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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.15  Rio de Janeiro jan. 2019  Epub 30-Jun-2019

https://doi.org/10.12957/childphilo.2019.42877 

Dossiê: investigação filosófica com crianças: novas vozes

Infância e invisibilidade: por uma pedagogia do oculto

Childhood and invisibility: towards a pedagogy of what is concealed

Infancia e invisibilidad: por una pedagogía de lo oculto

Daniel Gaivota Contage1 
http://orcid.org/0000-0001-7900-1732

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil - E-mail: danielgaivota@yahoo.com.br


resumo

Em oposição à pergunta mais tradicionalmente feita em educação - o que a escola revela? - esta pesquisa encontra caminhos mais obscuros para pensar as potências presentes nos tempos e espaços escolares ao se perguntar o que se oculta na escola. A partir da tentativa de criação de conceitos filosóficos no campo da educação, este texto tateia cegamente as possibilidades de uma escola que, ao invés de trazer à luz, atenta mais para aquilo que está invisível, escondido, oculto. Através da leitura de pensadores da filosofia da diferença, como Deleuze e Foucault, tenta situar a escola em uma disputa imanente entre o caos e a ordem, onde as estruturas de poder trabalham através da visibilização e permissão, por um lado, e pela interdição e ocultamento, pelo outro. Ao compreender o aparelhamento institucional inserido na lógica da visibilidade/ocultamento, explora a possibilidade de que as forças de resistência que habitam a escola não possam estar à mostra - pois tudo o que é aparente foi de alguma forma capturado e, por isso, permitido. Através de um olhar filosófico e genealógico da escola e com a ajuda de Heráclito, este texto cego tenta afirmar a potência revolucionária dessas forças invisibilizadas, e, neste percurso, assumir a infância não como uma fase a ser superada, mas justamente como uma destas potências que permitem manter o mundo oculto, encriptado, e não sujeito à forçosa lógica do visível - ou seja, afirmar a infância como uma potência subversiva e revolucionária, e opor-se aos discursos “visibilizadores” que expõem a infância à cristalização dos aparelhos discursivos. Assim, tateia com a ponta dos dedos escola e infância, para constatar sem precisar ver que elas, invisíveis, estiveram e estão lá.

palavras-chave: infância; oculto; heráclito; escola.

abstract

In opposition to the most traditionally asked question in educational studies - what is revealed in school? - this research finds more obscure ways to think the potencies present in school times and spaces by asking, instead, what is hidden in school? From the attempt of creating philosophical concepts in the field of education, this text gropes blindly the possibilities of a school that, instead of bringing things to light, gives more attention to what is invisible, hidden, concealed. Through the readings of philosophers of difference, such as Deleuze and Foucault, it tries to situate school in an immanent dispute between chaos and order, where power structures operate through visibility and permission, on the one hand, and interdiction and concealment on the other. By understanding the institutional rigging inserted in the logic of visibility/concealment, this article explores the possibility that the resistance forces that inhabit school cannot be shown - because all that is apparent was somehow captured and therefore allowed. Through a genealogic, philosophical view of school and with the help of Heraclitus, this blind text tries to reclaim the revolutionary potency of these invisibilized forces and, in this way, assume childhood not as a phase to be overcome, but as one of these potencies that allow the world to keep being concealed, encrypted, and not forced into the logic of visible - that being, to affirm childhood as a revolutionary and subversive force, and to oppose the “visibility" discourses that expose childhood to the crystallization of discursive apparatuses. Thus, gropes with its fingertips school and childhood, to find, without need to see, that they, invisibly, have been and still are there.

keywords: childhood; conceal; heraclitus; school.

resumen

En oposición a la pregunta más tradicionalmente hecha en educación - ¿qué revela la escuela? - esta investigación encuentra caminos más oscuros para pensar las potencias presentes en los tiempos y espacios escolares al preguntarse qué se oculta en la escuela. A partir del intento de creación de conceptos filosóficos en el campo de la educación, este texto tantea ciegamente las posibilidades de una escuela que, en vez de traer a la luz, atenta más hacia lo que está invisible, escondido, oculto. A través de la lectura de pensadores de la filosofía de la diferencia, como Deleuze y Foucault, intenta situar a la escuela en una disputa inmanente entre el caos y el orden, donde las estructuras de poder trabajan a través de la visibilidad y el permiso, por un lado, y por medio de la interdicción y la interdicción por el otro. Al comprender el equipamiento institucional inserto en la lógica de la visibilidad / ocultamiento, explora la posibilidad de que las fuerzas de resistencia que habitan la escuela no puedan estar a la vista - pues todo lo que es aparente fue de alguna forma capturado y, por lo tanto, permitido. A través de una mirada filosófica y genealógica de la escuela y con la ayuda de Heráclito, este texto ciego intenta afirmar la potencia revolucionaria de esas fuerzas invisibilizadas, y, en este recorrido, asumir la infancia no como una fase a ser superada, sino justamente como una de estas potencias que permiten mantener el mundo oculto, encriptado, y no sujeto a la forzosa lógica de lo visible, es decir, afirmar la infancia como una potencia subversiva y revolucionaria, y oponerse a los discursos "visibilizadores" que exponen la infancia a la cristalización de los aparatos discursivos. Así, tantea con la punta de los dedos escuela e infancia, para constatar, sin necesidad de ver, que ellas, invisibles, estuvieron y están allí.

palabras clave: infancia; oculto; heráclito; escuela.

infância e invisibilidade: por uma pedagogia do oculto

Este presente texto é o desdobramento de uma pesquisa concluída em 2016 sobre a escola e sobre a possibilidade de pensar filosoficamente as relações pedagógicas a partir dos mesmos elementos que orbitam a viagem - possibilitando, assim, uma forma de escola que estivesse em um devir-viagem, que chamei na época de Escola-Viagem. Na análise feita ali, propunha pensar a educação a partir dos conceitos de deslocamento, da narrativa, do nomadismo, da aventura, da vertigem, do sonho e do movimento. A (in)conclusão desta pesquisa abria caminhos que permitiam pensar que a Escola-Viagem não é uma utopia, mas sim a verdadeira força escolar que não está ausente (e que por isso não deve ser descoberta ou criada para substituir a escola que temos), mas sim presente (apesar de oculta) na escola que já conhecemos ou que temos em vista.

Esta ideia, presente em Poética do Deslocamento (Gaivota, 2017), foi a chave para uma nova pesquisa, em torno, portanto, desta força que se esconde sob o que experimentamos ou que podemos ver, que aparece para nós em todas as escolas que podemos visitar. Este texto traz, assim, algumas reflexões que têm conduzido meus passos às cegas em torno dessa nova e mais potente maneira de (in-)observar a escola e o escolar. É importante atentar a esta ideia da cegueira ou do não-ver, por mais que ela pareça a princípio confusa ou não muito clara. O fato é que a crítica que perpassa este texto é justamente à ideia de “clareza” ou de “visão”: um texto “às claras” corresponde a um texto estruturado, adequado, e, por isso mesmo, permitido. A seguir, proponho algumas reflexões que possam levar o/a leitor/a a se aproximar das ideias do invisível, da cegueira e do oculto. Entretanto, fazê-lo à maneira da visibilização seria impossível, pela própria crítica que perpassa estes conceitos. Por isso, o que se faz aqui é um convite a experimentar uma leitura tateante - um convite a ver menos, a prestar mais atenção ao que se esconde nas palavras do que o que elas mostram. Talvez este exercício possa transbordar este texto e começar a anti-olhar também para a escola e o mundo.

visibilidade e poder

A primeira observação a ser feita é política. A escola se circunscreve em um contexto sempre político, num sentido original da palavra, ou seja, de que ali se trata dos assuntos da polis, da cidade, do coletivo, por razões óbvias de que ela afeta a realidade comum - o que nos permitiria pensar que qualquer instituição é basicamente política -, mas muito mais importante que isto, pelo fato de que ela, em sua maneira de tratar dos assuntos da polis, abala drasticamente toda estrutura social. Isto porque, desde a sua origem, a escola representa uma afronta ao poder, por tornar público e profanar aquilo que era restrito às elites e setores privilegiados. Masschelein e Simons (2013) afirmam que a história da escola é a história das tentativas de domar sua potência:

A escola, como dissemos, é uma invenção histórica da polis grega e foi um ataque absoluto aos privilégios das elites e de uma ordem arcaica. É uma invenção democrática no sentido de que “cria” tempo livre para todos, independentemente de antecedentes ou origem, e, por estas razões, instala a igualdade. A escola é uma invenção que transforma todos em um aluno - e, nesse sentido, coloca todos em uma situação inicial equivalente. O mundo é tornado público pela escola. [...] Devido a essas qualidades democrática, pública e de renovação, não é surpresa que a escola tenha provocado certo medo e perturbação desde suas origens. (p. 105)

Assim, a escola, numa sociedade estrutural e organizada a partir de uma lógica de poder, funciona como uma máquina de guerra (Deleuze e Guattari, 2012), em oposição a um aparelho de Estado. Esta máquina de guerra nômade, para os autores, parece ser a própria exteriorização, o conjunto que produz linhas de fuga, o que significa criar vetores de externalização, possibilidades de craqueamento de sistemas de controle, de quebrar estruturas e revelar espaços abertos. Enquanto o aparelho de Estado constrói espaços estriados, isto é, espaços regulados, marcados, onde sujeitos e objetos são estabelecidos e funções, nomes e cargos são definidos (em suma, um espaço idealista, transcendente) máquinas de guerra criam o que Deleuze e Guattari chamam de espaço liso (2012, p. 63).

Em oposição ao espaço estriado, onde a subjetivação, a cronologia e as posições são marcadas em uma estrutura, o espaço liso é um plano não estruturado, em que as coisas não são marcadas pela hierarquia, relações verticais ou representação. O espaço liso é o plano em que o mundo pode ser visto e pensado não de forma extensa, mas como uma grade de intensidades, num plano de forças que se relacionam mutuamente, simultaneamente e sem mediação. A maneira como essas máquinas minam o Estado é através do exercício do poder difuso para rachar os poderes concentrados, através da substituição do espaço estriado por espaço liso, ou melhor: desafiando, negando ou destruindo alguma estrutura. A máquina de guerra, assim, é um motor de diferença, é um choque nômade, vertiginoso contra os estados, um gerador de movimento, uma máquina de desterritorialização.

Daí a possibilidade de afirmar que, desde sua origem, a escola funciona como uma máquina de guerra numa sociedade já aparelhada pela estrutura de privilégios e hierarquias. A escola, por profanar os saberes sagrados e restritos e por dar tempo a todos e todas de forma igualitária, atua como uma força externalizante, uma possibilidade de subverter a lógica do jogo político, criar outras forças, que escapem à lógica do poder (e que por isso sejam incombatíveis neste campo). É importante, para pensar as questões da infância e do oculto, que compreendamos como a escola se situa no mundo como geradora de diferença, em oposição ao Estado que funciona a partir da produção de semelhanças e identidades.

Deleuze e Guattari (2012), com base na sua leitura da análise de Georges Dumézil sobre as mitologias indo-europeias e suas estruturas, afirmam que todas as estruturas do Estado se baseiam em dois arquétipos, ou seja, que

a soberania política, ou dominação, possuía duas cabeças: a do rei-mago, a do sacerdote-jurista. Rex e flamen, raj e Brahma, Rômulo e Numa, Varuna e Mitra, o déspota e o legislador, o ceifeiro e o organizador. E, sem dúvida, esses dois polos opõem-se termo a termo, como o escuro e o claro, o violento e o calmo, o rápido e o grave, o terrível e o regrado, o "liame" e o "pacto", etc. Mas sua oposição é apenas relativa; funcionam em dupla, em alternância, como se exprimissem uma divisão do Uno ou compusessem, eles mesmos, uma unidade soberana. (Deleuze e Guattari, 2012, p.12)

Além disso, afirmam:

[...] ambos, por si sós, esgotam o campo da função. São os elementos principais de um aparelho de Estado que procede por Um-Dois, distribui as distinções binárias e forma um meio de interioridade. É uma dupla articulação que faz do aparelho de Estado um estrato. (Deleuze e Guattari, 2012, p.12)

O aparelho de Estado, portanto, funciona como uma máquina num sentido mais literal (assumindo que o termo "máquina" presente no conceito de máquina de guerra não se refere a uma engrenagem ou mecanismo, mas a um agenciamento, a uma combinação de forças ou elementos), sendo ela própria uma estrutura e gerando espaço e tempo assim estruturados. A afirmação das estruturas deve ser composta por esses dois poderes que Dumézil aponta: o motor e as regras, a força que mantém a ordem e a lógica que organiza o poder. Deleuze e Guattari usam o xadrez como um exemplo para uma estrutura declarada (em oposição ao jogo Go, por exemplo): cada peça no xadrez tem sua função, sua maneira correta de se mover; elas se movem sobre uma mesa estriada onde todos os movimentos (embora existam muitas possibilidades) são previsíveis, onde se pode entender, controlar, prever os movimentos (2012, p.192). Assim também a institucionalização da escola opera: definindo tempos, espaços e funções específicas para cada elemento, de modo que seus processos tornem-se, como o xadrez, previsíveis e planejáveis.

E, mais importante que tudo para compreender o lugar da escola nesta trama, o aparelho de Estado funciona através da captura (idem, p.119). O Estado não luta contra a máquina de guerra através de conflito direto de oposição, porque isto é conceitualmente impossível. Não é possível exercer poder sobre algo que escapa à lógica inerente do poder (e é exatamente isto que faz a escola no seu funcionamento mais essencial, mais próprio). Por isso, o Estado atua através do aparelhamento das máquinas de guerra. O exército é a expressão máxima do aparelhamento dessas máquinas de conflito. É a transformação das forças de oposição em forças de normatização e vitória. E assim se dá com os movimentos sociais, organizações democráticas, agremiações e quaisquer máquinas de diferença: pouco a pouco, estes grupos vão se cristalizando, se hierarquizando, se organizando em torno de lógicas de poder, e logo se institucionalizam, assumindo pouca ou nenhuma possibilidade de exercer a diferença, já que estão inseridas na lógica do aparelho.

Assim se deu, ao longo da história da educação, com a escola. Seu potencial revolucionário sempre precisou ser domado, e isso se deu através da institucionalização, do aparelhamento pelas instituições governamentais, das avaliações, controle de qualidade numérico, através da naturalização de incumbências não-escolares para a escola, como a socialização, o aprendizado e a preparação para o trabalho. A história da escola não é uma história de inovações e progresso, mas, antes, uma história de repressão (Masschelein, Simons, 2013).

Para compreender o que este aparelhamento da escola através da institucionalização realmente faz, precisamos observar mais de perto como ele se dá e através de que elementos. O funcionamento das instituições foi detalhado por Foucault em seus cursos no Collège de France, já desde seu curso inicial. Foucault analisa o discurso como o lugar do poder na sociedade: todas as práticas são fundamentadas num discurso legitimador, e esse discurso precisa ser estruturado de forma que permita a materialidade dessa prática que legitima. Sendo assim, afirma:

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuida por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (1996, p. 8-9)

Para explicar como isso pode acontecer em determinada sociedade, ele enumera os procedimentos internos e externos ao discurso, geralmente imperceptíveis (ou perceptíveis, mas que, como são naturalizados, tomamos como naturais), que fazem com que esse controle, seleção, organização e redistribuição possam acontecer de modo coerente e sem que os indivíduos que não detêm o poder dentro da instituição o percebam - ou o subjuguem. O mais importante aqui é compreender como os dispositivos de poder funcionam a partir de linhas de visibilidade e enunciação - que tornam objetos visíveis ou invisíveis, dizíveis ou indizíveis, permitindo (ou não) que ciências, gêneros literários, grupos de pessoas, estados de direito ou movimentos sociais sejam vistos e ouvidos -, além de linhas de forças, que agem como setas, penetrando e conduzindo as coisas e as palavras (Deleuze, 1990).

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (Foucault, 1984, p.246).

Assim, temos aqui dois campos: o dos dispositivos de poder, que organiza a realidade dando ou impedindo a visibilidade a objetos, tornando-os enunciáveis ou ocultos, que Foucault já analisava em seus trabalhos sobre o poder, como Vigiar e Punir e A Ordem do Discurso - ou seja, em primeiro lugar, a constatação de que, nas estruturas macro e micro, há uma grade de interdições e permissões que definem o que é verdadeiro, o que é dizível, o que é lógico. Do outro lado do espectro, temos uma outra força desestruturante, uma escola máquina de guerra, que busca abolir estas linhas, alisar o espaço e o tempo e permitir que o campo escolar seja compreendido como um plano de imanência, onde se encontram todas as forças simultaneamente. Esta escola (que foi tratada até agora na presente pesquisa sob o signo da Escola-Viagem - Gaivota, 2017), já está presente em todo espaço-tempo escolar, de modo latente, invisível, oculto. Assim, o que se pode perceber nestas conclusões acerca das forças presentes em cada escola é que o que se opõe à liberdade, à escola como libertação das forças aprisionadas, é exatamente o conjunto de processos que permitem que algo esteja ou não presente em uma estrutura - assim tornando-se compreensível, racional, enunciável. Ou seja, o que se opõe à escola é exatamente o que a torna visível.

É importante, para se relacionar com estes conceitos e com esta possibilidade de pensar a escola, que se compreenda que a cegueira ou o oculto não são tratados aqui como metáforas. Não se trata de fazer decalque do real através destas palavras, usar imagens para explicar um funcionamento da realidade: como afirmam Deleuze e Guattari (1992, p. 34), o conceito filosófico não é discursivo, não é uma proposição. Não existe em função da extensividade das formulações, como as palavras, mas como intensividade no pensamento. Não serve para dar sentido, para territorializar, mas para ampliar a realidade, para desterritorializar, para alterar os contornos do pensamento.

O objetivo de trazer a ideia da cegueira e do oculto é abrir uma nova janela, criar uma nova linha de fuga, uma maneira diferente de pensar sobre as coisas que viemos pensando. A partir dessa malha conceitual que liga as ideias de aparelhamento e dispositivo de Deleuze e Foucault à noção de visibilidade, a importância do conceito de oculto neste texto é movimentar, virar a mesa e tentar desviar atenção para outras forças, em outros planos, sem que se retire deles sua multiplicidade, sem “dar-lhes voz” ou “dar-lhes visibilidade”, que é o que cristaliza e normatiza estas forças, anulando sua potência.

A partir dessa reflexão, se nos relacionamos desta maneira com a possibilidade do oculto em oposição ao visível, podemos chegar ao ponto de perceber que todos os procedimentos, atividades, imagens, fenômenos e elementos escolares perceptíveis, aparentes, enunciáveis, somente o são porque são permitidos. São permitidos como parte de uma estrutura politicamente e institucionalmente trançada para organizar, controlar e domar as forças e linhas de fuga. Isto significa que não são de fato escolares neste sentido que viemos trabalhando aqui e como apontado por Masschelein e Simons (2013). Não são escolares no sentido mais original e revolucionário da escola, portanto: de ruptura, suspensão ou enfrentamento das estruturas de privilégios e poder. A Escola-Viagem, esta escola original que atravessa a realidade na forma de uma máquina de guerra, somente pode existir de maneira oculta - pois ela é, no meio de todo este jogo político, invisibilizada, proibida, tornada impossível de enunciar. Mas apesar disso, resiste. Faz ainda da (instituição) escola (força) escolar, mesmo que seja impossível percebê-la em nossas estruturas visuais, discursivas ou epistemológicas. Estas, portanto, são as forças que nos interessam para pensar a educação. Não o que podemos ver, mas o que movimenta e faz mover, ocultamente.

infância e deslocamento

Depois de observar estes possíveis caminhos escondidos, podemos conceder que nunca foi simples pensar o invisível ou o que se esconde. Tanto porque tal investigação envolve procurar o lado reprimido e revolucionário da escola quanto pela própria invisibilidade dos termos, referências e exemplos necessários para uma investigação científica (até porque a ciência ocidental é uma ciência sedentária - em oposição à uma possível “ciência nômade” ou “menor”, Deleuze e Guattari, 2012, p.25 -, ou, nos termos aqui utilizados, uma ciência do visível). Ainda assim, o oculto, entretanto, aparece na história do pensamento muito cedo. Talvez seja possível afirmar que é o oculto a causa primeira de todo pensamento. Aristóteles afirma o thauma ou thaumazein (982 b 12-13), ou seja, o espanto ou o espantar-se, como a causa primeira do pensamento filosófico. Nos admiramos com o desconhecido, e é por isso que iniciamos nosso movimento em direção a ele. A história do pensamento antigo nos permitiria concluir que é esse não-saber que nos permite o movimento, e situaria o filósofo como um não-sábio (em oposição aos sofistas, ou seja, aos sábios). Muito mais tarde, Maurice Blanchot, filósofo francês, afirmaria que o pensamento pensa ao encontrar com a dimensão do fora, ou seja, do que é completamente exterior à nossa própria territorialidade (Levy, 2011, p.44). É na violência deste encontro com a máxima alteridade que reside a diferença. Aristóteles e Blanchot parecem estar sugerindo que o pensamento encontra sua potência, seu movimento, naquilo que não conhece, não vê ou não é capaz de compreender - ou seja, que pensar é encontrar com o que está oculto, proibido ou impossível.

A história do pensamento filosófico conta com estes e outros pensadores do oculto, mas se olharmos ainda mais para trás, para muito antes de Aristóteles e Blanchot, encontraremos outro pensador do movimento que já afirmava o oculto enquanto potência no princípio da história do pensamento ocidental: Heráclito. Não temos acesso à sua obra, a não ser por citações nos textos de outros pensadores e historiadores, através dos quais os historiadores da filosofia tentam reconstruir a lógica do texto original. Há diversas versões e traduções destes fragmentos, que correspondem a diversas intenções. Aqui optamos por algumas, mas poderíamos ter utilizado outras, o que nos permitiria talvez conclusões diferentes. Assim, o contexto de cada fragmento de Heráclito é inexato - ou oculto -, e por isso podemos apenas deduzir ou brincar com seus significados. Ler Heráclito não é diferente, portanto, de conversar com qualquer pessoa no mundo e especialmente não é diferente de dialogar com uma criança.

Uma das anedotas ou episódios sobre a vida de Heráclito aos quais temos acesso diz respeito à sua relação com a infância e as crianças. Ela diz que Heráclito

Dirigiu-se, porém, ao santuário de Artemis para lá jogar dados com as crianças; voltando-se aos efésios que se puseram de pé ao seu redor, exclamou: Seus infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo do que cuidar da polis junto com vocês? (Heidegger, 1998, p.25)

Heráclito vai ao templo e lá se senta para brincar com as crianças. O espanto que os efésios têm provavelmente se dá pelo fato de um pensador como Heráclito se ocupar, como as crianças, de algo inútil, não-produtivo. Heráclito lhes responde, afirmando que isso é o mínimo que se possa esperar de um pensador. Heráclito se ocupa, naquele momento com as crianças, de um tempo livre - que em grego se diz exatamente σχολή, skholé, escola. Heráclito está se ocupando de uma atividade ociosa, e por isso escolar, e isto choca seus conterrâneos. Este episódio diz muito sobre a filosofia do pré-socrático, sobre a sociedade de Éfeso, mas principalmente sobre o papel da escola.

Heráclito estabelece para o pensamento filosófico uma relação íntima com o oculto e com a infância. Um de seus fragmentos, por exemplo, o fragmento 123 DK (ou seja, o 123º na numeração de Diels-Kranz, que é a organização mais utilizada dos fragmentos), diz: “φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ”. "A natureza das coisas tende a estar oculta" (Lebedev, 2014) ou “A constituição real de cada coisa está acostumada e esconder a si mesma” (Marcovich, 1967). Heráclito expõe o criptográfico, o que está escondido nas coisas, como um princípio fundamental da natureza - o que pode nos permitir, em oposição, situar a visibilidade e a enunciação em um lugar artificial, humano, não-natural. A palavra φιλεῖ, cujo radical também compõe a palavra filosofia, muitas vezes é traduzida como “amor” ou “amizade” (Costa, 2002). Uma interpretação deste fragmento poderia concluir que a natureza deseja ou se movimenta na direção de (“tende”, “está acostumada”, “ama”) ocultar-se.

Sobre a infância, por outro lado, o fragmento 52 DK diz “αἰὼν παῖς ἐστι παίζων [...]”, que Costa (2002) traduz por "O tempo é uma criança brincando". Mas uma tradução mais atenta e menos literal chamaria atenção para essas duas palavras: αἰὼν e παίζων. A primeira, aión, remete a uma ideia de tempo grega diferente da mais tradicional, χρόνος, khrónos, que diz respeito a um tempo cronológico, medido, pequeno. Marcovich (1967) utiliza em sua tradução a palavra “age”, que não parece fugir do conceito cronológico de tempo. A verdade é que não temos uma palavra correspondente para aión. Aión, muitas vezes traduzido também por eternidade, tem a ver com uma outra noção de tempo, não redutível a unidades de medida - ou seja, também não capturável pelas estruturas e dispositivos de poder. Um tempo incontrolável. A segunda palavra digna de atenção é παίζων, paízon, que podemos traduzir por brincar, mas é uma derivação de παῖς, pais, criança. Paízon, numa tradução impossível (oculta?), já que não existe o correspondente em português, significa algo como "criancear", ou seja, fazer aquilo que é próprio de uma criança. O fragmento de Heráclito, portanto, parece dizer que o tempo se dilata, é experimentado de outra maneira, não controlável ou capturável quando uma criança age como uma criança.

E aqui está a chave para pensar o lugar da infância na escola nos termos que estamos tateando. Repensarmos nosso conceito de infância para expressar não somente uma etapa da vida, mas sim uma potência, uma força disruptiva e revolucionária, oposta às estruturas prontas e reprodutivas da adultez. Não um tempo específico, mas uma relação com o tempo. Como afirma Kohan (2007),

Com relação à infância, [...] o próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação - intensiva - com o movimento. No reino infantil que é o tempo não há sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da duração. Uma força infantil, sugere Heráclito, que é o tempoaiónico. (p.87)

Ou seja, a infância funciona como uma máquina de guerra, uma força anti-institucional, em oposição à estruturação, normatização e normalização do mundo adulto. O faz porque é, em relação a este mundo, o fora. A infância é a externalidade máxima do adulto, é a força menor que desterritorializa a adultez e abre brechas na seriedade, na cronologia, na funcionalização. E como toda máquina que invade um aparelho de Estado, ela é interditada, invisibilizada, impossibilitada de enunciação. A lógica infantil, aiônica, não faz parte do conjunto normativo do discurso oficial, estando por isso invisibilizada, mas ao mesmo tempo subsiste oferecendo perigo, produzindo linhas de fuga. A infância produz, onde habita, a libertação dos tempos, o embaçamento das linhas limítrofes espaciais e temporais. E o lugar onde habita a criança é justamente a escola, skholé.

Skholé, em grego, tem o significado de "tempo livre". O que nos leva a investigar, como as crianças, o que a escola tem a ver com o ato de "criancear". Não é a escola, supostamente, um tempo livre do trabalho, das perspectivas da família, dos pressupostos sociais, livre de quaisquer álibis? Não poderíamos chamar de escolar este espaço-tempo - ou tempo-espaço - em que é possível à criança ser criança, "criancear"? Se admitirmos estas conclusões um tanto quanto apressadas (ou seja, limitadas aqui, mas que ganham e ganharão tempo e espaços aionicos, amplos, no texto completo da pesquisa de uma tese de doutoramento), não faz sentido pensar então que é na escola que o tempo pode se alargar, se ampliar, vetorizar? Passar a dizer respeito menos a indivíduos específicos e a subjetividades estanques, visíveis, tornadas visíveis, e mais a forças que atravessam ocultamente os sujeitos e permitem que estes deixem de ser o que vieram sendo? Não é aí que uma criança pode tocar Heráclito?

desconclusão

A escola, portanto, existe e resiste através daquilo que é indizível, inaudível, invisível. Ou seja, realiza sua função original de que falávamos e sobre a qual Masschelein e Simons escrevem (de ameaçar o status quo, de se opor à ordem social, aos privilégios e às estruturas de poder), mas só pode fazê-lo por manter ocultas em seu ventre estas forças. Ou seja, por abrigá-las sem permitir que elas sejam aparelhadas pelas estruturas do discurso. Mantém pulsantes as forças originais e disruptivas, por não deixar que estas se oficializem, que se estruturem e se cristalizem nos tempos cronológicos e nos currículos extensivos (através dos dispositivos e do aparelhamento, como analisamos em Deleuze e Foucault). E, ao manter esta escolaridade oculta, subverte, perfura, gera brechas e fendas na oficialidade, na ordem e no poder. E talvez essa potência, este movimento do fora, da materialização da externalidade seja o que Heráclito e Kohan chamam de infância.

Em outras palavras, a escola opera suas forças ainda originais através destes ocultos porque eles fogem (e historicamente fugiram) das estruturas que tentam domá-la, impedi-la de exercer sua função libertadora e democrática. Curiosamente, esta função se dá exatamente pela própria tentativa de impedi-la. Se não houvesse o aparelhamento, estas forças ocultas perderiam sua potência de resistência. Por isso, e sabendo como estas estruturas funcionam - através da visibilização - é que ensaiamos aqui pensar a escola em busca de um outro tipo de lógica, de um desenvolvimento de uma espécie de anti-olho, uma habilidade de perceber o oculto, de abrir outras linhas para a diferença. Mas não de torná-la visível, não de trazê-la à tona, pois isto é o mesmo que trazê-la para o jogo da legitimidade, da enunciação, o que significaria inserir estas forças nas estruturas de poder, cristalizando-as. Assim, paradoxalmente, é preciso atentar ao oculto, mas não trazê-lo à luz, como outros pensadores já sugeriram a partir desta mesma imagem: Platão, Kant, Carnap... Não se trata de dar visibilidade às crianças ou “dar-lhes voz”. Não se trata de pensar na escola como um espaço em que a palavra infantil encontra espaço de enunciação.

Mais que isso, a escola parece necessitar uma espécie de cegueira. Não uma cegueira literal, é claro, não uma cegueira metafórica também, mas, neste sentido que buscamos aqui, uma capacidade de não-ver, ou melhor, de ser capaz de explorar todo um mundo oculto por trás das visibilidades. Para Deleuze, aprender não é diferente de tornar-se sensível aos signos do mundo (Deleuze, 2003, p. 4). O filósofo não está falando em ver o mundo em sua aparência (signos mundanos), mas em se relacionar com os signos (sensíveis, estéticos), ser capaz de tocá-los e ser por eles atravessado (idem, pp. 37-38). Tornar-se sensível aos signos é desenvolver uma percepção para além da visão superficial. É passar a perceber o que não se mostra - ou melhor, o que para nós é impossível, proibido ou inventado. Linhas intensivas, em movimento infinito. Devires.

Pensar uma escola do oculto significa perceber que estas forças já estão lá, presentes em seus ocultos. Ou melhor, que a infância é a presença de uma ausência, a atualidade do fora, a materialização do que não se pode ver, o caminho para perceber o invisível - o que faz dela puro movimento, e, por isso, uma força incontrolável. A força oculta na escola, a Escola-Viagem, pode ser também chamada de infância ou devir-criança. E ela já atua, já faz da escola escolar sem que nos demos conta - e na verdade, o faz exatamente por não nos darmos conta.

Podemos estudar todas as maneiras possíveis de inserir o discurso infantil na nossa trama de legitimação, estruturação e visibilidade, mas a partir do momento em que o fazemos, ele perde seu caráter nomádico, livre, errante e subversivo - ou seja, escolar - e torna-se mais uma parte da estrutura. O institucionalizamos, quando o que faz dele potente é justamente sua obscuridade, sua capacidade de esconder-se. Também Heráclito era chamado pelo epíteto de “obscuro”. (Heidegger, 1998, p. 34). Talvez ele tenha percebido, antes de todos, jogando com as crianças no templo de Ártemis, o que se escondia na infância. E talvez aquelas crianças já o soubessem desde ainda mais cedo. Por isso talvez Diógenes Laércio tenha afirmado que Heráclito levou seu saber “para escondê-lo no templo de Ártemis” (idem, p. 33). Acertou: era exatamente isso que estava a acontecer quando os efésios lá o encontraram, brincando.

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Recebido: 05 de Maio de 2019; Aceito: 19 de Junho de 2019

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