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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.66 São Paulo jul./sept 2023  Epub 19-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n66.25161 

Resenhas

Marina. Lucchesi, Marco. Santo André (SP): Rua do Sabão, 2023.

Ana Maria Haddad Baptista, Doutora em Comunicação e Semiótica1 
http://orcid.org/0000-0003-3468-0158

1Doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica/ PUC/SP, São Paulo, SP - Brasil

Lucchesi, Marco. Marina. Santo André (SP): Rua do Sabão, 2023.


Ao atravessarmos a leitura de um livro com a responsabilidade de "apresentá-lo" a um público, diversos são os caminhos para que isso aconteça. Podemos, como se sabe, isolar o livro como se o autor não tivesse outros. Ou, até, escaparmos de contextualizações. Mas no caso de um livro cujo autor é da envergadura d Marco Lucchesi, tal procedimento seria, no mínimo, desonesto. Ou uma postura que iria contra qualquer princípio de sensibilidade. Reforçaríamos, ainda mais, a fúria irônica de Sartre: "É preciso lembrar que a maioria dos críticos são homens que não tiveram muita sorte na vida (...) O crítico vive mal; sua mulher não o aprecia como seria de se desejar, seus filhos são ingratos, os fins de mês são difíceis" 1.

Sejamos justos e lúcidos. Marco Lucchesi, já faz bons anos, destaca-se no cenário nacional e internacional por um percurso literário e profissional, digno de ser comentado se pensarmos em um escritor que, de fato, desde sempre se dedicou à literatura. Na prática, a difundi-la pelos mais variados meios. O escritor brasileiro que pertence à ABL desde seus quarenta e sete anos e, posteriormente, a presidiu durante quatro anos. Atualmente, preside a Fundação Biblioteca Nacional.

Jamais deixou de lado traduções de autores, contemporâneos e clássicos, de todos os cantos do mundo. Diga-se de passagem, que Marco Lucchesi domina mais de vinte idiomas. O poeta frequenta Babel desde criança. Com isso sobe e desce suas escadas com a serenidade e agilidade dos grandes sábios. Sem esnobismos. Com a mesma naturalidade do desabrochar espontâneo de um lírio da paz numa manhã que pouco promete. Por que omitir que Marco Lucchesi criou uma língua própria? Ou seja, a língua Laputar. Recentemente publicada em sua terceira edição juntamente com a quarta edição de Hinos Matemáticos. Uma obra do poeta em que conceitualmente (o enfoque não é pedagógico) coloca em evidência a beleza da matemática e conduz, uma vez mais, a relações entre ela e a poesia.

Paisagem Lunar, em sua segunda edição, é um verdadeiro tratado filosófico que reúne sínteses epistemológicas, sob a forma, inclusive, de aforismos, em que nos leva a refletir, uma vez mais, os delicados liames que entrelaçam literatura e filosofia. Em Domínios da Insônia a reunião da maior parte de poemas do autor, que por sua vez, dialogam com fontes contemporâneas e clássicas quase inimagináveis, assim como o habitual diálogo do poeta com inúmeras fontes artísticas, filosóficas e científicas. Quando Anna Luiza Cardoso, numa entrevista a Marco Lucchesi, lhe pergunta qual face literária predominava em seu conjunto de obras, responde: "Creio que todas se articulam de modo prismático. Um jogo de espelhos em que as partes se convocam e se entrelaçam. Mas a poesia é o lugar do encontro. O coro de vozes. O começo do processo, o sentimento do mundo e suas intensas ressonâncias. A poesia em tudo. Mesmo quando em outro gênero literário ou endereço. As fronteiras caíram. A busca do silêncio e da profundidade me leva a ruídos e superfícies" 2. Ecos..."Tiro do chão aromas do silêncio. Mas é preciso cultivá-los" 3.

Convém lembrar que Marco Lucchesi não foi nomeado, em janeiro de 2023, pelos altos escalões governamentais, para presidir um dos mais importantes espaços de memória do cenário mundial, por um simples capricho ou um acaso. O autor, na teoria e na prática, sempre esteve presente em bibliotecas. Haja vista, somente para ficarmos com um exemplo, seu romance O Bibliotecário do Imperador. Na prática, sempre foi uma constante e invariável em sua trajetória de vida, atuar em projetos sociais e culturais visando distribuição de livros, formação de bibliotecas nos mais variados espaços. Isto é, escolas, comunidades nacionais (das mais próximas às mais distantes). A geografia das articulações de distribuição de livros do autor não conhece limites. Fronteiras. Inclui, inclusive, a Antártica. Como disse, em seu discurso, a ministra do supremo Rosa Weber, ao visitar, recentemente a Biblioteca Nacional: "No ano em que se registra um século da morte de Rui Barbosa, e a partir do legado deixado por este brasileiro invulgar, de múltiplos talentos, notável jurista, jornalista e político, temos a oportunidade de refletir sobre a construção de nosso país no preparar do futuro que se desenha hoje. E olhar para o passado é olhar para a nossa história, nossa cultura, nossa memória. Rui, a exemplo do poeta Marco Lucchesi, atual presidente da Biblioteca Nacional, também foi um imortal (...) A partir do exemplo e trajetória desses dois extraordinários brasileiros o passado e o presente se encontram no dia de hoje enquanto história e celebram a reverência à arte, à literatura, à poesia e à estética deste Brasil multicultural, que se forja a partir da diversidade étnica e plural das suas formas, das suas cores e da essência de sua gente, em tudo o que nos diz respeito 4 ".

Em síntese: optamos, neste texto, por situar Marina no conjunto de obras do autor. Localizá-la, à medida do possível, no contexto atual. Ouçamos Marco Lucchesi: "Mais do que cem páginas perdeu o livro. Queria que as cartas falassem por si mesmas. Guardado, ou esquecido, o manuscrito, dentro de dois arquivos de papel: com recortes de jornal, fotos e postais. Anos (e páginas) depois, a trama da linguagem e a estrutura mudaram a ideia original. Passou de romance a novela" 5. Uma das primeiras reflexões a que nos submete Marina é, em grande parte, o conceito de novela e romance. Apesar de sabermos que as tipologias não deveriam entrar dentro de um sistema rígido classificatório, elas são didática e conceitualmente importantes. Na verdade, o próprio autor já nos define o que é uma novela. No entanto, levanta, queiramos ou não, questões ligadas a ela. Gênero, sabe-se, que teve grande repercussão na Itália e na França.

Ouçamos Marco Lucchesi, no prefácio intitulado, Dez novelas, um poeta, do livro organizado por ele, As dez melhores histórias do Decamerão: "O Decamerão de Boccaccio é aquele capítulo essencial da História do Ocidente. E me refiro ao núcleo do Humanismo, aos prelúdios do Renascimento. Trata-se da reconquista da prosa, a narrativa do mundo e sua translação, em torno da palavra"6. Vale lembrar que Erich Auerbach também nos oferece uma verdadeira estética da novela ao indicar historicamente um belo percurso do gênero. Novela, nos leva, inclusive, à radionovela, fotonovela, telenovela. Gêneros importantes que indicam aproximações e derivações para uma riquíssima discussão sobre o assunto. Gêneros que tiveram grande importância, inclusive, para a Psicologia, Sociologia e a História. Todavia, imprescindível lembrar que: "A História não se repete, não tem sósias, nem se dispõe a um eterno retorno, projetada em dimensões binárias. A História não guarda tesouros latentes à espera de um resgate unívoco" 7.

Uma novela? Em pleno século XXI? O que leva o autor a escrever uma novela? Uma das respostas é clara. Ouçamos Ciprian Valcăn: "Marco Lucchesi é um espírito da categoria dos hereges. Vem guerreando contra as fórmulas ideológicas sempre prontas a engoli-lo, recusando teimosamente suas intenções totalizadoras, sua fé irracional em terem descoberto a verdade última, verdade essa capaz de pôr fim à história. Ele tem procurado sempre ser desatual, ou seja, manter-se à distância dos caprichos e da tirania da moda, pensar com perseverança à sua própria maneira, sem que os aplausos ou as vaias da plateia influenciem de alguma maneira as suas preocupações" 8. Nessa medida, Lucchesi continua "à distância dos caprichos e da tirania da moda", isto é, Marina é uma novela epistolar!

Ouçamos o poeta, "A correspondência entre Marina e Celso remonta à década de 1990. Interrompida, não sei por qual motivo, foi retomada anos depois. Poética da dissonância. Encontro e dispersão. Talvez amor, que em toda a parte está, mas não se encontra em parte alguma. Amor, que morre ao traduzir-se e quando morre, se traduz" 9. Temos mais uma indagação cabível: O que é uma carta? "...cartas abrem um espaço descontínuo, onde se abrigam os luzeiros da palavra num atlas celeste. Pequena aurora dos filósofos" 10. Entre uma carta e outra a descontinuidade de um diálogo. Talvez a espera. Ecos distantes de Marguerite Yourcenar"...entre mim e esses atos de que sou feito, existe um hiato indefinível"11. E quando uma resposta chega...o diálogo recomeça.

Mas, sobretudo, quando "aurora dos filósofos" por que não pensarmos, por exemplo Foucault, no que aponta em termos de uma hermenêutica do sujeito em que as cartas entre os filósofos antigos, inclusive, eram fundamentais? Sabe-se: as cartas estabeleciam um exercício para se pensar sobre si! E entre os filósofos mais antigos esclarecer quem estaria mais avançado em busca das virtudes simultaneamente a uma recordação das verdades entre destinatário e remetente. A famosa e a eterna chama que clama a busca da verdade para a vida. Em outras palavras: as cartas possuem uma história em que no contexto contemporâneo, cada vez mais, ficam distantes e sem memória. Portanto, Marina, sob nossa perspectiva, abre um espaço distinto e precioso em que e-mails e outras mídias parecem reinar em tempos, talvez, nunca tão desmemoriados. Mas já que estamos nas camadas do amor, como não lembrar das cartas de Abelardo e Heloísa? Como esquecer a famosa carta de Madalena a Paulo Honório, em São Bernardo, cuja leitura parcial por estar aos pedaços, faltando uma página, levou o ciumento a um arrependimento que jamais foi finalizado? "Sobre a banca de Madalena estava o envelope de que ela me havia falado. Abri-o. Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Lia-o, saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita. Faltava uma página: exatamente a que eu trazia na carteira, entre faturas de cimento e orações contra maleitas que a Rosa anos atrás me havia oferecido"12 . E as cartas entre os próprios escritores durante séculos e séculos? Lucchesi: "Preciso do outro para alcançar-me" 13. Sim. "Atlas celeste". Sim.

9/12/90

O sagitário, seu símbolo, diletíssimo Marco, exprime

o nexo entre a terra e a poesia-céu. A violenta tensão do

impulso do arco é um movimento intenso e perigoso.

Dividir a tensão entre os extremos seria talvez salutar.

Mas se o fascínio da poesia-céu é irresistível, a distensão

será inevitável. Aceite seu belo destino.

Grande beijo,

Nise 14

Querido Marco.

A beleza e a substância do seu extraordinário texto

de apresentação de meu 'O Universo da Cor' me fez levitar acima

dos demais mortais.

Quando eu baixar à terra talvez tenha condi-

ção de comentá-lo.

Com toda a emoção de Jamile, o grande abraço re-

conhecido, do seu Israel.

Niterói, 9-6-2003 15

Marina é uma novela-epistolar-prosa-poética que indica o quanto a literatura, cuja morte é frequentemente anunciada, se mantém soberana, acima dos supostos determinismos - em grande parte pessimistas - contextuais, quando em mãos de um autor, que jamais decretou o seu fim, de envergadura. A começar da estrutura intrínseca à novela. São 39 cartas... sob alguns ecos de Hermann Broch: 16 "desdobrando o tempo até a intemporalidade, de tal modo que ele, ao consumir qualquer duração, com crescente realidade, abre e transpõe fronteira após fronteira, a mais interior e a mais exterior". Cada uma delas possui uma síntese. Quase uma ementa do que virá depois: "Preservação das tartarugas. Sobre a importância de polir as lentes. Leitura e previsão do horóscopo. Metáfora do corpo em lua cheia"17. E a partir da síntese a carta propriamente dita. Altíssima e fascinante tensão leva o leitor à leitura da próxima. Os silêncios e lacunas consagram a estética de Lucchesi. Entretanto, desesperam o leitor em busca da continuidade de "...um dos mais belos livros de amor, um moderno Cântico dos cânticos, em que o divino se revela através do humano. Além de se inspirar no amor entre um homem e uma mulher, Marina vai invocando o amor mútuo entre poeta e palavra. Amor escrito nas cartas de Celso a Marina, a um sentimento antigo, adolescente, que renasce dentro do novo coração de um novo homem" 18. A tensão não tem limites. O leitor desprevenido talvez não note que a carta 12 dá um salto de descontinuidade à 14. Marco Lucchesi, tal qual Borges, entrelaça verdadeiras armadilhas para os leitores. Nada é gratuito na literatura do autor. Onde estaria a carta de número 13? Foi jogada? Foi despedaçada? Foi perdida? Qual seria, sempre fica uma indagação misteriosa, o motivo? Sabe-se que treze, para muitas culturas, significa um número que indica mau presságio. Uma leitura possível, para a inexistência da carta 13, seria o conteúdo da carta 14: "Uma brecha nos muros, finalmente. Palavras desarmadas, sem apelo. Para onde me levas, densa noite? Clarão de negro sol não passa nunca. Fosse bastante pronunciar a noite. É preciso enfrentar a travessia. Como arrancar a pedra da loucura? Fomos arremessados para longe, levados pela força do destino. Talvez adivinhasse a despedida. Encontro-me num campo de ruínas. Preciso dos raios de sol. Como era mesmo a ópera de Mozart? " 19. Talvez: "Destino acima do destino" 20.Tudo indica, para não incorrermos numa leitura arriscada demais e nos ardis de uma superinterpretação, como diria Eco, e sem referentes, que há uma situação de perigo. Tanto interno quanto externo. Na 12 e na 14. Enfim, a carta 13 inexiste.

Quando o leitor, avidamente, busca o desfecho da história de amor, surge, grande surpresa: uma carta de Marina. A carta de número 32. "A casa da praia foi demolida?! Era tão bela e eu te imaginava lá dentro. Linda casa, lindo lugar, linda praia! E a vista da janela era impagável! (...) Não me esqueci de nada, da paisagem deslumbrante e das pessoas que marcaram a minha vida. Espero voltar algum dia. Nada será como antes, é claro. Mas resta sempre descobrir quem somos" 21. Quando se conhece o conjunto de obras de um autor, impossível não ouvir alguns ressoares: "A casa da rua dos Ipês foi derrubada. E brilha, todavia, enquanto é noite. Não me faltam constelações da memória. Faz escuro, mas a manhã não demora, tão jovem ainda. As ondas seguem seu ofício. Brilha o Sol na rua dos tempos idos. A praia me pertence. E a cada grão de areia, um mundo novo. Flutua a ideia de infinito junto ao mar " 22. A carta de Marina cria a expectativa de que virão outras da mesma remetente. Mas Lucchesi não concede. Temos acesso somente a uma única carta dela. Isso, seguramente, aguça os nossos sentidos e eleva a tensão do livro. O desfecho final da fascinante história de amor é incrivelmente surpreendente. E isso acontece na carta 39, ou seja, a última: "Eu mergulhei num tempo inabordável. Achados e perdido. A luz feroz do encontro que não houve. Uma promessa aberta, inconclusa. Inquieta obsessão, a despedir-se de teus olhos, que me roubaram deste chão de iniquidades. Crisântemos esparsos. A missa em dó menor. Marina, como Inês, é morta. Escrevo todas as cartas para ressuscitá-la. Ou para morremos juntos. E para juntos recuperarmos a herança imprecisa do futuro. Mundo sem Deus. Com esplêndido futuro luminoso. Vinte anos se passaram, cobertos de silêncio. Um corpo que se agrega à selva dos fenômenos. Deu-se por fim a glória de um destino. As aves migratórias são inquietas" 23. Sim. Desfecho imprevisível: Celso escreve para uma mulher que já está morta. Ponto alto do livro porque a morte é a consciência fatal e irreversível da finitude. E a imprevisibilidade do desfecho se sobrepõe, ou, intercala-se, se justapõe, queiramos ou não, à leitura que havíamos feito do livro.

A morte de Marina muda a primeira leitura. O autor nos leva a reler todas as cartas sob outra perspectiva. Os leitores não têm escapatória. Não percamos de vista as palavras do autor na carta de número 0..."No escuro e no silêncio, as cartas ardilosas não desistem do eterno retorno da leitura" 24. De fundo, novamente, os ressoares de Broch: "O nada nunca alcançável, a morte fecunda/A que apenas o acaso é semelhante?/ Toda a lei se transforma em acaso, na queda do abismo,/E também tu, ó destino, te tornas acaso, para o acaso/ Subitamente para o crescimento e os ramos do conhecimento/ rebento a nascer do rebento, desintegram-se de súbito/ em destruída linguagem, isolado em objeto,/isolados na palavra, desfeita a ordem, desfeitas a verdade, a comunhão e a unidade" 25. Mas Lucchesi tem uma boa resposta: "A linha de uma vida é complexa. Não há um modo retilíneo, irreversível, contra um conjunto de incerteza e digressão. O mundo é uma teia emaranhada. Nossos passos traduzem o devir. Nenhum fato é isolado. Tudo é sistema" 26.

Diante do exposto segue-se uma questão importante! A quais ritmos somos levados pelos ardis arquitetônicos labirínticos de Marina ? Os ritmos da obra são predominantemente oscilantes. Deliciosamente oscilantes porque, entre outros fatores, os sons de fundo, em grande parte determinam o ritmo. Nessa medida, acompanhamos, entre idas e vindas, quase bamboleantes, "baleias, bicicletas, corpo feminino em fuga, frios temporais do Atlântico, atravessar a maresia, nademos juntos, não para de chover, ando nas rochas, o vento move as árvores, mar despenteado, terremoto, Mozart, um piano sobrenada na memória, piano voador, selva selvagem que sibila ao vento" e mais centenas de imagens expressivas que dão um tom incrível ao movimento. Ao ritmo do livro. Um ritmo em que as pausas, lacunas e os silêncios predominam. Afoga-se, com isso, a leitura literal. Recua. Silenciosamente. E quando, nós leitores, voltamos à superfície, percebemos que nossos próprios relógios entraram em colapso. O tempo cronológico destoa, descaradamente, de nossos relógios internos. Silêncios, pausas e lacunas dão um aroma muito especial à ausência em si mesma que exige do leitor: imaginação, fantasia, criatividade. Um processo muito presente nos instantes privilegiados que quando escapam, impossível retornar a eles. Por definição como o tempo. Irreversíveis.

A densidade poética possui ápices que não podem ficar omitidos.

Porque, Marina, os relógios não morrem.

Não se dissipa um grão de areia, nem mesmo

a gota de suor no rosto perolado.

A eternidade aclara a contingência.

Ronronam os gatos de outrora.

E meus diletos cães põem-se a latir.

Poço

infinito.

Abismo

raso. 27

Densidade poética em continuidade + sutilíssima curvatura erótica + "Eros: quando promete ao chegar, desmente ao partir" 28. E assim 29:

Carta de amor (desesperado) que rasguei:

"...pousa nos lábios uma estrela...secreta harmonia...deserto amanhecer...teu corpo inelutável...lagoa iluminada e seios úmidos...bosque sutil...pequena morte...jogo de espelhos e palavras...seu rosto desenhado no meu peito...à mesa um copo de absinto...duas palavras e voltamos a dormir...infame precipício..."

Num ressoar distante...muito distante...Yu Xuanji 30...

Carta a um amigo

Vastas, inquietas, as ruas sem bons amigos

Passam-se os dias, envergo o melhor vestido

Frágil no espelho é meu rosto, os soltos cabelos

Cobre-me em bruma leve o perfume do incenso

É primavera, o desejo encontra-me agora

Vejo-me à imagem de ilustres divas de outrora

À porta jovens ditosos param seus carros

Vergam salgueiros: à hora, flores se abrem.

Marco Lucchesi é um escritor, sabidamente, como exposto no início deste texto, e como "comprovam" suas obras, cuja literatura dialoga com as mais diversas fontes de outros saberes, nunca é demais lembrar, conceitualmente. Ou seja, tem propriedade profunda em relação aos seus referenciais que são se prestam a meras epígrafes com pretensos aromas de erudição (elementos em alta nos dias de hoje entre os famosos representantes da 'tudologia').

As múltiplas perspectivas de tempo em Marina, oceanicamente , "flutuam num domínio atemporal"31, como já colocado, anteriormente, inclusive, na esteira de Broch. Questões de temporalidade cuja concretude se apresentam como sínteses epistemológicas, que mais direta ou indiretamente, se fazem presentes nas obras de Lucchesi. Nessa medida, reforçando o quanto a sua literatura atravessa a filosofia dispersando fronteiras rígidas.

Sob ecos mais explícitos, entre muitos outros diretamente ligados à filosofia, de Parmênides e Emanuele Severino, a marcação temporal de Marina nos mostra o quanto o tempo é uma consubstancialização do pensamento, como definiria Jankélévitch. O que é o tempo? "Um corpo em fuga". O tempo seria "um espaço descontínuo"? Em que medida estamos imersos na "jaula do presente" ? O que é duração em termos de Bergson? "Uma viagem de dez metros levou décadas". "Eis, em resumo, os últimos vinte, ou duzentos, anos". "O que são vinte anos no tempo geológico? Não passam de um minuto. Gota no mar, um quase nada, fogo-fátuo". Cronologias? "Passaram-se vinte anos e dois gatos desde a última carta. Perdi a conta dos relógios que morreram". "Presa da escuridão, o dia amanhece". Eternidade? "Meio-dia". "O agora é um índice de eternidade". Tempo cíclico? "retorno da leitura". "Retorno do eterno retorno".

Para não ser mais uma vítima de Sartre, não devemos cair, entre outros fatores que abreviam nosso espaço, nas sutis armadilhas da exaustão quando nos propomos a apresentar um livro. Contudo, não podemos deixar de lado o quanto Marco Lucchesi, enquanto grande escritor que é, vai ao encontro, em grande parte, da cosmologia de Peirce. Talvez, uma das mais abrangentes em termos de contemporaneidade. Que ao menos responde, mesmo de forma provisória, algumas insuficiências conceituais a que estamos, miseravelmente, submetidos. A filosofia de Peirce coloca a questão da verdade de forma, talvez, satisfatória. Ou seja, não existem verdades definitivas. Existiria sim, um mundo, ao que tudo indica, que caminha para ela. Lembremos que em Marina a todo momento Marco Lucchesi, nos faz refletir a tal respeito. Lucchesi coloca indagações que não são respondidas. Joga-as para que seu leitor reflita juntamente com ele.

Na cosmologia de Peirce sujeito e objeto estão juntos. Acredita ele, de forma severamente fundamentada, este grande estudioso de Kant, Schelling e Schiller - naturalmente entre outros - que existe uma atemporalidade entre sujeito e objeto que os faz ficar em perfeita simetria. Existiria uma descontinuidade temporal em que passado e futuro desaparecem. Tal descontinuidade se daria entre o interno e o externo.

Nessa medida, rompe-se o tempo objetivo, assim como na subjetividade existiria um hiato de temporalidade na própria consciência e que, por incrível que pareça, ficaria isolado da experiência de alteridade do mundo. Enfim, pura qualidade na unidade. O agora como pura presentidade. Sob tal perspectiva, Marina se mostra como um exemplo fascinante do denominado continuum de possibilidades. Portanto, sentimento de liberdade indefinida e infinita que somente poderá ocorrer sob o domínio de um hiato interior de temporalidade. Em Marina, assim nos parece, dissolvem-se, conceitualmente, as famosas dicotomias entre subjetividade e objetividade. Ouçamos Lucchesi: "Sujeito e objeto não se sustentam numa oposição dramática. Uma incursão de subjetividades, a descoberta especular de um conteúdo crescente, de um contínuo insolúvel, que os afasta e os aproxima" 32.

Para a leitura de um livro como Marina e das verdadeiras obras artísticas em geral, por lembrar veementemente de Ivo Assad Ibri , não basta um olhar apenas referencial. Requer-se, e isso não está disponível em todas as almas, um certo estado poético. Graus de sensibilidade estética. Cremos que somente desta forma poderemos, de fato, atravessar sentidos mais profundos e agudos daquilo ao qual nos dispusemos a compreender.

P. S. 1 Não esquecer as mãos sujas de Sartre e os sem-culpa (Schuldlosen) de Broch. 33

P. S. 2 [Tosse, 2020

Não tenho febre. Olho de longe as pedras de Itacoatiara. Deito-me no chão e olho o azul do céu. A passagem das nuvens me fascina desde a infância. Como se um deus legislasse o azul. Uma tosse de leve. Páginas de Boccacio.] 34

1Sartre, Jean-Paul. O que é a literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p. 32.

2Lucchesi, Marco. Poeta do Diálogo. São Paulo: Tesseractum/ Fundarte, 2022. p. 139.

3Lucchesi, Marco. Marina. Santo André (SP): Rua do Sabão, 2023. p. 26.

5Marina. p. 13.

6Lucchesi, Marco: organização e apresentação. As dez melhores histórias do Decamerão/Giovanni Boccaccio. Tradução de Raul de Polillo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. p. 7.

7Lucchesi, Marco. Paisagem Lunar. São Paulo: Tesseractum, 2023. p. 73.

8Lucchesi, Marco. Paisagem Lunar. In prefácio. p. 7.

9Idem, Marina, p. 13.

10Idem.

11Yourcenar, Marguerite. Memórias de Adriano. Tradução de Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 36.

12Ramos, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 78.

13Marco Lucchesi. Carteiro Imaterial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016. p. 16.

14Silveira, Nise da. Viagem a Florença: carta de Nise da Silveira a Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 29.

15À sombra da amizade: cartas de Israel Pedrosa a Marco Lucchesi. Niterói: Eduff, 2021. p. 105.

16Broch, Hermann. A Morte de Virgílio. Tradução de Maria Adélia Silva Melo. Lisboa: Relógio D'Água, 2014. p. 101.

17Lucchesi, Marco. Marina. Santo André (SP): Rua do Sabão, 2023. p. 31.

18Miranda, Ana. In Posfácio Marina, p. 101.

19Marina, p.45.

20Lucchesi, Marco. In: Prefácio da obra Doutor Jivago de Boris Pasternak. Tradução de Zoia Prestes. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014. p. 12.

21Marina, p. 81.

22Lucchesi, Marco. Paisagem Lunar. São Paulo: Tesseractum Editorial, 2023. p. 157.

23Marina, p. 95.

24Marina, p. 15.

25Broch, Hermann, p. 160.

26Marina, p. 27.

27Idem, p. 96.

28Lucchesi, Marco. Paisagem Lunar. p. 60.

29Idem, p. 86.

30Xuanji, Yu [844-869]. Poesia Completa. Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. São Paulo: UNESP, 2011. p.119.

31Marina, p. 49.

32Paisagem Lunar, p. 76.

33Paisagem Lunar, p. 233.

34Lucchesi, Marco. Adeus, Pirandello. Santo André (SP): Rua do Sabão, 2022. p. 64.

Recebido: 05 de Setembro de 2023; Aceito: 05 de Setembro de 2023

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