substâncias. Todavia, não obstante as dificuldades que foram citadas, os docentes consideram a educação importante e fundamental diante do problema das drogas.

A harmônica convivência que os socioeducandos possuem com os professores favorece o processo de diálogo e a construção de uma relação horizontal, sobretudo ao se abordar temas como o das drogas. Para Paulo Freire, o diálogo “é o instrumento que possibilita desvelar um contexto a partir dos diferentes pontos de vista dos envolvidos; é a base de uma comunicação entre pessoas cuja relação não é de hierarquia ou de sobreposição, mas de solidariedade” (GONÇALVES; DAL-FARRA, 2018, p. 404).

Como sublinha Godinho et. al. (2020, p. 5),

A educação dialógica não se resume a uma conversa aleatória: ao contrário, a interação dos sujeitos - educador ou educadora e educandos ou educandas - é um exercício profundo de problematização das diferentes dimensões (históricas, sociais, culturais, políticas, econômicas) que confluem para explicitar as contradições do mundo e dos modos diferentes (e desiguais) de estar no mundo.

Portanto, uma abordagem educativa acerca das drogas, fundamentada no diálogo, na problematização e sem o uso de uma linguagem estigmatizante, mostra ser um caminho distinto do atual modelo hegemônico da ‘guerra às drogas’. Diante dos diversos efeitos sociais danosos que os discursos repressivos e as medidas de caráter penal em relação às drogas têm provocado, é necessário assumirmos uma postura educativa contrária, visando, principalmente, processos emancipatórios e a formação político-educativa das classes populares a partir de perspectivas mais humanas e inclusivas.

5 Considerações finais

No presente trabalho, apresentamos os resultados de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, a qual buscou analisar como a questão das drogas tem sido abordada no contexto escolar dos adolescentes que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa de internação no Centro Socioeducativo Lar do Garoto, situado no município de Lagoa Seca/PB.

Inicialmente, consideramos relevante explicitar como se deu a origem do sistema socioeducativo brasileiro, a fim de possibilitar uma melhor compreensão acerca do seu funcionamento na atualidade. Por conseguinte, para atingir o objetivo proposto, realizamos entrevistas semiestruturadas com 8 docentes da escola responsável por prestar atendimento escolar aos adolescentes na referida unidade socioeducativa.

A partir da análise do material empírico, pudemos constatar que a maioria dos socioeducandos ingressam no estabelecimento apresentando um histórico de consumo de drogas, bem como advém de contextos socialmente vulneráveis. Diante disso, a questão das drogas merece ser abordada entre o público atendido pela instituição.

Portanto, no campo empírico da pesquisa, o tema costuma ser discutido em atividades promovidas pela própria direção da unidade e pelos professores da escola, tanto durante a semana do Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, que ocorre no mês de fevereiro, como nos conteúdos dos componentes curriculares previstos na BNCC, na oferta de disciplinas eletivas e na disciplina Projeto de Vida.

Dentre os resultados da investigação, vimos que os professores buscam compreender o contexto de origem dos socioeducandos para realizar certas atividades, porém nenhum deles recebeu a capacitação necessária para abordar a temática das drogas com os adolescentes. Além disso, a partir das falas dos entrevistados, percebemos que a perspectiva proibicionista em relação às drogas é presente nas maneiras de abordar o assunto, mas também existem docentes que possuem um entendimento distinto a esse enfoque.

Por fim, destacamos a necessidade de ser oferecida formação continuada aos docentes do sistema socioeducativo no âmbito da temática das drogas, “proporcionando aperfeiçoamentos e novos conhecimentos para serem postos em prática no ambiente específico da socioeducação” (ALMEIDA; LIMA; LEITE, 2022, p. 9). Ademais, na abordagem das drogas, é fundamental ressaltar a importância de se utilizar um tipo de linguagem não estigmatizante, sem estimular a propagação do ‘pânico moral’ (COHEN, 1987), do “temor às drogas” e a desumanização das pessoas que usam as substâncias.

Referências

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

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