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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.67 São Paulo out./dez 2023  Epub 19-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n67.25472 

DOSSIÊ 67 - FORMAÇÃO NO ENSINO MÉDIO: CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA

UMA EDUCAÇÃO MINGUADA: O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO

UNA EDUCACIÓN EXIGUA: EL PROYECTO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DE LA REFORMA DEL SECUNDARIO

A MEAGRE EDUCATION: THE POLITICAL-PEDAGOGICAL PROJECT OF THE HIGH SCHOOL REFORM

Eliza Bartolozzi Ferreira, Doutorado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-4100-9875

1Doutorado em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Vitória-Espírito Santo-Brasil


Resumo

O texto discute a atual reforma do ensino médio, fruto de pesquisa realizada na rede estadual de ensino do Espírito Santo. O argumento principal é de que a reforma representa um projeto contenedor de acesso aos jovens ao ensino superior e regulador da permanência no ensino médio, aprofundando as desigualdades e exclusão escolar. A análise parte de estudo documental e de reflexões construídas a partir dos dados coletados empiricamente. A reforma educacional expressa um rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano com uma nova aliança entre a economia e a psicologia, sendo um projeto de negação do direito ao trabalho para os docentes e negação do direito à educação para os discentes. A educação pública é pressionada a diminuir o seu tamanho e seu modus operandi; uma educação minguada.

Palavras-chave Novo ensino médio; Teoria do Capital Humano; Escola da escolha; Projeto de vida.

Resumen

El texto discute la actual reforma de la enseñanza media, resultado de una investigación realizada en el sistema escolar estatal de Espírito Santo. El argumento principal es que la reforma representa un proyecto que restringe el acceso de los jóvenes a la educación superior y regula su permanencia en la enseñanza media, profundizando las desigualdades y la exclusión escolar. El análisis se basa en un estudio documental y en reflexiones basadas en datos recogidos empíricamente. La reforma educativa expresa un rejuvenecimiento de la Teoría del Capital Humano con una nueva alianza entre economía y psicología, y es un proyecto que niega a los profesores el derecho al trabajo y a los alumnos el derecho a la educación. Se está presionando a las escuelas públicas para que reduzcan su tamaño y su modus operandi: una educación cada vez más reducida.

Palabras clave Nueva enseñanza secundaria; Teoría del capital humano; Escuela de elección; Proyecto de vida.

Abstract

The text discusses the current reform of secondary education, the result of research carried out in the state school system of Espírito Santo. The main argument is that the reform represents a project that restricts young people's access to higher education and regulates their permanence in secondary education, deepening inequalities and school exclusion. The analysis is based on a documentary study and reflections based on empirically collected data. The educational reform expresses a rejuvenation of the Human Capital Theory with a new alliance between economics and psychology, and is a project that denies teachers the right to work and students the right to education. Public schools are being pressurised to reduce their size and their modus operandi; a shrinking education.

Keywords New secondary education; Human capital theory; School of choice; Life project.

Introdução

Este texto objetiva discutir a atual reforma do ensino médio instaurada pela Lei nº 13.415/2017. Nosso argumento principal é de que essa reforma representa um projeto para a educação brasileira de largo e dramático alcance que altera não somente a oferta do ensino médio, mas se espalha para as outras etapas da educação básica e ensino superior. Essa abrangência e o seu grau de transformação da oferta da educação pública no país pode explicar a emergência adotada pelo então Presidente Temer (2016-2018) ao enviar uma Medida Provisória (MP nº 746/2016) para o Congresso Nacional assim que instalado um novo golpe à democracia brasileira. Como derivação desse argumento, analisaremos o sentido da reforma com foco na ideia muito veiculada para a sociedade de que o novo ensino médio (NEM) valoriza a liberdade de escolha do estudante. Essa ideia assume materialidade no currículo escolar com as ofertas dos itinerários formativos e, sobretudo, a partir do eixo curricular “projeto de vida”.

As reflexões aqui desenvolvidas são parte da pesquisa realizada sobre a reforma do ensino médio na rede estadual do Espírito Santo, na qual coletamos dados empíricos por meio de questionário com professores e entrevistas com diretores e análises de documentos nacionais e estadual. A pesquisa contou com financiamento do CNPq no período de 2019-2022.

Em especial, este texto apresenta a análise do Parecer nº 05 do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno que apresenta as “recomendações de Diretrizes Nacionais para a avaliação da Educação Básica: Novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)”, com o qual argumentamos acerca do projeto político-pedagógico imbricado na reforma do ensino médio: o de conter a entrada das classes populares no ensino superior. Ademais, com base no acompanhamento das políticas educacionais nos municípios e estados na esteira da reforma, argumentamos sobre a sua influência na organização da oferta das outras etapas da educação básica que inclui no currículo o “projeto de vida”. Buscamos desvelar os sentidos da reforma por meio do discurso da liberdade de escolha e do componente curricular projeto de vida. A partir desse movimento analítico, concluímos que a reforma atual do ensino médio expressa uma mudança da forma da Teoria do Capital Humano (TCH) materializar sua pedagogia do mercado, agora buscando uma educação minguada.

1 A retomada e expansão da função “contenedora” da educação

Quando ainda havia somente a MP nº 746/2016, Cunha (2017) publicou um artigo onde apresenta a hipótese de que a reforma é resultado da retomada da função “contenedora” atribuída ao ensino médio, pois retoma a antiga concepção do ensino médio como preparação para o ensino superior, para uns, e formação para o trabalho, para outros. Para o autor, tudo parece indicar que a explicação dessa política se encontra não no Ensino Médio, propriamente, mas no Ensino Superior, como nas reformas das décadas de 1970 e 1990. Essa hipótese é explorada pelo autor a partir da crise da expansão do setor privado do Ensino Superior, que vinha do segundo governo Dilma e, o acirramento dessa crise, já no governo Temer, principalmente pelo estreitamento do financiamento governamental.

Cunha (2017) situa a crise vivida pelo ensino superior privado com falências de faculdades e centros universitários depois de vários anos de acelerado crescimento, com apoio governamental. Ademais, aponta a redução drástica do financiamento governamental, particularmente o Fundo de Financiamento Estudantil do Ensino Superior (FIES) que, em 2014, contava com 38% do alunado das instituições privadas, proporção que caiu para 19% em 2015. “Os alunos pagantes não ficaram imunes à crise que atinge as famílias da baixa classe média, notadamente o desemprego. Tudo isso resultou em uma taxa de inadimplência, em 2016, da ordem de 50% dos contratos” (CUNHA, 2017, s/p).

Assim, para Cunha (2017), a contenção da demanda de Ensino Superior foi a explicação da Medida Provisória nº 746/2016, complementada com a redução do financiamento estudantil mediante o Fies, em volume de recursos/vagas e transferência para as instituições privadas dos encargos financeiros até então assumidos pelo governo. O autor ainda conjectura que, considerando o caldo de cultura ideológica instalado com o golpe, a cobrança de mensalidades pelas universidades públicas (para o que seria preciso uma reforma da Constituição) reduziria parte de suas vantagens comparativas diante das privadas, que poderiam atrair para estas um maior número de candidatos capazes de pagar seus cursos de graduação.

Desde 2019, o projeto de cobrança de mensalidades nas universidades públicas ronda a sociedade confirmando a rede de interesses ligada à reforma do ensino médio sob o olhar atento de Luiz Antonio Cunha. Neste intervalo de tempo da publicação de seu artigo, vimos o Congresso Nacional ameaçar a sociedade brasileira com a cobrança de mensalidades nas universidades por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206/19, retirada da pauta por força da pressão dos movimentos sociais e dos deputados de oposição ao governo.

Em 2022, os governos e organizações de caráter privado emitiram documentos diversos com poder de comprovar a hipótese de Cunha (2017). Dentre tantos documentos normativos produzidos no período, optamos por analisar o Parecer nº 05 do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno, que apresenta as “recomendações de Diretrizes Nacionais para a avaliação da Educação Básica: Novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)”, em resposta aos desafios instaurados pelo Novo Ensino Médio e pela Base Nacional Comum Curricular (Bncc) Etapa do Ensino Médio, Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018. Segundo o Parecer (CNE/CP, 2022), a nova arquitetura do Ensino Médio requer um novo exame para o acesso ao Ensino Superior. De acordo com a Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018, “Art. 13. As matrizes de referência das avaliações e dos exames, em larga escala relativas ao Ensino Médio, devem ser alinhadas à Bncc-EM, no prazo máximo de 4 (quatro) anos a partir da publicação desta” (CNE/CP, 2018).

O Parecer nº 05/2022 apresenta uma síntese histórica e linear do Enem criado em 1998, apontando suas principais características e as mudanças ocorridas até o ano de 2021. Segundo o documento, o “Enem original” (denominação do documento ao Enem 1998-2008) sinalizou um conceito mais abrangente de aprendizagem: por resolução de problemas, interdisciplinaridade e contextualização, constituindo-se em um bom instrumento, na visão dos conselheiros, para qualificar o desempenho dos estudantes egressos do Ensino Médio, e não para selecioná-los ou classificá-los como o vestibular tradicionalmente faz. Já o Enem atual, de acordo com o Parecer, descaracteriza o Enem original, que visava romper os vínculos tradicionais do Ensino Médio com o vestibular, e recupera o sentido de uma Educação Básica comprometida com o Ensino Superior, ao se tornar um vestibular nacional, um processo de seleção extremamente competitivo.

Além da apresentação geral do Enem desde 1998, o documento expõe uma variedade de modelos internacionais de acesso ao ensino superior: Alemanha - Abitur; China - Gaokao; Estados Unidos da América - SAT, ACT e AP Exams; França - Baccalauréat Général (BAC); Reino Unido - General Certificates of Education Advanced Level (GCE A-Levels). O CNE sugere que as novas matrizes avaliativas e os itens sejam inspirados nas tendências recentes das avaliações internacionais e no Pisa com o objetivo de mensurar as competências, os conhecimentos e as habilidades previstos para a formação geral básica.

O Parecer traz contribuições de 5 especialistas brasileiros em avaliação, sem citar os nomes desses especialistas, apenas cita uma referência - Deschamps, 2021 - cujo assunto não está relacionado ao levantamento de dados com especialistas. E, dessa forma, o documento apresenta as recomendações “dos especialistas”:

1. A prova da primeira etapa, que terá como referência as competências e habilidades da BNCC, deve ser única e obrigatória para todos os candidatos com questões interdisciplinares centradas na solução de problemas básicos que auxiliem a medir a capacidade de raciocínio e argumentação do estudante, saindo do foco conteudista que pauta o exame atualmente. Nesta etapa, deve ser dada especial atenção à redação, leitura e Língua Inglesa, com abordagem interdisciplinar na avaliação das 4 (quatro) áreas de conhecimento. Sugere-se o modelo do Enem original e o Pisa como referências principais;

2. A segunda etapa deve se organizar por um conjunto de provas relacionadas às carreiras de nível superior, sendo sugeridas provas em 4 (quatro) áreas:

2.1.STEM; 2.2.Ciência biológicas e da saúde;

2.3.Ciências sociais aplicadas; e

2.4. Humanidades, Linguagens e Artes;

O Parecer (neste momento não se sabe mais se por recomendação dos especialistas) não recomenda a realização de uma prova específica na segunda etapa para os egressos dos itinerários de formação profissional. Segundo os conselheiros, os alunos deverão prestar as mesmas provas dos egressos de itinerários acadêmicos, preferencialmente organizadas em áreas que dialoguem também com as formações dos itinerários profissionalizantes. O argumento utilizado pelo Conselho é de que fazer um exame para esse itinerário formativo encontra barreira de ordem conceitual e operacional.

Do ponto de vista conceitual, é importante considerar que o Enem é voltado para seleção ao Ensino Superior e que, portanto, os candidatos devem demonstrar sua capacidade de seguir os estudos, independente da especificidade de sua formação mais propedêutica ou técnico-profissional (CNE/CP, 2022, p. 20).

O documento não apresenta as barreiras de ordem operacional. Mas, o que importa é o quanto fica evidente as dificuldades que os jovens terão para enfrentar a continuidade de estudos se optarem pelo ensino técnico. Com apenas 1.800 horas de base comum, o jovem tem um tempo menor para apreender os conhecimentos gerais. Ademais, a diversificação de ofertas de disciplinas, às quais muitas não representam o conhecimento científico porque estão relacionadas com aspectos socioemocionais vem conferindo um currículo reducionista que não alcança minimamente a complexidade que o mundo das áreas de conhecimento representa em termos de importância para a autonomia intelectual dos estudantes. As condições ficarão mais desiguais e fortemente excludentes pela dificuldade de acesso, mas também porque o quinto itinerário formativo previsto na Lei n. 13.415/2017 mais parece um curso precoce e de formação estreita, voltada para uma profissionalização generalista e “mais comportamentalista do que técnica” (LAVAL, 2004, p. 79). O Conselho está mais preocupado em estimular os jovens a cursar o quinto itinerário formativo.

Recomenda-se, também, a progressiva implantação de certificações profissionais para os egressos de cursos técnicos e a possibilidade de atribuir incentivos a esses estudantes, para estimular a ampliação da oferta do quinto itinerário do Novo Ensino Médio, tão essencial na preparação dos jovens para o mundo do trabalho (CNE/CP, 2022, p. 20).

No final de um documento de trinta e uma páginas, o CNE propõe treze recomendações para o Enem atender a nova arquitetura do ensino médio. Dentre elas, a primeira afirma o exame como de caráter voluntário, “cuja finalidade é selecionar estudantes para o ensino superior”. Em relação às demais, vale destacar a recomendação de que o Enem seja realizado em duas etapas e cada participante deverá escolher apenas uma prova das 4 (quatro) áreas citadas para responder. No que diz respeito à regulação do ensino superior, registramos as recomendações a seguir:

11. As IES que optarem pela utilização do Enem na seleção de estudantes para o acesso ao Ensino Superior deverão considerar os resultados das 2 (duas) etapas do exame.

11.1. Ao optar pela utilização do Enem, a IES poderá eleger a forma mais adequada de seleção do perfil de estudante desejado para cada um de seus cursos de graduação;

11.2. Será facultado às IES a atribuição de pesos diferenciados nas provas da segunda etapa do Enem, de acordo com os requisitos dos respectivos cursos de graduação;

11.3. Os programas de acesso ao Ensino Superior que optarem pela utilização do Enem deverão indicar aos participantes, com antecedência à aplicação do exame, os cursos de graduação ofertados pela IES com mais aderência ao seu perfil de formação e às 4 (quatro) áreas avaliadas na segunda etapa, de modo que façam suas escolhas autonomamente; e

11.4. As IES poderão utilizar diplomas de curso técnico de nível médio para aplicação de bonificações na pontuação final para ingresso, de acordo com a aderência do curso de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) e o curso de graduação pretendido.

12. As universidades e IES deverão se adaptar aos termos deste Parecer até a aplicação do Novo Enem no ano de 2024 (CNE/CP, 2022, p. 28).

O registro dessas recomendações para o ensino superior é importante porque revela a política pensada pelo Conselho. Começamos pela finalidade do Enem anunciada no parecer. O documente explicita sua ideia de mantê-lo como exame para selecionar os estudantes para o acesso ao ensino superior no Brasil. Todavia, as recomendações contidas no Parecer apontam para uma negatividade dessa finalidade. Podemos entender, então, que a finalidade do Enem, expressa no Parecer nº 05/2022, está intencionalmente carregada de ambiguidades que buscam confundir e desqualificar o Enem. Pois, ao propor um novo modelo de exame, o CNE defende uma forma de regulação inspirada nos modelos do “Enem original” e no Pisa, os quais diferem do modelo desenvolvido pelo Enem atual, cuja finalidade é promover o acesso ao ensino superior.

Conforme evidenciamos no documento, o Conselho faz a crítica ao modelo do Enem realizado no período dos governos do Partido dos Trabalhadores e anuncia sua preferência pelo modelo adotado no governo FHC. Os argumentos são os seguintes (já descritos anteriormente): o impacto do Enem atual sobre o currículo do Ensino Médio reforçou ainda mais seu caráter conteudista, reduzindo o Ensino Médio à etapa preparatória de acesso ao Ensino Superior. Já o “Enem original” sinalizava para um conceito mais abrangente de aprendizagem: por resolução de problemas, interdisciplinaridade e contextualização. “O Enem original constituía-se em um bom instrumento para qualificar o desempenho dos estudantes egressos do Ensino Médio, e não para selecioná-los ou classificá-los como o vestibular tradicionalmente faz” (CNE/CP, 2022, p. 12).

É curioso que no mesmo documento em que o CNE faz uma crítica à uma suposta redução feita pelo Enem ao priorizar o acesso ao ensino superior, mantém sua finalidade central como um exame de seleção para o ensino superior. Parece um paradoxo, mas em nosso entendimento, trata-se de um recurso de linguagem que procura criar uma nuvem de fumaça sobre o verdadeiro teor do documento, qual seja, o de retornar aos princípios do Enem original de medição de desempenho do estudante sem relação direta com o acesso ao ensino superior. A ideia do CNE é garantir a avaliação como importante dispositivo de autocontrole das unidades de ensino e do próprio indivíduo, já que as medidas ranqueadas têm grande efeito nas expectativas individuais no sentido de estimular ou bloquear iniciativas. Ademais, os sistemas educativos são legitimados pelo fato de produzirem resultados mensuráveis e, nessa lógica, devem continuar assim para justificar os investimentos financeiros.

Essa reflexão pode ser confirmada a partir da apresentação de Maria Helena Guimarães em evento realizado em 2023 no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEL) - polo Ribeirão Preto e Instituto Airton Sena, onde afirma:

O ENEM não deveria ser uma avaliação para o ingresso no Ensino Superior, mas sim uma avaliação ao final do Ensino Médio, cujos resultados ficam à disposição das universidades para que elas os usem ou não como forma de seleção dos estudantes. As universidades devem usar o Enem como um dos critérios de acesso ao superior, considerando a autonomia das universidades (GUIMARÃES, 2023).

As recomendações do CNE evidenciam para uma série de mudanças no ensino superior, a começar pela centralidade dada à condição de ingresso do estudante nesse nível de ensino. A proposta é que o ingresso seja em duas vertentes sendo que, a primeira, está relacionada à diferenciação e divisão das áreas de conhecimento. Se for assim, observamos que segue a tendência reformista neoliberal em curso desde a década de 1990, qual seja a de fortalecer a descentralização que conduziu ao abandono da ideia de uniformidade e, por sua vez, ressaltou a diversidade. O que, a princípio, demonstra uma perspectiva mais adequada ao pensamento contemporâneo. Contudo, podemos situar esse deslocamento de ideias como um mecanismo neoliberal para situar os valores em outras bases como, por exemplo, que a igualdade ou o igualitarismo promoveriam a uniformidade. Segundo Fanfani (2023), se trata de uma crítica neoliberal que tende a valorizar a diferença mais que a igualdade, ocultando aí a hierarquia e a dominação que existem entre as diferentes formas de vida, linguagens, saberes, gostos e tradições.

Muchos afirman que la igualdad es nociva porque la entienden como sinónimo de ineficácia, pues desmotivaria a los indivíduos para mejorar el lugar que ocupan em la sociedade y acumular riqueza. El imperativo de la igualdad afectaría las bases de la libertad y la competência y, de este modo, se constituiria en um obstáculo para el progresso de los indivíduos y de la sociedade (Fanfani, 2023, p. 112).

Laval (2004) vai dizer que a “diversidade, tema comum da direita e da esquerda modernizadora, se torna o princípio que suplanta aquele da igualdade” (LAVAL, 2004, p. 103). Essa racionalidade pode ser estendida para a ideia de universalização da educação ou do próprio direito à educação que se veem ameaçados pelo conteúdo da reforma do ensino médio quando abandona a perspectiva do direito a uma formação básica equitativa para todos e todas.

A preocupação aumenta quando observamos essa lógica na realidade brasileira caracterizada pela desigualdade e pelo baixo atendimento ao ensino superior, com risco de aprofundamento das desigualdades no movimento equivocado de diferenciação. A reforma se materializa na fragmentação e estreitamento do currículo. Nessa perspectiva, organizar (e diferenciar) o ensino superior por áreas de conhecimento significa formar docentes generalistas de forma a simplificar sua base de conhecimentos, reduzindo o conhecimento a competências e habilidades.

A segunda vertente busca materializar o fortalecimento da concorrência entre as instituições de ensino superior (IES), com possibilidades abertas para cobranças de mensalidades nas públicas combinadas com a recomendação de as IES estabelecerem formas variadas de ingresso de acordo com a lógica da oferta-demanda. Porque no fundo é isso que se vislumbra quando conhecemos o modo de organização de muitas IES públicas e privadas do país.

O item 11 descrito acima sobre as recomendações do CNE remete a uma proposta de individualização das IES, uma fragmentação ainda maior, quando busca enquadrar as instituições ao novo Enem e lhes dá, ao mesmo tempo, uma autonomia para estabelecer um tipo de hierarquia e burocratização a depender da dinâmica que será instalada por este projeto. A depender, será o fim do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Pode ser também um golpe mortal para as IES públicas tal como as conhecemos hoje no Brasil.

O ensino fundamental também é afetado pela reforma do ensino médio desde sua primeira etapa. Para fazer essa afirmativa, é necessário acompanhar as políticas educacionais que estão se movimentando agora no quadro histórico atual. A observação dos fatos relatados em documentos de variados gêneros como uma lei ou uma notícia de jornal ou até mesmo por meios de relatos gerais1, leva a conferir a extensão e a profundidade que a lógica de projeto adentrou no universo escolar. O modelo Escola da Escolha está hoje presente no Ensino Fundamental ofertado em mais de 1.300 escolas no país. Em Cachoeiro de Itapemirim/ES, por exemplo, o modelo foi iniciado em 2019 com duas escolas e, no ano de 2022, o modelo está em 7 (sete) escolas do município. A Secretária Municipal de Educação de Cachoeiro, Cristina Lens Bastos de Vargas relatou o início de toda a história construída pelo município2.

Em 2018, o Movimento Empresarial do Sul do Espírito Santo (Messes), já parceiro da prefeitura do município em muitos projetos, buscou a parceria do ES em Ação, que, juntamente com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), já tinham um modelo de sucesso implantando na rede estadual de ensino do Espírito Santo e trabalhavam justamente na ampliação desse modelo. Então, a Secretaria Municipal de Educação firmou parceria com essas instituições para a implantação do modelo da ‘Escola da Escolha’ na EMEBTI Profº. Athayr Cagnin e na Julieta Deps Tallon, explicou (ESAÇÃO, 2022).

A “Escola da Escolha” é uma proposta centrada no protagonismo e no projeto de vida dos estudantes do ensino fundamental e do ensino médio. Além de cumprir com a função contenedora de acesso ao ensino superior, a reforma também exerce a função de conter a permanência dos jovens no ensino médio por meio de mecanismos sutis, tais como, a ampliação da escola de tempo integral para uma população grande de estudantes-trabalhadores; a ilusão da escolha, o estímulo à competição escolar e à meritocracia levam muitos jovens a desistirem da escola etc Quando não exerce diretamente a função contenedora na educação básica, a reforma estimula a existência de uma escola minguada porque centrada na lógica dos resultados e em soluções de gestão e governança privada, com efeitos para o descentramento do conhecimento científico, para a desprofissionalização do trabalho docente, para a expansão do ensino à distância e para o fechamento de escolas.

A perspectiva pedagógica do protagonismo e empreendedorismo domina a reforma do ensino médio que elege o projeto de vida como eixo do currículo, adicionado ao discurso do incentivo à liberdade de escolha. No primeiro momento, a bandeira da liberdade de escolha foi a mais utilizada pelos reformadores, com divulgação pelos grandes meios de comunicação para acessar toda a sociedade que enxerga esse mantra com bons olhos. Já o projeto de vida é o dispositivo curricular para manter o controle e a disciplina dos jovens a partir de uma premissa ontológica que parte da ideia de que somos seres tomados de interesses individuais. Vamos aqui explorar essas noções mesmo que ainda na forma de sínteses, mas com a expectativa de compreender os sentidos que as constituem.

2 A liberdade de escolha

A reforma do ensino médio alçou a bandeira da liberdade de escolha como estratégia de convencimento à população sobre as vantagens e a inovação do novo ensino médio. Para compreender esse discurso, cabe primeiro desvelar os sentidos de liberdade de escolha recuperados pela reforma.

Nossa análise parte de uma evidência estabelecida pela Lei n. 13.415/2017 para identificar os limites colocados para os jovens para exercer sua liberdade de escolha. De acordo com a lei, as escolas podem adotar pelo menos dois itinerários formativos em um país onde quase três mil municípios possuem apenas uma única escola, o que leva a crer que a liberdade de escolha será exercida no limite oferecido pelo sistema educacional. De fato, esses limites são denunciados em várias pesquisas desenvolvidas no país que revelam a organização dos itinerários formativos nos sistemas educativos.

Em São Paulo, por exemplo, a investigação realizada por Corti, Goulart e Cassio (2022), no âmbito da Rede Escola Pública e Universidade (Repu) revela que vários aspectos identificam que a “liberdade de escolha” do estudante do ensino médio está desigualmente distribuída do ponto de vista socioeconômico na rede estadual paulista. Essa limitação pode ser observada a partir do tamanho das escolas, dos municípios em que estão localizadas e por uma série de fatores relacionados à gestão escolar. Os dados levantados pelos autores apontam que quem estuda em escolas com perfil socioeconômico mais baixo tem, em geral, menor possibilidade de escolha do que quem estuda nas escolas com perfil socioeconômico mais elevado.

A pesquisa de Cassio (2022) detalha a estratégia utilizada pela rede paulista de ensino de expansão da oferta do ensino à distância, pois a rede não tem estrutura para ofertar a liberdade de escolha e os itinerários formativos previstos pela reforma. Com isso, segundo o autor, o horizonte é de mais desigualdade e precariedade da oferta do ensino médio, sobretudo no noturno.

No Espírito Santo, a situação não é muito diferente quando observamos a produção das desigualdades na distribuição dos 10 itinerários formativos entre as 290 escolas de ensino médio da rede estadual. Uma vez estabelecido pelo CNE que cada escola deveria ofertar, no mínimo, dois itinerários formativos, coube à Secretaria Estadual de Educação (Sedu) definir os critérios, estratégias e possibilidades de sua distribuição por escolas. Para tanto, foi elaborada uma tabela de referência para cálculo da quantidade de itinerários formativos de aprofundamento por escola que se baseia em dois critérios básicos: número de escolas vizinhas e a quantidade de turmas da escola.

O número de unidades vizinhas para cada escola foi definido considerando a quantidade de escolas localizadas no mesmo município, dentro de um raio de 10 km por vias rodoviárias de acesso, enquanto a quantidade de turmas teve como parâmetro o número de turmas de 1ª e 2ª séries que, hipoteticamente, estariam cursando as 2ª e 3ª séries no formato do Novo Ensino Médio em 2022. Nesse cálculo é considerado o número de turmas dos turnos matutino e vespertino, porém limitado à quantidade de salas de aula da escola. Embora de modo não linear, observamos que um maior número de turmas implica geralmente uma maior oferta de itinerários formativos, ocorrendo o inverso com relação ao número de escolas vizinhas. Ou seja, com o aumento do número de escolas vizinhas, tal oferta tende a diminuir e, se quiser ter uma liberdade de escolha, o aluno precisará percorrer diariamente uma distância de 10 km de seu local de moradia. Como resultado, o quadro geral da oferta é de grande diversidade e desigualdade, conforme podemos observar a Tabela 1.

Para complementar, é bom destacar que 44,5% das escolas estaduais ofertam o quinto itinerário formativo e, onze municípios do estado do Espírito Santo, contradizendo o que diz a lei nacional, vêm ofertando apenas um itinerário formativo totalizando 16 escolas, sendo que dentre essas, 12 escolas, ofertam exclusivamente o itinerário "formação técnica e profissional" e, a metade (6), oferta apenas um curso técnico.

Tabela 1 Quantidade de itinerários formativos ofertados pelas escolas de ensino médio na rede estadual do Espírito Santo 

Número de itinerários Número de escolas % de escolas
1 16 5,5
2 156 53,8
3 69 23,8
4 48 16,6
5 1 0,3
Total 290 100,0

Fonte: Elaboração da autora a partir de dados divulgados pela Sedu.

Essas realidades da educação brasileira lembram o que Lessard e Carperntier (2016) anunciam de que estamos vivendo a ascensão de uma nova regulação que produz dois efeitos principais: uma maior segmentação da oferta educativa e um fortalecimento das desigualdades escolares.

Antes de tudo, a multiplicação das especialidades e opções nos estabelecimentos escolares diversifica a oferta educativa e contribui assim para segmentá-la no mercado escolar. Essa maior segmentação cria um mercado ‘dual’ de ensino. O primeiro, que os estudiosos chamam de clássico, é monopolizado pelas famílias abastadas, que ‘circulam e brincam de dança das cadeiras entre os estabelecimentos privados abastados, os estabelecimentos públicos abastados e os estabelecimentos médios. O segundo mercado resulta da ‘democratização das estratégias familiares de escolha dos estabelecimentos em um contexto no qual a queda global do número de alunos intensifica a concorrência entre os estabelecimentos para manter ou atrair efetivos (LESSARD; CARPENTIER, 2016, 144).

A liberdade de escolha, nesse contexto, é radicalmente colocada no seio do liberalismo. Como afirma Foucault (2010), o liberalismo não é aquilo que aceita a liberdade, mas é aquilo que se propõe fabricá-la a cada instante em acordo com as correlações de poder. Neste caso, a liberdade está distante das condições reais de existência das escolas e dos jovens. Ou como diz Michèa (2008), por trás da ilusão legal de uma escolha livre e privada, está a realidade de uma diminuição da autonomia dos indivíduos. O projeto original do liberalismo político é instalar uma sociedade axiologicamente neutra, neutra sobre o plano do valor, viver individualmente sua própria definição de bem. A liberdade parte de uma suposta natureza do homem/mulher egoísta, mobilizados pelos interesses que motivam suas ações. Nessa lógica, o mercado é o lugar pacificador dos egoísmos. Um projeto pedagógico, assim, deve servir para construir o “espírito da empresa” na comunidade educacional.

Essa política de ganhadores e perdedores adentra o espaço da educação. A começar pelos docentes, “quer eles ensinem uma disciplina tecnológica ou geral, não é o conteúdo dos saberes que deve importar para os professores, mas a percepção e a avaliação da utilidade profissional dos cursos, das disciplinas e dos métodos aos olhos das exigências requeridas pelo mundo econômico” (LAVAL, 2004, p. 80). A formação dos discentes é colocada sob o paradigma do “aprendizado ao longo da vida” como diretriz pedagógica de adaptação dos jovens às necessidades do mercado, completada pela autodisciplina e autoaprendizado contínuo de conhecimentos úteis ao mundo dos negócios.

O alto grau de flexibilização da reforma permite uma diversificação de acessos e ofertas ao ensino médio e superior ainda não conhecida, com capacidade de aprofundar as desigualdades educacionais, seja pela via da privatização e/ou pela via da individualização dos percursos escolares. A flexibilização se realiza no quadro onde é alçada a ideia de liberdade de escolhas; onde existem indivíduos e seus interesses.

A Teoria da Escolha Pública3 pode ajudar a explicar o espírito da reforma do ensino médio. Segundo Quaesner et al (2017) , a public choice se desenvolveu e amadureceu ao longo de mais de cinquenta anos, e contempla a aplicação de teorias e métodos de economia como escola de pensamento no campo da ciência política. No geral, a teoria analisa o comportamento de todos os indivíduos envolvidos no processo decisório, eleitores, grupos de interesses, burocratas, gestores políticos e legisladores. A teoria parte de uma premissa ontológica de que os indivíduos possuem interesses particulares, crenças e valores; um grupo não possui interesses, crenças ou valores intrínsecos - somente os oriundos dos indivíduos que compõem tal grupo. Assim, a unidade de funcionamento humano é o indivíduo que é egoísta, calculador e racional. O processo decisório, então, envolve o utilitarismo, logo é subjetivo, pois apenas o interesse privado tem realidade e significado para o indivíduo.

3 Projeto de vida

A porta de entrada da prática do projeto de vida no currículo da escola brasileira se deu no modelo Escola da Escolha adotado em Recife pela rede estadual de ensino de Pernambuco (2002). O modelo foi importado pelo Espírito Santo, em 2015, por meio da criação do Programa de Escolas Estaduais de Ensino Fundamental e Médio em Turno Único (Escola Viva). A Escola Viva foi implantada em parceria com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE)4 que concebeu o Projeto de Vida como solução central para atribuir sentido e significado do projeto escolar na vida do estudante e levá-lo a projetar uma visão de si próprio no futuro, apoiado por todos que conjugam esforços, talentos e competências.

O Ginásio Pernambucano foi o ponto de partida da Causa da Juventude com a concepção de um Modelo de educação inovador denominado Escola da Escolha e cujo foco é o Jovem e a construção do seu Projeto de Vida. Após o desenvolvimento do Modelo e da consolidação da política pública em Pernambuco, o ICE iniciou a sua expansão junto às Secretarias de Educação estaduais e municipais nas cinco regiões brasileiras e continua com intenso trabalho de mobilização para a realização da sua Visão. Hoje a Escola da Escolha atende o Ensino Médio e o Ensino Fundamental (ICE, s/d5).

O projeto de vida é um dos principais eixos formativos constituintes da reforma do ensino médio e da Bncc que visam uma pedagogia do mercado. A afirmativa de Popkewitz (1997) resume o problema: uma reforma na educação busca intervir e disputar uma nova gramática de poder nas instituições de ensino. Nesse caso, estamos assistindo a uma nova investida da abordagem da Teoria do Capital Humano na educação.

A rigor, o novo ensino médio propõe uma reforma do currículo que não aponta para uma expansão da rede física e nem tem relação com melhorias nas condições de trabalho docente, salário, carreira e com a qualidade da permanência dos estudantes na escola. Quando observamos as reformas produzidas desde a década de 1990 e não somente no Brasil, entendemos que são marcadas por mudanças nas políticas curriculares, “como se reformar o currículo fosse, sobretudo, fazer uma reforma de sua organização” (LOPES, 2008, p. 19), com a finalidade de alterar as relações de poder e de controle, operando mudanças nos conteúdos de ensino como forma de estabelecer o que é válido e legítimo de ser ensinado.

A centralidade de uma reforma no currículo escolar deixa evidente que se trata de uma política com intencionalidades de transferência de responsabilização para outros (no caso, professores e estudantes) pelo sucesso ou fracasso da educação. Esta mesma prática ocorre na atual reforma do ensino médio, cuja oferta passa a ser distribuída entre uma formação básica comum orientada pela Bncc (com 1.800 horas, no máximo) e uma parte flexível constituída pelos itinerários formativos, perfazendo um total de 3.000 horas; com a eliminação de disciplinas reconhecidamente emancipatórias provindas das ciências humanas; a criação das disciplinas eletivas ofertadas pelos docentes como forma de manter uma relativa carga horária na escola, o que tende a provocar uma espécie de concorrência entre os profissionais que dependem das escolhas feitas pelos estudantes, ademais de muitos professores precisarem assumir componentes curriculares estranhos à sua formação e; o projeto de vida como o eixo do currículo.

É sabido que uma reforma curricular tem essa capacidade amplificadora de afetar diversas dimensões da educação, desde os seus atores até o controle dos saberes e de suas formas de apropriação. E, outro fator implícito na fala do então ministro é o campo de possibilidades aberto por uma reforma curricular que cria novos negócios de material didático, cursos de formação etc. Isto é, a educação não deixa de ser uma política pública, mas se abre para o mercado se tornando um negócio como qualquer outro.

O caráter central da política curricular representado pelas reformas educativas desde os anos 1990 guardam aspectos comuns com o atual novo ensino médio. Podemos citar os principais: as noções de flexibilidade, de diversidade, de interdisciplinaridade e o conceito de competências como norteador da organização do currículo. A análise feita por Lopes (2008) a respeito das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, de 1998, pode ser estendida para a atual reforma do ensino médio que inclui a Lei nº 13.415/2017 e a Bncc.

É buscada a superação da dicotomia entre conhecimentos acumulados na história da humanidade (disciplinarizados) e competências. Entretanto, na definição das competências os formuladores expressam a associação com os princípios do mundo produtivo e com a perspectiva mais restrita do saber-fazer, visando construir uma prática pedagógica específica. Nesse sentido, os conhecimentos acabam por se submeter às competências (LOPES, 2008, p. 115/116).

O Parecer do CNE/CEB nº 15/1998 que discorre sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Dcnem), cuja homologação instituiu a Resolução nº 3/1998, também afirmava estar implantando um “novo ensino médio” (CNE/CEB, 1998, p. 16). Por sua vez, a atualidade do Parecer de 1998 se revela cada vez mais forte quando se refere constantemente ao projeto de vida: “(...) o trabalho se situa no projeto de vida como uma estratégia para tornar sustentável financeiramente um percurso educacional mais ambicioso” (CNE/CEB, 1998, p 26). Ademais, “a duplicidade de demanda continuará existindo porque a idade de conclusão do ensino fundamental coincide com a definição de um projeto de vida, fortemente determinado pelas condições econômicas da família e, em menor grau, pelas características pessoais (CNE/CEB, 1998, p. 26).

Portanto, a reforma atual retoma os princípios neoliberais estabelecidos desde a década de 1990, os quais submetem os conhecimentos escolares à aquisição de competências. O componente curricular Projeto de Vida cumpre essa função: “o Projeto de Vida busca desenvolver uma espécie de engajamento moral dos estudantes na sociedade com base nos valores do mercado, os quais podem ser interiorizados pelo discurso característico do empreendedorismo (FELIX; FERREIRA; SANTOS, 2021, p. 34).

Podemos afirmar que a atual reforma do ensino médio traz uma racionalidade presente desde a década de 1990 na educação brasileira, construída com lastros fortes em experiências desenvolvidas por sistemas educacionais do país por meio de arranjos constituídos com setores privados. A racionalidade dominante é aquela que privilegia a responsabilização individual e o espírito da concorrência como modo de vida para o enfrentamento das incertezas impostas pela sociedade digital. À educação escolar cabe desenvolver no estudante o seu projeto de vida, com ênfase nos aspectos psicológicos, imprimindo a meritocracia como dispositivo de seleção educacional e social. No mesmo compasso, a reforma tende a destituir o trabalho docente de sua profissionalidade na medida em que descaracteriza os seus saberes disciplinares, pois os professores estão trabalhando com conteúdos estranhos à sua formação inicial.

Se a educação deve tratar do futuro, o projeto de vida é a estratégia pedagógica do mercado adotada para disciplinar as condutas, selecionar os sujeitos com desempenho e simular a liberdade individual desfeita dos vínculos que constituíram a sociedade do emprego. À escola, portanto, cabe fazer a gestão das competências individuais e tratar as desigualdades de forma isolada na dimensão moral e se pautar na formação de indivíduos egocêntricos no espírito de empreendimento.

A reforma exalta uma mudanca de paradigma para a educação: ocorre um deslocamento não aleatório da ideia do sujeito em face à empregabilidade para o empreendedorismo. Se na década de 1990, na primeira onda neoliberal, a empregabilidade é a elaboração ideológica que explica a questão social do ponto de vista do sujeito individual que disputa um emprego; na segunda onda neoliberal, o ser-empreendedor (ser-empresa) é o projeto pedagógico por excelência que a escola deve desenvolver em uma era que anuncia o fim do emprego. Entendemos assim que a reforma do ensino médio representa um projeto político-pedagógico de atualização da Teoria do Capital Humano.

Considerações finais

A reforma atual do ensino médio expressa a compreensão de uma mudança na forma que conhecemos a Teoria do Capital Humano (TCH) aplicada em uma sociedade industrial animada por uma ideia de desenvolvimento. Nesse tempo, o trabalhador levava os seus conhecimentos e habilidades requeridas para utilizar a maquinaria, o que significa ter um capital adquirido em sua educação. De maneira geral, podemos dizer que essa noção de capital humano apresenta uma dimensão externa focada na qualificação do trabalhador e em uma certificação.

Já a noção de capital humano vislumbrada na sociedade desindustrializada, digital e animada pelo abandono da ideia de desenvolvimento (BRESSER-PEREIRA, 2020) tomou outra forma. A economia política passa a ter como objeto o comportamento humano, ou melhor, a racionalidade interna que o anima. O trabalho exercido pelos indivíduos é concebido como uma conduta econômica, sendo necessário entender como essa conduta é praticada, racionalizada e calculada por aquele que a exerce. Então, podemos dizer que a TCH é praticada agora por meio do controle interno como forma de captura do indivíduo agora mais completamente. Como analisou Foucault (2010), o que se procura obter não é uma sociedade submetida ao efeito-mercadoria, é uma sociedade submetida à dinâmica concorrencial na constituição do homem-empresa. A pedagogia do mercado vem cumprir essa função e o faz de uma forma que aprofunda a exclusão e a desigualdade porque desiste (ou afasta) aqueles que não apresentam o desempenho esperado nas avaliações externas.

Nesse contexto de atualização da TCH é que se torna importante observar a lógica social que sustenta as redes de significados que dão origem às reformas educacionais conferindo dilemas de natureza diversa que vão influir no direito à educação e na condição de exercício desse direito à população da escola pública que se vê pressionada a diminuir o seu tamanho e seu modus operandi; uma educação minguada.

Não obstante as propostas de mudanças na reforma do ensino médio conquistadas pelos movimentos sociais, acadêmicos e de estudantes junto ao governo Lula da Silva (2023), a racionalidade dominante aqui discutida permanece e segue tensionada na disputa entre o público e o privado. Até o momento, o governo enviou um projeto de lei (PL nº 5.230/2023) ao Congresso Nacional que altera parte dos maiores problemas que representam um grande limite na condução do trabalho pedagógico como, por exemplo, a carga horária destinada à formação geral que a lei prevê o máximo de 1.800 horas e o PL propõe aumentar para 2.400 horas entre outras alterações. Mas os princípios da reforma são mantidos e, para compreender a política na prática, cabem investigações científicas conscientes de que os atores das escolas traduzem e constroem suas pedagogias (e práticas) em acordo com suas condições objetivas e subjetivas.

3“Teoria da Escolha Pública”, cujo principal expoente é James Buchanan, economista americano laureado com o prêmio Nobel de Economia em 1986, justamente por mostrar, de forma sistemática, a força benéfica do mercado operando livremente, em contraponto aos sistemas estatais, submetidos aos interesses próprios de políticos e burocratas, que usam o governo para fins pessoais, em detrimento da economia e da sociedade. Para além da política”, William Mitchell e Randy Simmons (TopBooks, 2004).

4O presidente do ICE é Marcos Antonio Magalhães que desenvolveu carreira profissional na Royal Philips Electronics e, em 2003, fundou o ICE. Atua também como Presidente do IQE - Instituto de Qualidade no Ensino. Membro fundador do Movimento “Todos pela Educação” e Membro do Conselho Internacional do World Fund for Education. https://icebrasil.org.br/escola-da-escolha/

5 https://icebrasil.org.br Acesso em 25/05/2022

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Recebido: 05 de Novembro de 2023; Aceito: 16 de Novembro de 2023

Editoras: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista e Profa. Dra. Marcia Fusaro Editores Convidados - Dossiê 67: Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino; Profa. Dra. Cleide Rita Silvério de Almeida e Profa. Dra. Elaine Teresinha Dal Mas Dias

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