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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.67 São Paulo oct./dic 2023  Epub 19-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n67.23600 

Artigos

DESAFIOS E ESTRATÉGIAS DE UM GRUPO DE EDUCADORAS DE ESCOLA PÚBLICA DURANTE O PERÍODO DE ENSINO REMOTO NA PANDEMIA

CHALLENGES AND STRATEGIES OF A GROUP OF PUBLIC-SCHOOL EDUCATORS DURING THE PANDEMIC REMOTE TEACHING PERIOD

DESAFÍOS Y ESTRATEGIAS DE UN GRUPO DE EDUCADORAS DE ESCUELAS PÚBLICAS DURANTE EL PERÍODO DE EDUCACIÓN REMOTA EN LA PANDEMIA

Kátia Renata Quinteiro Juliano, Mestra em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-4146-2389

Cristine Gabriela de Campos Flores, Doutora em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-9336-8557

Cledes Antonio Casagrande, Doutor em Educação3 
http://orcid.org/0000-0003-1499-1661

Luciana Backes, Doutora em Educação4 
http://orcid.org/0000-0003-1395-122X

1Mestra em Educação, Secretaria Municipal de Educação de Canoas/RS - SME, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil

2Doutora em Educação, Universidade La Salle - Unilasalle, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil

3Doutor em Educação, Universidade La Salle - Unilasalle, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil

4Doutora em Educação, Universidade La Salle - Unilasalle, Canoas, Rio Grande do Sul - Brasil


Resumo

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que buscou entender quais os principais desafios enfrentados por um grupo de educadoras durante a pandemia de COVID-19, bem como identificar as estratégias pedagógicas exploradas, no período de ensino remoto, para viabilizar os processos de ensino e de aprendizagem dos estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental de uma Escola Municipal, em Canoas/RS. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório, no formato de estudo de caso, cuja coleta de dados ocorreu a partir de entrevistas semiestruturadas com as docentes titulares das quatro turmas de quarto ano da instituição. Os dados foram interpretados com base na técnica de Análise de Conteúdo, emergindo quatro categorias. As categorias ‘falta de acesso à educação’ e ‘mediação pedagógica em tempos de distanciamento social’ expressam os maiores desafios encontrados pelas educadoras durante as aulas remotas. As categorias ‘busca pela interação e manutenção de vínculos’ e ‘trabalho colaborativo’ denotam as estratégias pedagógicas utilizadas pelas entrevistadas para enfrentar as dificuldades desse período. Os resultados também evidenciam a necessidade de políticas públicas que busquem auxiliar no desenvolvimento de práticas pedagógicas adaptadas à nova realidade e atenuem os déficits de aprendizagem acumulados após o período de aulas remotas.

Palavras-chave: educadores; educação pública; ensino remoto; prática pedagógica.

Abstract

This article presents the results of a research that aimed to understand the main challenges faced by a group of educators during the COVID-19 pandemic, as well as to identify the pedagogical strategies explored, in the period of remote teaching, to make viable the processes of teaching and learning of students in the 4th grade of Elementary School at a Public Elementary School in Canoas/RS. It was a qualitative and exploratory research, in a case study format, whose data collection took place from semi-structured interviews with the teachers of the four fourth-year classes of the institution. Data were interpreted based on the Content Analysis technique, emerging four categories. The categories 'lack of access to education' and 'pedagogical mediation in times of social distancing' express the biggest challenges faced by educators during remote classes. The categories 'search for interaction and maintenance of bonds', and 'collaborative work' denote the pedagogical strategies used by the interviewees to face the difficulties of this period. The results also highlight the need for public policies that seek to assist in the development of pedagogical practices adapted to the new reality and mitigate the learning deficits accumulated after the period of remote classes.

Keywords: educators; pedagogical practice; public education; remote teaching.

Resumen

Este artículo presenta los resultados de una investigación que tuvo como objetivo comprender los principales desafíos enfrentados por un grupo de educadoras durante la pandemia de COVID-19, así como identificar las estrategias pedagógicas exploradas, en el período de educación remota, para viabilizar los procesos de enseñanza y aprendizaje de los estudiantes del 4º año de la Enseñanza Básica de una Escuela Municipal de Canoas/RS. Se trató de una investigación cualitativa y exploratoria, en formato de estudio de caso, cuya recolección de datos ocurrió a partir de entrevistas semiestructuradas con los profesores de las cuatro clases de cuarto año de la institución. Los datos fueron interpretados con base en la técnica de Análisis de Contenido, emergiendo cuatro categorías. Las categorías 'falta de acceso a la educación' y 'mediación pedagógica en tiempos de distanciamiento social' expresan los mayores desafíos que enfrentaran las educadoras durante las clases a distancia. Las categorías 'búsqueda de interacción y mantenimiento de vínculos' y 'trabajo colaborativo' denotan las estrategias pedagógicas utilizadas por los entrevistados para enfrentar las dificultades de este período. Los resultados también destacan la necesidad de políticas públicas que busquen coadyuvar en el desarrollo de prácticas pedagógicas adaptadas a la nueva realidad y mitigar los déficits de aprendizaje acumulados tras el periodo de clases a remotas.

Palabras clave: educadores; educación pública; educación remota; práctica pedagógica.

Introdução

Estou certo de que nos próximos tempos esta pandemia nos dará mais lições e de que o fará sempre de forma cruel. Se seremos capazes de aprender é por agora uma questão em aberto (Santos, 2020).

Os educadores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental necessitam, de modo geral, conhecimento epistemológico e metodológico, sensibilidade e competência para superar os desafios cotidianos da sala de aula, explorando a complexidade do dia a dia para contribuir com os processos de aprendizagem dos estudantes. Entretanto, com o advento da pandemia de COVID-19, esses educadores passaram a viver um drama diário, com inúmeros desafios adicionais, especialmente o de compreender como ocorre a interação e a mediação pedagógica com os estudantes por meio de atividades remotas ou não presenciais. Os estudantes, que antes podiam estar presencialmente na escola, agora dependiam de tecnologias digitais e de acesso à internet para acompanhar as aulas e para se comunicar com os educadores e colegas. Esse novo contexto transformou repentinamente a dinâmica escolar e contribuiu para alterar, de modo significativo, o processo de ensino-aprendizagem e a compreensão do fazer docente.

Além disso, a crise sanitária que se instaurou nos anos de 2020 e 2021 trouxe novos desafios relacionados tanto à utilização de ambientes e artefatos digitais, como a outros fatores de ordem pedagógica, social e econômica. Entre eles, pode-se citar a perda de postos de emprego (G1, 2020), a instabilidade alimentar, o aumento da violência doméstica (Ibrahin; Borges, 2020), a “[...] violência urbana, violência estatal, violência simbólica [...]” (Sales, Nascimento, 2020, p. 21), e outros problemas sociais, que se agravaram nesse período.

Considerando o contexto brevemente esboçado, foi desenvolvida uma pesquisa com o objetivo de entender quais os principais desafios enfrentados por um grupo de educadoras durante a pandemia de COVID-19, bem como identificar as estratégias pedagógicas utilizadas pelas docentes, no período de aulas remotas, para viabilizar os processos de ensino e de aprendizagem dos estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental, localizada na cidade de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul. O estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, com objetivo exploratório, do tipo estudo de caso. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as educadoras pertencentes às quatro turmas de 4° ano da instituição participante da pesquisa. A análise dos dados da pesquisa foi realizada a partir da Análise de Conteúdo, de Bardin (2006).

O recorte teórico desta pesquisa compreende a educação como um processo formativo vital ao ser humano, que implica processos de socialização e individuação; a concepção da ação docente enquanto práxis, ou seja, a ideia de que o ato educativo une reflexão teórica e prática; o entendimento de que o processo de aprendizagem da criança se dá a partir de interações com os objetos ao seu redor e com seus semelhantes. Além disso, destaca-se a percepção de que a pandemia não afetou todos os seres humanos de forma igualitária, mas que houve grupos mais vulneráveis tanto à contaminação e ao adoecimento em decorrência do vírus, quanto aos impactos negativos de ordem econômica e social, dentre os quais pode-se citar a dificuldade dos alunos de escolas públicas, especialmente em regiões periféricas, de terem acesso a uma educação de qualidade durante o período de isolamento social.

Para melhor retratar a pesquisa realizada e atender ao objetivo proposto, este artigo está organizado em quatro seções. A primeira apresenta o referencial teórico que fundamenta a pesquisa. A segunda parte descreve a metodologia do estudo. A terceira apresenta e discute os dados oriundos das entrevistas. A última contempla as reflexões e considerações finais acerca dos resultados da pesquisa.

Aporte teórico

Marques (1996, p. 51) define a educação como um “fenômeno primordial e básico da vida humana, congênere e contemporâneo da própria vida em todas as suas fases e situações”. Na compreensão deste autor, a educação pressupõe processos progressivos de aprendizagem, de apropriação e reconstrução constante da cultura, do mundo e de si mesmo. Nessa acepção, a aprendizagem pode ser entendida, “não como simples adaptação ao que existe, ou mero acréscimo de conhecimentos e habilidades, mas posta na ótica de concreta configuração, reconstrução autotranscendente, do ser homem singularizado entre os homens” (Marques, 2000, p. 10).

Em conformidade com Marques (1996), compreendemos a educação em uma perspectiva ampla, como um processo vital do ser humano, relacionado ao processo de formação dos sujeitos, como o define Charlot (2006, p. 15): “[...] a educação é um triplo processo de humanização, socialização e entrada numa cultura, singularização-subjetivação. Educa-se um ser humano, o membro de uma sociedade e de uma cultura, um sujeito singular”.

Como destacado na citação anterior, educar implica humanizar, visto que nos tornamos humanos por meio de processos de aprendizagem contínuos, no transcorrer de toda a nossa vida. Isso ocorre porque, diferente de outros animais, os humanos não nascem prontos e necessitam aprender a ser ‘seres humanos’, um processo que pressupõe viver em comunidade e desenvolver uma identidade individual. Nesse sentido, destaca-se o processo socializatório, ou a necessária ação formativa do grupo social sobre o indivíduo (Casagrande, 2014). Ser parte de uma sociedade determinada, com suas estruturas, costumes, regras, formas de vida, culturas e modos de organização, é condição para que o indivíduo humano consiga desenvolver um eu, uma identidade pessoal (Mead, 1967). Desse modo, a partir da vida em sociedade, um conjunto de competências sociais, habilidades, valores e conhecimentos são aprendidos e desenvolvidos individualmente. No que tange à individuação, aprender e formar-se levam ao desenvolvimento de uma identidade pessoal cada vez mais descentrada e à competência de assumir a própria vida de modo responsável (Habermas, 2003).

Além disso, conforme Charlot (2006), para que um projeto pedagógico seja efetivo são necessárias ações concretas dos agentes e participantes do processo educativo: educadores, educandos e instituições educacionais. Ou seja, a educação é tarefa social e individual ao mesmo tempo. Implica a formação do sujeito e da sociedade em uma gama de ações coletivas, coordenadas e intencionais.

A Pedagogia é aqui entendida como a ciência do educador, tendo como tarefa primordial estabelecer um elo entre a teoria educacional e a prática educativa. Para Marques (1996, p. 87), a Pedagogia é uma área de saber cujo conhecimento “se constrói audazmente ao fazer-se a educação e como diretriz, sempre provisória, para as decisões exigidas a cada passo e momento e no interior do próprio processo da educação”. Ou seja, trata-se de um tipo de conhecimento que emerge da relação entre a experiência e a teoria.

A pandemia de COVID-19 exigiu decisões difíceis por parte dos educadores e propiciou duros aprendizados acerca da educação brasileira: por um lado, evidenciou a importância das instituições de ensino para a nossa sociedade, tendo em vista a impossibilidade de manter as crianças afastadas das escolas por tempo indeterminado; por outro, trouxe à tona diversas fragilidades, limites e problemas do nosso sistema educacional.

Além disso, dentre os inúmeros esforços de adaptar a prática educativa à realidade pandêmica global, observamos professores buscando alternativas tecnológicas e metodológicas que os ajudassem a refletir e a enfrentar esse desafio, especialmente o de compreender como ocorre a interação e a mediação pedagógica entre eles e os estudantes, durante o ensino remoto. Parte da preocupação dos educadores residiu no fato de que uma das teorias de aprendizagem, que fundamenta a maior parte dos projetos e das práticas pedagógicas atuais, está baseada nos estudos de Jean Piaget, que demarca a interação como fundamental para o desenvolvimento do sujeito. Piaget (2022) pesquisou a aprendizagem infantil buscando compreender como se dá a construção do conhecimento humano desde os primeiros meses de vida. Diferente das correntes empiristas e inatistas, Piaget estruturou sua epistemologia nas interações do ser humano com os objetos ao seu redor e com seus semelhantes, pois o sujeito constrói o conhecimento a partir da ação e da interação. O conhecimento não é pré-determinado, é constituído pela mediação do sujeito com os objetos, o meio e os outros.

O limite epistemológico apresentado pela pandemia reside no entendimento de alguns autores de que esses processos de interação, socialização e aprendizagem não são possíveis em ambientes virtuais. Saviani e Galvão (2021) tecem uma dura crítica ao ensino remoto, pois devido à natureza da educação, ela não pode acontecer de forma não presencial. Argumentam que a necessidade do ser humano de humanização, socialização e de aprender o conhecimento historicamente acumulado, só pode acontecer através da medição direta do professor, já que somente o educador "[...] possui as condições de identificar as pendências afetivo-cognitivas que precisam ser suplantadas e que podem promover o desenvolvimento" (Saviani; Galvão, 2021, p. 42).

Entretanto, o início do período pandêmico não deixou escolhas aos educadores, pois as escolas foram fechadas. Hermann (2020) aponta que os efeitos catastróficos da pandemia nos desafiaram a buscar respostas rápidas e decisivas para enfrentar o problema; entre essas soluções e alternativas circunstanciais, está a condução do ensino por meios de tecnologias de informação, ou ensino remoto. No entanto, a autora defende que, mesmo as experiências mais exitosas do ensino remoto não são capazes de contemplar aquilo que o encontro humano pode oferecer, pois "a formação exige, além do confronto do sujeito consigo mesmo, o encontro com os outros na perspectiva de amadurecimento da própria identidade, capacidade de deliberação e abertura ao outro” (Hermann, 2020, p. 5).

Em sua obra A Cruel Pedagogia do Vírus, Boaventura de S. Santos (2020) discute os efeitos da pandemia desde uma ótica política, econômica, social e ambiental. Para Santos (2020), existem grupos mais vulneráveis à propagação do vírus e às consequências dele, e outros grupos socialmente mais valorizados, por serem mais úteis à economia. Destaca, ainda, que o modelo capitalista de economia, vigente nos últimos anos, precarizou os serviços públicos de cuidado à população, tais como saúde, segurança e educação, culminando na incapacidade de os Estados responderem rapidamente e de modo eficiente às demandas da crise.

A discussão que apresentamos até aqui aponta alguns elementos para refletirmos o quão difícil foi a tarefa de ser professor durante a pandemia. Foi necessário reinventar e adaptar a prática docente diante de um contexto nunca vivido. Em um curto período, foi preciso revisitar as teorias educacionais e encontrar as melhores alternativas para uma situação urgente e dramática. Isso nos fez questionar, inclusive, o modelo antropológico e social - concepção de ser humano e de sociedade - que fundamenta os projetos educacionais, levando-nos a questionar o projeto educacional que sustentamos. Esse tipo de questionamento é fundamental porque, segundo Charlot (2019), todo projeto educacional recorre a uma noção de educação e a uma teoria educacional, das quais pode extrair compreensões amplas acerca do mundo, da pessoa humana e da sociedade. É a partir dessas noções básicas em confronto com o próprio contexto que os agentes do processo educativo fundamentam e planejam a prática educativa.

No cenário da pandemia, pudemos compreender, de forma mais radical, a importância de pensarmos a educação enquanto práxis. O termo ‘práxis’ pode ser definido como uma forma de ação reflexiva com potencial para criticar e transformar a teoria que a rege. Portanto, entendemos ‘a práxis pedagógica’ como o agir que sistematiza e implementa um projeto de educação, da mesma forma que reflete sobre ele e o transforma constantemente e quando necessário (Casagrande; Sarmento, 2014).

Ademais, ao refletir sobre a pandemia de COVID-19, Hermann (2020) aponta que essa terrível experiência pode promover uma espécie de aprendizagem da dor, o que nos legaria possíveis lições: “o reconhecimento da vulnerabilidade da condição humana, a importância da verdade para enfrentar os problemas e a solidariedade com o outro” (Hermann, 2020, p. 1). Essas lições são de ordem individual e coletiva e perpassam todas as nossas ações, especialmente quando consideramos o campo educacional e o fazer pedagógico escolar. Nesse sentido, podemos entender que tanto o professor, enquanto indivíduo, como sua prática docente foram fortemente confrontados e desafiados pela pandemia e por suas consequências sociais e pedagógicas.

Escolhas metodológicas

O estudo1 aqui relatado refere-se a uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, com caráter exploratório. O objetivo geral consistiu em entender quais os principais desafios enfrentados por um grupo de educadoras durante a pandemia de COVID-19, bem como identificar as estratégias pedagógicas utilizadas pelas docentes, no período de aulas remotas, para viabilizar os processos de ensino e de aprendizagem dos estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental, localizada na cidade de Canoas, no estado do Rio Grande do Sul.

O estudo de caso refere-se a uma investigação empírica que aborda um fenômeno de determinado grupo ou contexto social. Utilizado em diferentes campos científicos, o estudo de caso emerge como opção metodológica para compreender fenômenos sociais complexos (Yin, 2001). Essa abordagem metodológica possibilita que o pesquisador tenha uma visão mais global sobre seu objeto e os participantes durante a investigação. No nosso caso específico, foram seguidas algumas etapas de pesquisa, tal como indicado por Gil (2002): formulação do problema; definição e seleção dos casos; elaboração do protocolo de entrevista; anuência do comitê de ética; coleta de dados de campo; análise e interpretação dos resultados; e redação do relatório.

O estudo foi realizado em uma escola da periferia do município de Canoas, RS. A escola está localizada no bairro Guajuviras, um dos mais populosos da cidade, com aproximadamente 39,5 mil pessoas (IBGE, 2011), tendo sua origem na ocupação do Conjunto Residencial Ildo Meneguetti, ocorrida em 1987. Segundo Pires, Simão e Pozzer (2013), a ocupação dessa área foi considerada um dos maiores aglomerados habitacionais do estado do Rio Grande do Sul. Uma característica preponderante, que as autoras destacam ao caracterizarem o bairro, é a resistência dos moradores, o que as leva a afirmar que “[...] a territorialidade do bairro foi construída a partir da luta pela moradia [...]” (Pires; Simão; Pozzer, 2013, p. 127). Por isso, ainda hoje, a comunidade do Guajuviras é retratada e reconhecida por histórias de lutas e de conquistas sociais.

Participaram da pesquisa as educadoras de quatro turmas do 4° ano do Ensino Fundamental, que, devido à pandemia, tiveram suas aulas presenciais suspensas no início do ano letivo de 2020. Para a continuidade das atividades escolares daquele ano, essas educadoras necessitaram reinventar suas práticas pedagógicas, uma vez que esse ano letivo apresentou diferentes obstáculos, tanto para elas, como para os estudantes.

Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as quatro docentes, regentes das turmas, no período de novembro e dezembro de 2020. As entrevistas foram gravadas com a autorização das educadoras e, posteriormente, transcritas. Os dados foram analisados a partir da Técnica de Análise de Conteúdo, de Bardin (2006), respeitando as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

Reflexões possíveis acerca dos resultados da pesquisa

Com o fechamento das escolas no início do ano de 2020 e o distanciamento social decorrentes da pandemia, a ação docente, na escola lócus de nossa pesquisa, necessitou tomar um rumo emergencial e completamente diferente do habitual. O ambiente de ensino, que antes privilegiava a interação entre os educandos e educadores, foi abruptamente substituído por materiais impressos, utilizados na primeira fase da pandemia, antes da implantação do ensino remoto. Esses exercícios impressos deveriam ser feitos em casa, com a colaboração dos familiares ou responsáveis dos estudantes. Somente em um segundo momento, a atividade pedagógica passou a contar com interações via aplicativos em dispositivos móveis.

As mudanças repentinas alteraram significativamente a rotina das educadoras entrevistadas, que encontraram dificuldades no fazer docente e utilizaram diferentes estratégias para desenvolver seu trabalho. As turmas, das quais eram as regentes, estavam compostas por 32 alunos, em média, totalizando 126 estudantes. Porém, durante o período de aulas on-line, a quantidade de estudantes que realmente participou foi reduzida para 15 a 20 por aula, o que significa uma parcela pequena, cerca de 15% de participação, se comparada com o público total de estudantes do 4° ano.

A mobilização dessas professoras para proporcionar atividades pedagógicas e a continuidade do processo formativo dos estudantes, por meio do envio de atividades ou de encontros síncronos, resultaram em uma experiência repleta de desafios e de estratégias pedagógicas, interpretadas aqui por meio de quatro categorias que emergiram da análise das entrevistas, a saber: falta de acesso à educação; mediação pedagógica em tempos de distanciamento social; busca pela interação e manutenção de vínculos; e trabalho colaborativo.

O desafio da falta de acesso à educação

Uma das maiores dificuldades para os estudantes da escola pesquisada, e por consequência para o ensino público, durante o tempo da pandemia, foi a falta de acesso à educação, caracterizada principalmente pela dificuldade de acesso à rede de internet e aos artefatos tecnológicos necessários para acompanhar o ensino on-line. Segundo as professoras entrevistadas, antes do início das aulas remotas, a escola fez uma pesquisa, via Google Forms, para saber quantos estudantes tinham acesso à internet, bem como quais equipamentos possuíam para acessar as aulas a distância. Nas pesquisas, respondidas pelos responsáveis, uma quantidade considerável de estudantes teria as condições necessárias para acompanhar as aulas. Porém, na prática, não foi o que realmente aconteceu, gerando frustração na comunidade escolar.

O acesso precário dos estudantes e a falta de equipamentos foram relatados como dificuldades preponderantes para a continuidade e a qualidade das ações pedagógicas no ano de 2020. Com a pouca participação discente nas aulas on-line, as educadoras sentiram frustração e ansiedade em relação à abrangência das aulas. Esses sentimentos aparecem na fala da Professora D, quando relata:

[...] aprendi que a gente não pode desistir na primeira, que é muito fácil desistir pois a gente tá numa pandemia. Eu pensei, assim, em desistir. Quando não entrou nenhum aluno, pensei “é hoje, era só ligar e acessar”. E o meu marido disse assim: “mas nem todo mundo pode sentar e clicar, nem todo mundo tem o telefone, nem todo mundo tem o dispositivo móvel”. Meu marido me deu um choque de realidade que me fez pensar. Eu não tinha visto por esse lado.

A Professora B afirma que “muitos não tiveram contato (com as atividades,) não por culpa deles, mas por não terem acesso (à internet)”. Outra educadora relatou que um educando participou apenas de uma das aulas porque sua mãe necessitava do aparelho para o trabalho. Vemos aqui um claro limite ao alcance e efetividade do ensino remoto nas turmas destas educadoras. Efetivamente o que vemos é um ano perdido para a maioria dos estudantes matriculados nestas turmas de 4º. ano do Ensino Fundamental. Os déficits de aprendizagens já existentes provavelmente se agravaram nesse período pandêmico, gerando preocupação para os anos seguintes de escolarização.

As entrevistadas demonstraram também que, além de preocupação com as aprendizagens dos alunos, houve um sentimento de impotência e de limite da própria ação pedagógica, pois não se tratava de um problema que poderiam solucionar sozinhas. Nesse sentido, fica evidente que o distanciamento social da pandemia mostrou a dificuldade dos sistemas ou redes de ensino organizarem estratégias institucionais adequadas para garantir os processos ensino e de aprendizagem. Não houve ação institucional organizada e efetiva para alcançar todos os estudantes.

Segundo o relato das educadoras, na busca por dinamizar as aulas, elas buscaram alternativas para prosseguir sua missão educacional, algo que pode ser classificado mais como uma heurística de tentativa e erro do que como um planejamento institucional assertivo. Por exemplo, elas tentaram utilizar músicas e vídeos da internet. Entretanto, dada a baixa qualidade de conexão de internet dos estudantes e das próprias professoras, precisaram repensar essa dinâmica e as aulas passaram a ser primordialmente planejadas e executadas por meio de apresentações no PowerPoint, que eram transmitidas aos estudantes.

Para que o ensino remoto proporcione uma aprendizagem de qualidade e um acesso democrático, pesquisas têm demonstrado que há a necessidade de

[...] acesso ao ambiente virtual propiciado por equipamentos adequados (e não apenas celulares); acesso à internet de qualidade; que todos estejam devidamente familiarizados com as tecnologias e, no caso de docentes, também preparados para o uso pedagógico de ferramentas virtuais (Saviani; Galvão, 2021, p. 36).

Esse contexto de dificuldades de acesso à rede de internet e de artefatos tecnológicos nos leva a considerar a condição de vulnerabilidade dos estudantes da escola participante desta pesquisa, visto tratar-se de um ambiente de periferia, com famílias majoritariamente pobres e da classe trabalhadora. Ao analisar os aspectos e impactos da pandemia no cotidiano dos estudantes, Santos (2020, p. 19) afirma:

É o caso também da emergência alimentar, porque se passa fome nos bairros e os modos comunitários de a superar (cantinas populares, merendas) colapsam ante o aumento dramático da procura. Se as escolas fecham, acaba a merenda escolar que garantia a sobrevivência das crianças. E finalmente o caso da emergência da violência doméstica, particularmente grave nos bairros, e da permanente emergência da violência policial e da estigmatização que ela acarreta.

O que foi possível constatar é que a pandemia tornou mais grave uma crise já instaurada na população periférica da escola lócus da pesquisa, evidenciando ainda mais um legado histórico negativo na educação básica dos estudantes impactados. De modo geral, a baixa adesão média dos estudantes aos encontros remotos com as professoras, visto que a média de participação girou em torno de 15% dos estudantes do total de 126 matriculados, evidenciou que no período pandêmico um dos desafios concretos foi a falta de acesso à educação, especialmente pela dificuldade de acesso à internet e a equipamentos de qualidade. Além disso, a inexistência de ações institucionais e de políticas públicas que efetivamente auxiliassem na resolução dos problemas enfrentados.

O desafio da mediação pedagógica em tempos de distanciamento social

As professoras participantes da pesquisa foram questionadas sobre como percebiam sua ação pedagógica durante o período do ensino remoto. Nas respostas, emergiram fatores como a insegurança pessoal no uso das tecnologias, a falta de acompanhamento direto da aprendizagem, o distanciamento físico da rotina escolar e a mudança abrupta do seu contexto laboral, elementos que, segundo as entrevistadas, tornaram essa vivência difícil e complicada.

Uma preocupação demonstrada pelas entrevistadas foi a de atingir o maior número possível de estudantes com atividades pedagógicas enviadas para casa ou trabalhadas remotamente, bem como saber como se deu a trajetória educacional das crianças, já previamente incluídas em ambientes de vulnerabilidade social e com histórico de dificuldades de aprendizagem. De acordo com as educadoras entrevistadas, estar ao lado, conferir erros, acertos e acompanhar o que estava sendo trabalhado foi uma tarefa quase impossível de realizar de forma individual com os estudantes, o que, possivelmente, aumentou as lacunas de aprendizagem já existentes em anos anteriores. Esse fato é observado na fala de uma das educadoras, ao se referir à importância da escola:

[...] é um conjunto, não é só ir lá, é um conjunto, é a merenda, são os amigos, a interação isso não teve esse ano quase. Mesmo tendo aula no Meet, mesmo a gente explicando, não é a mesma coisa como sentar do meu lado, a gente vai se juntar, a gente vai conversar, a gente vai aprender (Professora D).

Como citado anteriormente, Saviani e Galvão (2021) defendem que é necessário presença para que a mediação aconteça de forma adequada. A distância física e o baixo índice de participação dos estudantes nas aulas on-line criaram barreiras para o processo de mediação pedagógica e, consequentemente, para que a aprendizagem ocorresse conforme o planejamento escolar. Nesse sentido, a fala da Professora A denota a preocupação com os estudantes durante as aulas remotas: “[...] é preciso que a gente esteja ali do lado olhando o caderno, conversando, corrigindo; afinal ficou muito solto, as coisas ficaram soltas. Pai e mãe ajudam, mandam a fotinho e está tudo pronto. A gente não vê o percurso da aprendizagem do aluno”.

No período pandêmico, a mediação pedagógica se deu com o auxílio das famílias, o que na avaliação das educadoras foi fundamental para diminuir os impactos negativos na aprendizagem dos estudantes. É interessante notar que uma estratégia relatada pelas educadoras foi a simplificação do vocabulário utilizado nas atividades propostas, uma vez que os estudantes teriam apenas o auxílio dos familiares, responsáveis e irmãos mais velhos, para a conclusão das atividades. Percebe-se, nesses relatos, um importante esforço das professoras para adaptar seu método de ensino e viabilizar a aprendizagem dos alunos. Como lembra Marques (1992, p. 562), “não há método definitivo ou válido em si mesmo, mas os métodos geram-se, concriamse em vinculações profundas com as situações mutantes e nos espaços e momentos diversos em que ocorre a aprendizagem”.

Outro aspecto referente à ação pedagógica que devemos considerar, no período de aulas remotas, é o de que as professoras, em alguns momentos, abdicaram do seu período de descanso laboral para dar retorno às famílias e aos estudantes, levando em consideração que muitos responsáveis, por trabalharem durante o dia, só podiam ajudar as crianças nos períodos dos finais de tarde, de noite ou finais de semana. Isso foi observado no relato da Professora B:

[...] queria trabalhar com os meus alunos das 8 horas às 5 (17h), como sempre, encerrando as atividades, eu poderia seguir a minha rotina normal, ter os meus finais de semana livre, ser eu enquanto não professora. Mas, não aconteceu esse ano de 2020. As práticas foram totalmente mudadas. Não conseguimos ficar apenas no WhatsApp, mandar uma folhinha. A gente foi além disso porque eles também merecem um pouco mais do que isso. Eles não merecem ficar apenas “não fez e fez, vou marcar x e tá tudo certo”. Eles precisavam da interação, de tentarmos estimular.

A sensibilidade das educadoras se estendeu em compreender as demandas familiares, mesmo que isso lhes custasse seu tempo livre, com suas tarefas não pedagógicas, com suas famílias e seu lazer. Porém, essa ubiquidade de contato por meio da internet e com os aplicativos pode se tornar prejudicial, uma vez que as professoras também necessitavam de períodos de descanso e cuidados consigo mesmas e com suas famílias.

A estratégia da busca pela interação e manutenção de vínculos

Segundo Piaget (2002), o conhecimento é construído a partir da ação e da interação entre o sujeito, o objeto, o meio que o cerca e as pessoas com as quais convive. Sendo assim, a necessidade de proporcionar momentos de troca entre os estudantes e as educadoras fez as mesmas ressignificarem suas práticas, buscando alternativas possíveis para motivar seus alunos e proporcionar aprendizagem efetiva. Um fator determinante para a busca dessa interação foi a manutenção dos vínculos escolares, almejando a não evasão.

[...] tentamos manter o vínculo com eles por ser o objetivo deste ano, pois não podíamos passar conteúdos novos. Então para [que] não se dispersassem, colocamos foco no vínculo com os alunos. O maior medo era de que eles largassem os estudos, abandonando de vez. Foi mais ou menos por aí. Esse lado de manter o vínculo, de trazer eles para perto mesmo distante (Professora B).

Nesse contexto, o ambiente virtual foi a melhor estratégia que as educadoras encontraram para propiciar o encontro síncrono2 com seus alunos. Foi nesse sentido que elas decidiram adotá-lo como um novo recurso, além das atividades impressas ou enviadas para os educandos de forma remota. Na percepção das educadoras, os estudantes que conseguiram participar das aulas síncronas, mesmo em número reduzido, demonstravam satisfação e interesse, pois questionavam semanalmente quando haveria aula e qual seria o horário. Alguns acessavam a sala de aula virtual antes do horário previsto, para conversar com a professora e com os colegas, cantar, mostrar a casa e a família. Lembramos aqui de Marques (1992), que entende a aprendizagem como uma ação coletiva, na qual pessoas ou grupos com experiências diversificadas se encontram em um “diálogo aventuroso” (Marques, 1992, p. 560).

O empenho demonstrado pelas professoras para proporcionar aos estudantes, mesmo que de maneira virtual, momentos de interação e de manutenção do vínculo com os colegas e com elas, vai ao encontro da perspectiva de Charlot (2006), Marques (1992, 1996, 2000) e Mead (1967) no que tange ao valor da interação e dos processos de socialização para a formação e o desenvolvimento dos sujeitos. Tal qual mencionado anteriormente, os processos formativos que envolvem a Educação Básica não podem ser limitados ao estudo de objetos de conhecimento ou aos conteúdos como a ortografia ou as operações matemáticas. Embora esses sejam conteúdos importantes, a ação educativa não se resume a eles, visto que a educação não pode prescindir do potencial formativo inerente à interação, ao convívio e ao encontro com o outro, tal como pontuado por Casagrande e Hermann (2020).

Os encontros síncronos, apesar do número limitado de alunos participantes, privilegiaram a relação dos estudantes entre si e as discussões relacionadas às adversidades enfrentadas durante o distanciamento social como o fechamento das escolas; os cuidados com a contaminação do novo Coronavírus; a instabilidade financeira em decorrência do fechamento de postos de trabalho; e outras temáticas cotidianas, de interesse dos educandos. Lembramos que, conforme assevera Dewey (2010), aprendizagem e experiência são indissociáveis. Trata-se de um processo ativo, vital e contínuo, que conecta a educação e a vida, tal qual evidenciado na experiência vivenciada pelos estudantes e educadoras neste período pandêmico.

A estratégia do trabalho colaborativo

A importância do trabalho em equipe foi um aspecto recorrente nas falas das educadoras. A sensação de não estar só, apesar da desestabilização causada pela pandemia e, por consequência, das aulas remotas, fez com que as ações coletivas e a cooperação fossem os suportes para a realização de suas ações e objetivos pedagógicos. As educadoras não se acomodaram com o avanço das adversidades enfrentadas ao longo do ano. Ao contrário, encontraram nas suas colegas uma alternativa possível para dar suporte e continuidade às atividades. Na fala da Professora D, é possível observar a diferença que o início da parceria com as colegas docentes proporcionou na atuação dela:

[...] na segunda aula, não entrou nenhum aluno, na terceira aula eu queria desistir. Na quarta aula, a Professora B, minha colega do 4º ano veio conversar comigo: “vamos fazer aulas juntas? Tu me ajuda?” e eu respondi: “eu te ajudo, mas se colocarmos as nossas turmas juntas”. E aí foi dando certo.

As trocas de ideias e reflexões ocorridas durante os encontros síncronos proporcionaram momentos de aprendizagem para as docentes. Essas educadoras compartilharam suas turmas, suas atividades planejadas, suas percepções em relação à aprendizagem de seus educandos e, consequentemente, seus medos e receios que permearam esse ano desafiador para a educação. Para Marques (1992), o fazer coletivo é o próprio sentido da escola enquanto instituição socializadora e humanizadora, pois

a escola, mais do que por sua estrutura institucionalizada, se determina, em seus aspectos criadores próprios, pelo entendimento compartilhado e atuação solidária de seus instituintes internos, sujeitos coletivos organizados: os educadores, os educandos e a comunidade humana concreta a que busca ela servir (Marques, 1992, p. 560).

Consideremos o trecho da fala da Professora A, quando questionada sobre quais suas aprendizagens enquanto docente nesse período de pandemia da COVID-19: “[...] a parceria nesses tempos difíceis foi fundamental, pois a gente não estava junto convivendo como a gente convivia na escola, mas afastadas nós firmamos uma parceria bem forte". A sensibilidade das educadoras quanto aos problemas pessoais enfrentados por elas e pelos estudantes, além de estreitar os laços, tornou o ano de 2020, inicialmente envolto em caos social, menos pesado e penoso:

[...] uma das nossas colegas teve muitos problemas com familiares a respeito de saúde e, por isso, não conseguia ficar todas as quintas-feiras nas aulas; porém abraçamos a turma dela. Ela, então, dava várias dicas, vários toques do que ser feito, surpreendendo então a todos pois a turma dela é onde mais alunos participavam das aulas (Professora B).

Nesse sentido, Hermann (2020, p. 4) analisa que as aprendizagens relacionadas com a pandemia de COVID-19 diferem daquelas que são adquiridas por meio do ensino formal, “mas se vinculam às origens persistentes da atividade de aprender profundamente enraizadas na experiência da vida”. Além disso, “aprendemos a lição de que não se avança na superação da epidemia, sem solidariedade e coesão de esforços. Somos seres vulneráveis e dependentes, encontramo-nos entrelaçados numa rede de interdependência social, que exige cuidados recíprocos” (Hermann, 2020, p. 7). Nesse sentido, destacamos o trabalho coletivo realizado pelas educadoras entrevistadas, as quais encontraram na cooperação, no diálogo e na solidariedade estratégias potentes para a superação dos desafios pedagógicos e dos problemas pessoais no decorrer da pandemia.

É interessante perceber que o trabalho colaborativo estabelecido entre as educadoras decorreu de uma estratégica pessoal delas, uma necessidade de vínculo e de solidariedade que se impôs no decorrer do tempo pandêmico. Ressalta-se que não foi algo institucionalizado, planejado pelo sistema de ensino ou decorrente de uma política pública, o que denota um possível problema no modo de organização da rede de escolas do município.

Considerações finais

Este artigo apresentou os resultados de uma pesquisa que teve como objetivo entender os principais desafios enfrentados por um grupo de educadoras durante a pandemia de COVID-19. Além disso, buscou-se identificar as estratégias pedagógicas utilizadas pelas docentes, no período de aulas remotas, para viabilizar os processos de ensino e de aprendizagem dos alunos do 4° ano do Ensino Fundamental de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental, localizada na cidade de Canoas, no estado do Rio Grande do Sul.

As falas das entrevistadas permitiram a inferência de quatro categorias de análise. A categoria ‘falta de acesso à educação’ revela os obstáculos que muitos alunos tiveram para acompanhar as atividades escolares no período da pandemia de COVID-19. As educadoras relataram que seus alunos sofreram com a carência de aparelhos eletrônicos adequados e de acesso à internet de qualidade para participar das aulas síncronas. A categoria seguinte defende a mediação pedagógica como indispensável para a aprendizagem e revela que, em tempos de distanciamento social, as professoras precisaram adaptar seus métodos de ensino e contar com o apoio das famílias, já que estavam impossibilitadas de acompanhar presencialmente o desenvolvimento dos alunos. A categoria ‘busca pela interação e manutenção de vínculos’ discorreu sobre a necessidade de o aluno interagir com os colegas e com as professoras para que a aprendizagem possa acontecer. Ademais, demonstra o empenho das educadoras em promover encontros e aulas on-line atrativas e motivadoras. Por fim, a última categoria destaca o trabalho colaborativo como estratégia das professoras para o enfrentamento das dificuldades do trabalho remoto.

O estudo evidenciou que as professoras participantes da pesquisa estiveram comprometidas durante o ano de 2020 com suas obrigações laborais, demonstraram zelo pela qualidade da educação e preocupação com o desenvolvimento de seus alunos. Mesmo diante de situações sociais e econômicas que estavam além de sua área de atuação e capacidades, as professoras permaneceram buscando estratégias e alternativas para se fazerem presentes e não abandonarem seus estudantes. Essas estratégias foram restritas ao coletivo das educadoras, mas não institucionais ou derivadas de uma organização do sistema educacional. Com isso, fica evidente a necessidade de políticas públicas que busquem atenuar os déficits de aprendizagem que ficarão após esse período de pandemia e de aulas remotas, pois, sem a devida atenção, a disparidade de aprendizagem entre os estudantes mais impactados pela pandemia aumentará consideravelmente.

1O estudo aqui relatado foi analisado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, e tem parecer de autorização CAAE: 98789018.5.0000.5307.

2Momentos de encontros em tempo real em uma sala de aula virtual que permite interações e comunicações entre educadores e alunos.

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Recebido: 06 de Janeiro de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

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