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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./sept 2023  Epub 19-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.25178 

Dossiê 66: Educação e Libertação Africana Contemporânea

LITERATURA AFRO-BRASILEIRA NA ESCOLA: LETRAMENTO RACIAL E AFROLETRAMENTO COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO ANTIRRACISTA

AFRO-BRAZILIAN LITERATURE AT SCHOOL: RACIAL LITERACY AND AFROLITERACY AS AN INSTRUMENT FOR ANTI-RACIST EDUCATION

LITERATURA AFROBRASILEÑA EM LA ESCUELA: ALFABETIZACIÓN RACIAL Y AFROALFABETIZACIÓN COMO INSTRUMENTO DE FORMACIÓN ANTIRRACISTA

Márcia Moreira Pereira, Doutora em Letras1 
http://orcid.org/0000-0002-0120-7607

Wendell Lopes de Azevedo Braulio, Mestre em Relações Étnico-Raciais | Doutorando em Linguística2 
http://orcid.org/0000-0001-5786-9389

1Doutora em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil

2Mestre em Relações Étnico-Raciais | Doutorando em Linguística (UFSCar), CEFET-RJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


Resumo

O presente artigo trata da relação entre a utilização da Literatura Afro-Brasileira na escola como recurso para o desenvolvimento do letramento racial e do afroletramento. Buscando relacionar ambos os conceitos (letramento racial e afroletramento) com práticas vinculadas à utilização social da linguagem, propõe-se, ainda, sua relação com uma formação antirracista, como modo de valorização da identidade brasileira afrodescendente e luta contra o preconceito e a discriminação.

Palavras-chave: literatura Afro-Brasileira; letramento racial; afroletramento; educação antirracista.

Abstract

This article deals with the relationship between the use of Afro-Brazilian Literature at school as a resource for the development of racial literacy and Afro-literacy. Seeking to relate both concepts (racial literacy and afro-literacy) with practices related to the social use of language, it also proposes their relationship with an anti-racist education, as a way of valuing the Brazilian Afro-descendant identity and fighting prejudice and discrimination.

Keywords: Afro-Brazilian literature; racial literacy; afro-literacy; antiracist education.

Resumen

Este artículo aborda la relación entre el uso de la literatura afrobrasileña en la escuela como recurso para el desarrollo de la alfabetización racial y la afroalfabetización. Buscando relacionar ambos conceptos (alfabetización racial y afroalfabetización) con prácticas vinculadas al uso social de la lengua, proponemos también su relación con una formación antirracista, como una forma de valorar la identidad afrodescendiente brasileña y luchar contra los prejuicios. y discriminación.

Palabras clave literatura Afrobrasileña; alfabetización racial; afroalfabetización; educación antirracista.

Cabelo carapinha,

engruvinhado, de molinha,

que sem monotonia de lisura

mostra-esconde a surpresa de mil

espertas espirais.

Oliveira Silveira

O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons.

Martin Luther King

Introdução

A literatura tem o poder incrível de transportar os leitores para novos mundos e experiências, tudo por meio de palavras habilmente tecidas pelos escritores. Tecer é uma habilidade ancestral, e sabemos que realizar uma tessitura com fibras diferentes nos dá tecidos diferentes; sabemos também que nem todo lugar proporciona a matéria-prima necessária ao cultivo de determinadas fibras utilizadas nas tessituras de tecidos, logo, cada região, cada país possuirá uma “vocação”. Ao substituirmos a matéria-prima dos fios e pensarmos o texto como “tecido”, podemos afirmar que cada país terá a sua vocação nas matérias-primas para a tessitura de textos específicos - esse tecelão, ou melhor, esse texto será fruto dessas matérias-primas e terá uma condição privilegiada de nos contar histórias por perspectivas singulares.

Ao abrir um livro, somos convidados a embarcar em uma jornada única e emocionante, onde somos apresentados a personagens fascinantes e enredos envolventes. É como se fôssemos convidados a entrar em uma realidade paralela, onde podemos escapar do nosso cotidiano e nos encontrar em lugares mágicos, futuros distantes ou passados históricos, mas também podemos vestir outras peles, podemos ter outros gêneros e nos colocarmos no lugar de pessoas que possuem condições sociais diametralmente opostas à nossa. Em uma página, um escritor pode nos fazer sentir a alegria de um primeiro amor, a tristeza de uma despedida, a adrenalina de uma aventura perigosa, a dor de sofrer uma discriminação por causa do tom de pele que reveste o seu corpo ou a vulnerabilidade, impotência e o desamparo daquele que sofre o racismo. Enfim, ao mergulhar nessas páginas, tornamo-nos mais empáticos, capazes de ver o mundo sob diferentes perspectivas e compreender a complexidade dos seres humanos. As histórias nos permitem vivenciar emoções e situações que talvez nunca experimentaríamos na vida real, nos ajudando a expandir nossos horizontes e nos conectando com as essências das humanidades, a essência da humanidade preta e a essência da humanidade branca.

A literatura Afro-Brasileira como prática de escrevivência

O professor Eduardo de Assis Duarte (2023, s.p.), da Universidade Federal de Minas Gerais, no Portal Literafro, dedicado à Literatura Afro-Brasileira, lembra que esse é um conceito ainda em construção, embora seja possível traçar algumas marcas características da Literatura Afro-Brasileira: “uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo”.

Por transitividade discursiva podemos entender a capacidade de um discurso ou enunciado de ser transferido, transmitido ou compartilhado entre diferentes contextos ou interlocutores. É a propriedade de um discurso de ser capaz de estabelecer relações de continuidade e coerência em diferentes situações de comunicação. A transitividade discursiva implica que o sentido de um discurso não está limitado a um contexto específico, mas pode ser entendido e interpretado de maneira consistente em diferentes contextos comunicativos. Essa transferência de sentido ocorre por meio de elementos linguísticos, como palavras, frases, estruturas gramaticais e estratégias retóricas, que permitem que um discurso seja compreendido e interpretado de forma coerente em diferentes situações de comunicação.

A capacidade de um discurso de apresentar transitividade discursiva é essencial para a comunicação efetiva, pois permite que as informações e significados sejam transmitidos e compartilhados entre diferentes interlocutores e contextos. É por meio da transitividade discursiva que os discursos são capazes de construir conexões e estabelecer relações entre diferentes partes de um texto ou entre diferentes textos, criando uma rede de significados e sentidos. Em resumo, a transitividade discursiva é a propriedade de um discurso de ser transferido e interpretado de forma consistente em diferentes contextos comunicativos, permitindo a construção de sentido e a continuidade da comunicação (Rempel, 2017).

Um lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência é um espaço físico, simbólico ou social onde as pessoas de ascendência africana têm a capacidade de falar, expressar suas experiências e reivindicar sua identidade e direitos políticos e culturais. Esse lugar de enunciação é fundamentado na compreensão de que as pessoas afrodescendentes têm uma história, cultura e experiências específicas que, muitas vezes, são marginalizadas ou invisibilizadas na sociedade em geral.

Esse lugar de enunciação política e cultural pode se manifestar de diferentes formas: pode ser um espaço físico, como um centro comunitário, uma organização não governamental ou uma instituição cultural voltada à promoção da afrodescendência; pode ser também um espaço simbólico, como um movimento social, um discurso político ou uma manifestação artística que reivindica a igualdade, a justiça e o reconhecimento da contribuição afrodescendente para a sociedade.

Esse lugar de enunciação é importante porque permite que as pessoas afrodescendentes tenham voz e participação ativa nos debates políticos, na construção de políticas públicas e na defesa de seus direitos. É um espaço onde as experiências, perspectivas e demandas específicas da afrodescendência são valorizadas e levadas em consideração. Além disso, um lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência desempenha um papel fundamental na luta contra o racismo, na promoção da igualdade racial e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Ao fortalecer e empoderar a afrodescendência, esses espaços contribuem para a transformação das estruturas sociais e políticas que perpetuam a discriminação e a desigualdade.

É importante ressaltar que um lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência não exclui a participação de outras pessoas ou grupos. Pelo contrário, busca-se criar espaços de diálogo e parceria entre diferentes comunidades, promovendo a diversidade e o respeito mútuo.

Desse modo, quando “estudamos” Machado de Assis na escola, quando ficamos em estado de encantamento com a “escrevivência” de Conceição Evaristo, quando nos emocionamos com os diários literários de Carolina Maria de Jesus, ou quando descobrimos a força narrativa dos romances de Lima Barreto, entre tantos outros autores e autoras, contemporâneos ou não, estamos diante de um processo de transitividade discursiva, estamos vivenciando um lugar de enunciação política e cultural, enfim, tendo contato com a Literatura Afro-Brasileira.

O conceito de escrevivência, proposto pela escritora brasileira Conceição Evaristo (Evaristo, 2017; Valério, 2020), responde bem a essa realidade complexa, pois se refere a uma forma de escrita que combina elementos da experiência vivida e da expressão literária. É um neologismo criado por Evaristo, a partir da junção das palavras "escrever" e "vivência", com o objetivo de ressaltar a importância da vivência pessoal como base para a criação literária.

A escrevivência de Conceição Evaristo busca dar voz e visibilidade às experiências das mulheres negras e das camadas marginalizadas da sociedade brasileira: ela entende que essas experiências são muitas vezes silenciadas ou invisibilizadas, e a escrevivência é uma forma de resgatar e valorizar essas narrativas. Para Evaristo, portanto, a escrevivência não é apenas uma técnica literária, mas também uma estratégia política, já que ao contar suas próprias histórias e experiências, as pessoas marginalizadas poderiam reivindicar sua identidade, combater estereótipos e construir uma narrativa alternativa àquela imposta pelos discursos dominantes.

A escrevivência de Evaristo baseia-se na interseção entre a oralidade e a escrita, incorporando elementos da cultura afro-brasileira e da tradição oral dos povos africanos. Ela utiliza uma linguagem poética e sensorial, buscando resgatar a corporeidade, os afetos e as memórias que permeiam a vida das pessoas marginalizadas. Além disso, esse conceito também está ligado à ideia de ancestralidade, que é fundamental em sua obra, valorizando as histórias e saberes transmitidos pelos antepassados e reconhecendo a importância de se conectar com as raízes e tradições culturais para a construção de uma identidade forte e resiliente. Em suma, o conceito de escrevivência abrange uma perspectiva literária e política que valoriza a vivência pessoal, as experiências das pessoas marginalizadas e a conexão com a ancestralidade - é uma forma de escrita que busca resgatar narrativas silenciadas e construir uma representação mais ampla e inclusiva da realidade brasileira.

Um exemplo da aplicação desse conceito à prática da literatura é o diário literário de Carolina Maria de Jesus, gênero de escrita que combina elementos de diário pessoal e expressão literária. Trata-se de um registro escrito, onde a autora explora suas experiências, reflexões, emoções e observações do mundo ao seu redor de uma maneira artística e criativa.

Ao contrário de um diário convencional, que normalmente é um registro íntimo e pessoal das atividades e pensamentos do autor, um diário literário possui uma dimensão estética e busca explorar a linguagem de forma mais elaborada. É uma forma de expressão literária em que o autor utiliza recursos como metáforas, imagens poéticas, descrições detalhadas e uma voz narrativa mais elaborada para transmitir suas experiências e perspectivas.

Um diário literário pode abordar uma ampla gama de temas, desde experiências pessoais e eventos cotidianos, até reflexões sobre questões sociais, políticas e filosóficas. Pode ser uma forma de autorreflexão ou autorretrato literário, permitindo que o autor mergulhe em seus próprios pensamentos, sentimentos e observações, ao mesmo tempo em que constrói uma narrativa artística.

Algumas características comuns de um diário literário incluem: um estilo literário, em que o autor busca mobilizar recursos literários para dar expressividade e originalidade ao texto, utilizando figuras de linguagem, jogos de palavras e outros elementos estilísticos; reflexão e introspecção, na medida em que se trata de um espaço para o autor refletir sobre suas experiências, sentimentos e pensamentos mais profundos, muitas vezes de forma subjetiva e poética; observação do mundo ao redor, pois, além de abordar a vida íntima do autor, pode também explorar o ambiente e a sociedade em que o autor está inserido, oferecendo insights e perspectivas únicas sobre o mundo ao seu redor; experimentação literária, já que se trata de um exercício de experimentação e liberdade criativas, onde o autor pode explorar diferentes estilos, técnicas e formas de escrita.

É importante ressaltar que o diário literário é um gênero flexível e subjetivo, e suas características podem variar de acordo com o estilo e intenção do autor - cada escritor tem sua própria abordagem e maneira de utilizar o diário literário como forma de expressão e criação literária.

Letramento racial e afroletramento

Há vários motivos pelos quais se faz necessário, em nosso ponto de vista, definir uma literatura como afro-brasileira e empregá-la em processos de letramento (letramento racial e afroletramento): para afirmar identidades afrodescendentes; para reconhecer, na escrita literária, traços culturais da relação África-Brasil; para exercitar, por meio da leitura crítica, atos de resistência vinculados à comunidade negra; e, sobretudo, para usufruir de textos literários que revelam indescritível apuro e sensibilidade estética. Com a promulgação da Lei 10.639, em 2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 1996) e institui a obrigatoriedade, no ensino fundamental e médio, do ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileira, a leitura dessa literatura adquire especial importância para a divulgação/valorização do legado cultural africano que recebemos desde o século XVI, pois além de ampliar o pouco conhecimento que temos da cultura africana, auxilia-nos na construção de um novo olhar sobre a História Africana e Afro-Brasileira e suas possíveis relações como o percurso histórico-cultural brasileiro. No ano seguinte à aprovação dessa lei, verificou-se um esforço conjunto e concentrado, em especial por parte da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no sentido de garantir à população afrodescendente o ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, por meio de políticas públicas “de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino” (BRASIL, 2004, s.p.). Em resumo, a prática desta lei na escola pode elevar a autoestima do alunado negro, fazendo com que ele não apenas se reconheça nessa cultura, mas também assuma plenamente sua identidade, perante si e os outros, reconhecendo, desse modo, seu papel na sociedade e a defesa por sua cultura, herança e cor. Não há dúvida de que a Literatura Afro-Brasileira desempenha papel de destaque em todo esse processo!

O exemplo da escritora Conceição Evaristo, aqui citada, é esclarecedor: a autora defende uma literatura que fale de suas vivências/experiências, e isso inclui a situação marginal, o preconceito, a indiferença e as injustiças vividas pela mulher negra na sociedade brasileira contemporânea. Com incomum maestria e competência, Conceição Evaristo alcança, em sua obra, alto grau de poeticidade e qualidade literária, expondo o orgulho em ser mulher negra e trazendo-nos o legado deixado pelos povos da diáspora africana. Em um de seus contos, “Olhos d´água”, em livro homônimo, a personagem da mãe negra - sentada num trono, como rainha de primeira grandeza, ao lado de suas filhas, autênticas princesas - tem seu cabelo afro enfeitado, trazendo os olhos molhados por águas de mamãe Oxum, articulando, de modo positivo, vários símbolos vinculados ao imaginário e à cultura afrodescendentes.

Nesta jornada sobre a Literatura Afro-Brasileira, alguns poetas preferem tematizar a questão do negro, como são os casos da poeta, professora e ativista negra Serafina Machado (Pereira, 2021, s.p.):

“(...) Sou mulher

Sou Negra

Sou pobre

Sou história.

Escura como a noite.

Escura como o Nilo, jorrando ondas de

Negralma (...)”;

e do poeta Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, um dos fundadores dos Cadernos Negros (Literafro, 2023, s.p.), (revista que existe desde 1978 e que reúne contos e poemas de artistas negros, buscando, por meio de sua produção poética, a descentralização e a descanonização da atual literatura brasileira, almejando sua reconfiguração a partir da memória afro e da identidade negra):

“Quando o escravo surrupiou a escrita disse o senhor: - precisão, síntese, regras e boas maneiras! São seus deveres”.

Essa é uma literatura que, inserida num contexto de educação antirracista, contribui para a prática tanto do letramento racial quanto do afroletramento, dois conceitos bastante apropriados à utilização da literatura afro-brasileira como instrumento de uma formação antirracista.

Em relação ao primeiro - o letramento racial -, pode-se dizer que se trata de um conceito que parte do entendimento de que alfabetização vai além da simples capacidade de ler e escrever, reconhecendo que o processo de letramento envolve o desenvolvimento de habilidades críticas de análise e reflexão sobre questões relacionadas à raça e à identidade racial. Nesse sentido, o letramento racial - em especial o chamado letramento racial crítico - propõe uma abordagem educacional que busca promover a consciência e a compreensão das dinâmicas raciais presentes na sociedade, incentivando a reflexão dos estudantes sobre o tema e buscando ensejar uma atitude crítica frente a questões de discriminação racial, favorecendo a construção de uma sociedade mais igualitária e inclusiva. Dessa forma, o letramento racial crítico torna-se uma ferramenta poderosa para combater preconceitos e promover o respeito e a valorização das diferenças raciais.

Enquanto a alfabetização e o letramento tradicional estão focados principalmente na aquisição de habilidades básicas de leitura e escrita, o letramento racial amplia essa perspectiva, destacando a importância do domínio das questões raciais e sociais para entender e interpretar o mundo ao nosso redor. Por isso mesmo, o letramento racial crítico é um campo de estudos que busca analisar e questionar as relações de poder e hierarquia presentes na sociedade, por meio do desenvolvimento de práticas pedagógicas e de alfabetização. No exterior, destacam-se alguns teóricos que contribuíram para a consolidação desse campo, como Gloria Ladson-Billings, que aborda a importância do letramento racial na educação; no Brasil, alguns dos principais teóricos do letramento racial crítico são Kabengele Munanga, que defende a importância de abordar a diversidade racial no processo de ensino-aprendizagem, e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que enfatiza a necessidade de incluir o letramento racial na formação de professores. Esses teóricos têm contribuído para ampliar a discussão sobre o letramento racial no contexto brasileiro, promovendo uma educação mais crítica e inclusiva.

Ainda no Brasil, a educadora Aparecida de Jesus Ferreira desempenhou um papel fundamental na construção da teoria do letramento racial crítico. Sua abordagem pioneira no campo do letramento e da alfabetização trouxe à tona a importância de considerar o contexto racial e étnico na educação - ao incorporar o conceito de letramento racial em sua teoria, Aparecida Ferreira enfatiza a necessidade de os indivíduos compreenderem e reconhecerem a influência das relações raciais na sociedade, o que vai além de simplesmente aprender a ler e escrever, pois o letramento racial crítico propõe uma análise aprofundada das estruturas sociais e históricas que moldam as percepções e experiências dos indivíduos.

A literatura afro-brasileira desempenha um papel fundamental na construção da teoria do letramento racial crítico - ao ler histórias, romances e poesias escritos por autores afro-brasileiros, somos expostos a diferentes perspectivas sobre identidade racial, experiências de racismo e lutas por igualdade. Essa literatura desafia o pensamento dominante e nos ajuda a desenvolver um letramento racial, ou seja, a capacidade de analisar, questionar e resistir às estruturas e ideologias racistas presentes em nossa sociedade. Ao desenvolver um letramento racial crítico, somos capazes de reconhecer e desafiar o racismo em todas as suas formas, contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária. A literatura afro-brasileira fornece narrativas poderosas que nos ajudam a construir esse letramento racial crítico, ampliando nossos horizontes, desafiando estereótipos e promovendo a reflexão sobre nossas próprias percepções raciais.

Finalmente, a literatura afro-brasileira revela vozes autênticas e perspectivas diversas, desafiando-nos a repensar e redefinir nossa própria compreensão do mundo, tornando-se uma ferramenta valiosa para a construção da teoria do letramento racial crítico (Ferreira, 2017; 2019).

O segundo conceito aqui aludido - o afroletramento - foi amplamente trabalhado por Dandara Ramos (2022), que revela a importância de alfabetizar letrando em relações étnico-raciais e a necessidade de desenvolver essas habilidades nas séries iniciais, em consonância com o que prescreve Magda Soares (2003). Assim, para Ramos (2022, p. 54), “letrar é ensinar a ler e a escrever dentro de um contexto onde a leitura e a escrita tenham sentido e façam parte da vida do aluno”.

Para a autora, a importância do afroletramento já se estabelece no período de alfabetização, com temáticas afrocentradas e títulos de literatura infantil que abordem as relações étnico-raciais, a fim de que alunos/as negros/as possam se reconhecer nos livros e nas histórias, os quais, por sua vez, passam a se constituir como um lugar de autoafirmação e pertencimento da ancestralidade negra. Em outras palavras o conceito de afroletrar pressupõe a descenralização cultural, pois

Ao utilizar em sala de aula obras literárias de autores afro-brasileiros, por meio da contação de histórias e oficinas, estamos permitindo ao educando vivenciar as africanidades dentro do seu cotidiano, a fim de que ele perceba a realidade a sua volta a partir de uma nova perspectiva, posto que o meio literário propicia a apreensão de realidades que até então não existiam para ele, facilitando a construção de uma educação mais crítico-reflexiva e, consequentemente, não preconceituosa (Ramos, 2022, p. 60).

Desse modo, o termo "afroletramento" refere-se à ideia de usar a literatura e a escrita como uma forma de empoderamento e de fortalecimento da identidade dos estudantes afrodescendentes. O afroletramento enfatiza a valorização das experiências culturais e históricas da comunidade negra, assim como o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita.

No Brasil, diversos autores têm trabalhado com o conceito de afroletramento, abordando a importância da valorização da cultura e história afro-brasileira no processo educacional, como Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, renomada pesquisadora brasileira que tem discutido a importância do afrocentrismo e do afroletramento na Educação, além da necessidade de uma educação que valorize a cultura e a história afro-brasileira, promovendo a inclusão e a valorização da identidade negra; Kabengele Munanga, sociólogo e antropólogo que tem se dedicado ao estudo da questão racial no Brasil, discutindo a importância do afrocentrismo e do afroletramento como formas de empoderamento e valorização da cultura e da história afro-brasileiras; ou Ana Maria Gonçalves, escritora brasileira, que aborda em suas obras - como no livro Um defeito de cor - temas relacionados à diáspora africana e à identidade negra no Brasil.

Finalmente, o afroletramento refere-se aos fazeres, aos sentimentos, às emoções ou à falta delas, mobilizando odores e dores, solidões e falta de perspectivas, marginalizações e inclusões da população afrodescendente. Por meio dele, é possível nos perguntarmos acerca das subjetividades do alunado negro, bem como de seu corpo e seu imaginário.

À guisa de conclusão

Mesmo com as poucas contribuições que trouxemos neste texto para o tema da relação entre educação e as questões étnico-raciais, já é possível imaginar o poder da literatura afro-brasileira na promoção do letramento racial e do afroletramento e a importância de sua adoção em sala de aula para a formação antirracista. Como sugerimos antes, não há - neste contexto - como ficar indiferente à “escrevivência” de Conceição Evaristo, à militância de Cuti ou à afirmação identitária de Serafina Machado, entre tantos outros autores. Portanto, mais do que nunca, cumpre perguntar: por que não aprender/ensinar a literatura afro-brasileira? Por que não adotá-la na escola e revelar outra face de nossa produção literária, uma face que ficou, durante muito tempo, submersa por padrões sociais e estéticos consagrados?

Eis algumas perguntas que, se não podem ser respondidas agora, merecem, ao menos, uma profunda reflexão por parte de todos aqueles que, direta ou indiretamente, estejam envolvidos com um projeto de letramento racial e educação antirracista.

Referências

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Recebido: 09 de Setembro de 2023; Aceito: 12 de Setembro de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

Editores Convidados - Dossiê 66: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista; Prof. Dr. Jason Ferreira Mafra; Prof. Dr. José Eustáquio Romão; Profa. Dra. Marcia Fusaro; Prof. Dr. Maurício Pedro da Silva

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