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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.67 São Paulo Oct./Dec 2023  Epub Feb 19, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n67.25511 

DOSSIÊ 67 - FORMAÇÃO NO ENSINO MÉDIO: CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA

ENSINO MÉDIO INTEGRADO: A EXPERIÊNCIA DO CAMPUS REGISTRO DO INSTITUTO FEDERAL DE SÃO PAULO

INTEGRATED HIGH SCHOOL: THE EXPERIENCE OF THE Campus Registro OF THE Instituto Federal de São Paulo

ENSEÑANZA MEDIA INTEGRADA: LA EXPERIENCIA DEL CAMPUS REGISTRO DEL INSTITUTO FEDERAL DE SÃO PAULO

Ofélia Maria Marcondes, Doutora em Educação, Docente1 
http://orcid.org/0000-0002-2775-2785

1Doutora em Educação, Universidade de São Paulo - USP, Docente no Instituto Federal de São Paulo - IFSP, Campus Registro, São Paulo, São Paulo - Brasil


Resumo

Este artigo tem como objetivo trazer reflexões sobre a reforma educacional de 2017 denominada Novo Ensino Médio (NEM) e seu impacto na realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2023, destacando-se o tema da prova de redação que coloca em pauta a invisibilização do trabalho da mulher. Esta discussão se dá em diálogo com o pensamento de Sílvia Federici e María Lugones. A partir disso, o trabalho traz uma análise do NEM no que se refere à formação da juventude brasileira e segue apresentando o Ensino Técnico de Nível Médio Integrado (EMI) como uma possibilidade para a reconstrução deste nível de ensino, respeitando-se parâmetros como formação integral de jovens, escolarização integrada - formação profissional e formação geral - e escola de tempo integral, tríade que sustenta um ensino médio comprometido com a justiça social e a democracia. Por fim, delineia-se como se pensa o EMI no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) - Campus Registro com ênfase à resistência dos docentes ao não aceitarem a reformulação dos cursos técnicos de nível médio na forma integrada baseada no NEM. Para tais fins, buscou-se o apoio de discussões teórico-filosóficas propostas por autores como Marcos Antônio Lorieri, Gaudêncio Frigotto, Marise Ramos, além da análise de notícias e documentos do IFSP.

Palavras-chave: ensino médio; ensino técnico; formação profissional; formação integral.

Abstract

This article aims to bring reflections on the educational reform of 2017 called New High School (NEM) and its impact on the performance of the National High School Test (ENEM) 2023, highlighting the theme of the writing test that puts on the agenda the invisibility of women’s work. This discussion takes place in dialogue with the thought of Sílvia Federici and María Lugones. From this, the work brings an analysis of the NEM with regard to the training of Brazilian youth and continues presenting the Technical Education of Integrated High School (EMI) as a possibility for the reconstruction of this level of education, respecting parameters such as comprehensive training of young people, integrated schooling - vocational training and general training - and full-time school, triad that supports a high school committed to social justice and democracy. Finally, it outlines how the EMI is thought at the Instituto Federal de São Paulo (IFSP) - Campus Registro with emphasis on the resistance of teachers to not accept the reformulation of technical courses in the integrated form based on NEM. For these purposes, we sought the support of theoretical-philosophical discussions proposed by authors such as Marcos Antônio Lorieri, Gaudêncio Frigotto, Marise Ramos, and the analysis of news and documents of the IFSP.

Keywords: high school; technical education; professional qualification; integral formation.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo traer reflexiones sobre la reforma educativa de 2017 denominada Nueva Enseñanza Media (NEM) y su impacto en la realización del Examen Nacional de Enseñanza Media (ENEM) 2023, destacando el tema de la prueba de redacción que pone en pauta la invisibilización del trabajo de la mujer. Esta discusión se da en diálogo con el pensamiento de Sílvia Federici y María Lugones. A partir de eso, el trabajo trae un análisis del NEM en lo que se refiere a la formación de la juventud brasileña y sigue presentando la Enseñanza Técnica de Nivel Medio Integrado (EMI) como una posibilidad para la reconstrucción de este nivel de enseñanza, respetando parámetros como formación integral de jóvenes, escolarización integrada - formación profesional y formación general - y escuela de tiempo completo, triada que sustenta una enseñanza media comprometida con la justicia social y la democracia. Finalmente, se delinea como se piensa el EMI en el Instituto Federal de São Paulo (IFSP) - Campus Registro con énfasis a la resistencia de los docentes al no aceptar la reformulación de los cursos técnicos de nivel medio en la forma integrada basada en el NEM. Para tales fines, se buscó el apoyo de discusiones teórico-filosóficas propuestas por autores como Marcos Antônio Lorieri, Gaudêncio Frigotto, Marise Ramos, además del análisis de noticias y documentos del IFSP.

Palabras clave enseñanza media; enseñanza técnica; formación professional; formación integral.

1 Reflexões iniciais: um impasse

Em 05 de novembro de 2023, realizou-se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Foram mais de 3,9 milhões de inscritos neste ano e 71,9% dos candidatos fizeram o exame1. Observemos o tema da redação: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”2.

Mais de 2 milhões de jovens brasileiros foram desafiados a argumentar sobre o trabalho da mulher que é invisibilizado, desvalorizado, não remunerado. Da mulher que é mãe, trabalhadora, cuidadora. Desafiados, precisariam construir um texto que trouxesse reflexões sobre a divisão sexual do trabalho, o debate político acerca do salário para os trabalhos domésticos, a opressão de gênero, a hierarquização do trabalho, a desigualdade de gênero e sendo desejável que abordassem a interseccionalidade das relações de gênero/raça/classe e discussões sobre a colonialidade do poder, de gênero e da sexualidade. Uma economia do cuidado foi colocada em pauta. Nossa sociedade patriarcal, que tem como referência o homem branco, naturaliza o trabalho do cuidado como sendo tarefa das mulheres.

Citando Lugones (2020, p. 53):

entender a preocupante indiferença dos homens com relação às violências que, sistematicamente, as mulheres de cor sofrem: mulheres não brancas; mulheres vítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade de gênero; mulheres que criam análises críticas do feminismo hegemônico, precisamente por ignorar a seccionalidade das relações de raça/classe/sexualidade/gênero.

Segundo Federici (2019, p. 42-43), a

diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração.

Essa discussão adentra aspectos como políticas públicas do cuidado, além de promover uma discussão sobre a remuneração do trabalho de cuidar. O tema da redação do ENEM traz ainda a afirmação de que há uma invisibilidade do trabalho do cuidado, não sendo possível negar esta realidade ao se construir o texto argumentativo.

Isto posto, reforço a crítica que vem sendo apontada por muitos segmentos da sociedade brasileira no que se refere ao Novo Ensino Médio (NEM), considerado como uma reforma na educação brasileira e que se deu por força da Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) com vistas a consolidar o viés neoliberal apoiado nas ideias de modernização e flexibilização, vide os itinerários formativos e as falsas ideias de escolha e de atendimento às demandas do mercado.

O NEM é disfarçado com uma roupagem “jovem” por meio de sua proposta de ser atrativo, retirando o excesso de componentes curriculares, usando uma “linguagem dos jovens” e propondo componentes curriculares “fora do comum” ou até mesmo inusitados, como aponta a Revista Exame3, em 13 de fevereiro de 2023:

Enquanto disciplinas como História, Sociologia e Educação Física perdem espaço, matérias fora do comum ou com nomes nada explicativos como “O que rola por aí”, “RPG”, “Brigadeiro caseiro”, “Mundo Pets SA” e “Arte de morar” começam a fazer parte da realidade de estudantes do ensino médio nas redes públicas do país.

Na página da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)4, Frigotto (2016) afirma que

O argumento de que há excesso de disciplinas esconde o que querem tirar do currículo - filosofia, sociologia e diminuir a carga de história, geografia, etc. E o medíocre e fetichista argumento que hoje o aluno é digital e não aguenta uma escola conteudista mascara o que realmente o aluno detesta, uma escola degradada em seus espaços, sem laboratórios, sem auditórios de arte e cultura, sem espaços de esporte e lazer e com professores esfacelados em seus tempos trabalhando em duas ou três escolas em três turnos para comporem um salário que não lhes permite ter satisfeitas as suas necessidades básicas. Um professorado que de forma crescente adoece. Os alunos do Movimento Ocupa Escolas não pediram mais aparelhos digitais, estes eles têm nos seus cotidianos. Pediram justamente condições dignas para estudar e sentir-se bem no espaço escolar.

Como estudantes deste Novo Ensino Médio (NEM) estariam preparados para as discussões propostas pelo tema de redação do ENEM? De que maneira, sem aulas de Filosofia e Sociologia, estaria esse jovem em condições de pensar a desigualdade de gênero e a divisão sexual do trabalho? Privar o jovem de experiências múltiplas e variadas e retirar-lhe o direito ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade pode proporcionar condições de se argumentar sobre uma economia do cuidado e sobre a invisibilização do trabalho da mulher em intersecção de raça e classe social? Como fazer uma crítica ao capital e à necessidade de remuneração do trabalho doméstico sem espaços pedagogicamente organizados para tal fim?

A indiferença, a invisibilização das tarefas do cuidado destinadas às mulheres são construções históricas e também cotidianas que somente serão superadas na perspectiva de uma mudança sociocultural que pode, e deve, começar na escola, num esforço teórico-prático que desvele a separação categorial de gênero, raça e classe social própria da ideologia colonialista e do pensamento hegemônico falocêntrico, colocando a nu o sistema de gênero colonial e moderno que objetiva controlar o trabalho do cuidado. Essa separação categorial reforça a violência cotidiana à qual as mulheres são submetidas e inibe ações solidárias e de políticas públicas.

Sabemos que os exames externos como o ENEM têm como objetivo regular a formatação dos currículos escolares, bem como estabelecer os conteúdos a serem trabalhados em sala de aula, meio pelo qual se pretende controlar o trabalho docente, a ampliação dos conhecimentos e das experiências do pensamento, por outro lado, escancara-se a debilidade desse modelo denominado NEM.

Com a redução da carga horária de componentes curriculares como Filosofia, Sociologia, História, Física, Química, Geografia, Artes, a escola não cumpre seu papel formativo, já que nosso trabalho é o de:

oferecer ajuda para que os alunos se desloquem “da apreensão imediatista da realidade para uma posição esclarecida”, no dizer de Favaretto, ou para que abandonem a ingenuidade e os preconceitos do senso comum e não se deixem guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos, de acordo com Chauí, e, além disso, para que conheçam o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política e tenham meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos (Lorieri, 2023, p. 45-46).

A juventude privada de experiências do pensar nas diferentes áreas, é impedida da

busca continuada de respostas às perguntas irrespondíveis e a busca, daí decorrente, de exame reflexivo e crítico das respostas que se apresentam como definitivas. É a luta pelos sentidos ou significados de tudo: do mundo, do ser humano, de sua existência, da vida em sociedade, dos valores morais, dos valores políticos, dos valores estéticos, dos critérios de verdade para nossas afirmações (Lorieri, 2023, p. 36).

Sem essa busca, sem diálogo, sem a possibilidade de construção de um pensamento crítico, os jovens não conseguiriam argumentar sobre os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Será mesmo que trabalhando “O que rola por aí”, “RPG” e “Brigadeiro caseiro” nossos estudantes teriam alguma chance de obtenção de boa nota na redação do ENEM? A quem interessa o NEM? Por que os jovens da classe trabalhadora e das populações periféricas são submetidos a esse modelo curricular que favorece a reprodução do sistema dual de educação que vem se perpetuando ao longo de nossa história: uma escola pobre para pobres (formação para o trabalho) e uma escola rica para ricos (propedêutica)? Desta maneira, podemos afirmar que o sistema escolar está a serviço de uma ideologia que sustenta a divisão social em classes por meio de marcadores de exclusão como a propriedade, a concentração de renda, o trabalho e a hierarquização e distribuição de conhecimentos.

Daniel Cara, em sua rede social5, publicou a mensagem de um egresso do NEM:

Kaick Pereira da Silva, 18, terminou os estudos em uma escola estadual em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, no ano passado, e avalia que parte da carga horária foi perdida com essas novas disciplinas.

Sem ter conseguido uma boa nota no Enem, ele decidiu que voltará para um curso de ensino médio neste ano em um instituto federal para ter as disciplinas comuns.

"Eu quero fazer graduação em geografia, por isso, fiz o itinerário em ciências humanas. Mas as aulas não me permitiram o aprofundamento nas disciplinas que eu queria estudar. Em vez de estudar história e geografia, tive que fazer uma disciplina de comunicação e marketing", afirma.

A disciplina era ensinada por um professor de português e tinha como propostas, por exemplo, que os alunos criassem rótulos de produtos.

Este é apenas um exemplo do que podemos esperar do NEM em nossas escolas.

Considerando a inviabilidade do NEM e a injustiça social desencadeada por este sistema é que acompanhamos manifestações por sua revogação, como se pode observar nas manchetes:

1. UFRJ pede revogação do Novo Ensino Médio6

Segundo colegiado máximo da Universidade, o Novo Ensino Médio “representa mais um passo no desmonte do ensino básico”

Assessoria de Imprensa da Reitoria - 15 de março de 2023.

2. Revogar a reforma significa voltar ao ‘velho’ ensino médio?7

A revogação é um compromisso com o futuro da educação no País. Só falta ao governo Lula a coragem política para enfrentar o problema

Fernando Cássio - 27 de fevereiro de 2023.

3. Revoga NEM8

Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) - 10 de julho de 2023.

4. Revoga NEM | novo ensino médio piora ensino e amplia evasão escolar, afirma aluno de escola pública9

Jornalista: Maria Carla - 27 de março de 2023.

Sindicato dos Professores (SINPRO) no Distrito Federal (DF).

Apenas umas poucas das muitas manifestações pela revogação deste nefasto e perverso modelo de escolarização para o nível médio da Educação Básica, fruto da Lei 13.415/2017 que definiu as finalidades do NEM a pretexto de atender às necessidades formativas e “melhorar o desempenho dos estudantes nas avaliações de aprendizagem do Ensino Fundamental e Médio” (Schütz e Cossetin, 2019, p. 2). Para Schütz e Cossetin (2019, p. 1-2), “crianças e jovens estão sendo constrangidos a tomar decisões prematuramente [em se considerando os itinerários formativos como propostos no NEM]. Em síntese, oficialmente desamparados, tornados órfãos por decisão estatal e com amparo legal”.

Pode parecer que não há saída: ou se mantém o NEM ou voltamos ao modelo curricular que prevalecia antes da reforma.

2 Ensino Médio Integrado (EMI): um caminho possível?

Recentemente, foi apresentado, pelo Poder Executivo, o PL 5230/2023 que propõe uma solução intermediária que ainda está tramitando na Câmara dos Deputados10 (novembro/2023). Avalio que um dos caminhos possíveis para o Ensino Médio seja mesmo o Ensino Médio Integrado (EMI) no formato que vem sendo proposto pelos institutos federais (IF).

A definição de que os IFs deveriam priorizar a oferta de cursos de educação profissional na forma integrada gerou expectativas quanto ao enfrentamento da dualidade estrutural na escola média, historicamente marcada pela divisão entre a formação para o mundo do trabalho e a formação intelectual, esta destinada às classes dirigentes. A prioridade da forma integrada em relação às formas concomitantes ou subsequentes ao ensino médio revela a estratégia de vincular desenvolvimento econômico e elevação da escolarização dos jovens da classe trabalhadora, por meio da ampliação do acesso a uma educação pública gratuita e de qualidade (Nadaletti et al., 2022, p. 111).

Tendo a concordar com Bonfim et al. (2019, p. 32) ao apontarem a proposta dos IFs como uma utopia, possível, na minha avaliação:

Embora o termo “utopia” tenha sido muitas vezes usado de forma pejorativa, inclusive por Marx e Engels (1989); aqui, aproxima-se da proposta de Manheim (1976) e/ou como da proposta paulofreireana (FELIPE, 1984). Manheim vê a utopia (relativa) não como ilusão, e sim como o que a transcende para uma realização no futuro. Paulo Freire (apud FELIPE, 1984), por sua vez, caracteriza a utopia como um modo de estar-sendo-no-mundo, que exige um conhecimento da realidade, para então, poder lançar-se adiante. Assim, ao se considerar que o EMI pode servir de travessia para uma formação humana integral, ainda utópica, não significa falar de uma “fantasia” que não pode ser concretizada; mas sim, de uma denúncia ao modelo de educação profissional vigente e do anúncio comprometido e engajado com um modelo de educação politécnica e omnilateral. Portanto, o EMI, neste contexto,é porta voz da Esperança da formação humana integral.

Uma utopia que se constrói na ação refletida e na condução de trabalhos pedagógicos interdisciplinares e integrados que ofereçam as mais variadas possibilidades formativas, abrindo-se um leque para as mais diversas experiências do pensar, para a ação ética, para a compreensão de que vivemos numa sociedade diversa e em prol de relações sociais que superem o racismo, o machismo, a misoginia, que sejam oportunidades de crítica ao patriarcado, ao capital é à colonialidade.

É preciso, aqui, recuperar debates teórico-práticos acerca da formação profissional integrada à educação geral para então empreender uma análise do que é proposto no Campus Registro11 do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) em termos de curso integrado e formação integrada, tendo-se em vista os Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) e a vivência no campus.

Na superação do adestramento promovido pela profissionalização compulsória estabelecida pela Lei Nº 5.692/1971, o Ensino Médio deveria, na visão de Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012, p. 35), desempenhar o papel de “recuperar a relação entre conhecimento e prática do trabalho. Isto significaria explicitar como a ciência se converte em potência material no processo de produção”, com vistas à politecnia, formação integrada que favorece a compreensão da multiplicidade de processos de produção científica, histórica, social, técnica, além da perspectiva do mundo do trabalho e não de atendiemento às demandas do mercado e do capital. Traçar um itinerário que possa forjar a compreensão do trabalho em suas bases históricas, sociológicas, filosóficas, econômicas e que o EMI não se limite ao trabalho formativo, tanto técnico como geral, ocorrendo num mesmo espaço físico, na mesma escola, mas que se fortalecesse em um currículo integrado, de modo a ampliar e aprofundar os conhecimentos e as discussões a respeito do mundo, da produção, da construção social, da cidadania, do compromisso ético e político com as pessoas e com o meio ambiente.

Esse movimento politécnico que se pretende ver no ensino técnico de forma integrada ao ensino médio traz em seu bojo o ideal de superação do dualismo educacional que mencionei anteriormente: formação propedêutica e formação para o mundo do trabalho, numa perspectiva integrada, integradora, educação básica e educação técnica, cultura e ciência, formação integral de estudantes da classe trabalhadora no sentido da emancipação e da autonomia.

Ainda como afirmam Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012, p. 36), numa perspectiva integrada,

o objetivo profissionalizante não teria fim em si mesmo nem se pautaria pelos interesses do mercado, mas constituir-se-ia numa possibilidade a mais para os estudantes na construção de seus projetos de vida [em nada se assemelharia ao “Projeto de vida” proposto como componente curricular], socialmente determinados, possibilitados por uma formação ampla e integral.

Na esteira dos debates sobre o EMI, Nadaletti et al. (2022, p. 108) também entendem que é possível a superação da educação dual que ainda observamos na legislação brasileira e que sustenta uma ideologia classista e de manutenção das desigualdades:

A prioridade da modalidade na forma integrada expressa uma tentativa de superar, através da ampliação do acesso a uma educação pautada pela formação humana integral e voltada para os jovens da classe trabalhadora, a histórica dualidade que marca o ensino médio no Brasil e separa trabalho formal e trabalho intelectual. Ou seja, uma experiência formativa capaz de colaborar com a superação das desigualdades educacionais que caracterizam grande parte da trajetória da nossa sociedade e, ao mesmo tempo, vincula-se ao desenvolvimento socioeconômico local, regional e nacional, com vistas a proporcionar uma educação emancipadora.

Para Silva-Pereira, Santos e Oliveira Neto (2017, p. 150),

A concepção primeira do ensino integrado, especialmente filosófica, pressupõe integração de todas as dimensões da vida no processo formativo, trazendo em seu bojo a formação do ser humano integral, em que os conteúdos das disciplinas da educação de base comum são associadas às disciplinas do conjunto tecnológico, específicas a cada curso, unindo-se a isso as experiências de cada indivíduo, através de um processo de contextualização.

Penso que fica claro que a forma integrada do ensino técnico com o Ensino Médio seja a melhor opção para a formação integral da juventude que se vê diante da necessidade de formação para o mundo do trabalho e de uma formação propedêutica que lhes permitam criar sentidos e significados para sua existência concreta, em diálogo permanente com as circunstâncias e recriando significações que permitam compreender as diferentes temáticas que permeiam o seu estar no e com o mundo, compreendendo a realidade e se compreendendo como sujeito de transformação, que possa expressar sua sensibilidade, que reconheça que todo conhecimento é produzido em função das pessoas, que se entenda como um ser político, temporal e situado, compreendendo também que o conhecimento não é algo dado, mas em permanente (re)construção. A forma integrada do ensino é útil na mesma proporção de que é útil a compreensão, seja de fenômenos físicos, químicos, como os sócio-políticos, histórico-culturais e outros tantos.

3 O Campus Registro como palco de resistência ao NEM

Um dos cinco itinerários previstos na Lei nº 13.415/2017, conhecida como Lei do Novo Ensino Médio (NEM), é o da Formação Técnica e Profissional (FTP) que integra Educação Profissional e Tecnológica (EPT). A legislação estabelece que essa formação, no Ensino Médio, pode assumir a forma articulada, integrada, concomitante ou subsequente. Nos Institutos Federais (IFs), de modo geral, encontramos os Cursos Técnicos de Nível Médio na Forma Integrada ao Ensino Médio (EMI), destinados a quem já concluiu o Ensino Fundamental, sendo que a matrícula é única e numa mesma instituição de ensino, habilitando, portanto, técnicos de nível médio. O EMI dos IFs tem, como princípio, a centralidade na formação humana e integral dos estudantes, assumindo também o desafio de articular experiências entre ensino, pesquisa e extensão.

No que se refere ao Instituto Federal de São Paulo (IFSP), há a Instrução Normativa Nº 06/2021 que regulamenta os procedimentos para os trâmites de implantação e reformulação dos cursos técnicos na forma integrada ao ensino médio e traz as seguintes orientações:

Art. 5º. Os cursos técnicos na forma integrada ao ensino médio devem conter carga horária mínima de 2.000 horas destinadas aos conhecimentos da formação geral, distribuídos entre Núcleo Estruturante Comum (NEC) e Núcleo Estruturante Articulador (NEA), e mínimo de 800, 1.000 ou 1.200 horas, conforme o Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos (CNCT), de conhecimentos associados à formação técnica, distribuídos entre Núcleo Estruturante Tecnológico (NET) e NEA, sempre observando as orientações da carga horária dispostas pela Resolução IFSP 18/2019.

Passo, agora, a pensar as relações do EMI no Campus Registro, situado no coração do Vale do Ribeira, estado de São Paulo, na perspectiva da politecnia, no aspecto integrador do currículo e na forma integrada da formação profissional com a formação básica. A análise parte dos Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) dos cursos técnicos em Edificações, em Logística e em Mecatrônica disponíveis no portal12 do campus. Minha análise traz aspectos dos três cursos que nos fornecem elementos para o debate sobre até que ponto essas propostas pedagógicas superam o aspecto “integrado” entendido apenas como aquele curso com matrícula única e em um único espaço escolar.

No PPC do curso Técnico em Edificações temos o seguinte:

a formação do Técnico em Edificações deve considerar esse cenário, tornando o egresso apto a atuar nas etapas de concepção, execução e manutenção das obras, contribuindo para a profissionalização do setor e o desenvolvimento de trabalho dentro dos padrões técnicos e de exigência, necessários ao mercado consumidor. Assim, o curso TÉCNICO EM EDIFICAÇÕES INTEGRADO AO ENSINO MÉDIO formará profissionais aptos a desenvolver serviços técnicos de desenho, orçamento, acompanhamento de obras, além de tornarem-se empreendedores e montarem seu próprio negócio, entre outros, desta forma atuando efetivamente na criação de empregos na região.

[...]

O curso TÉCNICO EM EDIFICAÇÕES INTEGRADO AO ENSINO MÉDIO possibilita que alunos do Vale do Ribeira recebam o ensino médio de qualidade superior ao oferecido pelas redes públicas e particulares da região, pois alia formação generalista do ensino médio ao dinamismo e especialização do ensino técnico (IFSP, 2023, p. 16-18).

Há uma intenção de integração entre o que chamamos de Núcleo Comum - formação generalista, como apresentado acima - e formação técnica, mas observamos que a ênfase está na formação técnica de modo que o egresso do curso possa atuar na construção civil. Até aqui, não se delineia de que modo se dá tal integração ou como os conhecimentos próprios da formação geral contribuem para a formação desse profissional, além de tecer uma dura, e desnecessária, crítica às demais escolas públicas e privadas da região.

No perfil do egresso deste curso delineia-se a preocupação com um trabalho integrado ao se definir que o técnico em edificações deve atuar “de maneira cidadã, responsável e sustentável, social e ambientalmente, respeitando os direitos humanos e reconhecendo os sujeitos e suas diversidades étnico-raciais e de gênero” (Id., p. 21). Esta preocupação não é própria deste curso no Campus Registro como possa parecer de imediato, é prescrito no Currículo de Referência13 do IFSP (2021, p. 08). O mesmo ocorre em relação aos objetivos do curso: há o anúncio de que a formação se dará de modo integrado, oferecendo atividades de ensino, pesquisa e extensão, formação integral, além de propiciar experiências que favoreçam o aprendizado permanente, objetivando preparar para o trabalho e a cidadania. Caberia aqui um trabalho de campo para se verificar se o andamento do curso segue a direção do trabalho integrado ou não, além da necessidade de se acompanhar como estão os egressos do curso, considerando-se que, para a análise apresentada neste artigo, realizo o estudo dos PPC e demais documentos do IFSP.

Em termos de um currículo integrado, pode-se observar que há a organização da carga horária em núcleos: Núcleo Estruturante Tecnológico (NET), com 1140 horas; Matemática aplicada à Construção Civil como Núcleo Estruturante Articulador (NEA), com 30 horas e Arte e Cultura na Construção Civil - também como NEA, com 30 horas de trabalho pedagógico e mais 2250 horas no Núcleo Estruturante Comum (NEC) que envolve componentes curriculares nas áreas de Ciências da Natureza (Biologia, Física e Química), Humanas (História, Geografia, Filosofia e Sociologia), Linguagens (Português, Artes, Educação Física, Libras, Redação e Inglês) e Matemática.

Em relação ao curso Técnico em Logística, em seu PPC (IFSP, 2022a, p. 17), observa-se que se

busca a transformação do Vale do Ribeira a partir daquilo que representa o principal ativo da região, ou seja, sua gente, auxiliando na mudança da realidade, pelo processo educacional, pela construção de uma base de competências na sociedade. Por entender que contribuirá para a qualificação da comunidade de nossa região, com a formação desse profissional, por meio de um processo de apropriação e de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos em sintonia com a necessidade premente do mercado de trabalho.

Já no curso Técnico em Mecatrônica, observa-se a preocupação com o atendimento às demandas das empresas locais e regionais e o preparo de estudantes para esse mercado:

Estes indicadores revelam, sobremaneira, a importância do profissional Técnico em Mecatrônica para o desenvolvimento econômico, da demanda do setor produtivo e da geração de empregos, para o Vale do Ribeira, além disso, absorvendo os alunos do ensino médio e os transformando em técnicos profissionais, fatores que solidificam a missão da instituição (IFSP, 2022b, p. 16).

O texto traz que o curso técnico irá “absorver” os alunos do Ensino Médio, como se houvesse uma hierarquização de saberes, também explicitada na frase “os transformando em técnicos profissionais”, não que isso não tenha seu valor, mas não pode haver, na forma integrada de ensino, esse funcionalismo, essa cisão entre a formação propedêutica e a formação técnica.

É necessário se pensar em que medida o ensino integrado no IFSP Campus Registro se restringe à matrícula única de estudantes no curso técnico de nível médio, cursando os componentes curriculares, tanto do núcleo técnico como do núcleo comum, no mesmo espaço físico, mesmo havendo um esforço teórico-documental de se pensar um currículo articuladao ao se estabelecer os Núcleos Estruturantes Tecnológico (NET) e Articuladores (NEA) e o Núcleo Comum (NEC) nos três cursos ali ofertados.

No cotidiano, se observa que docentes do Núcleo Comum e da área técnica realizam seus trabalhos pedagógicos de modo a reproduzir a fragmentação do conhecimento própria de um sistema educacional construído a partir de currículos organizados por e em disciplinas e estas fragmentadas em conteúdos sem que se ofereça um trabalho pedagógico que dialogue com outros conhecimentos, ou seja, cada docente ministra suas aulas de acordo com o que está posto na ementa de seu componente curricular.

Também se observa que as reuniões pedagógicas que ocorrem semanalmente são organizadas de modo que os docentes do núcleo comum e do núcleo técnico não se encontram, ou seja, as coordenações de curso realizam as reuniões em horários distintos, sendo que os primeiros participam de uma reunião geral, dos três cursos, por semana. Os docentes das áreas técnicas de cada curso se reúnem uma vez por semana, com os coordenadores de curso, mas em separado dos docentes do núcleo comum. Em outras palavras, os problemas, os desafios e as ações exitosas da área técnica de cada curso não são compartilhados com os docentes do núcleo comum e vice-versa. Os docentes das áreas técnicas e do núcleo comum se encontram apenas nos momentos de reunião dos Conselhos Pedagógicos, bimestralmente, e para tratar de aspectos ligados à avalição, recuperação, acompanhamento dos estudantes. Essa prática é, na verdade, desarticuladora. No meu entendimento, só é possível a construção de um ensino verdadeiramente integrado havendo o compartilhamento de experiências, o debate sobre os problemas postos pela realidade educacional e a busca coletiva de soluções para que estudantes possam permanecer na instituição com êxito, com aprendizagem significativa e crescendo como pessoa e como cidadã, cidadão.

Minha análise reforça minha preocupação, como de outras pesquisadoras e outros pesquisadores, no que se refere a um enviesamento economicista e tecnicista desta formação em cursos integrados que não garantam um currículo articulado, mesmo verificando-se a prevalência de componentes curriculares do núcleo comum sobre os das áreas técnicas: em Edificações temos 120 horas para as atividades do Núcleo Estruturante Articulador (NEA), 2.250 horas de trabalho pedagógico destinadas ao Núcleo Estruturante Comum (NEC) e são 1.140 horas estabelecidas para o trabalho desenvolvido pelo Núcleo Estruturante Tecnológico (NET). Já em Logística, as horas destinadas ao NEA caem para 90 e ao NET, 750 horas, enquanto observamos que o NEC tem uma carga horária de 2.400 horas. No curso Técnico em Mecatrônica, temos 120 horas para o NEA, 2.190 horas para o NEC e mais 1.140 horas para o NET.

É necessário que docentes de cursos técnicos integrados ao Ensino Médio (EMI) mantenham seu trabalho pedagógico sob vigilância para que não corram o risco de realizarem suas práticas pedagógicas de modo academicista, conteudista, sem vínculos com a realidade sociopolítica, lembrando-se sempre que a escola é espaço de acesso, produção e (re) construção de conhecimento, levando-se em conta que somos sujeitos históricos. Cada conteúdo técnico precisa ser desenvolvido de modo a articular cultura, ciência e trabalho, considerando-se sempre que a escola é lugar de criatividade, atividade, solução de problemas, desafios práticos e intelectuais. Por estas razões é que se faz necessário

assumir o trabalho como princípio educativo - mediação de primeira ordem entre o ser humano e o meio ambiente -, as estratégias pedagógicas adquirem ênfase no sentido de possibilitar a compreensão do processo social, cultural e histórico da ciência e da tecnologia mediado pelo trabalho. Se aqui há uma convergência com o que Gramsci (1991) define como o método da escola ativa e criadora, teríamos a perspectiva histórica e dialética do trabalho pedagógico. Como afirmamos em outro texto (Ramos, 2005), é histórico porque se ocupa em evidenciar, juntamente com os conceitos, as razões, os problemas, as necessidades e as dúvidas que constituem o contexto de produção de um conhecimento; dialético, porque a razão do estudo dos fundamentos científicos, sócio-históricos e culturais da produção moderna possibilitaria compreendê-los como um sistema de relações que os constituem (RAMOS, 2011, p. 781).

Uma escola que oferece ensino técnico e ensino médio na forma integrada necessita debater sobre as possibilidades de um currículo integrado, tendo-se em vista que este não se resume a um documento, antes, é uma carta de intenções, uma materialidade das e para as ações pedagógicas. O que se espera é que esse currículo integrado possa garantir uma formação integral e permanente de cada uma e cada um que adentre os muros dessa escola. É preciso que cada ação dentro dela seja desafiadora e estimule a solução de problemas, além da necessidade de corresponder aos anseios dos sujeitos da educação formal, institucionalizada, articulando não apenas conteúdos escolares, mas buscando o equilíbrio entre as dimensões sensíveis e as intelectuais, a lógica e a subjetividade, os métodos e os conteúdos, bem como buscando superar o mero diretivismo do trabalho docente e o espontaneísmo das ações discentes. Educador e educando em diálogo e na construção de significações para a existência e para o trabalho.

A construção de um currículo integrado em uma escola integrada e de tempo integral, como é o caso do Campus Registro, exige que se adeque quantidade - de aulas, de conteúdos, de atividades, de horas - e qualidade, visando a formação integral, fundamentando-se epistemológica e pedagogicamente na cultura, na ciência e no trabalho, como já apontado anteriormente.

Para além do trabalho em sala de aula, por assim dizer, o Campus Registro favorece ações integrativas e de ampliação e aprofundamento de conhecimentos, como atividades de pesquisa e de extensão. Estudantes e docentes se envolvem em ações como: programas institucionais de bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica do IFSP, programas de Iniciação Científica voluntária, Feira de Ciências do Vale do Ribeira (FECIVALE), Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), Núcleo Incubador EMPREENDIF, Semana da Leitura, Semana da Diversidade, semanas dos cursos, Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), além dos grupos de pesquisa que realizam inúmeras atividades.

A perspectiva de trabalhos integrados no Campus Registro exige formação continuada dos docentes no sentido de se apropriarem da teoria sobre ensino integrado em suas múltiplas dimensões para que possam fundamentar uma prática com vistas à formação omnilateral e no sentido de um currículo integrado e integrador.

Em conversas informais, talvez não tão científicas como se espera, os docentes, principalmente aqueles que não são licenciados, comentam sobre a dificuldade de entenderem como se dá uma formação integrada, interdisciplinar, objetivando essa formação integral que perseguimos desde sempre. Assim, a formação continuada se faz necessária, assim como a reunião de todos os docentes que atuam em cada curso para, num esforço único, efetivarem uma ação pedagógica voltada para a construção do pensamento crítico, para a formação integral e para a cidadania.

Voltando nosso olhar para o NEM compreendida como uma reforma nefasta e perversa à qual a educação brasileira foi submetida e que trai os princípios de equidade e de igualdade propostos como base de um ensino comprometido com a cidadania, a superação das desigualdades e a construção de uma sociedade genuinamente justa e democrática. Perversa na forma como acirra a desigualdade entre os filhos da classe trabalhadora e os da elite econômica. Esvaziada em conteúdos e métodos, precarizando o trabalho docente. “Como fazer brigadeiro” e “gerenciar o mundo dos pets” simulam o empreendedorismo e escondem a “uberização” do trabalho.

Posso afirmar que, apesar de todos os aspectos problemáticos que apontei nesta análise, o Campus Registro é um exemplo de resistência ao NEM. Os docentes do Campus Registro não se dobraram a essa reforma e se mantêm firmes no propósito de uma formação geral e uma formação técnica integradas. Foram desafiados pela reforma e pela Reitoria, se desdobraram em debates e resistiram aos desmandos da lei do Novo Ensino Médio. Uma resistência que foi salientada neste artigo ao apresentar os PPC dos cursos técnicos de nível médio na forma integrada nos quais ainda se mantêm os componentes curriculares das áreas de Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagens e Matemática. No Campus Registro não se ensina a fazer brigadeiro caseiro, mas recebe grupos de jongo e palestras sobre gênero; não se ocupa de “RPG”, mas oferece atividades de arte que subvertem a lógica hegemônica de cultura; não oferece como gerenciar o trabalho com pets, mas oferece mentoria para projetos de engenharia reversa.

Um corpo docente que não sucumbiu ao canto da sereia de uma reforma educacional natimorta, condenada às críticas severas e ao medo de desagradar uma elite econômica que insiste em determinar como o ensino brasileiro deve se organizar, atuando efetivamente neste sentido.

A exemplo dessa resistência, conversei com docentes do Campus Registro e, dentre eles, destaco a conversa, por aplicativo de mensagem (2023), que tive com Rodolfo Soares Moimaz, professor de Sociologia. Ele afirma que:

as regulamentações vigentes acerca da construção dos PPCs no médio integrado são marcos para as reivindicações de qual modelo de educação podemos implementar. Isto porque é algo palpável, que já existe, uma experiência de sucesso (principalmente em oposição aos itinerários técnicos definidos pela Reforma).

Matheus Enrique da C. P. Brasiel, professor de Matemática também atuando no Campus Registro, em conversa por aplicativo de mensagem (2023), pondera que

a reformulação de PPC em 2022 impactou algumas áreas [com redução de carga horária].

Mas, de certa forma, tanto as disciplinas do núcleo comum quanto as da área técnica são bem definidas e têm total relação com a formação técnica escolhida pelo estudante ao ingressar no IFSP.

Até mesmo nessa reformulação do PPC, o IFSP de Registro foi bem valente e resistente a algumas normas impostas pela PRE [Pró-Reitoria de Ensino], como, por exemplo, no corte de carga horária que foi solicitado. Optamos por colocar o ano letivo em 36 semanas (desconsiderando uma semana por bimestre onde são realizadas atividades como SNCT, Semana da Leitura e Diversidade, semanas dos cursos) sem que isso impactasse na carga horária da disciplina. Buscamos criar disciplinas integradoras, mostrando uma relação mais próxima da área técnica com a comum, entre outras ações.

Na opinião de Brasiel, os docentes do EMI do Campus Registro representam uma resistência, uma “desobediência” às determinações do NEM, uma ação conjunta na perspectiva de construir caminhos para uma educação pensada para a formação integral de cada estudante, em suas dimensões ética, afetiva, estética, física, intelectual, comprometida com a sociedade e em busca de um currículo integrador.

4 Para finalizar: uma utopia

A partir de minha análise dos PPCs, considero que a utopia está ainda a dois passos adiante de nós, é necessário que o corpo docente do Campus Registro organize estudos teóricos e arrisque aventurar-se por projetos que articulem efetivamente cultura, ciência e técnica.

Utopia inspirada em Paulo Freire (2015, p. 62):

Todo amanhã, porém, sobre que se pensa e para cuja realização se luta, implica necessariamente o sonho e a utopia. Não há amanhã sem projeto, sem sonho, sem utopia, sem esperança, sem o trabalho de criação e desenvolvimento de possibilidades que viabilizem a sua concretização. É neste sentido que tenho dito em diferentes ocasiões que sou esperançoso não por teimosia, mas por imperativo existencial.

Essa utopia está na construção de uma trajetória escolar que promova tanto a alfabetização científica como a alfabetização política, tomando como referência o pensamento de Paulo Freire (1997, p. 28), elaborando uma “reflexão crítica sobre o mundo tal como ele devém e ao anunciar um outro mundo, não pode fazer abstração duma ação transformadora de modo a permitir que esta predição se concretize”. Alfabetização cuja leitura do mundo preceda a leitura da palavra, que permita a superação de uma consciência ingênua, que desvele a realidade e vislumbre um mundo mais equitativo, de superação das desigualdades, democrático, justo, amoroso e dialógico; passos que não apenas o Campus Registro precisa dar, mas todos os educadores que desejam denunciar a vilania, os genocídios, as violências, podendo anunciar a construção de mundos e sonhos possíveis.

Referências

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Recebido: 10 de Novembro de 2023; Aceito: 23 de Novembro de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro Editores Convidados - Dossiê 67: Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino; Profa. Dra. Cleide Rita Silvério de Almeida e Profa. Dra. Elaine Teresinha Dal Mas Dias

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