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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./set 2023  Epub 19-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.25182 

Dossiê 66: Educação e Libertação Africana Contemporânea

CONHECENDO E ENSINANDO A ÁFRICA COM AMADOU HAMPÂTÉ BÂ: OS MOVIMENTOS DE UMA RECONEXÃO ANCESTRAL AFRICANA

KNOWING AND TEACHING AFRICA WITH AMADOU HAMPÂTÉ BÂ: THE MOVEMENTS OF AN AFRICAN ANCESTRAL RECONNECTION

CONOCER Y ENSEÑAR ÁFRICA CON AMADOU HAMPÂTÉ BÂ: LOS MOVIMIENTOS DE UNA RECONEXIÓN ANCESTRAL AFRICANA

Sènakpon Fabrice Fidèle Kpoholo, Doutor em Educação1 

1Doutor em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Juiz de Fora, MG, Brasil


Resumo

Este artigo aborda a temática de ensino de História e Cultura Africanas. Ele é fruto de reflexões posteriores à tese de doutorado intitulada “As Áfricas em sala de aula: possibilidades de viagens a partir do cinema africano” (2019). Os desdobramentos da tese levaram à busca de novas possibilidades de abordagem de temáticas africanas, entendendo a formação docente como um pré-requisito importante. Ao longo deste texto, enfatiza-se a necessidade de uma abordagem didática de ensino da África alinhada com a perspectiva africana e a importância de realizar certos movimentos condizentes com tal perspectiva. O autor africano Amadou Hampâté Bâ e sua obra são trazidos para a conversa a título de ilustração e de orientação. O texto é organizado em quatro partes, incluindo a introdução, e se encerra com breves considerações finais. A introdução contextualiza a questão do ensino de História e Cultura Africanas. A segunda parte apresenta considerações iniciais sobre a abordagem didática pautada na Reconexão Ancestral Africana. A terceira traz um esboço biográfico do Amadou Hampâté Bâ. A quarta parte aborda argumentos a favor do uso das obras do referido autor para uma abordagem pertinente da África em salas de aula ou em qualquer outro espaço da educação básica em que exista a vontade de eleger a África como objeto de estudo.

Palavras-chave: história da África; cultura africana; tradições africanas; literatura africana.

Abstract

This text deals with the subject of teaching African history and culture. It is the result of reflections following the doctoral thesis entitled "Africas in the classroom: possibilities for journeys based on African cinema" (2019). The developments of the thesis led to the search for new possibilities for approaching African themes, understanding teacher training as an important prerequisite. Throughout this text, we have emphasized the need for a didactic approach to teaching Africa that is aligned with the African perspective and the importance of making certain movements that are consistent with this perspective. The African author Amadou Hampâté Bâ and his work were brought into the conversation by way of illustration and guidance. The text is organized into four parts, including the introduction, and concludes with brief final considerations. The introduction contextualized the issue of teaching African History and Culture. The second part presents initial considerations on the African Ancestral Reconnection approach. The third part gives a biographical sketch of Amadou Hampâté Bâ. The fourth part discusses arguments in favor of using the author's works for a relevant approach to Africa in classrooms or any other space in basic education where there is a desire to choose Africa as an object of study.

Keywords: African history; African culture; African traditions; African literature.

Resumen

Este texto aborda el tema de la enseñanza de la historia y la cultura africanas. Es el resultado de las reflexiones posteriores a mi tesis doctoral titulada "África en el aula: posibilidades de viajes a partir del cine africano" (2019). Los desarrollos de la tesis condujeron a la búsqueda de nuevas posibilidades de acercamiento a los temas africanos, entendiendo la formación del profesorado como un importante requisito previo. A lo largo de este texto, hemos insistido en la necesidad de una didáctica de la enseñanza de África alineada con la perspectiva africana y en la importancia de realizar ciertos movimientos coherentes con esta perspectiva. El autor africano Amadou Hampâté Bâ y su obra se han incorporado a la conversación a modo de ilustración y orientación. El texto está organizado en cuatro partes, incluida la introducción, y concluye con unas breves consideraciones finales. La introducción contextualiza la cuestión de la enseñanza de la Historia y la Cultura africanas. La segunda parte presenta unas consideraciones iniciales sobre el enfoque de la Reconexión Ancestral Africana. La tercera parte ofrece un esbozo biográfico de Amadou Hampâté Bâ. En la cuarta parte se exponen argumentos a favor de la utilización de las obras del autor para un enfoque pertinente de África en las aulas o en cualquier otro espacio de la educación básica en el que se desee elegir África como objeto de estudio.

Palabras clave: historia africana; cultura africana; tradiciones africanas; literatura africana.

Introdução

Um dos papeis fundamentais da Educação é criar condições favoráveis para a efetivação da justiça social. Porém, como alerta Boaventura de Sousa Santos (2010), é impossível chegar à justiça social, se esta não for precedida pela justiça cognitiva.

No cenário brasileiro atual, é fazer prova de honestidade se reconhecer que ainda estamos bem distantes destas duas formas de justiças mencionadas. Sobretudo quando se trata da população descendente de africanos. Um breve olhar para as estatísticas pode revelar o quanto a balança educativa tanto no acesso, quanto na permanência e na conclusão, em todos os níveis de ensino, sempre foi e continua desequilibrada para o lado da população afrodescendente no Brasil.

Além disso, o fato não é só ter acesso, permanecer e concluir sua escolaridade ou seus estudos universitários. Há a espinhosa questão de “como saí da escola/universidade como pessoa?”, levando em conta a ampliação da consciência histórica individual e coletiva. Ressaltando o papel fundamental desempenhado pela história coletiva no reconhecimento do pertencimento do indivíduo a um grupo sociocultural e/ou comunidade.

Nesse sentido, a educação da pessoa descendente de africanos precisa incorporar questões fundamentais da sua história e cultura originária. Quer dizer, proporcionar um acesso incondicional à História e à Cultura Africanas.

É justamente nesse sentido que a lei 10639/2003 tornou obrigatório o ensino de História e da Cultura Africanas e Afro-brasileira no ensino básico brasileiro. Tornar real a aplicação da lei, necessita que todos os agentes da Educação se impliquem no processo. O que envolve formação dos educadores para esse fim, ampliação dos currículos, produção de material didático específico e/ou atualização dos materiais existentes etc. É um processo tão complexo quanto a própria tarefa educativa.

Nesse contexto, é importante dispor de uma abordagem metodológica-didática pertinente. A tese de doutorado “As Áfricas em sala de aula: possibilidades de viagens a partir do cinema africano” (Kpoholo, 2019) cunhou um pouco essa questão, investigando como o cinema africano poderia contribuir para o ensino de História e Cultura Africanas em sala de aula. Durante os quatro anos que sucederam à defesa da tese, me dediquei à docência livre, em ambiente virtual, sobre a História e Cultura Africanas para um público mais abrangente. Ao longo das aulas ministradas, fui elaborando e melhorando estratégias didáticas de abordagem sobre temáticas africanas.

Assim, este artigo objetiva trazer alguns pontos fundamentais dessa abordagem, no intuito de auxiliar educadores que buscam subsídios para levar uma História Africana mais potente e mais verdadeira para seus alunos, possibilitando a ampliação de horizonte no que diz respeito às culturas/tradições africanas, na sua diversidade e complexidade.

Além de apresentar os movimentos que integram essa abordagem metodológica-didática, escolhi apresentar e dialogar com uma importante “figura” africana que se comprometeu com a História e a Cultura Africanas ao longo de sua vida, e cujos trabalhos permanecem um verdadeiro tesouro para qualquer pessoa que se interesse pelas temáticas africanas. Trata-se de Amadou Hampâté Bâ e de alguns dos seus textos que abrangem não apenas História e Cultura Africanas, mas também as sociedades africanas subsaarianas em sua complexidade e diversidade.

Reconexão Ancestral Africana (RAA)

Considero a busca pelo saber histórico cultural africano e seu ensino como um processo de Reconexão Ancestral Africana (RAA). O termo “ancestral” é usado aqui para se referir a esse todo complexo e diverso, constituído pelos povos africanos, seus saberes, sua História e suas tradições, e isso, através da sua espiral de tempo que entrelaça passado, presente e futuro. Ou seja, o tempo não é enxergado como uma linha reta e crescente como deixam entender as perspectivas da racionalidade ocidental eurocêntrica. Portanto, a ancestralidade não diz respeito apenas ao passado. Mas, justamente, a uma imbricação de seres, de temporalidade, de acontecimentos e de saberes.

Em um processo de ensino-aprendizagem tendo a África como objeto, mais especificamente sua História e suas culturas/tradições, seja este direcionado para um público afrodescendente ou não, um movimento de reencontro com a origem comum da humanidade é provocado. Se a África é considerada como berço da humanidade, e se é verdade que o homo sapiens começou sua jornada de povoamento dos outros continentes somente a partir da sua saída do continente africano, seria justo considerar a ancestralidade africana remota, como a de toda a humanidade. Além disso, temos elementos suficientes hoje para situar o primeiro e mais demorado ciclo de civilização humana no continente africano (Diop, 1979). Isso implica também que a ancestralidade da ciência em suas múltiplas disciplinas, da arte, da filosofia e da espiritualidade, seja também africana. A partir do reconhecimento desses fatos, é propício dizer que eles deveriam ocupar um lugar central em qualquer processo de abordagem da História e da Cultura Africanas. Porém, não é o que se constata hoje, nem nos currículos de formação de professores, nem nos do ensino básico.

Com efeito, o ensino e a abordagem do continente africano sistematizados pelos currículos escolares parecem dar mais destaque aos últimos séculos. O velho mundo africano é invisibilizado, enquanto os anos em que a África esteve confrontada à invasão e ao domínio das potências ocidentais é destacado. Quando se menciona algo relacionado à História Antiga Africana, ela não recebe a profundidade nem a abrangência necessárias . A consequência desse direcionamento na abordagem da África é que ela reforça as memórias de dores presentes na caminhada dos povos africanos e da sua descendência, tanto no continente, quanto na diáspora. O que acaba os enfraquecendo ao invés de fortalece-los e coloca-los em lugar de protagonistas de uma história milenar, potente, e com imensa contribuição para toda a humanidade.

A didática da Reconexão Ancestral Africana se inscreve em uma linha de abordagem que objetiva superar um ensino-aprendizagem reducionista e limitador sobre a África. Por isso, ela busca realizar os movimentos seguintes: ruptura epistemológica, mudança de paradigma, dilatação temporal, multidisciplinaridade e múltiplas linguagens, narrativas ancestrais africanas, estudos permanentes e vivências periódicas.

A ruptura epistemológica é um movimento pelo qual o docente-aprendiz rompe com o corpus teórico ocidental hegemônico em relação à África. É preciso tomar distância em relação ao arcabouço teórico ocidental no qual a África é constantemente produzida como um não-lugar, a não ser o lugar da dor, do sofrimento, da barbaria, da não-história, da ausência de civilização e de culturas/tradições. Em contrapartida, é preciso ir ao encontro das epistemologias africanas - aquelas preocupadas em restaurar as legítimas contribuições africanas para a humanidade e fortalecer sua descendência em busca de autodeterminação - e torná-las alicerces para uma abordagem da África mais potente e mais justa.

Em relação à mudança de paradigma, ela implica partir do paradigma africano - sem desconsiderar a diversidade de povos e de práticas - baseado em uma visão de mundo cosmológica, no ser humano e na comunidade como os principais eixos da vida em sociedade, e na imbricação entre mundo imaterial e mundo material. Uma tentativa de apreender a longa história africana e as práticas culturais dos povos africanos fora desse complexo paradigmático corre o risco de levar para o paradigma ocidental na sua busca por categorização, hierarquização, objetivação, binarismos etc. Enquanto o que é próprio das sociedades africanas - antigas e contemporâneas - continua sendo a complexidade e a dinâmica cosmológica. É preciso recuperar isso para uma abordagem eficiente de História e Cultura Africanas.

A dilatação temporal busca ampliar ao máximo o tempo histórico-cultural africano. Conforme salientei anteriormente, a racionalidade ocidental insiste em comprimir a história dos povos africanos - continentais e diaspóricos - aos últimos séculos. Recorte através do qual consegue sujeitá-los, ressaltando e reforçando estrategicamente suas dores, enfraquecendo-os e impossibilitando toda reconexão com sua grandeza de outrora, condição primária para sua emancipação presente, seu novo protagonismo e sua autodeterminação. Um ensino profícuo de História e Cultura Africanas precisa abarcar não apenas os últimos séculos, mas alastrar-se para os últimos 300 mil anos.

A multidisciplinaridade e as múltiplas linguagens na abordagem de História e de Cultura Africanas buscam se aproximar da complexidade africana a partir de vários campos do saber e suas múltiplas possibilidades de expressão. Ou seja, não só a partir dos livros de história se deve aprender e/ou ensinar história africana. Mas, também a partir do cinema africano, das literaturas africanas, das artes africanas, da geografia africana, da geopolítica e geoestratégia africana etc. Igualmente para aprender sobre/com as culturas/tradições africanas.

As narrativas ancestrais dizem respeito a todas as formas de expressões africanas baseadas na oralidade. Ou, melhor dizendo, no verbo. Assim, os cantos, os provérbios, os contos, as lendas, as charadas, os mitos etc., adicionadas às múltiplas línguas africanas, permitem penetrar as culturas africanas através de um recurso ancestral comum a todos os povos da África subsaariana. Isto é, a Tradição Oral Africana. Ignorar a Tradição Oral Africana e o lugar de destaque que esta ocupa na documentação não escrita de saberes e sua rigorosa apropriação por novas gerações seria escolher excluir uma parte valiosa, para não dizer a maior parte, dos acontecimentos históricos africanos, assim como das manifestações culturais africanas.

Estudar permanentemente implica estar disposto(a) a atualizar continuamente aquilo que se sabe sobre a África. O passado africano é imenso, complexo e contemporâneo ao mesmo tempo. Isso implica a necessidade de se manter nesse movimento incessante de estudos para seguir compreendendo o presente africano à luz do seu passado - inclusive o passado bem distante - e suas perspectivas futuras. Ainda que a maioria do que foi escrito sobre esse passado distante africano tenha sido feito pelo Ocidente, que não poupou esforços para velar, distorcer e se apropriar de fatos e saberes.

Ao falar de vivências periódicas, faço um convite para que a busca pelo saber histórico-cultural africano, e mesmo seu ensino, não se limite apenas à leitura de textos escritos. Mas que seja complementada por experiências práticas. Com efeito, a vida em seus diversos desdobramentos está no coração das práticas culturais dos povos africanos. Portanto, vivenciar o que se estuda, ou se ensina, é fundamental na perspectiva africana. Por isso, é importante proporcionar momentos de vivências de manifestações culturais tipicamente africanas durante o processo de ensino-aprendizagem envolvendo temáticas culturais africanas. Para ilustrar brevemente, diria que estudar danças africanas experimentando-as seria ainda melhor do que permanecer apenas no campo teórico. Compreender o milenar hábito africano de comer com as mãos seria mais profundamente alcançado se entregando a tal exercício, com certa frequência, em meio a uma comunidade africana ou afro diaspórica.

Um processo didático de abordagem de história e/ou culturas/tradições africanas, que integre os movimentos acima mencionados, corre menos o risco de reproduzir as invisibilidades e os estereótipos criados por uma abordagem orientada por uma perspectiva ocidental eurocêntrica. Fica evidente, portanto, que a perspectiva africana deve ser o ponto de partida - na medida em se trata de conhecer os povos africanos, sua história e suas culturas/tradições - tomando cuidado para não cair em armadilhas de autores africanos reprodutores conscientes ou inconscientes dos postulados eurocêntricos. É justamente nessa perspectiva que trago uma eminente figura da literatura africana, como um esforço de ilustração, mas também de orientação.

Quem é Amadou Hampâté Bâ?

É impossível falar da literatura africana sem mencionar o nome de Amadou Hampâté Bâ. Da mesma forma, qualquer pessoa que se interesse pelos estudos dos povos africanos subsaarianos, na África do oeste, terá inevitavelmente de se deparar com as obras dele. Porque sua vida inteira foi dedicada a este fim.

Foi em 1900 que Hampâté Bâ deu seus primeiros gritos, em Bandiagara, uma cidade situada no território da atual república do Mali. Como o próprio autor mencionou em seu livro Amkoullel, o menino fula (2008), ele nasceu na aurora do século XX. Um século particularmente agitado, tanto no continente africano, quanto no resto do mundo.

Em meio aos tumultos da expansão islâmica na África, assim como da colonização europeia, especificamente francesa na região do atual Mali, foi que os fios dos eventos se entrelaçaram para cruzar os caminhos do então conquistador El-Adj Omar e do avô materno de Hampâté Bâ, Pâté Poullo. De fio para agulha, outros eventos trágicos definiram o destino do próprio pai dele, Hampâté1, que teve de viver no anonimato durante boa parte da vida, após ter sido o único sobrevivente de um massacre que sua família sofrera por causa de questões de sucessão de monarquia no então Império Fula de Macina2.

Quando Hampâté, pai de Hampâté Bâ, recuperou a sua identidade, e chegou à idade de casar, teve primeiramente uma união infrutífera que o levou à separação. Depois disso, conheceu Kadidja, com quem se casou. Dessa segunda união, nasceu Amadou Hampâté Bâ, no início do ano 1900. Ele era o caçula dos três filhos da sua mãe com seu pai, porém, o único que sobreviveu. A mais velha não passou de 6 meses de vida, enquanto seu irmão mais velho faleceu tragicamente por volta dos quinze anos. E ainda para piorar, seus pais se separaram no seu primeiro ano de vida e, três anos depois dessa separação, seu pai, Hampâté, faleceu. É como órfão de pai biológico e em um contexto social particularmente difícil que aquele que se tornou um dos autores mais respeitados na África subsaariana passou sua infância e seguiu o resto de sua vida.

Ser órfão de pai nos primeiros anos de vida, porém, não significou que Amadou cresceu sem nenhuma figura paterna. Ainda mais naquela África onde os valores ancestrais permaneciam sólidos. Com efeito, antes do falecimento, seu pai biológico já havia dado orientações aos mais próximos da família para seguirem cuidando do filho. Isto é, de sua educação familiar e de seu sustento. Disse ele,

Havia recomendado a seus “cativos”, ou seria mais justo dizer seus filhos, que nos ensinassem a piedade, a probidade, a bondade com os pobres e enfermos e o respeito pelas pessoas de idade. Quanto à nossa educação religiosa, exigiu que fosse confiada a Tierno Bokar, o amigo íntimo da família sobre quem ainda falarei. (Hampâté Bâ, 2008, p. 57).

Além disso, Kadidja, mãe de Hampâté Bâ, casou-se novamente e seu marido, um chefe regional do império, adotou-o como filho e herdeiro.

A partir do contexto acima, é possível perceber que a educação familiar de Hampâté Bâ foi alicerçada em valores africanos inalienáveis. Mas também foi entrelaçada à educação religiosa islâmica. Esta se iniciou quando ele completou 7 anos de idade e viu acontecer “a morte” da sua primeira infância. Ele mesmo escreveu o seguinte:

Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai me chamou. Ele disse: “esta será a morte da sua primeira infância. Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe dava direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a Deus. A partir desta noite, você entra em sua grande infância. Terá certos deveres, a começar pelo de frequentar a escola corânica. Aprenderá a ler e a memorizar os textos do livro sagrado, o Alcorão, ao qual chamamos também Mãe dos livros” (Hampâté Bâ, 2008, p.135).

Foi a partir dessa fala de seu pai adotivo que Hampâté Bâ iniciou seus estudos corânicos. Ele os levou até seus 12 anos, idade em que entrou na escola ocidental francesa. Naquele período, a colonização francesa já estava a todo vapor no continente e o atual território do Mali não escapou a essa invasão. Assim, a educação ocidental colonial foi se sobrepondo progressivamente à Educação Ancestral Africana. Aqueles que entravam na escola eram perfilados em três categorias: a administração pública colonial, o exército colonial e, por fim, os encarregados do serviço doméstico. Todos tinham que ir para a escola, cujo objetivo para as duas últimas categorias era apenas um domínio básico da língua francesa. Naquela época, entrar na escola francesa era visto como uma maldição pelas populações locais do Mali, pelo motivo de ela pertencer aos colonizadores, além de afastar crianças, adolescentes e jovens de suas raízes ancestrais, e também privá-los dos estudos corânicos.

Apesar disso, Hampâté Bâ prosseguiu seus estudos e obteve seu primeiro certificado pela escola regional de Djenné. Já o segundo certificado de estudos foi obtido na Escola Regional de Bamako. Em seguida, ingressou na Escola Profissional de Bamako que, de acordo com o próprio Hampâté Bâ, compreendia quatro classes. Ele entrou para a quarta classe, que preparava aqueles destinados a serem um dos auxiliares da administração colonial. Concluiu com êxito o ciclo profissional e deveria seguir para a Ilha de Goré, no Senegal, para realizar estudos suplementares. Mas sua mãe foi contra esse novo distanciamento do filho.

Ir para Senegal, para vários anos de estudos suplementares? Minha mãe opôs-se de forma categórica. “Você já estudou francês o suficiente”, disse-me, “está na hora de aprender a ser um verdadeiro fula.” Como meu mestre Tierno Bokar não estava mais lá para convencê-la a mudar de ideia, nada pude fazer a não ser dobrar-me à sua vontade. Isto não me aborreceu muito porque, naquela época, era absolutamente impensável desobedecer a uma ordem da mãe. (...). Como esta era a sua decisão, era, portanto, a vontade de Deus em relação a mim e tal seria meu destino. (Hampâté Bâ, 2008, p.332).

Essa recusa de ir para o Senegal não ficou sem consequência. Como castigo, ele foi obrigado a ocupar a posição de “escrevente temporário, título essencialmente precário e revogável” (Hampâté Bâ, 2008, p. 333), o cargo mais baixo da administração. Depois de vários tumultos, finalmente foi recrutado como escrevente temporário na então Alta Volta com um salário precário.

Os eventos posteriores da sua vida o levaram a ser um eminente funcionário da Unesco, integrando o Conselho Executivo da instituição entre 1962 e 1970. Além disso, participou também do Comitê Científico para a redação de um dos volumes da História Geral da África, no qual escreveu também o capítulo intitulado “A Tradição Viva”. No final do seu trabalho na Unesco, deu seguimento às suas pesquisas etnológicas acerca dos povos e das tradições da África do oeste. Trabalho que desenvolveu até sua morte, em maio de 1991, na República da Costa do Marfim. Ao longo da vida, Hampâté Bâ publicou várias obras e artigos. Podem-se citar, entre outros, Aspects de la civilisation africaine (1972), Amkoullel, l’enfant Peul (1992), Contes initiatiques peuls (1994), Oui mon comandant (1991).

Conhecer e ensinar a África com Hampâté Bâ

Ao avaliar a trajetória de vida do autor, percebe-se imediatamente o quão esta impactou sua obra. A forma como escreve, as temáticas abordadas, assim como o nível de profundidade e de complexidade são frutos de uma vida que se desenrolou em um espaço e tempo marcados por acontecimentos de muita riqueza.

Há vários autores na África subsaariana cujas obras podem constituir uma ponte necessária para tecer aprendizagens acerca da História e das culturas/tradições africanas. Mas há algo especial nas obras de Amadou Hampâté Bâ, que fazem delas uma escolha privilegiada para qualquer pessoa que deseje conhecer melhor a História da África do oeste e ter uma melhor compreensão das práticas culturais dos povos que ocupam essa região do continente. Não apenas seus textos possibilitam a realização de alguns dos movimentos apontados pela abordagem RAA (Reconexão Ancestral Africana), como permitem ao leitor um mergulho suave e sensível em várias temáticas africanas. Sua abordagem contempla História, tradição oral, práticas culturais específicas, espiritualidade pela perspectiva africana e, até mesmo, filosofia africana a partir de alguns dos elementos da oralidade africana, como, por exemplo, contos, provérbios, mitos e lendas, canções etc. A forma como o autor integra todos esses elementos em suas obras lhes confere seu caráter singular. Mas, além de tudo isso, há outros elementos que tornam as obras do Hampâté Bâ tão potente, a ponto de serem uma escolha praticamente obrigatória para quem se interessa pelos povos africanos da África do oeste. Vejamos alguns deles.

Momento histórico

É claro que as obras do Hampâté Bâ não abordam fatos históricos de uma África muito distante, faraônica, por exemplo. Mas todo o período de vida dele foi repleto de acontecimentos históricos que impactaram enormemente, e continuam impactando, a vida dos africanos até hoje. E ele os traz brilhantemente em suas obras. Seu livro Amkoullel, o menino Fula pode ser mencionado aqui como exemplo. Mais do que uma biografia, é uma obra que convida o leitor a adentrar uma valiosa viagem histórico-cultural.

Nessa obra, ao contar a origem de suas famílias materna e paterna, os eventos que precederam o seu nascimento e aqueles subsequentes, ele tira o véu de vários acontecimentos históricos da época, muitas vezes desconhecidos pelos leigos sobre temáticas africanas. Alguns desses fatos são: a expansão islâmica na África do oeste e seu impacto nas relações entre os povos, inclusive os pertencentes ao mesmo grupo sociocultural; a colonização francesa na África do oeste e como esta impactou as dinâmicas territoriais e as relações de poder - política, econômica, militar e sociocultural; a escola colonial francesa e seu impacto na vida dos povos africanos; as participações de soldados africanos nas guerras mundiais - o recrutamento, as promessas da França ao soldados, o treinamento, o fornecimento de alimentos pelas colônias para a metrópole etc. Tudo narrado com riqueza de detalhes. Além dos acontecimentos históricos, o autor traz também práticas culturais presentes naquela região, mas que estão presentes em outras partes do continente africano também. Para não dizer em toda a África subsaariana. Algumas dessas práticas são: a iniciação, a circuncisão, a celebração do nascimento, os ritos funerários, a figura do Djéli - chamado de griot em língua francesa -, as associações de idade e irmandades, a vida espiritual/religiosa, as relações familiares, a vida profissional, a educação na família e na sociedade - antes da chegada da escola colonial francesa - , o casamento tradicional, o papel das pessoas idosas, a força feminina etc., entre outros, são elementos da Cultura Africana - no sentido mais abrangente e complexo - muito difíceis de compreender a partir das lentes de algum autor estrangeiro ao continente africano. O mais interessante é que o estilo biográfico tornou mais simples e interessante a assimilação de práticas e acontecimentos complexos, muitas vezes, com consequências graves e até mesmo geracionais.

Oralidade e vida

Este é um dos aspectos que torna singular a obra de Hampâté Bâ. A riqueza de seus textos baseados nos recursos da oralidade africana. Mitos, contos, provérbios, cantos, o uso de palavras em línguas nativas, entre outros, são recursos presentes nas obras do autor e que, inclusive, ao serem traduzidos para a linguagem escrita, ainda conservam toda a potência e a força das formas de expressão da oralidade presentes nas terras africanas há milhares de anos. Duas de suas obras podem ser citadas nesse sentido: Petit Bodiel et autres contes de la savane3 (1993) e Contes initiatiques peuls4 (1993).

A primeira reúne um conjunto de contos e fábulas presentes nas savanas africanas. Contos que trazem ensinamentos baseados nos valores culturais ancestrais dos povos que vivem nessa região do continente. Os personagens, sejam eles humanos, animais ou quaisquer outras entidades, sempre estão em ação e em diálogos refletindo a vida e as relações nas sociedades humanas. Solidariedade, partilha, humildade, justiça, coragem, equilíbrio, harmonia, ética, respeito à natureza, entre outros, são valores possíveis de serem notados nos contos dessa obra.

O segundo livro também é um conjunto de contos, porém, nessa obra se trata de contos iniciáticos.

Mencionei, anteriormente, a iniciação como uma prática tradicional presente em toda a África subsaariana. Com efeito, é o processo através do qual gerações de pessoas acessam determinados saberes espirituais-filosóficos-científicos, acerca do nosso universo, da sociedade em que vivem e sobre si mesmas. Saberes que são rigorosamente organizados, e cuja uma das vias privilegiadas de codificação e de acesso são os contos e mitos iniciáticos. Quando um não iniciado e um iniciado escutam a mesma narrativa iniciática, o nível de profundidade dos saberes ativados em cada um deles é diferente, pelo fato de o segundo já ter sido formado e capacitado a penetrar os segredos/informações durante sua iniciação, enquanto o primeiro permanece na superficialidade por falta de iniciação. É para esse universo cheio de “mistérios” - para quem os encaram como tal - que o autor convida. Os rituais, os símbolos, as palavras fortes/sagradas, os nomes etc. presentes na narrativa abrem para o leitor uma janela sobre as culturas/tradições de muitos povos africanos da África do oeste e, até mesmo, de várias outras regiões do continente.

Diversidade étnica

O terceiro elemento que gostaria de destacar aqui na obra do Hampâté Bâ é a diversidade étnica. É impossível ler qualquer obra dele e não perceber esse fato característico das populações africanas. Sobretudo, a parte do continente chamada de savanas africanas é repleta de uma grande diversidade - étnica, linguística e religiosa. É interessante perceber que, apesar da existência de nexos entre os diversos povos e suas práticas tradicionais, há também diferenças. Essas diferenças, embora enriqueçam mutuamente esses povos, podem também ser motivos de conflitos circunstanciais.

Portanto, através das obras de Hampâté Bâ é possível aprender sobre vários grupos socioculturais da África do oeste e as relações internas e externas que os movimentam, histórica e culturalmente. Fula, Bambara, Dogon, Sénoufo, Songaï, Dioula, entre outras, são todas elas diferentes etnias que compartilham territórios em vários países da África do oeste. E todas encontram vozes e representações nas obras de Hampâté Bâ.

Uma das grandes dificuldades enfrentadas em um processo de ensino de História e Cultura Africanas é justamente conseguir penetrar essa diversidade e complexidade étnica, sem cair em reduções aleatórias cheias de estereótipos. Mas, ao mesmo tempo, entender que a diversidade étnica não implica automaticamente conflitos e embates. Ter à disposição os textos de Hampâté Bâ para adentrar essa questão é uma valiosa alternativa para os estudiosos da África e para os docentes que ainda são alheios às realidades do continente.

Considerações finais

Este artigo buscou trançar alguns dos fios que formam a complexa rede da Educação no aspecto formação docente para o ensino de História e para a abordagem das culturas/tradições africanas no meio escolar. Para isso, foi necessário enxergar tal ensino como um movimento importante na busca pela justiça social e cognitiva em relação às pessoas de descendência africanas no Brasil, que constituem a maior parte da população brasileira. Um ensino, inclusive, tornado obrigatório pela legislação brasileira.

Nessa perspectiva, o texto apontou para uma abordagem metodológica-didática da África livre das amarras dos postulados ocidentais eurocêntricos. Apontou para a necessidade de partir da perspectiva africana, de realizar movimentos condizentes com essa perspectiva, assim como de autores comprometidos com a História e as culturas/tradições africanas. Nesse sentido, Amadou Hampâté Bâ aparece como uma das escolhas pertinentes para uma abordagem fecunda da África no meio escolar. Sua origem, a época em que nasceu e viveu, os eventos de sua vida, sua formação tradicional e acadêmica, seu percurso profissional, são todos elementos que potencializam suas obras e as tornam incontornáveis para qualquer pessoa com o objetivo de se aproximar de temáticas africanas subsaarianas, mais especificamente da África do oeste.

1Hampâté é o sobrenome de Amadou. O Bâ que se acrescenta ao Hampâté remete ao filho.

2Nome de uma região na atual república do Mali.

3Pequeno Bodiel e outros contos da savana.

4Contos iniciáticos fulas.

Referências

AMADOU, Hampâté Bâ. Amkoullel, o menino fula, 2a ed., São Paulo: Casa das Áfricas, 2008. [ Links ]

AMADOU, Hampâté Bâ. Contes initiatiques peuls. Paris: Stock, 1994. [ Links ]

AMADOU, Hampâté Bâ. Petit bodiel et autres contes de la savane. Paris: Stock, 1994. [ Links ]

AMADOU, Hampâté Bâ. Vie et enseignement de Tierno Bokar. Paris: Édition du Seuil, 1980. [ Links ]

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Recebido: 09 de Setembro de 2023; Aceito: 12 de Setembro de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

Editores Convidados - Dossiê 66: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista; Prof. Dr. Jason Ferreira Mafra; Prof. Dr. José Eustáquio Romão; Profa. Dra. Marcia Fusaro; Prof. Dr. Maurício Pedro da Silva

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