SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número67DESAFÍOS Y ESTRATEGIAS DE UN GRUPO DE EDUCADORAS DE ESCUELAS PÚBLICAS DURANTE EL PERÍODO DE EDUCACIÓN REMOTA EN LA PANDEMIALA FORMACIÓN CONTINUA EN SERVICIO DE DOCENTES DE UN MUNICIPIO DEL TRIÁNGULO MINERO índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.67 São Paulo oct./dic 2023  Epub 19-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n67.24336 

Artigos

Diferença colonial e o currículo cultural da Educação Física

COLONIAL DIFFERENCE AND THE CULTURAL CURRICULUM OF PHYSICAL EDUCATION

LA DIFERENCIA COLONIAL Y EL CURRÍCULO CULTURAL DE LA EDUCACIÓN FÍSICA

Flávio Nunes dos Santos Júnior, Mestre em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-9143-5020

Marcos Ribeiro das Neves, Mestre em Educação2 
http://orcid.org/0000-0002-2514-1294

Marcos Garcia Neira, Livre-Docente em Metodologia do Ensino de Educação Física3 
http://orcid.org/0000-0003-1054-8224

1Mestre em Educação, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - SME/SP, São Paulo, SP - Brasil

2Mestre em Educação, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - SME/SP, São Paulo, SP - Brasil

3Livre-Docente em Metodologia do Ensino de Educação Física, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP - Brasil


Resumo

O artigo problematiza o conceito de diferença quando apropriado pelo multiculturalismo crítico, pelos Estudos Culturais e pelo pós-estruturalismo, campos teóricos que subsidiam epistemologicamente o chamado currículo cultural da Educação Física. Discorre sobre a noção de diferença adotada pelo pós-estruturalismo para, então, arriscar uma aproximação com o pensamento decolonial materializado na noção de diferença colonial. A proposta não foi sequestrar o conceito de diferença para fechá-lo numa caixa; desejou-se justamente o oposto, fomentar novos diálogos sem desprezar os discursos e as relações de poder que constituem a diferença pós-estruturalista. Ao mobilizar a discussão latino-americana, é possível destacar que a interlocução entre saberes, memórias, histórias, cosmologias e experiências de coletivos postos na diferença colonial proporciona uma compreensão da diferença para além das questões da linguagem, implicada como uma dimensão ontológica, pois a diferença é algo se vive e se sente, é ser. O currículo cultural aciona os campos de diferentes maneiras, seja no início da tematização, quando escuta e percebe a significação dos estudantes sobre as práticas corporais, ou durante a caminhada, quando os professores organizam suas ações didáticas. Além disso, os contextos político e econômico são elementos que atravessam e interferem diretamente nas escolas do chamado terceiro mundo.

Palavras-chave: cultura; currículo; diferença; educação física.

Abstract

This article challenges the concept of difference as appropriated by critical multiculturalism, Cultural Studies and post-structuralism, theoretical fields that epistemologically underpin the so-called cultural curriculum of Physical Education. It discusses the notion of difference adopted by post-structuralism and ventures into an approximation with the decolonial thought materialized in the notion of colonial difference. The proposal was not to hijack the concept of difference to confine it in a box; quite the opposite was desired, that is, to encourage new dialogues without disregarding the discourses and power relations that constitute the post-structuralist difference. By mobilizing the Latin American discussion, it is possible to highlight that the interplay between knowledge, memories, histories, cosmologies and experiences of collectives placed within colonial difference provides an understanding of the Difference beyond language issues, implicated as an ontological dimension, for difference is something one lives and feels; it is to be. The cultural curriculum activates the fields in different ways, whether at the beginning of the thematization, when listening to perceive students' meaning regarding bodily practices, or during the journey, when teachers organize their didactic actions. In addition, political and economic contexts are elements that cut across and directly interfere with schools in the so-called Third World.

Keywords: culture; curriculum; difference; physical education.

Resumen

El artículo problematiza el concepto de diferencia cuando se apropia del multiculturalismo crítico, los Estudios Culturales y el postestructuralismo, campos teóricos que subvencionan epistemológicamente el llamado currículo cultural de la Educación Física. Discute la noción de diferencia adoptada por el postestructuralismo para luego arriesgar una aproximación con el pensamiento decolonial materializado en la noción de diferencia colonial. La propuesta no era secuestrar el concepto de diferencia para encerrarlo en una caja, se deseaba exactamente lo contrario, propiciar nuevos diálogos. Sin dejar de lado los discursos y relaciones de poder que constituyen la diferencia postestructuralista, al movilizar la discusión latinoamericana es posible resaltar que la interlocución entre saberes, memorias, historias, cosmologías y experiencias de colectivos situados en la diferencia colonial posibilita una comprensión de la Diferencia, más allá de las cuestiones del lenguaje, se implica como una dimensión ontológica, ya que la diferencia es algo que se vive, se siente, se está siendo. El currículo cultural activa los campos de diferentes maneras, ya sea al inicio de la tematización, al escuchar para percibir el significado de los estudiantes sobre las prácticas corporales o durante el caminar, cuando los docentes organizan sus acciones didácticas, además, los contextos políticos y económicos son elementos que se cruzan e interfieren directamente en las escuelas del llamado tercer mundo.

Palabras clave: cultura; plan de estudios; diferencia; educación física.

Introdução

A produção teórica no campo da educação tem se empenhado vigorosamente para compreender os desafios contemporâneos, especialmente no que diz respeito ao trato com as diferenças. O resultado da tensão pode ser observado na polissemia do conceito: diferença, diferença cultural, diferença colonial etc. Qual é a terminologia adequada? O que esses conceitos carregam? Quais são suas bases teóricas? Quem os criou? Qual é o locus de enunciação?

Antes de tudo, é importante lembrar que entre os fatores que contribuíram para o surgimento do termo diferença, destaca-se a força dos movimentos sociais e a luta pelos seus direitos. As reivindicações de grupos historicamente jogados à margem começam a ter efeito no tecido social. As mobilizações em torno das pautas de igualdade de raça, gênero, sexualidade, religião etc. reverberaram, por exemplo, em mudanças significativas na organização da educação, especialmente nos currículos escolares.

Apenas para ilustrar, os inúmeros protestos das mulheres, dos coletivos negros e da comunidade LGBTQIAPN+ fizeram emergir estudos sobre os marcadores sociais, promovendo, assim, significativas contribuições para a desnaturalização de experiências do cotidiano escolar que insistem em colocar o corpo masculino branco cisheteronormativo numa condição de destaque em detrimento das subjetividades femininas, negras, gays/lésbicas/trans/não-binárias. Com isso, a vida desses estudantes dissidentes passou a adentrar nas preocupações do currículo.

Gradativamente, a diferença ganha notoriedade na teoria educacional crítica e toma corpo na chamada política de identidade; “nesse contexto, refere-se às diferenças culturais entre os diversos grupos, definidos em termos de divisões sociais tais como classe, raça, etnia, gênero, sexualidade e nacionalidade” (Silva 2000, p. 42). Em um cenário de mobilizações e contestações teóricas, a Educação Física também foi afetada. Os escritos de Neira e Nunes (2006; 2009) fizeram aproximar de modo intenso o debate da área com as questões da diferença. Os autores apresentaram o conceito de diferença na chave do multiculturalismo crítico, dos Estudos Culturais e do pensamento pós-estruturalista. Tal arcabouço teórico discute a constituição da diferença ao lado da produção da identidade, ambas imbricadas na linguagem e no poder.

Os autores pontuam que identidade e diferença são inseparáveis, lados de uma mesma moeda: à medida que se afirma o que é uma coisa (identidade), imediatamente se diz aquilo que ela não é (diferença). Ambas são instáveis, moventes, ou seja, não são fixas. São produtos da cultura, dos sistemas simbólicos que as configuram.

Se o sujeito é governado pela internalização dos signos sociais, torna-se dependente de uma estrutura incerta, o que impossibilita determinar o significado das coisas. Essa indeterminação do processo de significação apresenta consequências para a identidade e para a diferença, pois ambas são marcadas pela instabilidade. Ambas não podem ser fixadas, determinadas. Ambas estão sempre em processo (Neira; Nunes, 2009, p. 180).

Feita essa breve exposição do conceito, bem como a sua inserção no debate do currículo cultural, buscamos alargar essa discussão tomando a noção de diferença colonial cunhada pelo intelectual argentino Walter Mignolo. Razões não faltam, uma vez que tanto diferença quanto a diferença colonial enunciam uma série de conhecimentos, possuem um locus e compõem um ethos.

No esforço de responder a essas questões, o artigo situa a noção de diferença com base na argumentação pós-estruturalista, para, em seguida, discutir a diferença colonial e, por fim, sinalizar uma ampliação epistemológica para o currículo cultural de Educação Física.

A diferença

A discussão em torno do conceito de diferença é atravessada por variados campos. Para os propósitos deste artigo, interessa-nos o pós-estruturalismo, principalmente porque o multiculturalismo crítico e os Estudos Culturais, segundo Silva (2011), operam com a noção de diferença cultural extraída do pós-estruturalismo. Ademais, a Educação Física, enquanto componente curricular, atua profundamente no processo de subjetivação, fazendo valer de relações de poder e certos regimes de verdade, impactando de forma indelével os docentes e discentes.

Os primeiros diálogos da Educação Física com o pós-estruturalismo deram-se nas obras de Neira e Nunes (2008; 2009) e se intensificaram com os estudos de Vieira (2020) e Bonetto (2016; 2021). Foram conversas que contribuíram de modo decisivo para uma reconfiguração das ideias sobre linguagem, conhecimento, sujeito e poder.

A diferença, para a teoria pós-estruturalista, é criada pela linguagem e é fortemente influenciada pelo poder que vai definir a maneira como damos sentido aos signos. Essa tensão ocorre no interior da cultura e a todo momento é abalada por outras vontades de verdade. A filosofia da diferença é atravessada pelo pós-estruturalismo; segundo Willians (2013), uma “filosofia da linguagem”. O autor também nos alerta que o pós-estruturalismo não se restringe a uma única visão ou metodologia. As teorias científicas precisam ser vistas dentro de um leque muito maior que engloba diferentes visões sobre as coisas do mundo.

Neira e Nunes (2006; 2009) fazem as conversas iniciais entre o pensamento de Michel Foucault, Jacques Derrida e o currículo cultural da Educação Física. A discussão se aprofunda em obras recentes (Oliveira; Neira, 2019; Neira; Nunes, 2022), quando os autores recorrem ao pensamento foucaultiano para pontuar que o poder é algo que se exerce a todo instante e está na origem da constituição do sujeito e da maneira como as pessoas dão sentido às coisas do mundo.

Por sua vez, as contribuições derridianas acerca da linguagem contribuem para quebrar as dicotomias impostas pela Modernidade quando levam em consideração que todo e qualquer texto está marcado por outros textos e significantes anteriores, fruto de interpretações subjetivas, históricas e provisórias.

Bonetto, Vieira e Borges (2022) reforçam as aproximações entre a Educação Física e os intelectuais franceses supracitados. Além disso, consideram que as investigações da área, quando inspiradas por suas obras, tendem a criar cenários favoráveis para a tessitura de novas indagações acerca do sujeito, como também de concepções de conhecimento.

Voltemos à linguagem. Pensando com Williams (2013), a maneira como atribuímos significados às coisas do mundo é própria dos efeitos dos discursos enunciados. Aqui há um ponto de tensão na própria área porque uns concebem o movimento que afeta a linguagem e os significados adiados pelas culturas; outros, em oposição, olham o movimento do pensamento como deslocamento e produção incessante da diferença. Colocando em miúdos, um movimento tensiona a questão do efeito da linguagem na produção da identidade e da diferença, enquanto o outro desloca o âmago do pensamento racional e o joga para possíveis (des)conexões infinitas.

Na perspectiva pós-estruturalista, paira o entendimento de que a linguagem produz a identidade e, nesse processo, a diferença também é produzida, porque ambas são interdependentes, opostas. Quando dizemos “menino”, automaticamente, o Outro, a menina, também passa a fazer parte dessa constituição. Ela será a diferença, porque, nesse movimento, o poder que define a identidade, no caso, o menino, está no centro de uma sociedade machista. O poder que opera nesse jogo define e constitui ambos em meio a uma relação assimétrica.

A questão da identidade e diferença não se define por quantidade. Podemos estar dentro do nosso país, anunciar que somos brasileiros, mas se na oposição estiver um francês, ele será a identidade, ele será destacado independentemente da maioria das pessoas. Devido à condição colonizada e terceiro-mundista do Brasil, países como França, Estados Unidos e Inglaterra acabam sendo colocados em posição de vantagem. Eles são a identidade e o Brasil, a diferença.

Entretanto, dizer que a produção da identidade e diferença ocorre por atos de linguagem e significação adiciona um caráter indefinido ao processo, influenciado por questões culturais. A partir disso, a cultura vai interferir diretamente no signo narrado, cuja definição será sempre infinita.

Para Derrida (2009), o signo é um traço que se anuncia, e só é o que é porque ele não é um outro, nem aquele outro. Na tentativa de defini-lo, cairemos em uma cadeia infinita de definições, logo, tudo é suplemento, ou seja, não tem origem nem presença. Por isso, concordamos com Neira e Nunes (2022) na sua recusa em nomear um conjunto de práticas corporais (skate, patins, bicicleta) de “práticas corporais de aventura”. Os próprios praticantes tendem a atribuir outros significados, muitas vezes distantes do discurso curricular oficial elaborado por não praticantes ou desconhecedores dos atuais debates no campo da Educação Física, quando tomada como componente da área das Linguagens. Ao transitarmos em espaços distintos como parques, shoppings, ruas e outros locais onde se praticam essas modalidades, acessaremos múltiplos significados. Apenas para exemplificar, por vezes, skatistas ainda são narrados como marginais, um evidente efeito das constantes repressões e discursos violentos produzidos na década de 1980 na cidade de São Paulo, então governada por Jânio Quadros, contra os corpos punks que cortavam as ruas e praças em cima de skates.

Derrida (2009) denomina esse fenômeno de différance. Para o autor, o signo é adiado pela cultura, logo o significado e o significante atrelados a ele são determinados pelo meio, portanto, as palavras e as coisas podem ser múltiplas e ao mesmo tempo partilhadas de uma única maneira como sistema de comunicação. O problema central não está no fechamento dos significados; se fosse assim, não haveria comunicação entre as pessoas. Significantes como computador, copo, carro e casa são alguns exemplos disso. A questão central é quando os significados partilhados inferiorizam outros modos de existir, muitas vezes gerando violência; não é a mesma coisa ser homem, mulher, travesti. Em uma sociedade marcada pela colonização, ser negro já é motivo de sobra para viver violências.

Em termos curriculares, não é o mesmo tematizar futebol e brincadeiras nas aulas de Educação Física (Gramorelli; Neira, 2009). Naquelas em que predominam as vivências do esporte, a compreensão e o trato para com os/as estudantes que, por algum motivo, se machucam, bem como para com a figura docente por parte de algumas pessoas da escola e das famílias, podem ser bem amenos e toleráveis. Nessa cena, é comum escutarmos: “Acontece, faz parte, daqui a pouco sara. Estão aprendendo”. Por outro lado, quando a tematização é com a pipa, por exemplo, percebe-se falas nada amigáveis: “pipa corta e é perigoso”; “não pode usar cerol”; “professor, minha mãe me proibiu de empinar pipa”. Não raro, o cerceamento advém de outros atores do currículo. Há professores que apreendem o brinquedo para entregá-lo à equipe gestora. Os exemplos mostram que, a depender do tema, as tensões aumentam durante o trabalho pedagógico, o que nos permite identificar uma disputa política em torno dos significados sobre as práticas corporais e os conhecimentos que podem ou não ser postos em circulação na escola.

Por isso, não devemos deixar de lado a composição dos territórios, as questões de geolocalização, a história que configurou o contexto global, a condição de país de terceiro mundo (ex-colônia) e as interferências constantes da globalização e de políticas neoliberais. É justamente neste ponto que convidamos outros autores para o debate, pensadores cujas vidas estão ligadas a outros territórios, mais especificamente, o chamado sul global.

A diferença colonial

A diferença colonial carrega consigo uma localidade, um conjunto de enunciados, memórias, corpos, cosmologias. Tem como signatário um intelectual situado no debate latino-americano proclamado decolonial: uma forma de pensamento que se coloca de maneira contundente contra ao modus operandi da Modernidade, convidando a compreendê-la a partir de ontologias, epistemologias, vidas e territórios inferiorizados; pensando com Fanon (2005), os condenados da terra.

Mignolo (2018) apresenta a diferença colonial como um loci de enunciação produzida na emergência do circuito comercial atlântico. Sua existência possui dois âmbitos, um epistemológico e outro ontológico. Ambos são vistos no interior da ordem da Modernidade/colonialidade de um sistema-mundo moderno/colonial.

Quijano (2005) se posiciona de forma contundente contra as narrativas que romantizam a história do Ocidente, ao considerar que existe um mito de fundação da Modernidade. A sua invenção está imbricada nas ações abusivas, invasivas e dominantes da Europa no território da América. A Modernidade não foi um movimento de autoemancipação em terras europeias, como querem nos fazer acreditar, de modo que os movimentos ocorridos levaram a abandonar uma condição ingênua, imatura, para alcançar um estado mais sofisticado, evoluído, por meio de um empenho natural da razão dos próprios europeus. Na verdade, o advento e promoção da Modernidade ocorreu no calor de uma violência colonial.

A Modernidade foi um processo colonial marcado pelo eurocentrismo. Isso significa que uma única forma de pensar e existir foi imposta arbitrariamente a todos os grupos e territórios. Por se caracterizar como um projeto civilizatório, Quijano (2007) reconhece que não é possível falarmos de Modernidade sem abordar a colonialidade; uma é constitutiva da outra, por isso prefere Modernidade/colonialidade. A colonialidade é um dos elementos formadores e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Funda-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população com base no exercício do poder, operando em planos e âmbitos materiais e subjetivos da existência cotidiana. Com a entrada da América Latina no cenário, o capitalismo se mundializou.

Colonialidade não é colonialismo. Quijano (2007) aponta que o colonialismo se refere a uma estrutura de dominação e exploração na qual o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma determinada população estão sob as mãos de uma outra nação, cuja sede central está em outra jurisdição, não necessariamente baseada em relações racistas de poder. Maldonado-Torres (2007) sublinha que a colonialidade emergiu como efeito do colonialismo moderno, referindo-se ao modo como o trabalho, conhecimento e intersubjetividade se entrelaçam a partir do capitalismo mundial, bem como da concepção de raça. Assim, “a colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais” (Maldonado-Torres, 2019, p. 36).

A ideia de “colonialidade” estabelece que o racismo é um princípio organizador ou uma lógica estruturante de todas as configurações sociais e relações de dominação da Modernidade. O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da Modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, junto com as identidades subjetivas, de tal maneira que divide tudo entre as formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados etc., acima da linha do humano) e outras formas e seres inferiores (selvagens, bárbaros, desumanizados etc., abaixo da linha do humano) (Grosfoguel, 2019, p. 59).

Diante de sua complexidade e múltiplos processos de hierarquização, a Modernidade/colonialidade é compreendida a partir de três componentes fundamentais, quais sejam, a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser. De acordo com Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), a colonialidade do poder aborda as múltiplas relações decorrentes dos processos culturais, políticos e econômicos enredados ao capitalismo enquanto sistema histórico. Nessa perspectiva, no centro está o poder colonial, constituidor de uma complexidade dos modos de acumulação capitalista em sintonia com a hierarquia étnico-racial global e suas categorizações de superior/inferior, civilizado/bárbaro, desenvolvido/subdesenvolvido.

A colonialidade do saber tem a ver com o desenvolvimento de epistemologias e tarefas gerais de produção do conhecimento na reprodução de regimes de pensamentos coloniais. Opera como um dispositivo que organiza a totalidade do espaço e do tempo de todas as culturas, povos e territórios do planeta, presente e passado, em uma grande narrativa universal. Lander (2005) coloca que tal domínio decorre de processos violentos que geraram ressonâncias significativas sobre o modo de compreender as relações; muitos coletivos e sujeitos foram impossibilitados de enxergar os problemas vividos a partir de suas experiências e de seus próprios conhecimentos.

Grosfoguel (2016) salienta que a produção moderna, sobretudo a ciência, provocou um considerável desperdício de experiências, causando um genocídio epistêmico. O pensamento cartesiano, ao buscar constituir uma nova forma de compreensão do conhecimento, carrega consigo a perspectiva de um indivíduo ou lugar que se arvorou como alguém conquistador, o ser imperial. Nesse fio, presume-se que o sujeito conquistador - “eu conquisto” - é elemento fundante do “eu penso”, ou seja, o Ego conquiro permitiu a promoção do Ego cogito de Descartes. Todavia, percebe-se a existência de um elo entre o “conquisto, logo existo” e o “penso, logo existo”, qual seja, o Ego extermino.

É a lógica conjunta do genocídio/epistemicídio que serve de mediação entre o “conquisto” e o racismo/sexismo epistêmico do “penso” como novo fundamento do conhecimento do mundo moderno e colonial. O Ego extermino é a condição sócio-histórica estrutural que faz possível a conexão entre o Ego coquiro e o Ego cogito. (Grosfoguel, 2016, p. 07).

Diante disso, o padrão de poder inspirado na colonialidade fomentou um padrão cognitivo, uma perspectiva de conhecimento que oportunizou considerar o não europeu como atrasado e ligado ao passado, tido, ainda, como inferior, dentro de um estado primitivo, algo a ser superado. Logo, a Modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivos do europeu.

Maldonado-Torres (2007) explica que o conceito colonialidade do ser precisa ser compreendido em diálogo com as questões envolvendo o ego conquiro. O pensamento cartesiano, o ego cogito, deixa de forma implícita que ao expressar “Eu penso” há também a existência de “Outros não pensam”. De igual modo, o “eu sou” deixa subentendido que “Outros não são” ou estão impedidos de ser. Assim, há uma complexidade de conhecimento histórico e filosófico que precisa ser vinculada à proposta cartesiana - “Eu penso (outros não pensam ou não pensam de maneira adequada), logo sou (outros não são, estão interditados de serem, não devem existir ou são dispensáveis)”.

Na perspectiva decolonial, o racismo é um princípio organizador, o que não significa que seja um fator determinante em última instância, que substituiria a determinação de classe pela racial. Na perspectiva decolonial, o racismo organiza as relações de dominação sem reduzir umas às outras, porém ao mesmo tempo sem poder entender uma sem as outras. O princípio de complexidade é o seguinte: não se pode reduzir como epifenômeno uma hierarquia de dominação à outra que a determine em “última instância”, porém tampouco se pode entender uma hierarquia de dominação sem as outras (Grosfoguel, 2019, p. 59).

As três formas de colonialidades estão imbricadas, não sendo possível abordá-las de modo separado, pois tecem a diferença colonial. O poder colonial se organizou mediante o privilégio do conhecimento eurocentrado, bem como o desprezo des das faculdades cognitivas dos sujeitos racializados, cenário que ofereceu a base para a negação ontológica. No contexto de um paradigma que favorece o conhecimento, a desqualificação epistêmica se converteu em um instrumento beneficiado pela rejeição ontológica ou de subalternização: “Outros não pensam, logo não são”. Não pensar se converteu em um sinal de não ser na Modernidade. Isso, de certa forma, produziu a diferença colonial.

A diferença ontológica colonial se refere à colonialidade do ser; de forma similar, a diferença epistêmica colonial diz respeito à colonialidade do saber. Esse sujeito colonizado, da diferença colonial, fruto da unificação das colonialidades do saber, do poder e do ser, é alguém que, visto da perspectiva de Frantz Fanon, pode ser compreendido como o damné, ou condenado. Uma subjetividade que lida constantemente com a morte (Maldonado-Torres, 2007).

As diferenças coloniais não deixaram de ser amplificadas e não ficaram congeladas no período colonial. Passaram por modificações, atualizações e sofisticações, haja vista as ações capitalistas neoliberais contemporâneas. As diferenças coloniais oferecem uma visão de mundo projetada em escala universal. As narrativas e descrições coloniais se apropriaram do mundo e o condensaram numa casa de ficções universais. Queiram ou não, habitamos essa casa que ainda insiste em manter-se de pé e ilusoriamente aconchegante.

Esse habitat ficcional universalista pode ser visto como um sistema-mundo. Pensando com Grosfoguel (2019), é uma forma de contrapor o sentido de “sociedade” ao compreender as relações para além das fronteiras geográficas e jurídico-políticas de um “Estado-nação” implicado com a concepção de sociedade. A ideia de sistema-mundo está atravessada pela percepção de que há processos e estruturas sociais cujas temporalidades e espacialidades possuem maior amplitude que aquelas atinentes aos “Estados-nações”. Capitalismo, patriarcado e colonialismo são os elementos que o cimentam.

A dominação do “Ocidente” sobre as territorialidades e subjetividades “Não Ocidentes” não impôs apenas um modo econômico de vida; colocou em jogo um sistema-mundo moderno/colonial, capitalista/patriarcal, cristão-cêntrico/ocidental-cêntrico. Uma dinâmica que organizou o capitalismo a partir das lógicas civilizatórias da Modernidade/colonialidade, e não o inverso. Assim, é relevante e urgente frisar que um pensamento racista, sexista, cisheteronormativo, cristão-cêntrico, ocidental-cêntrico, eurocêntrico, ecologicida e cartesiano deu suporte para invenção e estruturação do capitalismo (Grosfoguel, 2019).

Dialogando com Mignolo (2020), é possível dizer que ter a vida marcada pela diferença colonial é habitar a fronteira, e pensar a partir desse lugar significa romper com o ranqueamento dos corpos, da vida. Mignolo (2018) sinaliza que classificações e rankings na cultura representam uma estratégia de retórica da Modernidade atravessada pelas colonialidades do poder, do saber e do ser; logo, burlar essa organização é um gesto decolonial que se coloca ao lado dos condenados.

Sacudir o poder das colonialidades exige um pensar anticolonialista, anticapitalista, antipatriarcado, ou seja, antisegregacionista. Cosmovisões, epistemologias e memórias dos territórios e das subjetividades da diferença colonial precisam adentrar as instituições e os mais variados espaços públicos, a fim de construírem um novo lugar não só físico, mas também simbólico. A concretização da transformação não ocorre se não tocar as estruturas hegemônicas. As experiências vividas e produzidas pelos condenados da terra à medida que emergem ganham potencial para rearticular novas políticas de subjetividade. Um novo existir se fomenta à medida que se estabelecem conexões entre os mais variados coletivos alvos do sistema-mundo moderno/colonial capitalista/patriarcal, cristão-cêntrico/ocidental-cêntrico, atravessados por um compromisso político e ético capaz de subverter a matriz de poder colonial.

Possíveis interlocuções

Sem perder de vista o acúmulo de discussão acerca da diferença, nos propusemos a tecer possíveis alianças entre o conceito de diferença colonial e o currículo cultural da Educação Física.

Neira e Nunes (2006; 2009), ao buscarem estabelecer relações entre as discussões culturalistas, multiculturalistas e pós-estruturalistas e a Educação Física, transformaram o modo de compreender o currículo, a escola, o estudante, o conhecimento, a linguagem e o corpo. Mudanças que sintonizam a área às demandas e contradições contemporâneas de uma sociedade globalizada, capitalista, desigual e democrática.

A produção teórica reafirma a sensibilidade para com a multiplicidade e as diferenças. No ano de 2016, foi publicado o livro “Educação Física cultural: por uma pedagogia da(s) diferença(s)”. Na obra, Neira e Nunes (2016, p. 10) sinalizam o quanto a diferença mobiliza professores e pesquisadores afetos à perspectiva cultural:

A diferença permitiu-nos entender a função social que desempenhamos como algo concebido em outras esferas, para além de nossas vontades e contra ela nos posicionar. Mais! A diferença, ao desnaturalizar essa intencionalidade, fez-nos compreender a educação como instrumento para a consolidação da Modernidade e as crianças e os jovens como seres rudimentares que dela necessitam, para tornarem-se um ser humano projetado por alguns. A diferença nos levou a perceber as tramas que incidiram sobre nós mesmos. A diferença incitou questionamentos e mudanças no que venha ser o sujeito da educação, o sujeito moderno.

Em meio à efervescência, emergiram pesquisas que se debruçaram sobre a prática pedagógica de professores que assumem colocar em ação a perspectiva cultural, de modo a contribuir para a promoção de uma Educação Física a favor da diferença. Neira (2007) investigou a relação entre a concepção e a produção da identidade/diferença. Bonetto (2016) buscou compreender a maneira como docentes produzem seus currículos. Müller (2016) verificou a influência dos registros do próprio docente para a organização de sua prática. Santos (2016) analisou questões envolvendo a tematização e a problematização. Oliveira Júnior (2017) investigou as significações expressas pelos sujeitos da educação. Neves (2018) olhou os efeitos do currículo cultural nas representações que os estudantes possuem acerca das práticas corporais. Nunes (2018) pesquisou como a diferença é tratada no currículo cultural. Martins (2019) analisou a perspectiva cultural na Educação de Jovens e Adultos. Gheres (2019) objetivou experimentar e criar fatos com o currículo cultural. Santos Junior (2020) debruçou-se sobre o processo de valorização e legitimação dos saberes discentes. Vieira (2020) problematizou a aprendizagem a partir da(s) filosofia(s) da(s) diferença(s). Neira (2020) investigou o modo como o currículo cultural da Educação Física combate a produção das diferenças. Duarte (2021) partilhou os conhecimentos do currículo cultural com o coletivo de uma instituição de Educação Infantil e construiu intervenções pedagógicas com esse mesmo grupo. Augusto (2022) identificou as potencialidades no trato das questões de gênero e sexualidade. Por fim, Nascimento (2022) apoiou-se na teoria queer para problematizar a constituição de corpos abjetos nas aulas de Educação Física.

Toda essa produção dos últimos anos ampliou e fortaleceu as primeiras discussões feitas por Neira e Nunes (2009, p. 179) acerca da diferença como categoria importante do currículo cultural do componente.

Identidade e diferença, portanto, são produções discursivas permeadas por relações de saber-poder para definir quem é a norma, o idêntico, e marcar fronteiras entre quem deve ficar dentro (nós) e quem não deve (eles). No pós-estruturalismo, identidade e diferença não podem ser compreendidas fora do sistema de significação nos quais adquirem sentido. Essa construção é uma questão de poder, é uma questão política.

Nota-se que não se pode desprezar, muito menos desmerecer o acúmulo de debates já promulgados. Não advogamos o abandono, desejamos o “e” e não o “ou”. Não se trata disso ou daquilo, de um olhar maniqueísta. Queremos incrementar perspectivas. Até porque as pesquisas supracitadas evidenciam que tal compreensão da diferença pavimentou um caminho político para se pensar e promover uma prática pedagógica a favor dos diferentes grupos que coabitam a sociedade. Parece que não, mas isso é muita coisa. Todavia, faz-se necessário questionar esse conceito-chave, desconfiar de sua existência, de tudo aquilo que carrega. Chacoalhá-lo para fazer dele uma outra coisa, algo mais potente.

A sintonia com o pensamento decolonial nos faz perceber que é preciso fazer eclodir a ontologia e a epistemologia que emergem da diferença (colonial) na maneira de compreender e mobilizar o conceito. Não só isso, é preciso viver, fazer viver, deixar viver. É urgente trazer para cena o modo como coletivos alvos das colonialidades do saber, do poder e do ser, elaboraram vidas, saberes, memórias, histórias, cosmologias e experiências que escapam da racionalidade ocidental. E ser para alguns grupos, especialmente indígenas, não comporta na linguagem acadêmica, nem mesmo aquela influenciada pela discussão culturalista, multiculturalista e pós-colonialista (que por sinal têm seus loci de enunciação no eixo euro-estadunidense). Para justificar essa reivindicação, recorremos ao líder indígena Ailton Krenak (1992, p. 202).

Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto a ciência dos brancos estava sendo desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha que cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita, ouro, ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e veem o humor da montanha e veem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio, mas o cientista olha o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.

Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ela pode ter. Ali não tem música, a montanha não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura, essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os eventos em datas, tem antes e depois. Data tudo, tem velho e tem novo. Velho é geralmente algo que você joga fora, descarta, o novo é algo que você explora, usa. Não há reverência, não existe o sentido das coisas sagradas. Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando: e agora?

A relação estabelecida pelas comunidades indígenas com aquilo que se convencionou chamar de natureza pelo mundo ocidental é para além da racionalidade. Ser é estar em transe com a vegetação, montanhas, águas, ar. Não é possível pensar os elementos dessa composição de modo isolado, pois estão amplamente conectados. A ontologia é uma dimensão que escapa de quaisquer argumentos, palavras, linguagem. Intersecciona-se com as cosmovisões e espiritualidades desses coletivos.

Integrar esse modo de vida às discussões sobre diferença suscita uma ampliação de posicionamentos. Enquanto as perspectivas dos Estudos Culturais, do pós-estruturalismo e do multiculturalismo crítico, enfim, das teorias pós-críticas, se fixam no ser humano e na pessoa, o pensamento indígena faz despontar um olhar para além do sujeito. Esse, ao não cair na separação corpo/mente, homem/natureza, traz o ser como algo para se contemplar e se viver em harmonia e comunicação constante com os antepassados, os ambientes, as divindades. É uma existência que está muito além de qualquer linguagem, discurso.

Incorporar o pensamento de quem está na diferença colonial com os já consagrados é um fazer ético necessário na medida em que representa o abandono da arrogância para se agarrar ao reconhecimento de limites. Dialogando com Grosfoguel (2007), o pós-modernismo é uma crítica eurocêntrica ao próprio eurocentrismo. Não é demérito trazer à tona tal apontamento, muito pelo contrário, é um gesto vibrante e buliçoso que permite fazer do currículo cultural uma perspectiva ainda não vivida. Segundo Lopes (2013, p.10),

[...] ser “pós” algum movimento ou escola de pensamento (estruturalismo, colonialismo, modernismo, fundacionalismo, marxismo) implica problematizar esse mesmo movimento ou escola de pensamento, questionar as suas bases, as suas condições de possibilidade e de impossibilidade. Não é um avanço linear, não é uma evolução ou uma superação a supor que os traços do movimento ou da escola de pensamento questionados são apagados. Essa reconfiguração pode ser correlacionada à própria desconstrução dos princípios que sustentam determinado movimento ou escola de pensamento.

Essas lentes “pós” vêm produzindo movimentos importantes, todavia, talvez por conta do seu local de enunciação, têm mexido nas bases do pensamento que se propõe a interrogar sem levar em consideração saberes, experiências, cosmovisões, memórias e histórias da diferença colonial. Incorpora-se o pensamento decolonial ao balaio pós-crítico ou é mais viável implodi-lo? Indagação para a qual não se tem uma resposta definitiva. Dialogando com Quijano (2007), Mignolo (2007; 2009) e Grosfoguel (2007), notam-se convergências entre esses movimentos. O pensamento decolonial busca promover gesto semelhante ao ser “pós”, qual seja, penetrar nas ideias da Modernidade e questionar seus fundamentos de modo a propor uma prática de vida totalmente contrária.

Portanto, as epistemologias e ontologias dos grupos vistos como diferença colonial potencializam o debate já fomentado no interior das discussões do currículo cultural. Segundo Glissant (2008, p. 53), faz-se importante consentir não apenas o direito à diferença, mas também fazer existir o direito à opacidade.

Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes. Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha assombração de surpreender o fundo das naturezas. Seria grandiosa e generosa a iniciativa de inaugurar tal movimento, cuja referência não seria a humanidade, mas a diferença exultante das humanidades. Caduca, assim, a dualidade de pensar em si mesmo e pensar no outro. Qualquer outro é um cidadão e não mais um bárbaro. O que está aqui está aberto, tanto quanto o de lá. Eu não saberia projetar de um a outro. O aqui-lá é uma trama que não trama fronteiras. O direito à opacidade não estabeleceria o autismo, ele fundamentaria realmente a Relação, em liberdades.

O opaco em tela não tem nada a ver com algo obscuro, embora possa ser aceito de tal modo. Não é alguém que deva ser redutível, compreendido por alguém alçado como norma, transparente. O pensamento da opacidade rompe com as verdades condicionais, vislumbra as possibilidades práticas e se sensibiliza com os limites de qualquer método, além de escapar daquilo que é visto como irreversível e que foge das essências. A ética, vivida em ordem individual ou comunitária, ganharia contornos e estabeleceria novos arranjos, até porque a ação se dá na vivência da relação.

Posso então conceber a opacidade do outro para mim, sem que eu cobre minha opacidade a ele. Não necessito “compreendê-lo” para me sentir solidário a ele, para construir com ele, para amar o que ele faz. Não necessito tentar tornar-me o outro (tornar-me outro) nem “fazê-lo” à minha imagem (Glissant, 2008, p. 55).

Uma prática pedagógica que leve em conta o direito à diferença e o direito à opacidade renuncia às certezas da Modernidade para se nutrir da incerteza e da abertura para o improvável. As subjetividades postas nos encontros rompem as fronteiras das colonialidades para se constituírem em relação, em liberdades, mesmo que sejam outras, que sejam liberdades reguladas. Uma Educação Física solidarizada à diferença necessita permitir o encontro dos corpos, da multiplicidade, da dissidência. O compromisso ético dessa empreitada não é querer tornar-se o outro, nem fazer dele uma imagem daquilo que se deseja, é produzir-se com ele, é trilhar caminhos ainda não vividos, é potencializar uma estética, um ser.

Por fim, cabe dizer que a mobilização conceitual empreendida é apenas um pontapé inicial, a abertura para um território investigativo ainda inexplorado em que algumas indagações ainda estão sem resposta: quais são as implicações pedagógicas dessa compreensão de diferença para a perspectiva cultural de Educação Física? Em que medida é possível fomentar um currículo alinhado à diferença nas suas dimensões epistemológica e ontológica?

Referências

AUGUSTO, Cyndel Nunes. Encontros no cu do mundo: alianças entre os estudos feministas, queer (decolonial) e a Educação Física cultural. 2022. 167f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. [ Links ]

BONETTO, Pedro Xavier Russo. A escrita-currículo da perspectiva cultural de Educação Física: entre aproximações, diferenciações, laissez-faire e fórmula. 2016. 238 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2016. [ Links ]

BONETTO, Pedro Xavier Russo; VIEIRA, Rubens Antônio Gurgel; BORGES Clayton César de Oliveira. Educação Física e as filosofias da diferença: encontros com Foucault, Deleuze e Derrida. Revista Brasileira de Educação Física Escolar, Curitiba, ano VII, vol. III, março 2022. [ Links ]

BURBULLES, Nickolas. Uma gramática da diferença: algumas formas de repensar a diferença e a diversidade como tópicos educacionais. In: GARCIA, Regina Leite; MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. Currículo na contemporaneidade, incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2012. [ Links ]

CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon. Giro colonial, teoria crítica y pensamento heterárquico. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para uma diversidade epistémica mas allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universid Central-IESCO, Siglo del Hombre, 2007. p. 79-92. [ Links ]

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4.ed. São Paulo: Perspectiva. 2009. [ Links ]

DUARTE, Leonardo de Carvalho. Educação Física cultural na Educação Infantil: imagens narrativas produzidas com professoras e crianças nos/dos/com os cotidianos de uma EMEI Paulistana. 2021. 384f. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. [ Links ]

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. [ Links ]

GHERES, Adriana Faria. Currículo cultural de Educação Física e a linguagem corporal: uma intervenção/cartografia a partir da dança. 2019. 125f. Relatório de Pesquisa (Pós-Doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2019. [ Links ]

GRAMORELLI, Lilian Cristina; NEIRA, Marcos Garcia. Dez anos de Parâmetros Curriculares Nacionais: a prática da Educação Física na visão de seus atores. Movimento, Porto Alegre, v. 15, n. 4, p. 107-126, out./dez. 2009. [ Links ]

GROSFOGUEL, Ramon. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 31, jan./abr., 2016. [ Links ]

GROSFOGUEL, Ramon. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. In: BERNARDINO-CISTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Bello Horizonte: Autêntica, 2019, p. 55-78. [ Links ]

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]

LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autonoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p. 08-23. [ Links ]

LOPES, Alice Casemiro. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade e Cultura, n. 39, 2013, p. 7-23. [ Links ]

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidade del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 127-168. [ Links ]

MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 27-54. [ Links ]

MARTINS, Jacqueline Cristina Jesus. Educação Física, currículo cultural e a Educação de Jovens e Adultos: novas possibilidades. 2019. 381 f. Dissertação (Mestrado em Educação). -Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2019. [ Links ]

MIGNOLO, Walter. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad. Barcelona: CIDOB y UACI, 2015. [ Links ]

MIGNOLO, Walter. The conceptual triad modernity/coloniality/decoloniality. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018. [ Links ]

MIGNOLO, Walter. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista Lusófona de Educação, n. 48, 2020, p. 187-224. [ Links ]

MÜLLER, Arthur. A avaliação no currículo cultural de Educação Física: o papel do registro na reorientação das rotas. 2016. 156 f. Dissertação (Mestrado em Educação). FEUSP, São Paulo, 2016. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia. Valorização das identidades: a cultura corporal popular como conteúdo do currículo da Educação Física. Motriz, Rio Claro, v.13, n.3, pp.174-180, jul./set. 2007. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia. Os conteúdos no currículo cultural da Educação Física e a valorização das diferenças: análises da prática pedagógica. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 18, n.2, p. 827-846 abr./jun. 2020. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia. Análises das representações dos professores sobre o currículo cultural da Educação Física. Interface, Botucatu, v. 14, n. 35, p. 783-795, dez. 2010. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. São Paulo: Phorte, 2006. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação Física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte, 2009. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação Física cultural: por uma pedagogia da(s) diferença(s). Curitiba: CRV, 2016. [ Links ]

NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Currículo cultural, linguagem, códigos e representação. In: Epistemologia e didática do currículo cultural da Educação Física. São Paulo: FEUSP, 2022. p. 14-38. [ Links ]

NEVES, Marcos Ribeiro. O currículo cultural de Educação Física em ação: efeitos nas representações culturais dos estudantes sobre as práticas corporais e seus representantes. 2018. 198 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. [ Links ]

NUNES, Hugo César Bueno. O jogo da identidade e diferença no currículo cultural da Educação Física. 2018. 157. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2018. [ Links ]

OLIVEIRA, Glaurea Nádia Borges; NEIRA, Marcos Garcia. Contribuições foucaultianas para o debate curricular da Educação Física. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 35, e198117, 2019. [ Links ]

OLIVEIRA JUNIOR, Jorge Luiz. Significações sobre o currículo cultural da Educação Física: cenas de uma escola municipal paulistana. 2017. 156 f. Dissertação (mestrado em educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. [ Links ]

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Coleccion Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro, 2005. p. 107-130. [ Links ]

QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación social In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 93-126. [ Links ]

SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2016. [ Links ]

SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currículo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020. 184f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. 7.ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2007. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

VIEIRA, Rubens Gurgel. Conceitos em torno de uma Educação Física menor: possibilidades do currículo cultural para esquizoaprender como política cognitiva. 2020. 244f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, 2020. [ Links ]

WILLIAMS, James. Pós-estruturalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. [ Links ]

Recebido: 24 de Abril de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.