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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.14 no.31 Rio de Janeiro set./dez 2018  Epub 17-Maio-2019

https://doi.org/10.12957/childphilo.2018.37222 

Dossiê

Apresentação. À escuta da infancia

Alessandra LopesI 

Beatriz Fabiana OlarietaII 

Carla SilvaIII 

IColegio Pedro II, Brasil - E-mail: alessapiedras@gmail.com

IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil - E-mail: olarietaf@hotmail.com

IIIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil - E-mail: carlaphilos@hotmail.com


APRESENTAÇÃO. À ESCUTA DA INFANCIA

Neste dossiê, apresentamos dez textos que, desde diferentes perspectivas, pensam a infância. Oito deles foram selecionados entre as comunicações apresentadas no IX Colóquio de Filosofia e Educação, "Filosofia e educação em errância: inventar escola, infâncias do pensar", nos dias 1 a 5 de outubro de 2018 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dois procedem do fluxo normal da revista. Independentemente de sua procedência, de sua postura, da disciplina a partir da qual desenvolvem seus argumentos, das práticas que os alimentam, etc., todos eles se entregam à tarefa de "estar à escuta" da infância, de ficar tendidos a ela.

O convite a cultivar a atitude de "estar à escuta" que aqui ecoamos é feito por Nancy (2014). O filósofo francês assinala que essa atitude implica compreender a tensão que há entre escutar e entender ao colocar atenção sobre a dupla acepção do verbo francês entendre. Por um lado, este verbo se refere ao ato de ouvir e de escutar, mas, por outro, também implica o entender. Castelo e Mársico (2007) exploram também o estreito vínculo que liga o entender e o escutar, uma vez que a palavra "entender" esconde, entre os sentidos que a habitam, o "tender". Assinalam:

Entender deriva do latim intendere, um composto do verbo tendo com a preposição in que deu lugar em português a tender, de modo que intendere implica 'orientar-se em direção a algum ponto', 'prestar atenção'. Etimologicamente, não indica tanto o haver compreendido [...], mas o aplicar-se a uma coisa, com a qual se supõe certa familiaridade [...] (CASTELO; MÁRSICO, 2007, p. 123).

Entender e escutar são duas tendências que se colocam em tensão com todo dizer. Todo discurso pronunciado transporta um sentido que precisa ser entendido, mas também anuncia uma escuta que excede esse sentido e que ressoa quando o dizemos. Enquanto o entender está ligado ao compreender, o escutar "[...] é estar inclinado para um sentido possível, e consequentemente não imediatamente acessível" (NANCY, 2014, p. 17). É precisamente por isso que "[...] talvez seja preciso que o sentido não se contente com fazer sentido (ou com ser logos), mas além disso ressoe" (Idem).

Estar à escuta tem a ver com surpreender a sonoridade, a ressonância, e não tanto com se concentrar no sentido da mensagem. "Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido ou em um sentido de borda e de extremidade, como se o som não fosse precisamente nada de outro que não este bordo, esta franja ou esta margem" (NANCY, 2014, p. 19). Estar à escuta é aguçar o ouvido, tender a orelha (tendre l'oreille é a expressão em francês usada por Nancy), esticá-la, é como estar tendido para um sentido possível.

Os textos que aqui apresentamos se entregam precisamente a esse exercício: estender a orelha para a infância. Não se conformam com os sentidos instalados. Tomados de inquietudes, de curiosidades, preocupam-se, buscam ressonância a partir dos sons das práticas sobre as quais se debruçam e dos textos e das ideias com as quais os alimentam.

Muitos deles se inclinam para as crianças, mas vale salientar que não se trata de uma inclinação condescendente. O próprio Nancy (2014, p. 14) adverte que:

'Estar à escuta' constitui hoje uma expressão cativa de um registro de lamechice filantrópica em que a condescendência ressoa com a boa intenção, frequentemente também numa tonalidade piedosa. Assim, por exemplo, nos sintagmas feitos 'estar à escuta dos jovens, do bairro, do mundo', etc.. Mas eu quero aqui ouvi-la noutros registros, em tonalidades completamente diferentes, e antes de mais numa tonalidade ontológica: o que é um ser dado à escuta, formado por ela ou nela, que escuta com todo o seu ser?

Talvez, nos trabalhos que compõem este dossiê, seja possível explorar essa tonalidade ontológica que pretende não só entender, mas também escutar a infância e as crianças, deixar que elas ressoem e coloquem em estado de borda os sentidos instalados sobre elas.

Nas primeiras páginas, o leitor e a leitora deste dossiê encontrarão artigos que trazem uma diversidade reflexiva, e nessa diversidade, e outras mais, buscam se colocar à escuta da infância dentro da instituição que nossa sociedade destinou espacialmente a ela: a escola. Assim, Patricia Raquel Redondo em "La mariposa y el violín. La urgencia de una cita: infancia(s), escuela(s) e igualdad", a partir de uma reflexão político-pedagógica, se inclina para as infâncias de classes populares, infâncias que são fortemente marcadas pela desigualdade. Ela resgata experiências educativas que rompem com a leitura dessas infâncias a partir dessa condição e mostra como a escola pública pode construir outras experiências educativas que transformem a ordem do estabelecido.

Semelhantemente, Meirilene dos Santos Araújo Barbosa e Ana Maria Monte Coelho Frota atentam nos perigos de uma ordem que se estabelece na proposta por uma política de resultados na Educação Infantil. Em "O cuidado na Educação Infantil: cenas do cotidiano de crianças em um centro de Educação Infantil em Fortaleza-CE", inclinam-se à escuta dos diferentes sentidos que o cuidado assume nas relações que professoras e crianças de cinco anos constroem no cotidiano de um centro de Educação Infantil do estado do Ceará. As autoras destacam o modo-de-ser cuidado como uma decisão ética, que convida a repensar o sentido majoritariamente dado à educação.

"Linhas erráticas: cartografias de um outro modo de existir na (vida e) escola", por sua vez, propõe outro modo de existir na escola a partir das diferenças que as crianças instauram nesse território, e na vida. Luciana Pires Alves e Carmen Lúcia Vidal Pérez tecem singularidades em encontros inventivos e deslocamentos em torno da alteridade, apontando a um agir que não comporta enquadramentos, a imposição de limites, nem a si e nem aos outros.

Negam moldes, padrões e formas feitas de expectativas prévias, também, Talula Rita Montiel Severo Trindade e Sandra Regina Simonis Richter. Em "Corpos leitores: infância e escola", fazendo-se acompanhar por Dom Quixote, atentam em tudo que não se deixa enquadrar. Aguçam nossos ouvidos ao potencial da leitura literária como experiência afetiva nas infâncias. Fabulam sentidos outros para a leitura na escola ao fazer atravessar infância, filosofia, arte e educação, destacando a estesia que impregna as experiências de leitura literária. Experiências que vinculam texto e leitor, corpo e alma, silêncio e escuta, afetando sentidos, ressoando nos corpos e provocando o pensamento.

Provocação que Luciana Helena Monsores e Ligia Maria Leão de Aquino fazem ressoar, ao estender nossas orelhas à educação das crianças da classe operária em um contexto conservador, marcado pela instituição e defesa de projetos como o Escola sem Partido. Em "Concepções de infância e a educação das crianças da classe trabalhadora: uma crítica benjaminiana ao projeto Escola sem Partido", a partir de Walter Benjamin, entre outros autores, questionam-se as concepções de infância, história, experiência e política que atravessam esse debate no Brasil. Faz-se atentar na influência que propostas e projetos educativos de tal cunho ideológico e conservador apresentam à educação das infâncias da classe trabalhadora.

"Só se educa para mantermos a infância viva", nos dizem Renato Nogueira e Marcos Barreto no texto "Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas". Promover infancialização, na aposta da incorporação de uma ética afroperspectivista na escola, na afirmação de um caráter disruptivo que a infância como conceito filosófico nos apresenta, nesse sentido querem nos fazer inclinar os autores. Convidam-nos a uma convivência coletiva, a um diálogo que pretende nos colocar na presença da filosofia africana Ubuntu e indígena Teko Porã, à escuta de infâncias poucos conhecidas, no percorrer de caminhos inventados.

Por outras trilhas nos levam Caroline Trapp de Queiroz em seu artigo "A aprendizagem do 'estar morto' como estratégia metodológica na pesquisa com crianças" e Aída Fuentes Medina em "Autobiografía: infancia, memoria y olvido desde una perspectiva filosófica". Surpreendem na literatura caminhos possíveis para escutar as ressonâncias da infância. A primeira encontra em um conto de Ítalo Calvino indícios de um caminho metodológico que, como pesquisadora, lhe permite um encontro dialógico com crianças que se encontram em situação de mudar de residência. A segunda acha em textos autobiográficos um caminho de acesso à escuta de uma infância que ficou na memória, da qual pouco sabemos e na qual tanto a lembrança quanto a ficção se misturam.

Os artigos "Programa de filosofía para niños como propuesta de educación moral: análisis comparado con otros enfoques de la educación moral" de Adolfo Agundez-Rodriguez e "Questions and performatives - communities of inquiry as conventional contexts" de Enrico Postiglione nos chamam ao inteligível ao qual o trabalho filosófico parece almejar. Agundez-Rodriguez estica as orelhas para a proposta de Filosofia para Crianças de Lipman como um programa de formação moral. Faz emitir o caráter integrador e original de uma tal aposta, fundamentado, respectivamente, na junção de elementos vitais para a educação contemporânea e na promoção do desenvolvimento de um pensamento crítico, criativo, cuidadoso. Cuidado, talvez, no qual nos faz atentar Postiglione, ao analisar a etapa de elaboração da pergunta na proposta metodológica de Matthew Lipman em comunidades de investigação heterogêneas. Propõe uma inclusão metodológica ao modelo, para que facilitadores promovam tanto a participação quanto a abertura às ideias e pensamentos das crianças em tais comunidades.

A escuta, nos lembra Nancy (2014), é tanto escuta da fonte da ressonância quanto recepção do ouvinte, que percebe o som porque nele ressoa. O corpo do escutador se transforma em cavidade cujas membranas vibram e lhe permitem escutar o sentido (e com ele o mundo), abismando-se até ressoar.

Desejamos aos(às) leitores(as)-escutadores(as) que este dossiê lhes deixe boas e estimulantes ressonâncias; que os deixe ser rompidos pela infância que convida à escuta de si e do outro num corpo só que comporta toda a diversidade a que este dossiê convida.

Referências Bibliográficas

NANCY, Jean-Luc. À escuta. Belo Horizonte: Chão de Feira, 2014. [ Links ]

CASTELLO, L.; MÁRSICO, S. Oculto nas palavras: dicionário etimológico para ensinar e aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. [ Links ]

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