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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.14 no.31 Rio de Janeiro set./dez 2018  Epub 17-Maio-2019

https://doi.org/10.12957/childphilo.2018.36034 

Dossiê

O cuidado na educação infantil: cenas do cotidiano de crianças em um centro de educação infantil em Fortaleza-CE

El cuidado en la educación infantil: escenas cotidianas con niños de un centro de Educación infantil en Fortaleza

Care in early childhood education: daily scenes of children in a kindergarten in Fortaleza

Meirilene dos Santos Araújo BarbosaI 

Ana Maria Monte Coelho FrotaII 

IUniversidade Federal do Ceará, Brasil - E-mail: meirilenesab@gmail.com

IIUniversidade Federal do Ceará, Brasil - E-mail: anafrota@ufc.br


Resumo

Este trabalho é oriundo de uma pesquisa de Mestrado em Educação Brasileira. O recorte que apresentamos neste texto revela as perspectivas de cuidado percebidas em uma turma de crianças de cinco anos, no cotidiano de um Centro de Educação Infantil (CEI) da rede municipal de Fortaleza. As discussões teóricas sobre o tema envolveram um diálogo entre a pedagogia e a filosofia da educação a partir das contribuições de Kramer (2011), Pagni (2010), Foucault (2010), Rancière (2015), Kohan (2007) e Boff (2005). Tratou-se de uma pesquisa qualitativa de inspiração fenomenológica, cujo método de geração de dados foi a observação participante. As análises revelaram que: nas interações ocorridas nas práticas pedagógicas, professoras e crianças cuidam-se mutuamente; a significação do cuidado pelas crianças pode ser percebida nas minúcias de suas ações cotidianas, bem como no envolvimento afetivo, no brincar juntos, na fala e na escuta do outro, no compartilhar da vida no dia a dia; a significação do cuidado pelo adulto recebe influência da forma como foi cuidado, de sua subjetivação e de suas escolhas no modo de ser; o cuidado humaniza as práticas docentes, inspirando emancipação; a política de resultados que tem visado a "melhoria dos índices educacionais" pode representar um perigo à Educação Infantil por minimizar o compartilhar das experiências específicas da infância ao treinamento para atingir resultados esperados. O estudo destacou a necessidade de refletir sobre o sentido da educação e, com isso, propõe a valorização do modo-de-ser cuidado como decisão ética e enquanto opção de reflexão sobre a forma de viver e interagir.

Palavras-chave: cuidado; educação infantil; práticas pedagógicas

Resumen

Este trabajo procede de una investigación de maestría en Educación Brasileña. El recorte que presentamos muestra las perspectivas de cuidado percibidas en un grupo de niños de cinco años en el día a día de un Centro de Educación Infantil (CEI) de la red municipal de Fortaleza. Las discusiones teóricas sobre el tema implicaron un diálogo entre la pedagogía y la filosofía de la educación a partir de las contribuciones de Kramer (2011), Pagni (2010), Foucault (2010), Rancière (2015), Kohan (2007) y Boff (2005). Se trata de una investigación cualitativa de inspiración fenomenológica, cuyo método de generación de datos procede de la observación participante. Los análisis revelaron que: en las interacciones acontecidas durante las prácticas pedagógicas, profesoras y niños se cuidan mutuamente; la significación del cuidado por parte de los niños puede ser percibida en las minucias de sus acciones cotidianas, así como en el comprometimiento afectivo, en el jugar juntos, en el habla y la escucha del otro, en el compartir de la vida cotidiana; la significación del cuidado por el adulto recibe la influencia de la forma en que fue cuidado, de su subjetivación y de sus elecciones en el modo de ser; el cuidado humaniza las prácticas docentes, inspirando emancipación; la política de resultados que tiene por objetivo la "mejora de los índices educacionales" puede representar un peligro para la Educación Infantil por minimizar la posibilidad de compartir experiencias específicas de la infancia ante la priorización del entrenamiento en vistas a alcanzar los resultados esperados. El estudio destaca la necesidad de reflexionar sobre el sentido de la educación y, con ello, propone la valorización del modo-de-ser cuidado como decisión ética y como opción de reflexión sobre la forma de vivir e interactuar.

Palabras clave: cuidado; educación infantil; prácticas pedagógicas

Abstract

This work has its origin in a master's research about Brazilian Education. The approach that we present in this text reveals the perspectives of caring perceived in a five-year-olds classroom in the daily life in a municipal center for Early Childhood Education in Fortaleza. The theoretical discussions on the theme involved a dialogue between Pedagogy and Philosophy of Education based on the contributions of Kramer (2011), Pagni (2010), Foucault (2010), Rancière (2015), Kohan (2007) and Boff (2005). It was a qualitative research of phenomenological inspiration, which method of data creation was participant observation. The analysis revealed that: in the interactions occurred in pedagogical practices, teachers and children take care of each other; the meaning of caring for children can be perceived in the minutia of their daily actions, as well as in affective involvement, in playing together, in speaking and listening to others, in sharing life on a daily basis; as for the meaning of caring for the adults, it is influenced by the way they were cared for, by their subjectivation and their choices in their way of being; caring humanizes teaching practices, inspiring emancipation; the policy on results that has aimed at "improving educational indices" may represent a danger to Early Childhood Education by minimizing the sharing of specific childhood experiences to training in order to achieve expected results. The study emphasized the need to reflect on the meaning of education and therefore proposes that caring be valued as an ethical decision and as an option for reflection on the way of living and interacting.

Keywords: caring; child education; pedagogical practices

O cuidado na educação infantil: cenas do cotidiano de crianças em um centro de educação infantil em fortaleza-ce

Introdução

Nossa sociedade enfrenta vários problemas de ordem econômica e social. Estamos em meio a uma conjuntura de crise do capitalismo que se manifesta de diferentes formas e influencia os mais diversos setores da comunidade. Nesse contexto, olhamos para as crianças e suas infâncias: que Educação Infantil tem sido vivenciada? Que sentidos temos construído para o cuidado e educação com as crianças? Em meio à construção desse olhar, deparamo-nos com a denúncia de Kramer (2011):

Se, agora, dirigirmos nosso olhar ao mundo que é dado às crianças, o que vemos? Falta de entendimento, ausência de escuta do outro, violência, destruição, morte. Observando o cotidiano no trabalho, na política, nas relações familiares, vemos a falta de diálogo e de escuta do outro. Com frequência, falo desta minha perplexidade e assombro diante da exclusão, da discriminação e da eliminação. Pois apesar do avanço e aparente progresso tecnológico, a humanidade não conseguiu superar o problema que está na origem dos grandes crimes cometidos contra a vida - sejam eles de ordem política, étnica, religiosa, social, sexual - na origem dos genocídios: a dificuldade de aceitar que somos feitos de pluralidade, que somos constituídos na diferença. (KRAMER, 2011, p. 103)

Diante dessa realidade, os esforços de pesquisadores que abordam a temática da Educação Infantil se dão no sentido de encontrar ou construir sua identidade, pois esta oscila entre concepções distintas e, muitas vezes, contrárias: ora acentuando-se em concepções tradicionais, ora avançando nas questões teóricas, no entanto, às vezes, sem condizer com as práticas que afirmam em suas propostas pedagógicas. Constitui-se ora como espaços de guarda e acolhimento, ora como espaço de preparação ou antecipação dos processos escolares, outras vezes como espaço privilegiado de construção de sentidos do humano, atuando de forma emancipadora.

As formas de compreender e vivenciar o cuidado e a educação com as crianças não se dão distantes de um contexto histórico, econômico e social. Mediante essa realidade, propomo-nos o desafio de pensar sobre o cuidado na Educação Infantil, olhando para algumas perspectivas e significados construídos e em constante reconstrução1, olhando também para nosso próprio contexto. Como pedagoga atravessada pelas interrogações da filosofia da educação, captura-me um caminho que possa promover um diálogo entre essas duas áreas de modo que me ajude a pensar o cuidado em questão.

Pagni (2010) afirma que a educação em geral tem sido concebida, desde a sua gênese na modernidade, como sinônimo de cuidado para que o homem se converta em humano e saia do estado no qual nasce, mas estaremos realmente atentos a esse cuidado na educação?

o cuidado em questão

Kohl (1997) afirma que, de acordo com os estudos de Vygotsky, o significado das palavras corresponde à junção do pensamento generalizante mais o intercâmbio social construído historicamente. Assim, o significado seria propriamente dito social, enquanto o sentido seria o significado da palavra para cada um "[...] composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências afetivas do indivíduo." (KOHL, 1997, p. 50). Essa perspectiva corrobora com a compreensão de Teixeira (2010, p. 2, grifo da autora) quando afirma que "[...] o termo cuidado pode ter inúmeros significados e sentidos". A autora evidencia sua afirmativa a partir da pesquisa do significado de cuidado em dicionários, na Filosofia, na Saúde, na Psicologia, na Educação, na relação com o poder, na Educação Infantil e nos documentos oficiais. A partir de seus estudos, considera que se trata de um conceito bastante complexo, cuja amplitude de significados é muito enriquecedora, o que inviabiliza a delimitação de fronteiras e o fornecimento de definições fechadas.

Ao pesquisarmos os diferentes trabalhos acadêmicos de teses e dissertações relacionados ao cuidado, verificamos um tanto dessa amplitude explicitada por Teixeira (2010). Em nosso levantamento, percebemos que o cuidado esteve relacionado a questões como: falta ou excesso de cuidado; como limite, rotina, controle, mas também como indissociabilidade entre cuidado e educação, preocupação e carinho, resolução de conflitos, direitos, cuidados domésticos, cuidado profissional, cuidado amigo, cuidado coletivo, cuidados físicos, zelo pela saúde, limpeza, higiene, alimentação, organização do espaço, zelo, proteção, confiança, segurança, cuidados emocionais, amor, afeto, atenção, dedicação, tempo, presença, paciência, respeito, diálogo, partilha do dia a dia, diversão, ludicidade, preocupação com a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, estabelecimento de vínculos, cuidar e ser cuidado, cuidar da criança, cuidar do professor, cuidar da família, cuidado como condição do desenvolvimento humano, cuidado de si, cuidado com as relações com o outro, com o ambiente, com a espiritualidade. Cuidado como forma de olhar, de ver.

Dada, então, a multiplicidade de significados encontrados, pensamos na potência de como ele é, ou pode ser, em nosso contexto. Que sentido tem ou poderá ter, não apenas em nossas práticas pedagógicas, mas em nossa forma de estar no mundo, de interagir com o outro, com os outros. Nossa pretensão seria, então, olhar um pouco mais para essa perspectiva do cuidado como um princípio ético, um modo de ser.

Dispomos, atualmente, de várias contribuições teóricas que se referem ao cuidado, muitas delas no campo da filosofia. Dentre elas, buscamos referência a partir dos estudos de Boff (2005, 2014), Foucault (2010), Kohan (2007) e Luger (2011).

Ao estudar o "cuidado de si" e a "cultura de si" na abordagem de Michel Foucault, Luger (2011) explicita que

Foucault coloca como sendo de seu interesse um estudo das formas pelas quais o sujeito compreendeu a si, isto é, enxergou a si próprio como objeto de saber, apto a ser compreendido. Ele afirma ter, ao se aventurar por essa questão, percebido que as formas pelas quais o sujeito é constituído não se resumiriam a técnicas de dominação, mas que havia um outro domínio de técnicas que era necessário compreender para fazer uma genealogia do sujeito, que seria o das "técnicas de si", formas pelas quais o sujeito relacionava-se consigo mesmo, tornava a si próprio como material moral, como sujeito a ser por si mesmo constituído. (LUGER, 2011, p. 64)

Essa afirmativa, na análise de Luger (2011), aproxima-se de uma autocrítica de Foucault, mas também de uma justificativa que apresenta os motivos da transição dos estudos desse autor. Assim, de acordo com Luger (2011), o interesse de Foucault pelas práticas de si ou pelo cuidado de si estaria mais explícito em dois dos trabalhos do autor: História da sexualidade 3: o cuidado de si e na Hermenêutica do sujeito, em que retoma e aprofunda as discussões sobre o cuidado, não só como noção conceitual, mas também como práticas de si.

Sem desejar resumir de maneira simplista a obra de Foucault, pretendemos, aqui, trazer alguns fragmentos de seus estudos para evidenciar a importância do tema abordado e como ele se fez presente e necessário no decorrer da história do homem desde a antiguidade.

Durante o curso "A Hermenêutica do Sujeito", pronunciado por Foucault em 1982 no Collège de France, posteriormente transformado em livro, o autor faz falar vários outros filósofos nas discussões da problemática entre subjetividade e verdade que aborda a partir do quadro teórico das práticas do cuidado de si, resgatadas desde a antiguidade. Nas palavras do filósofo,

Não pretendo, por certo, refazer toda a história dessa noção, dessa prática, dessas regras do cuidado de si a que me referi [...]. Tentarei isolar três momentos que me parecem interessantes: o momento socrático-platônico de surgimento da epiméleia heautoû na reflexão filosófica; em segundo lugar, o período da idade de ouro da cultura da si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si mesmo, que pode ser situado nos dois primeiros séculos de nossa era; e depois a passagem aos séculos IV-V, passagem genericamente da ascese filosófica pagã para o ascetismo cristão. (FOUCAULT, 2010, p. 29)

Em cada um desses momentos ou períodos, Foucault discute a compreensão de cuidado. No entanto, como explicitado na "situação do curso"2, "[...] em três meses de curso [...], Foucault certamente não teve tempo de dar conta do conjunto dessas pesquisas sobre as técnicas de si antigas." (FOUCAULT, 2010, p. 467), mas trabalhou-as o suficiente para explicitá-las como princípio constitutivo de nossas ações.

Luger (2011) afirma que três características principais do cuidado de si (epiméleia heautoû) são ressaltadas por Foucault no início do curso, explicitando que:

Em primeiro lugar, a noção designaria uma "atitude geral", uma forma de ser "para consigo, para com os outros, para com o mundo", isto é, um modo de ser e "de estar no mundo". Além disso, caracterizar-se-ia como uma forma de olhar e de atenção consigo mesmo, de voltar o olhar para si. E, por último, consistiria igualmente em certas ações "exercidas de si para consigo", certas práticas, exercícios. (LUGER, 2011, p. 16)

Foucault (2010) afirma que "[...] o cuidado de si foi considerado ao mesmo tempo um dever e uma técnica, uma obrigação fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente elaborados." (FOUCAULT, 2010, p. 445). Contudo, faz-se necessário esclarecer que o filósofo não sugere a reatualização do cuidado, e, sim, que, a partir dele, algo novo possa ser construído. Não se trata, pois, de uma receita, mas de um mapa que desvela algumas possibilidades de novas formas de vida pela transformação de si mesmo.

Na "situação do curso" da Hermenêutica do sujeito, está explícito que

O cuidado de si não é, pois, um convite à inação, mas ao contrário: aquilo que nos incita a agir bem, aquilo que nos constitui como o sujeito verdadeiro dos nossos atos. Mas, mais do que nos isolar do mundo, é o que nos permite nele nos situar corretamente [...]. O cuidado de si é, pois, um princípio regulador da atividade, de nossa relação com o mundo e com os outros. (FOUCAULT, 2010, p. 486)

Assim, os estudos de Foucault sobre o cuidado têm inspirado o pensamento educacional, incentivado professores a, como afirma Kohan (2007), "[...] buscar-se outro professor do que se é" (KOHAN, 2007, p. 82).

Com um estudo voltado ao contexto mais contemporâneo, Boff (2005, 2014) considera o cuidado essencial como o princípio de um novo ethos, uma nova forma de habitar. Segundo o autor,

Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é na verdade o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do humano, quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir. (BOFF, 2014, p. 12)

Dessa forma, Boff (2005) afirma que

nós não temos apenas cuidado. Nós somos cuidado. Isso significa que cuidado possui uma dimensão ontológica, quer dizer, entra na constituição do ser humano. É um modo de ser singular do homem e da mulher. Sem cuidado, deixamos de ser humanos. (BOFF, 2005, p. 28)

Fundamentado em Martin Heidegger, o filósofo do cuidado, Boff explicita o cuidado como "[...] fundamento para qualquer interpretação que dermos do ser humano." (BOFF, 2005, p. 29).

Para Boff (2005, p. 29), "[...] cuidado significa, então, desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. [...] implica um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e se centra no outro com desvelo e solicitude", o que, segundo ele, "[...] somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim." (BOFF, 2005, p. 29).

Boff (2005) explicita que há duas formas de ser-no-mundo: o modo-de-ser do trabalho e o modo-de-ser do cuidado. Para o autor, o modo-de-ser trabalho impõe "[...] um certo distanciamento da realidade, a fim de estudá-la, acumular experiências e assenhorear-se dela" (BOFF, 2005, p. 30), por isso exige "objetividade" como uma projeção da razão, cuja lógica coloca o ser humano no centro, "antropocentrismo". Esse modo-de-ser, segundo Boff, ignora a terra, o universo como sujeito da vida e da sensibilidade.

Boff (2005) também reflete sobre o modo-de-ser cuidado. O autor argumenta que o cuidado não se opõe ao trabalho, mas lhe confere uma modalidade diferente. Permite perceber o valor não utilitário das coisas, mas o valor das coisas em si mesmas como um todo orgânico, includente, com complementaridade, reciprocidade e alteridade. No modo-de-ser cuidado, "[...] a relação não é de domínio, mas de convivência: não é pura intervenção, mas, principalmente, interação e comunhão" (BOFF, 2005, p. 31).

Boff (2005) afirma que o modo-de-ser cuidado concretiza a dimensão feminina do ser humano, homem e mulher. Assim, considera que o feminino não é exclusivo das mulheres, mas que "[...] os homens são também portadores de feminino" (BOFF, 2005, p. 32). Para ele, nesse modo-de-ser, "no lugar da agressividade, há a convivência amorosa. Em vez da dominação, há a companhia ao lado e junto do outro." (BOFF, 2005, p. 32).

De acordo com Boff (2005), "o grande desafio do ser humano é combinar trabalho com cuidado", e justifica o autor:

Eles não se opõem. Mas se compõem. Limitam-se mutuamente e, ao mesmo tempo, complementam-se. Juntos constituem a integralidade da experiência humana, por um lado ligada à objetividade e por outro à subjetividade. O equívoco consiste em opor uma dimensão à outra, e não vê-las como modos-de-ser do único e mesmo ser humano. (BOFF, 2005, p. 32)

No entanto, alerta-nos o autor que a ditadura do modo-de-ser trabalho tem conduzido "[...] a humanidade a um impasse crucial: ou pomos limites à voracidade produtivista, associando trabalho e cuidado, ou vamos ao encontro do pior" (BOFF, 2005, p. 32), pois, nesse modo-de-ser, perdeu-se a visão do ser humano como um ser-de-relações, de ternura, de cuidado, de espiritualidade. De modo que, afirma Boff (2005, p. 33) enfaticamente, "[...] o ser-no-mundo exclusivamente como trabalho pode destruir o mundo."

Assim, o referido autor defende o resgate do modo-de-ser do cuidado, em que o homem possa voltar sobre si para melhor perceber-se em relação a seus sentimentos, sua capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e de sentir-se afetado, como uma condição, enfim, de ser humano. E considera que:

Tudo começa com o sentimento. É o sentimento que nos faz sensíveis a tudo o que está a nossa volta. Que nos faz gostar ou desgostar. É o sentimento que nos une às coisas e nos envolve com as pessoas. É o sentimento que nos produz o encantamento em face da grandeza dos céus, a veneração diante da complexidade da mãe Terra e o enternecimento diante da fragilidade e da vitalidade de um recém-nascido [...]. É o sentimento que torna pessoas, coisas e situações importantes para nós. Esse sentimento profundo, repetimos, chama-se cuidado. Somente aquilo que passou por uma emoção, evocou-nos um sentimento profundo e provocou cuidado em nós deixa marcas indeléveis e permanece definitivamente em nós. (BOFF, 2005, p. 33)

Boff considera o cuidado como uma energia que, continuamente, faz surgir o ser humano, por isso enfatiza que "[...] importa colocar em tudo cuidado" (BOFF, 2005, p. 33). Assim, convida-nos a uma nova ética, que pressupõe uma nova ótica e que considere o cuidado como ato, atitude, que resgate nossa humanidade mais essencial. Para Boff (2014), o cuidado se concretiza de diferentes formas: desde o cuidado com o planeta; cuidado com o próprio nicho ecológico; cuidado com a sociedade sustentável; cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos; cuidado com nosso corpo na saúde e na doença; cuidado com a cura integral do ser humano; cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios; cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus; e cuidado com a grande travessia, a morte.

Boff (2014), porém, alerta-nos sobre o que chama de patologias do cuidado, afirmando que, devido à ambiguidade estrutural do ser humano, acaba-se mesclando o "cuidado essencial" com o "descuido fatal" (BOFF, 2014, p. 187). Para ele,

[...] o fato de carregarmos sempre uma sombra de descuido, não invalida a permanente busca do cuidado essencial. O descuido, inerente à nossa humana condição, mais do que um obstáculo é um desafio para a vivência do cuidado essencial e de suas formas alternativas e mais aperfeiçoadas. O cuidado não é uma meta a se atingir somente no final da caminhada. É um princípio que acompanha o ser humano em cada passo, em cada momento [...]. (BOFF, 2014, p. 188)

Boff (2014) considera três possibilidades de patologia do cuidado: a negação do cuidado essencial, o que, segundo ele, ocorre na lógica do modo-de-ser do trabalho e sobre o que resulta um processo de desumanização e de embrutecimento das relações; o cuidado em seu excesso: a obsessão, que afirma tirar a espontaneidade das pessoas que se sentem "roubadas em sua energia de fazer sua experiência do cuidado essencial, entre acertos e erros" (BOFF, 2014, p. 190) e o cuidado em sua carência, ou descuido, que normalmente ocorre quando as pessoas não conseguem ser inteiras no que fazem, pois, segundo ele, nesse caso, as coisas aparecem malfeitas, largadas, desordenadas e caóticas, levando as pessoas a impacientarem-se e a perderem a calma e a serenidade.

No entanto, há de se questionar, conforme solicita Castro (2013, p. 187), como compartilhar os cuidados devidos à criança e, simultaneamente, impedir que a proteção se torne uma forma de dominação? Nas palavras da autora,

A questão que discutimos [...] reside em poder compreender, conceitual e praticamente como o cuidado com o outro (a criança) se diferencia da tentativa de tutelá-lo, poder enxergar possíveis distâncias entre a posição de responsabilidade dos mais velhos e seu desejo de controlar e governar as crianças. A confusão e a indistinção entre essas posições caminham em posição oposta ao processo de emancipação da infância. O cuidado com a criança inclui também estar atento ao seu processo de emancipação frente à sujeição de qualquer outro. (CASTRO, 2013, p. 179)

Recorremos então a Rancière (2015), quando explicita que instruir pode significar emancipar ou embrutecer, e que "[...] para emancipar a outrem, é preciso que se tenha emancipado a si próprio. É preciso conhecer-se a si mesmo [...] como sujeito intelectual que participa da potência comum dos seres intelectuais." (RANCIÈRE, 2015, p. 57).

Kohan (2011) nos alerta que "[...] as pretensões de emancipação da infância costumam esconder sua negação. Sabe-se por ela, pensa-se por ela, luta-se por ela. Paralela dessa negação da infância é a negação da experiência." (KOHAN, 2011, p. 240). Para Kohan (2011), uma educação emancipatória não é uma educação que emancipa, mas uma educação "[...] que permite emanciparmo-nos" (KOHAN, 2011, p. 248). Nessa mesma perspectiva, o autor reflete que "[...] um professor emancipador não é aquele que liberta os seus alunos, mas aquele que trabalha na sua própria emancipação e contribui para que os outros possam fazer seu próprio trabalho emancipatório" (KOHAN, 2011, p. 248).

Assim, a nosso ver, o cuidado, como uma forma de ser-no-mundo, implicaria uma educação emancipadora capaz de possibilitar novas formas de singularidades e de subjetividade que considerem o respeito ao outro, à diversidade, à diferença, à vida.

Cenas do cotidiano do infantil v no cei ciranda

No período da pesquisa de campo, as manhãs começavam mais alegres e agitadas. Mães, pais e avós chegavam com seus filhos ou netos ao CEI Ciranda e os deixavam na sala, nas quais já os aguardava a professora Rose3 (nos dias de segunda, quinta e sexta) ou a professora Fátima (nas terças e no primeiro tempo das quartas-feiras). O cotidiano da turma seguia uma orientação da rede municipal de Fortaleza em relação aos "tempos que não podem faltar" orientados pelo PAIC4 - eixo Educação Infantil.

Assim, diariamente, eram vivenciados pela turma os tempos de chegada, de roda de conversa, de roda de história, de parque, de alimentação e higiene, de conhecimento de si e do mundo e o tempo de saída.

Pelos limites de organização deste trabalho, apenas algumas cenas serão aqui apresentadas.

A chegada

Ao chegarem à sala, meninos e meninas guardavam seu material e escolhiam o ambiente no qual queriam ficar. Tinham acesso a brinquedos, blocos de montar, livros e revistas, lápis e folhas, quebra-cabeças e, às vezes, à TV, quando levavam vídeos. Também era comum trazerem de casa alguns brinquedos, como cartas ou bonecas. As crianças formavam grupos com as que iam chegando. Tinham autonomia para entrar ou sair dos grupos. Havia um interesse muito grande pelo desenho livre. Aos poucos, fomos começando a identificar, inclusive, os traços e temas preferidos das crianças desse grupo. Algo que não é possível quando as produções são sempre direcionadas.

A exemplo, gostaríamos de compartilhar as bonecas de Nayara e os casais produzidos por Isaura:

Fotografia 1 As bonecas de Nayara 

Fotografia 2  Os casais de Isaura 

De acordo com Gobbi (2010), "Sustentar uma cotidianidade do desenho não como forma avaliativa da criança e suas expressões, mas como direito à expressão que deve estar difusa, espalhada entre nós e em nós é essencial para as crianças em seu dia a dia." (GOBBI, 2010, p. 7). Assim, no tempo de chegada, que ocorria na rotina dessa turma de Infantil V, as crianças escolhiam o que fazer e com quem. Criavam brincadeiras usando materiais diversos e entre elas estava o desenho.

Da leitura que fizemos em relação aos momentos de chegada das crianças, percebemos como um ato de cuidado a compreensão das professoras em preparar um ambiente com várias possibilidades. O acesso aos materiais diversos é um direito, mas ainda não ocorre em muitos espaços de Educação Infantil da própria rede municipal de Fortaleza. A liberdade de estabelecimento de vínculos, o cuidado em convidar quem chegava a participar da brincadeira, o respeito à escolha de cada um, a criação dos enredos, o construir e reconstruir com os materiais disponíveis em parceria com os colegas, as interações entre pares, os conflitos e negociações faziam daquele momento um momento de reconhecimento e valorização da capacidade e da criatividade das crianças da turma.

A roda de leitura

Nas rodas de leitura de Rose, era mais comum ela utilizar outros livros além do acervo da sala, para ampliar o acervo disponível. Às vezes, pegava no CEI, em outros momentos, trazia de casa. Enquanto houvesse interesse do grupo, havia espaço para a partilha de contos e recontos de quem desejasse fazê-los.

Além das histórias lidas por Rose, algumas crianças gostavam de pegar os livros da sala e recontar histórias que já conheciam. Também divertiam-se compartilhando com os colegas imagens que achavam engraçadas, como as da história A roupa nova do imperador.

Sobre a importância da leitura para as crianças, Abramovich (2004) explicita que "Ler [...] sempre significou abrir todas as comportas para entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência das personagens... Ler foi sempre maravilha, gostosura, necessidade primeira e básica, prazer insubstituível." (ABRAMOVICH, 2004, p. 14). Para essa autora,

É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes, como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a insegurança, a tranqüilidade [sic] e tantas outras mais, e viver profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as ouve - com toda a amplitude, significância e verdade que cada uma delas fez (ou não) brotar... Pois é ouvir, sentir e enxergar com os olhos do imaginário! É através duma história que se pode descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica [...]. (ABRAMOVICH, 2004, p. 17)

Assim, quando se lia uma boa história, uma boa poesia, era exatamente isso que partilhavam: sentimentos, emoções, vínculos. Algumas crianças traziam de casa livros e revistinhas que ganhavam de seus pais e desejavam a atenção do grupo para partilhar não só a história do livro, mas de quem havia ganhado e em que situação. Viam-se algumas narrativas a influenciar as brincadeiras, assim como, no compartilhar de algumas situações, eles faziam relações com as histórias, como no dia em que falavam de baratas e Leandro pediu que novamente a professora lesse o casamento da baratinha.

O trabalho com o nome próprio

Algo comum na ação diária das professoras dessa turma era, após a roda de histórias, solicitar um desenho do trecho preferido. As professoras copiavam o título do livro na lousa, as crianças o copiavam em suas folhas, desenhavam uma parte do texto e depois eram incentivadas a escrever seu nome completo, o que nos parecia um certo treinamento para a avaliação do nome próprio, procedimento instituído pela rede municipal de Fortaleza para o Infantil V.

No que se refere ao desenho sobre a parte preferida do texto, a maioria das crianças tinha um interesse em fazê-lo com riqueza de detalhes, havia, no entanto, algumas crianças que até copiavam o título da história, todavia faziam seus desenhos preferidos como bonecas, casais, ou mesmo imitavam desenhos de seus colegas de mesa, subvertendo a cópia da imagem pela sua própria criação.

Quanto à escrita do nome completo, uns faziam rapidamente e sem questionar, outros contestavam:

Helena faz seu desenho e vem mostrá-lo à professora Fátima. Ela olha, faz um elogio e pede para que Helena escreva seu nome: Professora Fátima: Muito bem, Helena. Ficou bonito. Agora escreva seu nome todinho aqui no final. Helena: Pra quê? Professora Fátima: Pra saber quem foi que fez. Como é que você vai saber depois? Helena: Eu sei que é o meu. Não precisa colocar o nome. (Diário de campo, 4 de outubro de 2016)

A preocupação das professoras em trabalhar diariamente com o nome próprio parecia se dar muito pela implementação do "instrumental de acompanhamento da escrita do nome próprio pelas crianças do Infantil V" adotado pela coordenadoria de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação (SME). Havia a intenção de garantir bom resultado para o CEI Ciranda diante do Distrito de Educação e da própria SME. Fátima fazia o trabalho mais aproximado possível das orientações para aplicação do instrumental. Solicitava-se, ainda, que a criança tentasse identificar as letras do primeiro nome.

A forma de abordagem de Fátima vinha acompanhada de receios, pois a partir dos dados de cada turma, são gerados os índices na escola, no distrito e no município. Então, podemos refletir que a supervalorização dos resultados acabava por gerar sentidos diferentes para a professora e para as crianças em algumas atividades do cotidiano.

Quando a proposta era mais lúdica, por exemplo, no jogo da cortininha do nome e na forca, as crianças participavam com empolgação, desafiando-se a descobrir de quem era o nome a partir de pistas como a quantidade de letras, a letra inicial, a letra final e assim por diante. Expressavam suas hipóteses e iam reformulando-as ou reafirmando-as a cada nova pista. De modo que era possível, nesse momento de aprendizagem, também o riso, a empolgação, a colaboração entre eles.

Fotografia 3 Jogos com nome próprio 

O tempo de parque

O "tempo de parque" era um momento no qual, geralmente, as crianças do Infantil V encontravam-se com a turma do Infantil IV. No parque, reinava a brincadeira, o movimento, as interações. Havia algumas narrativas que se repetiam, como brincar de fazer meleca (misturar água e areia com as mãos) e bolos de areia (para cantar parabéns para as professoras ou para os colegas), minhoca de fogo, "suga-sangue", zumbi ou "perna cabeluda", brincadeiras parecidas com pega-pega.

Fotografia 4 Vivências no tempo de parque 

Era interessante perceber como, naquele mesmo espaço, a cada dia, eles descobriam algo diferente: lagartas, formigas, folhas, gravetos e, com eles, criavam histórias tão diversas. Também se desafiavam a subir e descer dos brinquedos de diferentes formas, criavam circuitos, formavam grupos, ora só de meninos ou só de meninas, ora se juntavam todos. Outras vezes, interagiam com as crianças do Infantil IV. Brincar, correr, sorrir, gritar, subir, descer, fugir, pegar, procurar, encontrar, criar, imaginar, conversar, desafiar, observar, compartilhar, sentir, viver, aprender, desenvolver e estar eram verbos que se renovavam diariamente no parque.

O tempo de saída

Assim como na chegada das crianças, também na saída era muito comum o uso dos brinquedos. Mas também havia interesse em explorar os gibis, principalmente no espaço das almofadas. Às vezes, pegavam e se divertem com as imagens, noutras vezes, recorriam aos dois colegas da turma que já conseguiam ler, pedindo-os para que os ajudassem. Outros vinham até a professora pedindo-lhe que falasse como se liam determinadas palavras.

Fotografia 5  As crianças e os gibis 

Quando se aproximava o momento da chegada dos pais, as professoras começavam a organizar a sala e pediam a ajuda das crianças. Esse também era um momento em que se ajudavam na organização dos materiais coletivos e individuais e cuidavam uns dos outros, do seu bem-estar e do seu ambiente, como nos exemplos a seguir. No primeiro, a mãe de Nayara chega para pegá-la e Vanessa a ajuda a terminar de calçar o tênis. No outro, Aline deita nas almofadas um tanto febril, aguardando sua mãe, e sua irmã vem consolá-la dizendo: "você vai ficar boa, a mamãe vai já chegar".

Fotografia 6  As crianças e o cuidado 

As crianças cuidavam de si e dos outros, também, na partilha dos afetos, na troca dos "segredos secretos", quando acolhiam com um olhar, um abraço ou um toque, ou ofereciam seus brinquedos, flores encontradas no jardim, anéis de papel e até seus desenhos.

Fotografia 7  A partilha do cuidado 

Assim, com o objetivo de conhecer a vivência do cuidado no cotidiano de uma turma de Infantil V do CEI Ciranda por meio da observação participante, tive a oportunidade de participar de uma experiência ímpar, de partilhas de significados construídos com as professoras e com as crianças deste CEI. Vivem, cuidam-se, aprendem, desenvolvem-se, transformam-se. Nessa dinâmica, a prática pedagógica das professoras é orientada por uma diretriz municipal que organiza a rotina em "tempos que não podem faltar", mas a sensibilidade e compreensão delas, seu olhar em relação à criança, suas escolhas do modo-de-ser são primordiais nesse processo, pois a sua ação tem um sentido diferente de simplesmente obedecer a uma diretriz.

Podemos afirmar que o que experienciamos foi a vivência coletiva de um grupo. Nessa vivência, várias situações do cuidado, mas, às vezes, sua ausência e também suas patologias. Porém, a prática pedagógica pública dos professores tem sido muito assediada em nome dos índices que se atrelam às verbas, "resultados" e homogeneizações, totalitarismo e, assim, embrutecimento pela exclusividade do modo-de-ser trabalho.

Gratificante é perceber que, apesar de todo assédio, há professores que conseguem resistir à hegemonia do modo-de-ser trabalho e vivenciam, em partilha com as crianças, o modo-de-ser cuidado. Um cuidado que respeita a criança em seus direitos, em seus interesses e em suas necessidades.

Entre perspectivas, significados e inacabamentos

Propusemo-nos, nesta pesquisa, a pensar sobre o cuidado na Educação Infantil, olhando para o cotidiano de uma turma de Infantil V da rede municipal de Fortaleza, no entanto, precisamos estar atentos a que seja o cuidado que falamos nesta pesquisa, um sentido compreendido do que foi vivido, dadas as possibilidades de interações ocorridas, mas não um significado único, "acabado", porque seria fechar os olhos para tantas perspectivas diferentes e, com isso, "limitar a imaginação".

Na reflexão diante deste estudo, pudemos apreender mais ainda das possibilidades da educação, seja a emancipação, seja o embrutecimento. O processo de emancipação é favorecido quando há uma escolha ética pelo modo de ser cuidado que reconhece as especificidades das crianças, afirma sua igualdade e potência. Ao contrário, mesmo quando, "de forma inconsciente", professores com as "melhores intenções" suprimem desejos, necessidades e expressões das crianças em nome de atingir um resultado esperado e classificam-nas em crianças que sabem e crianças que não sabem ocorre o processo de embrutecimento.

Muitas vezes, a perspectiva de infância que se ocupa dos resultados a serem atingidos em prol de um futuro melhor pauta-se numa visão platônica que acompanha o imaginário educacional brasileiro e acaba por não valorizar a criança de agora, mas o adulto que ela virá a ser. Como garantir que os professores possam ter acesso a outras possibilidades de olhar para a infância?

Este estudo destacou a necessidade de refletir sobre o sentido da educação e propõe a valorização do modo-de-ser cuidado como decisão ética, como necessidade de reflexão sobre a forma de viver e interagir.

Estejamos atentos, também, às condições de atendimento da educação, pois a análise das questões referentes ao estudo das perspectivas e significados do cuidado na Educação Infantil instiga-nos a muitas reflexões e escolhas. Não podemos continuar trabalhando diariamente como se não estivéssemos vendo os inúmeros retrocessos em relação às conquistas da Educação Infantil.

Grande parte das instituições que ofertam a Educação Infantil está sucateada, há diminuição gradativa de verbas e dos direitos adquiridos, há projetos a serem votados na Câmara Municipal para contratação de empresas privadas para capacitação de professores e até propostas de privatização da Educação Infantil. Indagamo-nos se esse sucateamento é uma consequência da crise financeira gerada pela corrupção em nosso país ou se é intencionalmente planejado em prol da privatização e da minimização das responsabilidades do estado. E o discurso da falta de qualidade do serviço público municipal na Educação Infantil, a quem favorece?

Precisamos nos empenhar politicamente com o enfrentamento ao sucateamento e à privatização da escola pública, precisamos resistir às diferentes formas de embrutecimento e de marginalização. Precisamos refletir sobre nossas escolhas na Educação Infantil. Perceber se nossas ações são com elas coerentes, se servem ao modo-de-ser cuidado, ou se servem ao modo-de-ser trabalho, se são instrumentos de emancipação humana ou de embrutecimento, se consideram a infância e as especificidades das crianças, ou se idealizam um modelo único de criança. Enfim, fica o convite a desafiarmo-nos a repensar nossa relação com o outro pela ética do cuidado.

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1Na dissertação "O cuidado na Educação Infantil: perspectivas e significados", disponível em <http://www.teses.ufc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=20231>, há, no subtítulo "das palavras ditas...", uma discussão teórica dos trabalhos publicados sobre o tema, na ANPEd e BDTD, no período entre 2010 a 2016.

2Parte constituinte do livro A Hermenêutica do Sujeito, editada por Frédéric Gros, maître de conférences na Universidade de Paris.

3Os nomes das professoras e das crianças foram substituídos, no intuito de preservar seu anonimato.

4PAIC - Programa de Alfabetização na Idade Certa, implementado em 2007 pelo Governo do Estado do Ceará com o objetivo de dar suporte para que os municípios pudessem elevar a qualidade do ensino nas séries iniciais e alfabetizar as crianças até os sete anos de idade. O PAIC foi organizado em cinco eixos, sendo um deles o eixo Educação Infantil.

Recebido: 15 de Julho de 2018; Aceito: 21 de Agosto de 2018

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