SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16A experiência de pensar conceitos e o filosofar na infância na perspectiva de matthew lipmanA formação continuada e a experiência ética do corpo na produção do currículo da educação infantil índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.16  Rio de Janeiro  2020  Epub 01-Ago-2020

https://doi.org/10.12957/childphilo.2020.53037 

Dossier: estudos da infância: politizações e estesias

Apresentação - Infância, politizações e estesias: as vivências das crianças e os lugares que ocupam no mundo atual

Beatriz Fabiana OlarietaI 
http://orcid.org/0000-0003-1046-0433

Conceição Firmina Seixas SilvaII 
http://orcid.org/0000-0003-0586-1275

Lisandra Ogg GomesIII 
http://orcid.org/0000-0002-3601-7758

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

IIIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil


infância, politizações e estesias: as vivências das crianças e os lugares que ocupam no mundo atual

Aquilo que se mostra no limiar entre o ser e o não ser, entre o sensível e o inteligível, entre palavras e coisas, não é o abismo incolor do nada, mas o raio luminoso do possível.

Giorgio Agamben (2007b)

O dossiê desta edição é fruto do II Congresso de Estudos da Infância: politizações e estesias, ocorrido em setembro de 2019, organizado pelas professoras Beatriz Fabiana Olarieta, Conceição Firmina Seixas Silva, Ligia Motta Leão de Aquino, Lisandra Ogg Gomes e Rita Marisa Ribes Pereira, do Departamento de Estudos da Infância (DEDI) da Faculdade de Educação (EDU) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Naquele momento, pensamos que seria propício trazer de forma sensível para o debate o entrelaçamento da temática da infância com a política - dois campos que, pela maneira como a primeira foi narrada e construída socialmente, foram mantidos distanciados, ou mesmo em antagonia. O mundo ocidental, mais precisamente do hemisfério norte, posicionou teórica e socialmente a infância a partir da perspectiva da falta, dependência e imaturidade. Este fato relegou às crianças ao espaço privado e à função de tornar-se autônomas, independentes e maduras para que, então, pudessem ocupar, quando não mais crianças, os espaços públicos - campo, por excelência, do exercício da política e composto quase que exclusivamente pelos adultos. De acordo com essa trama, que não foi traçada de forma neutra e isenta de uma demarcação de poder, a política não cabe às crianças, assim como estas não são vistas como capazes de decidir e opinar sobre os assuntos que concernem a todos/as e, muitas vezes, nem sobre o que se refere a elas próprias. Assim, decisões são tomadas, por adultos, em seu nome e supostamente para o seu bem.

Diante de crises, por exemplo, que afetam em demasia a vida das crianças - algumas mais que as outras - continuamos, com o aval de nossa maturidade e racionalidade, tentando encontrar soluções para os desajustes da vida que produzimos e levamos sem considerar o seu ponto de vista e tampouco seus interesses. Vínhamos vivendo, no último quinquênio, um golpe, retrocessos e reveses democráticos, que fizeram chegar ao poder um governo da extrema-direita, o qual atacou com cortes os recursos públicos e sustentou modificações nas diretrizes da política de Estado, afetando sobremaneira a educação, saúde e cultura. Diante desse cenário hediondo, consideramos que as discussões e intercâmbios acadêmicos, em um congresso de estudos da infância, deveriam estar permeados pelos campos das belas artes, como, o teatro, a dança, a música e a literatura, além de outros campos tais como do cinema, da comunicação, da educação, da filosofia, das questões étnico-raciais e, sobretudo, geracionais.

Consideramos dessa forma, pois no cenário político brasileiro, principalmente nas últimas eleições federais, a infância foi tomada de forma escancarada como mote de disputa. Na plataforma de campanha de um dos principais candidatos, hoje presidente, as crianças foram figuradas como expostas às supostas depravações que assolam a sociedade e as escolas no mundo contemporâneo, carecendo, portanto, de ações e políticas que protegessem sua inocência e candura. A ideia de proteção em que se baseia os argumentos dessa campanha, além de autoritária e paternalista, sustenta-se a partir da premissa de que há uma necessidade da retirada da criança do mundo público e da política, por considerá-la frágil e não competente, alienando-a, consequentemente, da vida como um todo. Fato é que, participando diretamente ou não dos assuntos comuns, as crianças sofrem as consequências das decisões que tomamos, e talvez sejam as que mais são impactadas por terem, dentro de um curso normal, maior expectativa de tempo de vida que os adultos (Qvortrup, 2010). Além disso, ingenuidade seria pensar que as crianças estão situadas fora das fronteiras da política. O simples fato de existir e agir no mundo impõe perguntas e tensões para todos/as aqueles/as que habitam o mundo. Com base nisto que também aliamos, neste congresso, política à estesia/estética, por entendermos que, em se tratando de uma arena em disputa - incluindo as que se dão em termos geracionais -, a política diz respeito aos lugares e as funções que os indivíduos - adultos e crianças - ocupam e desempenham dentro de um mundo comum partilhado e aos embates envolvidos nesta partilha, ao que Rancière chamou de “partilha do sensível” (2009).

A política como partilha do sensível refere-se, sobretudo, à divisões de poder: quem pode ou não pode tomar parte no comum, quem é dotado ou não de palavra dentro dele, quem tem competência ou não para participar, quem é visível e quem é invisível nesse espaço que dividimos. Refere-se, assim, ao que aparece como visível, mas também ao que não se vê. No campo dos estudos da infância, essas noções são de fundamental importância, ao revelar como a criança é posicionada nessa trama de disputa em nossa sociedade - como aquela não dotada de palavra, não competente e, por isso, invisibilizada como protagonista autorizada no espaço comum (Congresso de Estudos da Infância, 2019). Colocamo-nos, portanto, a tarefa de refletir e debater a infância, as crianças e a política com sensibilidade, como forma de politizar - e também sensibilizar - o campo de estudos da infância (Castro, 2008), ao problematizar os lugares sociais que foram convencionalmente destinados às crianças (os espaços privados) e sua função dentro da sociedade (a de preparação), assumindo a ideia de que o lugar da criança é na cultura e no mundo como um todo. O que implica produzir necessários deslocamentos teóricos, discursivos, subjetivos.

Tendo a infância e as crianças no centro desse congresso, dos estudos e debates, elas foram denunciadas e foram pronunciados seus retratos feitos por meio da história e do cotidiano, expondo a violência, a cidadania em risco, seus corpos e suas cores, formas, gestos e sons que resistem e persistem, assim como as relações entre elas e delas com as demais pessoas e a cidade. Mas também foram festejadas sua arte ao narrar histórias, a música feita para elas e por elas, a experiência na busca de compreendê-las pela sétima arte, dança, desenhos e cultura visual. Enfim, foram diversas as epifanias para uma criação artesanal desse mundo. Em sentido benjaminiano, procuramos, ao longo do congresso, formar um pequeno mundo de coisas, deixando que a própria atividade - com todos os requisitos e instrumentos - pudesse encontrar por si mesma o caminho até elas (Benjamin, 2002).

Infância, crianças, política e o sensível pelo viés da arte sustentaram nosso evento e alimentam os artigos que compõem esse dossiê. No entanto, na feitura deste trabalho escrito fomos mais uma vez capturados por uma crise agora suscitada por uma pandemia e que volta a afetar com mais força as crianças, a qual não acomete só o corpo biológico, mas também o psicológico, social, econômico e político. A crise sanitária que se instala em decorrência dessa crise, sobretudo política, deixa esgarçada a desigualdade social, de gênero e racial presente no país, tornando também visível as desigualdades na infância1.

A escola, socialmente instituída como “lugar de criança”, não pôde recebê-la nesse momento, tornando a família o único lugar de fato, do possível. Isto não aconteceu sem conflitos para todos/as: para as crianças, que têm sua convivência com amigos, professoras e outros adultos restrita ao meio virtual; e para adultos, que têm que aprender a lidar com as crianças em tempo integral. Isso para uma realidade das camadas sociais médias e altas, a quem uma quarentena relativamente segura e sem sobressaltos financeiros foi possível. A realidade de muitas outras crianças foi de ficar sem a escola, de nem sempre poder contar com seus pais e mães em tempo integral, já que parte da população pobre seguiu trabalhando de modo formal, informal ou se encontra desempregada e sem recurso, ou interagir com seus/suas amigos/as virtualmente, já que os meios tecnológicos não são acessados de forma igualitária entre a população.

O que temos visto é que a especificidade do Brasil faz com que a crise sanitária não seja desvinculada de uma crise política, e mais uma vez, do ponto de vista geracional, somos convocadas a atrelar a temática da infância à da política. São vários os desafios que este momento nos coloca, várias são perguntas que se apresentam em um contexto ainda em aberto e incerto. De repente, fomos lançados, sem muitas certezas ou planejamentos, a um outro mundo, o do confinamento, no qual o afastamento social passou a ser regra. Se antes as crianças já eram acometidas pela estrutura por sua condição de minoria, enquanto grupo em desvantagem social, como ficaram frente a nova adversidade? Adaptações foram e estão sendo feitas, mas as crianças estão sendo ouvidas e consideradas? Que riscos elas passaram a sofrer e quais foram agravados? Que ausências elas estão sentido? Que exclusões e marginalizações as atacam? Como elas têm sido representadas? De que modo passaram a viver as mazelas e venturas do trabalho escolar, familiar e doméstico? Que infâncias se tornaram invisíveis e/ou esquecidas? Têm as crianças um lugar no debate da crise?

Esses questionamentos não são novos, talvez tenham apenas sido deslocados para um outro viés. Todavia, diante do aqui e agora, pensamos que as nossas conversas no congresso e os artigos reunidos neste dossiê não foram em vão. Entendemos, dessa forma, pois acreditamos que o “novo” mundo deve ser contemplado e praticado a partir da arte e da política. Corroborando com Rancière (2009), a política é estética, pois implica a invenção de novas formas de fazer visível, que são novas formas de configurar aquilo que é de todos. Coincidindo com Agamben (2007a), arte é política, é uma operação que torna inoperativo e que contempla os sentidos e os gestos humanos habituais e que, desta forma, os abre a um novo possível uso. Pelo sensível e agir, pelos sentidos e pelo dizer, podem ser abertos novos possíveis.

referências

AGAMBEN, G. Arte, inoperatividade, política”. In: CARDOSO, R. M. (coord.). Política (Politcs). Porto: Fundação Serralves, 2007a. [ Links ]

AGAMBEN, G. Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007b. [ Links ]

BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. SP: Duas Cidades; Editora 34, 2002. [ Links ]

CASTRO, L. A politização (necessária) do campo da infância e da adolescência. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 14, nº. 7, 2008. [ Links ]

CONGRESSO DE ESTUDOS DA INFÂNCIA . Anais do II Congresso de Estudos da Infância. nº. 02, Rio de Janeiro, 2019. [ Links ]

QVORTRUP, J. Infância e política. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, vol. 40, nº. 141, set./dez. 2010. [ Links ]

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009 [ Links ]

1

Recebido: 23 de Julho de 2020; Aceito: 30 de Julho de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons