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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.67 São Paulo Oct./Dec 2023  Epub Feb 19, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n67.24136 

Artigos

O PROCESSO DE MEDIAÇÃO TEATRAL NO AMBIENTE VIRTUAL

THE THEATRICAL MEDIATION PROCESS IN THE VIRTUAL ENVIRONMENT

EL PROCESO DE MEDIACIÓN TEATRAL EN EL ENTORNO VIRTUAL

Mariana Venâncio Correia, Graduada em Licenciatura em Teatro | Mestranda em Teatro1 
http://orcid.org/0009-0007-9410-751X

Robson Rosseto, Doutor em Artes da Cena2 
http://orcid.org/0000-0002-7905-9819

1Graduada em Licenciatura em Teatro | Mestranda em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina- UDESC, Curitiba, Paraná - Brasil

2Doutor em Artes da Cena, Universidade Estadual do Paraná - Unespar, Curitiba, Paraná - Brasil


Resumo

Como pensar a mediação no universo on-line? Essa pergunta é ponto de partida para a proposta prática de mediação do espetáculo cômico “Deixe seus problemas lá fora” do grupo curitibano Antropofocus, pensado e concebido para apresentação on-line com transmissão ao vivo. A obra retrata um programa de auditório no qual os personagens apresentadores pedem aos espectadores que esqueçam a quantidade enorme de notícias ruins que sondam o momento atual. A pesquisa visa contribuir com a análise de propostas de mediação teatral desenvolvidas em ambiente virtual com foco no novo formato de apreciação que o ambiente on-line proporciona e que implica em uma nova forma de ser espectador.

Palavras-chave: mediação teatral; teatro online; espectador.

Abstract

How to think about mediation in the online universe? This question is the starting point for the practical mediation proposal for the comic show “Leave your problems out there” by the Curitiba-based group Antropofocus, designed and conceived for online presentation with live transmission. The work portrays an auditorium program in which the presenting characters ask viewers to forget the enormous amount of bad news that probe the current moment. The research aims to contribute to the analysis of proposals for theatrical mediation developed in a virtual environment with a focus on the new appreciation format that the online environment provides and which implies a new way of being a spectator.

Keywords: theatrical mediation; online theater; spectator.

Resumen

¿Cómo pensar la mediación en el universo online? Esta pregunta es el punto de partida de la propuesta práctica de mediación para el espectáculo cómico “Deja tus problemas ahí” del grupo Antropofocus, con sede en Curitiba, diseñado y concebido para presentación en línea con transmisión en vivo. La obra retrata un programa de auditorio en el que los protagonistas invitan al espectador a olvidar la ingente cantidad de malas noticias que sondean el momento actual. La investigación pretende contribuir al análisis de propuestas de mediación teatral desarrolladas en un entorno virtual con foco en el nuevo formato de apreciación que brinda el entorno online y que implica una nueva forma de ser espectador.

Palabras clave: mediación teatral; teatro online; espectador.

Introdução

Até o início do ano de 2020, não somente as peças teatrais, mas também as propostas de mediações eram realizadas majoritariamente de forma presencial. Evidentemente, pouco se pensava sobre os desdobramentos de uma produção cênica e possibilidades de mediação no ambiente online tendo somente a tela como forma de contato. Com a chegada da pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, os grupos de teatro precisaram buscar novas maneiras de permanecerem ativos de forma remota, em constante relação com os espectadores. Sendo assim, o ambiente virtual tornou-se palco para as práticas artísticas e pedagógicas de uma forma muito repentina e hoje, me vejo instigada a pesquisar essa nova relação entre obra e espectador através da tela, justamente por existir poucas pesquisas com esse enfoque.

O estudo da mediação teatral é de extrema importância, de acordo com Desgranges (2015), podemos entendê-la como o terceiro espaço, aquele ocupado entre a produção e a recepção. Assim, a mediação se firma como uma ação para potencializar a relação entre espectador e obra artística, por meio de procedimentos artísticos e pedagógicos adotados para que este consiga pensar e relacionar os diversos aspectos da cena. O espectador é compreendido como intérprete, pois ele estabelece relações sobre a peça com base na observação, análise, comparação e na criação de conexões sobre o que vê em cena a partir de sua experiência subjetiva. Nesse sentido, é possível entendê-lo como agente ativo na apreciação artística e como cocriador da obra. Tal fruição pode ser ampliada, inclusive, pedagogicamente.

Cabe ressaltar que a concepção adotada nesta pesquisa baseia-se nas ações propostas por Oliveira (2011), divididas nas seguintes etapas: pré-peça (sensibilização), durante a peça (apropriação) e pós-peça (reverberação). Do mesmo modo, o estudo abarca os pressupostos da abordagem Triangular, pesquisada por Ana Mae Barbosa que, apesar de versar sobre as artes visuais, pode ter sua proposta aplicada também em mediações teatrais, assim como os projetos desenvolvidos por Oliveira.

Este estudo tem por objetivo a investigação do processo de mediação teatral no ambiente virtual. Como pensá-la no universo online? Essa pergunta é ponto de partida para a proposta prática de mediação do espetáculo cômico “Deixe Seus Problemas Lá Fora” do grupo curitibano Antropofocus, pensado e realizado de forma remota via transmissão ao vivo durante a 3ª edição da Mostra MOVE1 de espetáculos inéditos de companhias de Curitiba organizada pelo Grupo Obragem. O elenco é composto pelos seguintes artistas: Anne Celli, Andrei Moscheto, Edran Mariano, Marcelo Rodrigues e alguns atores convidados.

A proposta elaborada de mediação foi aplicada com um grupo de 14 jovens atores oriundos de diversas cidades do país de um curso livre de teatro, realizado de forma remota, coordenada por mim, professora da turma. Para a elaboração de ações a serem desenvolvidas de mediação, em um primeiro momento, ocorreu uma conversa com o elenco do espetáculo, com vistas a uma melhor compreensão sobre os aspectos priorizados na montagem. No encontro ocorrido em abril de 2021, cada integrante do elenco enfatizou, com base em sua percepção, um ponto importante do espetáculo. A atriz Anne Celli apontou a decadência luxuosa do programa, inicialmente elegante, que aos poucos se tornava decadente devido ao calor. O ator Marcelo Rodrigues ressaltou a verossimilhança presente nas personagens e no formato do programa televisivo que não causa distanciamento, pois é algo amplamente conhecido pelo público. Também pontuou a parceria com os atores convidados que participaram do espetáculo. O ator Edran Mariano destacou a cena das mortes no parque encobertas com os guarda sóis remetendo ao caso ocorrido no Carrefour2. Já o ator Andrei Moscheto enfatizou a importância da cena final, momento em que a mensagem é sublinhada e muito clara em resposta ao nome da peça “Deixe seus problemas lá fora”: não há lá fora.

Com base na coleta de dados, as informações foram incorporadas nas ideias iniciais para as atividades de mediação em dois encontros online: exibição da peça e, em seguida, realização de debate e práticas.

A mediação teatral

A escolha da prática de mediação como objeto de pesquisa baseia-se no fato de que o teatro desde sua gênese sempre necessitou do espectador para a sua existência. O estudo dessa relação que se estabelece entre obra e plateia é de extrema urgência no contexto atual, em função da pandemia do novo coronavírus que nos afastou presencialmente do teatro, evidenciando ainda mais a importância de solidificarmos essa relação para que ela permaneça e sobreviva.

Dessa forma, cabe reiterar que a mediação pode ser compreendida como o terceiro espaço, como pontua Desgranges (2015), ou seja, o espaço localizado entre a produção artística e a sua recepção. A partir dessa concepção, tal prática, como cita Desgranges (2008) constitui um trajeto relacional entre obra e público, potencializando sua relação através de recursos estéticos e educacionais elegidos para a reflexão e relacionamento com as diversas esferas da cena.

Nessa pesquisa o intuito é compreender o espectador como intérprete e cocriador da obra teatral, visto que ele edifica relações sobre a peça a partir de suas vivências. Assim, é possível entendê-lo como agente ativo na apreciação artística, pois como cita Oliveira “o público também está cocriando na leitura do que vê ou até mesmo entrando no espetáculo, jogando com o que é visto”. (2010, p.5) Ademais, a mediação se apresenta como uma possibilidade de diálogo, uma vez que,

o teatro é antes de tudo diálogo, ou seja, de que nele a palavra do autor é mascarada e partilhada entre vários emissores. Essas palavras em ação assumidas pelas personagens constituem o essencial da ficção. (RYNGAERT, 1999, p.12)

Ora, se o teatro é assim conceituado, a mediação teatral está associada com o próprio diálogo, sendo assim, uma construção artística e pedagógica do fruir teatral. Tal convergência entre arte e ensino na prática de mediação já era apontada por Ana Mae Barbosa (2016) no campo museológico, como uma prática artístico-pedagógica. A autora esclarece que a escolha do termo mediação foi advinda de sua vivência com Paulo Freire que utilizava tal termo para definir o papel do professor em “estabelecer relações dialógicas de ensino e aprendizagem” (2016, p.2), para a efetivação de um determinado aprendizado fundamentado na parceria entre professor e estudante, evidenciando seu cunho estético-pedagógico.

Ainda sobre a perspectiva de Barbosa, a abordagem triangular é baseada na contextualização, apropriação e o fazer artístico, cuja proposta é adaptada para a cena teatral por Oliveira (2011), ao propor três etapas para a prática de mediação teatral: a primeira etapa é a pré-peça, realizada antes do espetáculo com o objetivo de promover a sensibilização. A segunda fase é durante a peça quando ocorre a apropriação do espetáculo assistido, seguido da terceira e última etapa, no qual a ação é enfocada na produção artística, debate e práticas a partir da reverberação da obra nos espectadores. Desse modo, a proposta do autor é uma metodologia que “pressupõe diversas atividades, antes, durante e depois de as pessoas assistirem a um espetáculo, criando uma oportunidade de aprendizagem criativa, sensível e reflexiva da obra cênica” (OLIVEIRA, 2011, p. 32), ocasião em que o sujeito que aprecia o espetáculo e vivencia a proposta desenvolve-se como espectador.

Entretanto, a mediação de peças teatrais contemporâneas precisa lidar com múltiplas questões que permeiam tal linguagem, principalmente no contexto de espetáculos online, recorrentes no momento atual, resultado do isolamento social provocado pela pandemia (Covid-19), que exigiu dos grupos de teatro a busca de novas maneiras de permanecerem ativos de forma remota, em constante relação com os espectadores. O desafio encarado pela mediação já estava presente na discussão levantada por Oliveira em 2011, ao afirmar que a multiplicidade de fatores estéticos e de recursos torna essa prática plural, citando inclusive, as tecnologias na cena como uma dessas inúmeras possibilidades, como a virtualização dos atores e equipamentos de interação online.

Ao buscar um diálogo mais hodierno, cabe ressaltar a pesquisa de Sidmar Silveira Gomes (2021), pautada na experiência remota de mediação teatral em um curso de extensão da Universidade Estadual de Maringá- UEM, apresentando em seu referencial teórico levantamento de dados acerca da existência do ensino de Teatro remoto anterior à pandemia do novo coronavírus. No entanto, o autor afirma que em 2020 tal prática no ambiente online não foi uma escolha, mas sim uma atitude compulsória e que, portanto, não somente o teatro, mas também as mediações adaptaram-se ao contexto online e que sua prática desenvolvida apresenta-se como uma investigação de “possibilidades de realização de procedimentos remotos de mediação teatral” (2021, p.16).

À luz do exposto, acrescento o entendimento de Desgranges (2015), quando esclarece sobre a mediação teatral como iniciativa de formação de público, não somente como acesso facilitado ao teatro fisicamente, mas também como acesso linguístico, ampliando o impacto da obra teatral para sua fruição também de forma educacional.

O desenvolvimento da experiência de mediação teatral

A partir dos conceitos apresentados, a elaboração da prática de mediação da presente pesquisa foi idealizada para o espetáculo cômico do grupo curitibano Antropofocus, intitulado “Deixe Seus Problemas Lá Fora!” que estreou em outubro de 2020 no Canal do Youtube, do Grupo Obragem de Teatro na Mostra MOVE.

Algo interessante de pontuar a respeito sobre a forma de exibição do referido espetáculo, foi a preocupação do Grupo Obragem de simular a ida ao seu espaço físico, da seguinte maneira: o espectador é conduzido através do ponto de vista da câmera que inicia na calçada de rua em frente ao teatro, denominado de Espaço Obragem - criação e compartilhamento artístico, visualizando a sua fachada, entrando no saguão, subindo as escadas até o espaço teatral, onde lá são recepcionados por Olga Nenevê e Eduardo Giacomini (fundadores do local), com uma fala acolhedora e afetuosa sobre o Grupo Antropofocus e a Mostra Move.

O espetáculo, transmitido ao vivo com inserções de cenas gravadas, flerta tanto com a linguagem teatral quanto com a linguagem audiovisual, e parece não se preocupar tanto com o formato do trabalho que está sendo proposto ao assumir que o enredo se passa em um programa de auditório de mesmo nome da obra, que permite a hibridização de linguagens. A proposta é fazer com que, através do bom humor, simpatia e elegância dos apresentadores, os espectadores do programa esqueçam a quantidade enorme de notícias ruins que sondam o momento atual, tais como: pandemia, fakenews, caos político e as questões ambientais do país.

Os apresentadores estão em um primeiro momento muito glamourosos, com vestes de gala, maquiagem e cabelos bem alinhados, comunicam-se com a plateia de forma elegante, expondo suas joias, ao passo que os seus discursossão atravessados por quadros jornalísticos e propagandas de produtos que enfatizam a diversão, reiterando a mensagem de que os problemas devem ficar do lado de fora. Ironicamente, ao passo que tal mantra é entoado e repetido aos montes, a temperatura no set passa a aumentar levando a um clima de decadência, não somente pelo discurso dos apresentadores, mas também pelas suas próprias composições de vestes e maquiagens que passam a derreter com o aumento absurdo do calor.

Fonte: Captura de Tela do Espetáculo (2021)

Figura 1 Apresentadores no início do espetáculo 

Fonte: Captura de Tela do Espetáculo (2021)

Figura 2 Apresentadores ao final do espetáculo 

As cenas finais do espetáculo apresentam que o mundo está literalmente em chamas, no entanto, a apresentadora insiste em entoar novamente que os problemas devem ser deixados lá fora. Neste instante, uma imagem do planeta Terra surge com a seguinte frase: “Não existe lá fora” (Figura 3). Esta cena dialoga inclusive com o início do espetáculo, antes da exibição do programa de TV, momento em que um rapaz é filmado saindo de seu prédio com sacolas de lixo, ele vai até a calçada, abre as sacolas e joga o lixo no chão (Figura 4).

A peça discute política, negacionismo, fakenews e aquecimento global, de forma sutil e bem humorada. Entrei novamente em contato com os integrantes do Antropofocus para uma melhor compreensão sobre os objetivos da encenação com relação ao público. Nesta ocasião perguntei sobre a relação do grupo com o público ao longo da sua trajetória. A partir das respostas dos atores,foi possível compreender que atualmente o perfil da plateia do grupo é bem amplo: desde estudantes de artes cênicas até pessoas que nunca tiveram contato com a linguagem teatral. O grupo também prioriza que os espetáculos contemplem diferentes perfis de espectadores, como pontuou Andrei Moschetto, pois geralmente a dramaturgia das peças do grupo segue uma linearidade de ações facilmente compreendidas por qualquer pessoa e que nesta narrativa-base são colocadas referências às quais cada espectador poderá compreender as cenas de acordo com sua subjetividade e experiências anteriores.

Ademais, outro ponto importante da conversa foi acerca do diferencial do processo criativo deste espetáculo, comparado aos outros processos artísticos do grupo. Por ter sido criado majoritariamente de forma remota, o caráter prático e improvisacionalnão estiveram tão presentes ao longo das experimentações criativas, enquanto encontros verborrágicos eram mais frequentes para a composição da dramaturgia, sobretudo, escrita em um período de pandemia mundial, atravessada pela desarticulação política, fakenews, negacionismo e intensas queimadas em todo o mundo, incluindo a Amazônia e o Pantanal3. Todos esses fatores refletiram não somente na temática da narrativa-base do espetáculo, mas também nas referências colocadas sobre ela.

Por fim, também perguntei ao grupo qual parte do espetáculo era mais importante para cada um dos integrantes, tanto no processo de criação, quanto com relação a alguma cena, as respostas foram diferentes como citado anteriormente. No entanto, cabe destacar que o ator Andrei Moschetto enfatizou a cena final, sobretudo porque após os espectadores ouvirem ao longo do espetáculo para deixar os problemas lá fora, uma fotografia espacial do planeta terra é apresentada com a seguinte frase: “não existe lá fora”, conforme imagem da Figura 3.

Figura 3 Cena final 

De acordo com o ator, quando alguém não lida com os seus problemas e o “coloca para fora”, esse problema passa a ser de outra pessoa e isso gera um ciclo, tornando-se assim um problema social. A cena final faz paralelo com a cena inicial, momento em que o ator Edran Mariano caminha até a calçada com sacolas de lixo e ao chegar lá, despeja seus resíduos na rua (Figura 4). Desta forma, o problema aparentemente deixa de ser dele e torna-se o de outro alguém. De fato, como afirmou o ator Andrei, é um incômodo coletivo.

Fonte: Captura de Tela do Espetáculo (2021)

Figura 4 Cena inicial 

A partir da conversa com o grupo, a prática de mediação foi elaborada seguindo a proposição de Oliveira (2011),realizada em três etapas, da seguinte maneira:

Tabela 1 Proposta de mediação 

Encontro 1- Pré Peça Encontro 2 - Peça Encontro 3 - Pós Peça
Sensibilização Apropriação Reverberação
Breve exposição sobre mediação Meditação guiada para esvaziamento mental Recepção dos participantes
Exercícios Práticos sobre Triangulação Exibição da peça Leitura dos Textos Coletivos
Vivência Coletiva de Batismo de Bufão Prática de Escrita Automática Coletiva Apresentação das cenas da personagem
Exibição de um vídeo curto de bufonaria Prática de Escrita Automática da Personagem Conversa sobre a reverberação da prática
Conversa sobre a prática Conversa sobre a prática

Fonte: Elaborada pela autora (2021)

A prática de mediação ocorreu em três encontros com um grupo de 14 estudantes de um curso livre de teatro da Escola Garalhufa4, onde sou professora, de diversas localidades no Brasil, com idades entre 17 e 38 anos. A lógica das práticas foi elaborada seguindo a metodologia apresentada na tabela acima. Assim, o primeiro encontro (pré-peça), realizado no dia 24 de abril de 2021, dia anterior à exibição, foi efetivado com o intuito de sensibilizar os espectadores, estudantes de teatro, com técnicas pertinentes à linguagem cômica. O encontro iniciou com uma breve explicação sobre as etapas da proposta como um todo, bem como uma explanação sobre o conceito de mediação teatral, seguido de algumas provocações para promover uma reflexão a respeito da experiência do espectador.

Em seguida, iniciei exercícios práticos teatrais voltados à linguagem cômica: jogos de triangulação e uma prática de nascimento de bufão para cada participante, seguida da exibição de um vídeo da Bufa Celói da atriz Aline Marques5. Neste encontro, os participantes iniciaram a prática de forma tímida, pois poucos tinham tido contato com a comédia e o exercício do bufão, por tratar-se do grotesco, instaurou-se um estranhamento. Aos poucos, a turma foi se soltando e na reflexão sobre a prática realizada, muitos questionaram o bufão, momento em que expliquei que este contém uma característica crítica em seu humor.

O segundo encontro, realizado no dia 25 de abril de 2021,destinado à exibição da peça, iniciou com minha condução de uma meditação guiada aos participantes, focada no relaxamento corporal e esvaziamento da mente. A condução desta prática focalizou a respiração dos participantes e solicitou aos mesmos se conectarem ao momento presente, com o objetivo de deixarem os seus problemas lá fora a cada expiração, assim como propõe o espetáculo, para conectarem-se com o agora, estabelecendo uma sintonia do espectador com a encenação. Em seguida, cada participante assistiu ao espetáculo individualmente, após retornaram para a sala da plataforma Zoom6, coordenei duas práticas de escrita automática7.

A primeira prática foi concebida a partir da reflexão sobre o elo entre a cena final e inicial, sobre a ciclicidade dos problemas, muito similar aos jogos “Telefone sem fio” e “Escravos de Jó”. Os referidos jogos propõem que os participantes passem algo adiante para outra pessoa, neste ínterim há impacto sobre a forma que se recebe ou se repassa a informação ou o objeto; e metaforicamente, o problema. Com base nessa dinâmica, na primeira prática de escrita, o grupo de 14 alunos foi dividido em 3 grupos. Nesta divisão, a escrita se estabeleceu em ciclos: o primeiro uma escrita individual livre sobre o impacto do espetáculo e o significado do fogo para cada um, por 3 minutos cronometrados. No sinal para que pausassem a escrita, cada participante enviou para outro colega o texto até o momento em que tinha escrito, que por sua vez, aquele que recebeu o fragmento continuou a redação; assim por diante, até a conclusão do texto.

O segundo exercício de escrita automática foi individual. Os espectadores escolheram uma personagem da peça - animada ou inanimada - para escrever livremente algo a partir de sua perspectiva. Foi possível constatar que a maioria dos personagens escolhidos foram os apresentadores do programa e o cinegrafista da cena do parque. Após o encontro, enviei via Whatsapp essas escritas para que cada participante criasse uma cena com base na redação elaborada por outro colega, sem saber qual era a personagem escolhida por ele.

Em seguida ocorreu uma conversa livre entre os participantes, como mediadora, questionei sobre a experiência deles com a prática realizada. Cada um comentou suas impressões e a partir disso um debate se estabeleceu com relação ao que eles concordavam e discordavam entre si. Alguns participantes citaram que não acharam a peça engraçada, mas sim trágica. Outros comentaram que riram bastante, um riso nervoso. Retomei a prática do encontro anterior, sobre o bufão e questionei se eles viam semelhanças entre a prática que causava estranhamento e o tipo de riso que o espetáculo causou. A cena mais comentada foi a do parque “extingui”, onde aconteceu o episódio do morador de rua pedindo dinheiro e o tiroteio com os corpos escondidos por guarda-sóis. Por outro lado, algumas cenas não foram discutidas, como por exemplo, o quadro culinário. Também houve um momento em que eles começaram a falar, de forma espontânea, sobre as referências e as críticas que haviam percebido no espetáculo, relatando inclusive, experiências pessoais, comprovando que as críticas do espetáculo são verossímeis.

Logo após o fim das atividades na sala virtual, muitos estudantes enviaram mensagens no grupo da turma no aplicativo Whatsapp, comentando que adoraram a prática, que deveriam se reunir mais vezes para terem encontros como este, cabendo destacar que um dos participantes enviou uma tirinha8, dizendo que ela fazia total relação com o espetáculo.

Uma semana após o segundo dia de vivência, combinamos um terceiro encontro para o dia 2 de maio de 2021, posterior à exibição, realizado para lermos coletivamente os textos escritos e encenarmos as personagens criadas. Neste último dia, muitos relataram sobre o envolvimento (ou não) com a temática da peça durante a semana. Alguns expuseram que não haviam retomado o pensamento acerca do espetáculo, já outros demonstraram estarem pensativos sobre o que viram. Uma aluna narrou que a peça fez com que ela percebesse que poderia fazer mais por outras pessoas, mesmo ainda sendo nova, decidiu se envolver com uma determinada causa em sua escola, auxiliar meninas em situação de vulnerabilidade social.

Juntos, lemos os textos da primeira prática de escrita e, em seguida, cada participante leu ou encenou o texto que recebeu sobre a escrita da personagem. Nem todos os alunos conseguiram se preparar para criar uma cena ao longo de uma semana, portanto, grande parte dos participantes apenas leu o texto. Após a leitura ou representação, o grupo tentava adivinhar quem era a personagem. Uma das participantes escolheu o ar condicionado egoistich para escrever sua cena, tanto o participante que encenou, como os colegas da turma, não adivinharam que se tratava de um personagem inanimado.

Ao final, refletimos sobre as questões da peça, ao ver que os participantes estavam todos desacreditados devido à reflexão provocada pela encenação, exibi uma reportagem sobre o Pantanal brasileiro, com apresentação de dados referente há um ano após as queimadas, transmitida pelo programa Globo Repórter no dia 30 de abril de 2021. Ao longo da matéria, os repórteres mostravam que o Pantanal havia sofrido imensos danos, mas que aos poucos a natureza estava se recuperando. O impacto da reportagem foi perceptível, notei que o grupo demonstrou esperança ao finalizarmos o encontro com este momento.

Semanas após a proposta realizada, estive presente em uma videoconferência sobre mediação, com a participação de Maria Lucia Pupo e Ney Wendell Oliveira. Ambos ressaltaram que a prática de mediação não deve conformar o espectador com o contexto político social. Tal provocação me fez refletir acerca deste último momento da mediação, pois, tomada pelo impulso de confortar meus alunos, recorri à reportagem (que não havia sido planejada); compreendo que essa iniciativa pouco contribuiu para uma reflexão mais aprofundada sobre a questão ambiental, com vistas a instigar nos participantes, senso crítico. A atitude foi motivada pela necessidade de transmitir um pouco de esperança frente ao cenário social, político e ambiental que estamos enfrentando.

À luz do exposto, a prática de mediação foi significativa, uma vez que, mesmo com a tentativa de conforto no último encontro, notei que os participantes envolveram-se intensamente não só com o espetáculo, mas com a temática, a linguagem teatral e as discussões provocadas a partir dela. O modelo proposto por Oliveira, abrangendo três fases de mediação, contribuiu na sensibilização dos participantes mesmo da fruição do espetáculo e também conduziu reflexões após a experiência deles como espectadores. Ademais, o formato utilizado pelo espetáculo favoreceu a conexão dos participantes com a tela, visto que foi pensado e idealizado para a linguagem audiovisual. Desse modo, a prática realizada foi um importante experimento de mediação, principalmente no momento atual, como uma maneira de alargar a experiência do espectador, mesmo a distância.

1A 3ª edição da Mostra MOVE foi organizada pelo Grupo Obragem de Teatro, realizada de forma online entre os dias 3 de outubro e 21 de novembro de 2020, reunindo oito espetáculos inéditos de oito grupos teatrais curitibanos.

2A ocorrência é referente à morte do promotor de vendas Moisés Santos no estabelecimento Carrefour em Recife no mês de agosto de 2020, que teve seu corpo escondido por guarda sóis enquanto esperavam a chegada do IML. Mais informações sobre o caso em: <https://noticias.r7.com/cidades/promotor-de-vendas-morto-e-coberto-com-guarda-sol-em-mercado-19082020> Acesso em 19/04/2021.

3As queimadas brasileiras aconteceram justamente durante o período de criação do espetáculo. Saiba mais sobre o ocorrido em: <https://www.greenpeace.org/brasil/blog/brasil-em-chamas-negando-as-aparencias-e-disfarcando-as-evidencias/> Acesso em 01/05/2021.

4Escola de Teatro fundada em abril de 2020 por Mariana Venâncio e Wenry Bueno que, durante a pandemia, oferta cursos de capacitação em atuação de forma online. Saiba mais em: < http://instagram.com/garalhufa>

5Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HKD-CSl8OGs> Acesso em 28/04/2021.

6 Plataforma de videochamadas em grupo.

7A escrita automática é um exercício criativo de escrita livre com o objetivo de canalizar pensamentos do subconsciente. É uma atividade de transferência espontânea do racional (ou irracional) para o papel.

8Link de acesso: https://www.instagram.com/p/CnSvYfzr8Wz/?igshid=Z3d5cjJjdmxjMjhq. Acesso em 13 de novembro de 2023.

Referências

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CORREIA, Mariana Venâncio; ROSSETO, Rosseto. O processo de mediação teatral no ambiente virtual. In: XI Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas - ABRACE: Artes Cênicas e Direitos Humanos em Tempos de Pandemia e Pós-Pandemia, 2021, Campinas. Anais... Campinas: Unicamp, 2021. p. 1-15. [ Links ]

DESGRANGES, Flávio. Mediação Teatral: anotações sobre o projeto de formação de público. Revista Urdimento, Florianópolis, n. 10, p. 75-83, dez. 2008. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101102008075/8864 Acesso em: 13/08/2021. [ Links ]

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2015. [ Links ]

GOMES, Sidmar Silveira. Entre arte e pedagogia em tempos de pandemia: Ensino Remoto e Mediação Teatral. Revista FUNDARTE. Maringá, n. 44, p. 1-20, mar. 2021. DOI: https://doi.org/10.19179/2319-0868/836Links ]

OLIVEIRA, Ney Wendell Cunha. A mediação teatral como experiência estético-educativa. Revista de história e estudo culturais. v.7, n.3, set./ out./ nov./ dez. 2010. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/278 Acesso em: 13/08/2021. [ Links ]

OLIVEIRA, Ney Wendell Cunha. A mediação teatral na formação de público: o Projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e as experiências artístico-pedagógicas nas instituições culturais no Québec. 2011. 230 f. Tese. (Doutorado em Artes Cênicas) - Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/9436 Acesso em: 13/08/2021. [ Links ]

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes: 1999. [ Links ]

Recebido: 27 de Março de 2023; Aceito: 26 de Outubro de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro

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