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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.16  Rio de Janeiro  2020  Epub 25-Ago-2020

https://doi.org/10.12957/childphilo.2020.48488 

Dossier: estudos da infância: politizações e estesias

Costurando tapetes de histórias - quando as crianças assumem os enredos, um fazer artesanal

Sewing a storytelling tapestry - when children take over the plot, a handmade art

Cociendo alfombras de historias- cuando los niños/las niñas asumen los enredos, un hacer artesanal

IUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil - E-mail: danifossaluza@gmail.com


resumo

O intuito desse texto é pensar como o fazer artesanal se apresenta na linguagem de tapetes tridimensionais de histórias, criados e confeccionados a partir de livros, técnica e iniciativa de fomento à leitura que teve origem na França e são desenvolvidas no Brasil desde 1997, refletindo sobre sua sobrevivência em tempos tecnológicos e acelerados. Para melhor estudar essa questão, foi realizada uma experiência no contexto específico do Solar Meninos de Luz (instituição escolar filantrópica) com crianças de 9 a 11 anos. O objetivo da pesquisa (da qual algumas considerações são aqui apresentadas) foi observar como as crianças se apropriavam especificamente dos materiais e da linguagem, elaborando discursos narrativos próprios. Entre os achados dessa trajetória compartilhada com as crianças estão a elaboração do conceito metodológico de pesquisa-ateliê e a prática artesanal de criar e costurar tapetes como sugestão de desenvolvimento e fortalecimento do eu-narrador. Busca-se, também, refletir sobre como as crianças relacionam-se com as dimensões artesanais e tecnológicas ao experienciarem a contação de histórias com tapetes. As observações foram tecidas como um relato de experiência, um texto construído de modo autobiográfico, memorialístico, e tendo a narrativa como método. Para melhor embasar as ideias desenvolvidas, arriscou-se uma conversa com o autor Walter Benjamin. Os conceitos benjaminianos servem como nutriente e convite para melhor pensar a prática em questão, um fazer que encontra ecos nos seus pensamentos e escritos sobre a infância e sobre o ato de narrar.

palavras-chave: crianças; tapetes de histórias; literatura; narrativas; artesanal

abstract

The purpose of this text is to think about how the handmade presents itself in the language of a tridimensional storytelling tapestry created and sewn into books--a technique and enterprise for the promotion of reading that originated on France and has developed in Brazil as of 1997--thinking over its survival in technological and accelerated times. For a better study of such the question, an experiment was made in the specific context of the “Solar Meninos de Luz” (a philanthropic educational institution) with children between 9 and 11 years old. The objective was to observe how the children would appropriate the given materials and the language of the story through elaborating on the given, original narrative. Our research led to the formulation of the methodological concept of research-atelier, and the hand-crafted practice of creating and sewing tapestry as a vehicle for the identity-development of the self-storyteller. It also led to reflection on how children relate to dimensions of the handmade through the experience of storytelling with tapestry. The research suggests specific practical applications, and helps us in thinking about the exercise of expression, the elaboration of speech/narrative, and the process of communication in the educational medium.

keywods: children; storytelling tapestry; literature; narrative; handcraft.

resumen

El propósito de este texto es pensar en cómo el hacer artesanal se presenta en el lenguaje de las alfombras tridimensionales de historias, creadas y hechas a partir de los libros, una técnica e iniciativa para fomentar la lectura que se originó en Francia y se desarrolló en Brasil desde 1997, reflexionando sobre su sobrevivencia en tiempos tecnológicos y acelerados. Para estudiar mejor este tema, fue realizado un experimento en el contexto específico de Solar Meninos de Luz (institución escolar filantrópica) con niños/niñas de 9 a 11 años. El propósito de la investigación (del cual se presentan algunas consideraciones aquí) ha sido observar cómo los niños/las niñas se apropiaron específicamente de los materiales y del lenguaje, elaborando sus propios discursos narrativos. Entre los hallazgos de esta trayectoria compartida con los niños/las niñas se encuentran la elaboración del concepto metodológico de investigación-atelie y la práctica artesanal de crear y coser alfombras como una sugerencia para el desarrollo y fortalecimiento del autor narrador. También busca reflexionar sobre cómo los niños/ las niñas se relacionan con las dimensiones artesanales y tecnológicas mientras experimentan contar historias con alfombras. Las observaciones se hicieron como un informe de experiencia, un texto construido de forma autobiográfica, memorialista, y utilizando la narrativa como método. Para basar mejor las ideas desarrolladas, se arriesgó una conversación con el autor Walter Benjamin. Los conceptos de Benjamin sirven como nutriente y invitación a pensar mejor la práctica en cuestión, una práctica que encuentra eco en sus pensamientos y escritos sobre la infancia y el acto de narrar.

palabras-clave: niños/niñas; alfombras de historias; literatura; narraciones; artesanal.

costurando tapetes de histórias - quando as crianças assumem os enredos, um fazer artesanal

os tapetes de histórias e o fazer artesanal

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos num mesmo contexto. Interagindo, eles defendem uma prática. Essa prática deixou-nos de ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem mil maneiras o fluxo do que é dito (Benjamin, 2014, p. 240).

Do livro ao tapete, dos tecidos à imaginação, do manuseio à performance, do gesto à palavra, do narrador ao ouvinte, da costura à conversa, da prática à linguagem, das impressões e sonhos à criação de novos mundos possíveis - movimentos que, entre outros, num contínuo ir e vir, configuram dinâmicas de vida que se retroalimentam.

Quando, há mais de vinte anos, conheci a arte de confeccionar tapetes tridimensionais e a arte de contar histórias com o apoio de bases-cenários criadas a partir de livros, imediatamente, percebi a força e a potência do trabalho que, na ocasião, eu travava contato (em 1997). Constatei em mim e nos sujeitos que participavam do acontecimento, uma pequena roda de histórias no jardim de uma universidade pública da cidade do Rio de Janeiro, entre adultos e crianças presentes, o interesse genuíno pelo que se passava. AURA1.

Corpos atentos, comportamentos humanos projetados em bichos através de fábulas, um ator-narrador no centro da roda completamente comprometido em dar vida aos pequenos bonecos de pano inanimados, dispostos no chão-tapete-grama, olhos e corações em contato, um evento sustentado pelas mãos e presenças de todos que ali estavam. Múltiplas vozes invisíveis e voadoras circundando nossas cabeças e corpos, esbarrando-se em choques, enlaces, passos de dança e outros movimentos possíveis, com narrativas e trajetórias individuais presentes naquele mesmo tempo e espaço. E a história que estava sendo contada sendo catalisadora de algo que se desenrolava com as palavras, mas, para além delas.

Arrisco dizer que, ali, naquele dia, estavam presentes algumas possíveis compreensões e dimensões do que pode ser uma EXPERIÊNCIA. Em concomitância, a experiência tecida no tempo que passa, sendo passível de ser transmitida através da prática atenta e dedicada de um artesão-narrador, e a experiência do tempo presente como o único possível de ser vivenciado ou vivido, porque nele todo o resto é costurado. Desta ocasião relatada tenho em minha memória um sentido especial para uma experiência própria que traduziu a impressão de estar escutando ao mesmo tempo que era escutada. Um momento de investigação compartilhada sobre o mundo, com TEMPO. Com o tempo. Tempo e arte dançando juntos, confabulando, abrindo sentidos e espaços em nossas almas. Silêncio. Movimento. Laços. Pausas. Caseados. Um ritmo inventado ali, naquele CANTO e lugar, impossível de ser reproduzido, mas passível de ser evocado. Estaria a dimensão de aura apontada por Benjamin (1939) presente?

Interessados no enredo que o narrador (Eric Tarak Hammam) expunha e transmitia com seus elementos que transitavam no TAPETE DE HISTÓRIAS, como crianças mergulhávamos individual e coletivamente em nossos imaginários, sendo convidados à contemplação, mas também a uma participação e atenção bem particular, com opiniões e contribuições sendo bem vindas na roda. Assim, detalhes iam sendo velados e desvelados, denunciando impressões e escolhas postas em camadas e sobreposições de tecidos, uniões de retalhos, formando um pequeno mundo com histórias. O livro disposto ao lado do tapete como mapa e fonte aparente. Fiz desta paixão imediata o meu ofício e, desde então, desenvolvo um trabalho como artesã, atriz, narradora e coordenadora de um coletivo e grupo de artistas, o Costurando Histórias.

Figura 1: Tapete de histórias criado por Daniela Fossaluza e Denise Goneve, artistas integrantes do Costurando Histórias. Foto: Claudio Medeiros. Fonte: acervo do grupo 

A ideia de transpor uma narrativa ricamente ilustrada em livro para cenários de pano concretizados como TAPETES TRIDIMENSIONAIS foi da educadora Clotilde Hammam, em meados da década de 1980, na França, e nasceu com o intuito de fomentar a leitura literária. "Para ajudar as crianças a se familiarizarem com o livro, procuramos um meio lúdico, estético, afetuoso e tátil, que facilitasse essa aproximação e fizesse com que elas descobrissem a felicidade da leitura-prazer. Assim nasceram os Raconte-Tapis" (Hammam, 1998)2.

Contar e ouvir histórias de um modo poético - tendo a oralidade e a base concreta e visível dos tapetes (espécie de GEOGRAFIA TÁTIL das narrativas ou mundo em miniatura) como suporte e base para transmissões de memórias e confabulações, traduz-se numa prática promissora no que diz respeito aos processos de estímulo à imaginação e exercício de LER o mundo. Possíveis alinhavos entre o concreto e o abstrato, entre o visível e o invisível, entre o imaginável e o palpável, entre a leitura literária e a leitura de mundo, na lógica do ponto a ponto, da presença física, do toque e no tempo da COSTURA.

Referenciando as considerações de Walter Benjamin (2014) sobre a morte e o desaparecimento de um determinado fazer artesanal capaz de lapidar narrativas exemplares, elaboradas artesanalmente e tecidas com sensibilidade no desenrolar do fio do tempo e na experiência daquele que engaja as próprias mãos no processo de elaboração, que é sobretudo COLETIVO - mas a despeito deste mesmo apontamento, num mundo cada vez mais tecnologizado, robotizado, motorizado, automatizado, espetacularizado, comercializado, feitichizado - a cada ENCONTRO que vivencio com as crianças para contar histórias ou criar tapetes, misteriosamente, constato como determinadas práticas e lógicas sobrevivem. Ou, ao menos, se reinventam diante da ameaça permanente e constatação da morte como horizonte.

Não se trata de engajar-se no propósito de geografar “modelos” de narrativas que garantam a permanência de tradições, por exemplo, senão a identificação e costura das possíveis “bases” que viabilizem e acomodem tanto as visadas das muitas gerações que nos antecederam, como as cores, texturas e combinações que venham fertilizar a criação de novos mundos, em constelações individuais, mas em solos comuns. Bases capazes de aconchegar o humano em situações de transmissão de narrativas.

Em contrapartida a ideia de um fazer artesanal fadado ao desaparecimento ou que sobrevive em recantos, essas práticas artesanais parecem encontrar fundamento para a vida em genuínas reivindicações e no fazer necessário que une mãos, alma e olhos (como nos remete o autor). Talvez, em tempos tecnológicos, práticas que sobrevivam no LIMIAR... Ou criem mais livremente nele. Neles. Limiares. Nos entrelugares onde teimam em respirar sob a ameaça constante de serem sufocadas, mas, ao mesmo tempo, onde podem encontrar certa liberdade para criar e trocar informações e modos. Com perspectivas NOVAS? Mãos trabalhando.

Compreendendo como possíveis limiares os espaços e as práticas de resistência protegidas pelo “selo” da cultura e da arte - entendidas como áreas de produção - mas também os espaços virtuais da internet, cada vez mais ocupados pelas crianças e que permitem configurações não antes concebíveis. Desta forma, vislumbram-se alinhavos que sejam menos “vigiados”, avaliados, analisados, acomodados e conduzidos por estatutos, câmeras e/ ou especialistas, tendo como desafios a garantia de trânsitos, trocas e movimentos, rotas de fuga e passeios furtivos sem propósitos demasiados e cerceamento excessivo.

Mas, como escapar dos rótulos e dos rastreamentos que se proliferam e perpetuam por todo lado? Escapar, seria esta uma utopia fadada a morte? Como puxar das tradições apenas os fios necessários, permitindo transformações e novas configurações? Limiares e infâncias podem se entrelaçar de quais formas? As artes e o fazer artesanal pressupõem investigações? Como garantir a presença das mãos na BRINCADEIRA? RESPIRO.

Seguindo a hipótese e aposta numa sobrevivência do artesanal, quais seriam as funções, formas e possíveis significados desse fazer em tempos tecnológicos? O que estaria implicado nessa atividade? De que maneiras sobreviveria esse modo de ser, estar e produzir capaz de fundamentar uma dissertação sobre sua relevância e a insistência de uma prática? Seria possível realizar uma investigação dessa natureza com as crianças seguindo suas brincadeiras mais livres? Assim, uma pergunta puxando a outra, uma história puxando a outra, como também fazem as crianças com suas infinitas indagações e experimentos. LABIRINTO.

Sem medo de parecer nostálgica e/ou idealista, sentindo as palavras de Benjamin (2014) ecoar em minha prática (como artista, mas sobretudo atuando e criando com e para as crianças, "no tempo da INFÂNCIA"), intuo e percebo trocas e transmissões necessárias de “miudezas” -imersas em projetos narrativos - detalhes e reivindicações expressas em palavras, impressões, gestos, retalhos e indagações, em momentos em que a presença daquilo que me parece ser a aura delineada por Benjamin se faz perceptível, não como algo que remete ao que não existe mais, mas como algo que resiste, sendo também semente. Miudezas que são como detalhes costurandos em cenários de panos e que brincam de serem velados e desvelados por mãos dispostas a tatear sentidos, disponibilizando-se num exercício constante de ler e inventar o mundo. Nestes momentos, como se a artesã (que sou eu, numa insistência de sobrevivência) pudesse dar as mãos para as crianças fazendo ARTE e como forma de desacelerar e/ ou silenciar um pouco as "máquinas" e os excessos de finalidades e produções padronizadas em larga escala que nos rodeiam e pressionam.

Tendo a arte - a costura, a literatura e a performance - como meio e mediação, em experiências como estas a que trago nesse texto e faço alusão, sem medo, "infância" pode dar as mãos ao fazer artesanal. Juntas, em pequenas salas de leitura, quintais, jardins, ateliês e cantos de pátios escolares, sem supervisão excessiva, talvez possam distanciar as necessidades de sucesso, aprovação, fama, destaque, lucro, reconhecimento, produtividade - apaziguando esses "intrusos" que distorcem as brincadeiras e investigações, com fins de pressionar em direção a determinado rumo e norte. Um ambiente assim, mais "protegido" de arbitrariedades e que permita a presença do "maravilhoso" e a gestação e transmissão de histórias, não surge sem o trabalho atento e engajado de muitas mãos. Mãos que "... sustentam de cem mil maneiras o fluxo do que é dito" (Benjamin, 2014, p. 240).

Se a transmissão de uma narrativa nos moldes do que seria, segundo Benjamin uma narrativa perfeita segundo Benjamin (2014), trançada no tempo e nas experiências de gerações, ainda é possível, isso não aconteceria sem o trabalho "silencioso" e incansável de várias mãos "artesãs" espalhadas e talvez escondidas em meio às cidades, fábricas, instituições, comércio, lares e coletivos, numa insistência de que os conselhos tecidos na experiência do viver ainda são bem-vindos. Mãos artesãs mobilizadas na construção de uma BASE, ou bases tecidas através de uma série de relações, redes e sonhos que RESISTEM. Base que, imagino, compõe a possibilidade da criação de novos mundos, com a garantia da transmissão de narrativas da História e das experiências ordinárias, de modos sensíveis. Um amontoado de mãos, aos montes, trabalhando em conjunto. Mãos que, em comunhão com as almas e os olhos, tecem a partir de lógicas que permitem brechas e espaços para os vínculos e as comunicações não embrutecidas e automatizadas.

"A mãe da Branca de Neve costura, e, do lado de fora, a neve cai. Quanto maior o silêncio, tanto mais honrada a mais silenciosa das atividades domésticas” (Benjamin, 2012, p. 129). A atividade artesã não comporta alarde, ela não serve a esse propósito. E ela parece-me trazer um RECADO importante.

Vislumbro e sinto, então, nesses momentos de deleite, comigo e com as crianças, as reflexões de Benjamin sobre as especificidades da infância de mãos dadas com as reflexões sobre o fazer artesanal como resposta possível às outras reflexões dele próprio que alertam sobre a morte do fazer artesanal e sobre a trajetória da infância e da humanidade caminhando em direção à barbárie e ao modo de vida do filisteu (ou aquele que quer condicionar a experiência dos outros a sua própria limitação). O recado caminharia, nesse caso, para o horror? Quais as rotas de fuga possíveis contra a pasteurização e o autoritarismo?

Como se Benjamin estivesse sentado conosco na roda de história, confabulando sobre os caminhos possíveis e costurando observações sobre o mundo, fertilizada pelo fazer artesanal, pela literatura e pelo convívio e troca com as crianças, percebo certa natureza insistente escondida em camadas de cultura e História que parece emergir para nos falar de suas experiências, horizontes e encantos. Ela emerge em busca de certa visibilidade que denuncie sua existência e persistência, mesmo em ambientes mais inóspitos e áridos, ou violentos. Mesmo com a perspectiva certa da morte, ela quer viver! Esta teimosia traz pistas sobre renovações necessárias. Esta natureza me fala profundamente através das vozes, gestos e silêncios das crianças, porque as crianças me parecem mais permeáveis aos seus recados. Esta natureza-infância ou possibilidade de ser, com toda a plenitude dos começos, acolhida em "úteros" protegidos, resiste, acredito, no caminho e rastro da expressão.

Na linguagem dos tapetes de histórias, essa natureza-infância brinca de se esconder na possibilidade história-tapete-cenário que se apresenta para a criança convidando-a para uma aventura e que funciona como uma alavanca que dispara a criança na brincadeira e experimentação, ao mesmo tempo que a criança permite-se percorrer pelas entrâncias do tapete com sua (s) narrativa (s) latente (s)3. Além dos olhos e do livro que inspira e funciona como mapa para a brincadeira, o tapete convida as mãos para descobrirem um mundo de pequenas coisas que "falam". O pensamento e o coração orientam as mãos, enquanto as mãos, através do toque, percebem a narrativa de modo particular. Essa natureza-infância escondida como potência no tapete de histórias é transposta para ele por mãos artesãs, mãos que dedicaram alguns dias e horas à elaboração de materiais e que integram convites, denunciando que trama e urdidura mantém-se entrelaçadas com fios firmes e resistentes. Ela une como potência, infância, arte e narrativa.

Como plantas que buscam brechas em meio aos blocos de cimento e concreto para darem o ar de suas graças, as pessoas, que são também natureza-infância em latência por todo o decorrer de suas vidas, parecem-me buscar umas às outras para trocarem relatos e afetos a despeito de todas as brutalidades que são capazes de operar e conduzir. Entre botões, logaritmos e motores, as pessoas buscam-se pelo toque. E, pelo "toque", visível e invisivelmente, são afetadas. Deixando-se afetar, elas vivem, imaginam, constroem narrativas. Narrativas, na concepção benjaminiana - senão lapidadas num formato exemplar por meio do fazer artesanal que embala a transmissão de experiências dando sentido e suporte às coletividades - diante da eminência e constatação da morte e da impossibilidade de serem construídas e comunicadas nesse formato, apresentando-se em fragmentos ou aos cacos à espera de serem arriscados em novos mosaicos ou “tapetes de histórias” (também na concepção de Benjamin, um modo não impedindo o outro, pelo contrário, denunciando-o).

O tapete no chão, ao nosso olhar distanciado, apresenta-se como um “todo” em si mesmo, porém, ele é também fragmento de mundo tecido com muitos outros pedaços de mundos impressos em cada retalho, materialidade e sugestão. Um mundo dentro de um MUNDO dentro de OUTRO mundo DENTRO de outro mundo... São narrativas ou fragmentos de narrativas que permanecem como meios capazes de transmitir algo vital e que passeia entre os espaços e tempos. Recados. Se o recado caminha para uma concepção de experiência fadada à barbárie e / ou caminha em direção a uma reivindicação e capacidade de renovação, se traz em si espanto e/ ou aconchego, impedimento e/ ou possibilidade, limite e/ou amplidão, em perspectivas geografadas, entre polos, entre tensões, artesanalmente sendo elaborado, o recado permanece em busca. E para ser NARRADO, precisa ser escutado. O RECADO CAMINHA.

Esse passeio que o recado faz ganha uma força capaz de permitir que ele atravesse as pessoas e os espaços, modificando-se ao mesmo tempo que modifica. Na linguagem dos tapetes de histórias, o artesão é como o ilustrador de um livro - alguém que arrisca o recado no visível da linguagem. O performer-narrador-artesão que se engaja na produção de seus tapetes é alguém que amadurece e talha uma base para aquilo que pretende contar. Esse processo modifica-lhe tanto quanto ele imprime algo de si no que prepara e transmite. Assim, o recado passa por ele de modo bem particular, por suas mãos, corpo, voz e gesto, ganhando especificidades que serão comunicadas e expressadas. E, como esse recado se apoia na oralidade e no tempo presente da performance, ele respira. Ele precisa de ar para germinar.

Conforme refleti na pesquisa de mestrado realizada, o processo de construção de um tapete de histórias, na metodologia que desenvolvo com meus parceiros de trabalho, acontece por meio da qual cada obra é única e fruto da junção de determinados retalhos recolhidos e garimpados ao sabor da experiência tecida no tempo. A elaboração e a força de representação dos mundos em miniatura a serem projetados nos tapetes pedem certo empenho, envolvimento corporal, respiração, inspiração, atenção nas tarefas de selecionar, cortar e unir, experimentando e arriscando leituras e reflexões através do exercício constante da criatividade. Na estética proposta, a produção de um tapete não acontece em formatos rápidos, não é passível de ser reproduzida em série e em larga escala, ela pede PACIÊNCIA.

Sem as garantias de que essas ponderações aconteçam e de que o resultado do empenho seja o esperado, cabe ao artesão dedicar-se à obra de transpor cada proposta de livro para uma espécie de maquete tridimensional de pano, macia, com perspectivas e contornos que comportem o desenrolar de um enredo e convidem à leitura, respirando o inesperado da vida. As vitalidades dessas obras são constantemente testadas através das interações com as crianças. São elas que nos dizem o valor e a consistência de cada criação, que não residem exatamente na “beleza e plasticidade” dos tapetes e obras, mas na força de atração dos “convites” - expressos esteticamente - capazes de suportar e representar as diversas viagens imaginárias percorridas coletiva e individualmente em situação específica, como a da roda de contação de histórias.

Não se pode significar o sentido da experiência do outro, sendo ela mediada por uma série de fatores particulares e sempre a partir daquele que a vivencia. Mas, podemos concordar que, quando uma criança ri e brinca ou quando um adulto sorri e brinca como uma criança, quando uma criança e um adulto se entregam a atividade de criar e investigar imersos nos próprios movimentos de experimentação, imediatamente, algo como reconhecível e possível de ser chamado como um "estado de infância", certa sensação de comunhão com o tempo presente estendido para fora de si mesmo, ganha presença capaz de ecoar e afetar.

Nesses momentos, onde o tempo parece suspenso, mãos escrevem, tecem, tocam, brincam, experimentam a partir de forças e lógicas estranhas (ou esquecidas) ao universo adulto, moldado. SEM PRESSA, mas com urgência de quem quer “saborear” a vida e os silêncios de grande arte capaz de fazeres subversivos, essa tal natureza-infância conduz os acontecimentos e as práticas. Práticas que podem “relembrar” pessoas, em todos os seus momentos de vida, sobre um certo modo de estar no mundo que é também criar esse mundo e dar sentido à própria experiência.

É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande (Benjamin, 2014, p.57).

ressignificando a linguagem dos tapetes - costuras nas mãos das crianças

A partir da constatação, em anos de trabalho, de que as crianças apropriam-se da linguagem de maneiras próprias, e de que os adultos, quando se permitem uma experimentação mais livre e um certo estado de "não-saber" e brincadeira mais espontânea, aproximam-se dos estados de presença e entrega das crianças, ingressei numa pesquisa de mestrado com o intuito de ressignificar a linguagem dos tapetes a partir dos usos que as crianças fazem dos materiais que costuramos para elas. Numa aposta e convite para elaborarem performances narrativas aos seus modos, a ideia inicial foi disponibilizar celulares para que as crianças produzissem vídeos narrativos, como tanto gostam de fazer as crianças do mundo contemporâneo. No centro da roda, com os cenários-tapetes, livros e câmeras em suas mãos, o que as crianças teriam a nos dizer e como nos diriam?

Assim, iniciei os estudos acadêmicos sobre os modos de narrar das crianças (trabalho "finalizado" em 2018 junto ao grupo CACE UNIRIO), com a proposta de pesquisar possíveis alinhavos de um fazer artesanal com fazeres tecnológicos. A questão sobre possíveis alinhavos acompanha minha trajetória desde a primeira vez que contei histórias com tapetes para as crianças, na ocasião, ainda cursando a graduação em artes cênicas (1997). Esse público de crianças - que já nasceu em tempos tecnológicos - se interessaria espontaneamente por bonecos de pano que vivem suas aventuras animados pelas mãos de um adulto que narra sobre tecidos?

Ainda hoje, as respostas que as crianças dão-me em relação às apropriações infantis se renovam a cada encontro e atividade realizada e elas validam a continuidade do trabalho e da prática, não sem antes uma necessária e constante atualização nos conteúdos e formatos, sem ajustes nas dinâmicas das performances, sem lapidações de dramaturgia e especial atenção em relação aos diálogos singulares estabelecidos e tudo o mais que possa garantir as presenças, as participações e as alteridades (mesmo que possamos destacar aqui a utopia destes apontamentos, talvez, por isso mesmo - tendo a utopia como horizonte).

As respostas das crianças e que fortalecem o fazer artesanal na contemporaneidade despontam através dos interesses perceptíveis pelos conteúdos e narrativas que apresentamos a elas, pela inventividade com que elas brincam com os materiais criados e disponibilizados - ressignificando enredos e cenários, pelas constantes sugestões de novas histórias a serem costuradas, pela utilização de câmeras de celular produzindo vídeos de narração com os tapetes (o que atesto em diversas oficinas com crianças já realizadas) e pela surpresa que a pesquisa de mestrado me trouxe: o interesse em COSTURAR.

Para minha admiração, no decorrer da experiência, as crianças que participaram da pesquisa não quiseram somente narrar histórias com os livros e tapetes que oferecemos para elas. Também não se interessaram exatamente em apenas produzir vídeos e tutoriais para redes sociais e canais no youtube, como era minha hipótese inicial e a partir da percepção do alto consumo que as crianças fazem das mídias e meios eletrônicos. Elas me disseram (representadas nas palavras de Beatriz): “Eu quero contar. Eu quero filmar. Eu quero mexer. Eu quero o meu próprio tapete, quero mais aulas.”

Arrisco dizer que as crianças comunicaram que sim, elas queriam narrar o mundo e experienciar a prática e linguagem que apresentávamos para elas a partir de conteúdos que lhes parecessem importantes, porém, para além disto, propuseram um engajamento na costura, portanto, elas queriam de algum modo aprender a construir bases próprias. Ou seja, a linguagem dos tapetes pareceu-lhes interessante e mobilizadora, um fazer artesanal que encontrava sentido mesmo num mundo cada vez mais tecnologizado e acelerado. Mas, as crianças nos deram um RECADO: não adiantava apenas convidá-las para narrar, elas queriam TECER seus materiais, ajudando a construir uma base que acomodasse suas vozes, sonhos, anseios, impressões e medos (conteúdos que, no desenrolar da experiência, se mostraram diversas vezes como sendo de algum modo "silenciados" ou ofuscados em meio ao cotidiano da instituição escolar com suas demandas). Foi um recado COLETIVO, mas também com muitas nuances individuais. Foram muitos RETALHOS que as crianças trouxeram. Retalhos que, juntamente com os TECIDOS que disponibilizamos, numa construção conjunta, arrisquei chamar de: a "BASE DA PESQUISA". Eram mundos dentro de outros mundos, planos dentro de planos, várias impressões a serem acomodadas.

Ao me deparar com a solicitação de autoria das crianças (num grupo que reuniu 22 crianças com idades entre 9 e 11 anos4), o enredo da pesquisa ganhou contornos específicos e inesperados. As crianças investigadoras, comigo, numa metodologia que arrisquei chamar de PESQUISA-ATELIÊ, inspiraram-se em livros, mas, não somente neles, também em filmes, jogos eletrônicos, letras de música e situações de suas vidas. Trouxeram para a sala da biblioteca (onde as atividades de pesquisa aconteceram) e "para cima do tapete", seus fragmentos variados, muitas vezes, CACOS. Outras, SEMENTES. Com tudo isso, fomos arriscando COMPOSIÇÕES.

Figura 02 e 03 Algumas costuras das crianças. Fonte: Registro de campo 

Os enredos, ou as possibilidades deles, não surgiram numa concepção clássica - entendida como um certo transcorrer linear de acontecimentos impulsionados por uma lógica de encadeamento e causalidade e a partir de conflitos determinados que caminham para uma resolução, sendo conduzidos por personagens bem delineados. Quando, finalmente, enxerguei e abandonei essa arbitrariedade implícita na criação de narrativas, pude enxergar melhor a força expressiva que cada criança estava nos trazendo com seus fragmentos-embriões. Entre eles, uma situação de confinamento onde, numa pizzaria à moda fast-food, as almas de crianças que foram assassinadas estavam “aprisonadas” em animatronics que matavam as pessoas que por ali se aventurassem (fragmento narrativo inspirado no jogo eletrônico five nights at freddy's5), “A mulher pequena que o homem grande e mau arrancou a boca”, “A grande festa ou baile na ladeira do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho” e “O menino que não gostava de repelente”. Dividimos, então, as ideias em projetos e grupos que configuravam o que chamamos de “projetos narrativos”.

Fui, gradativamente, desconstruindo minhas projeções de pesquisa para escutar o que a turma parecia me comunicar, entre os frequentes silenciamentos que aconteciam, em meio à agitação natural de um grupo de crianças, com falas simultâneas e às vezes barulhentas. E fui, a cada encontro, percebendo como o convite da arte e o tempo da costura estavam proporcionando particularidades ao processo, com desacelerações significativas que permitiram a elaboração de conteúdos e a expressão de vozes. SUSPENSÃO DO FIO DO TEMPO..., com duas qualidades de SILÊNCIO apresentando-se: o silêncio que era uma “fala presa” e o silêncio que era concentração e atenção.

Em nossa percepção da produção das crianças, alusões a possibilidades de enredos apareciam e sumiam nos encontros para reaparecerem mais como embriões narrativos que não se deixavam cristalizar em textos escritos ou roteiros de vídeos. As narrativas das crianças - ou esses fragmentos potentes (as que despontavam na biblioteca através das falas, mas também aquelas que não se arriscavam sair pela boca), apareciam em desenhos, canções, brincadeiras, gestos e conversas. Também na escrita, mas de forma modesta. Fomos “tateando” tudo que nos parecia possível. Algumas coisas sentíamos que precisávamos tocar de “olhos fechados”. Eram expressões de situações sem aparente resolução, personagens sem trajetórias delineadas, figuras emudecidas, humanos que viraram animais e vice-versa, desejos de expressão que apareciam em pedaços de doces costurados com tecidos coloridos (e que acabaram impulsionando uma história-canção aos poucos), rascunhos de situações de perigo e de confinamento, narrativas sem fim. Não menos de uma vez, as crianças comunicaram a impossibilidade do transcorrer ou desenrolar do fio de uma narrativa. Onde estavam escondidas as narrativas das crianças ou o que esses esconderijos-ninhos estavam velando?

Como exemplo, trago aqui um dos casos que analisei em minha dissertação: o projeto narrativo MONSTROS. Inspirados por um dos livros que oferecemos, entre tantos outros com temáticas e estilos diferentes apresentados a elas, as crianças idealizaram monstros. Vários. O livro que os inspirou foi um manual de monstros que explicava possíveis origens, locais de moradia, poderes, pontos fracos, além de recomendar sobre como podemos nos defender de ataques e investidas destes seres. Portanto, estimulados pelo livro e talvez "ticados" em seus desafios de criança, as crianças desenharam livremente muitos monstros com o intuito de selecionarem alguns que seriam transpostos para os tecidos.

Entre as produções, destaco um dos personagens criados: a MORTE. A Morte ganhou textura e contorno, com sua aura de mistério. Desde o momento em que foi convocada, a Morte sentou-se na roda e acompanhou o desenrolar dos acontecimentos. Com ela foram convocados monstros e heróis. E, assim, possíveis medos e anseios foram se materializando. Medos, desejos, impressões. A morte precisava ser combatida? Quando indagamos quais seriam as "histórias" para estes personagens, escutamos: "Têm mais monstros do que heróis. A batalha já é vencida." Nas palavras de Marcos, após finalizar a elaboração da personagem Morte (com o seu cajado em mãos): “A Morte não tem fraqueza. Ainda não descobriram. Não adianta criar história.”

Arriscando um caseado entre a perspectiva de Benjamin (2014) sobre a morte de um determinado modo de narrar e esta constatação das crianças que surgiu da pesquisa, tanto as crianças como eu-pesquisadora, nos deparamos com questões: "O que narrar? Por que narrar? Estávamos diante da impossibilidade de um final não violento e/ou desumano? Estávamos diante do fracasso e da derrota? Seria melhor admiti-la, desistindo frente a um adversário tenaz como a Morte? Tínhamos experiência para criar histórias ou nos faltava bagagem? Estávamos percebendo inspirações e dando asas às nossas próprias ideias? Seria uma questão de pouco conteúdo ou necessidade de maior liberdade para criar e inventar sem tantos “medos”, paralisando nossas elaborações de discursos? Onde encontraríamos a chave da pizzaria para sair do “confinamento-eletrônico”, liberando as crianças presas nos animatronics?”

Foi quando Ryan, uma das crianças do grupo dos Monstros, elucubrou: “Temos uma chance com os Minecraft.” Eles, os Minecrafts6, aos montes, com suas várias habilidades e ferramentas de poder, poderiam, talvez, unidos, engajar-se numa batalha. A constatação foi reafirmada pelo grupo. Juntos, perceberam que precisavam de estratégias para a criação do “time”. Com eles fui orientando o projeto. Primeiro vieram os desenhos, depois, a identificação das cores, poderes e ferramentas (espadas, armas, escudos), em seguida, a elaboração dos moldes e a colagem de tecidos para, finalmente, chegar o momento de costurar. Ao longo do processo, as crianças disseram: “Nossa! Para costurar tem que ter paciência!”. Sim, precisávamos acionar a senhora Paciência. Ela e a Morte, de mãos dadas na roda de histórias e no ateliê coletivo de criação de tapetes que estávamos desenvolvendo juntos.

Quando alguns minecrafts ficaram prontos, ainda assim, uma batalha narrativa ou possibilidade de enredo continuou não acontecendo. As crianças engajaram-se num projeto “sem fim” de criação de heróis Minecraft e surgiram tantos desenhos e propostas para serem costuradas que o tempo cronológico da pesquisa não foi suficiente para concretizá-los em bonecos. Talvez, as crianças precisassem de mais tempo para que o “exército” de bonecos quadrados fosse suficiente o bastante e capaz de enfrentar o número grande e maior de monstros já projetados. Este exemplo que trago aqui (e que apareceu durante a pesquisa) foi um dos alinhavos possíveis e por mim vislumbrados com as crianças entre um fazer artesanal e determinada perspectiva tecnológica, entre outros.

Costurando com as crianças e inventando situações e personagens, escolhendo e unindo tecidos e retalhos, no final do ano letivo, produzimos um material que contava muitas histórias e que possibilitava a criação de outras. Surgiram o que chamei de HISTÓRIAS BRINCADAS ou abertas (porque a cada vez que eram retomadas, o acesso ocorria através da improvisação, modificando os possíveis roteiros), HISTÓRIAS LINKADAS (porque eram situações narrativas que estavam sempre multiplicando-se em possibilidades outras de interpretação ou porque novos problemas não paravam de surgir dessas situações, como janelas que vamos abrindo na tela do computador), HISTÓRIAS FUGIDIAS (porque não se deixavam “prender” em formatos como o de um texto escrito, por exemplo) e HISTÓRIAS CRUZADAS (porque na hora de brincar com os materiais, os enredos e situações de cada grupo acabavam influenciando-se mutuamente).

Mesmo sem "histórias" registradas em roteiros escritos ou gravadas em vídeos, materiais foram sendo elaborados. Na medida em que esses materiais iam sendo costurados e materializados, enredos surgiam ou eram "brincados", renovando-se em possibilidades a cada encontro. Assim, o ato de NARRAR se fazia presente cada vez mais espontaneamente com o fazer das MÃOS, mesmo que essas invenções não se deixassem moldar em limites que não fossem o da própria costura dos personagens e de alguns elementos vinculados a eles próprios (como armas de fogo, espadas, colheres, pratos, alimentos e indumentárias). Personagens soltos no Tempo e Espaço sem bases para desenvolverem suas aventuras?

Como possíveis ambientes para as narrativas, surgiram uma casa e um fogão sem um solo determinado. VOADORES? O único cenário-ambiente que foi materializado e ancorado através de um mapa e projeto de tapete foi o da “pizzaria fast-food assassina”, pensada pelo menino youtuber-jogador-autor, Lucas. Fora este cenário - “transposto” do jogo eletrônico para a linguagem dos tapetes com o intuito de acomodar o enredo de serial-keller - todas as outras narrativas (ou embriões de narrativas) que despontaram com as costuras de personagens encontraram nos tapetes do acervo do Costurando Histórias disponibilizado as bases para serem brincadas. Talvez, se tivéssemos continuado esta experiência com os MENINOS DO SOLAR, outros cenários fossem pensados e materializados para além do cenário de confinamento da pizzaria.

Tínhamos um norte: os limites para o que se deixava moldar eram os limites daquilo que conseguíamos costurar a cada dia, em nosso COTIDIANO. Eram esses materiais que nos deixavam “suspender” as atividades de um encontro para seguir adiante no outro, eram as pegadas e rastros que ajudaram para que não nos perdêssemos em milhares de possibilidades. E os limites percebidos através das costuras traziam coragem e força. E traziam também PALAVRAS.

As experiências individuais das crianças abriram muitas janelas reflexivas dentro da própria pesquisa, funcionando como sementes e terrenos para estudos mais aprofundados. Tanto as semelhanças como as diferenças observadas nas e entre as crianças nos falam sobre aspectos sociais, psicológicos e sobre as mediações culturais que operam na formação e desenvolvimento delas - neste grupo social, economicamente e geograficamente localizado, com influências territoriais e culturais especificas, mas com todos os modos, práticas e conteúdos que transitam pelos mundos virtuais, influenciando significativamente.

O processo de pesquisa de campo e desenvolvimento das atividades com as crianças durou um ano. Durante este tempo, fomos descobrindo juntos que, em concepções de narrativas mais amplas e diversas, tínhamos algo para contar, apesar de não se enquadrar num formato tradicional de apresentação escolar de final de ano, por exemplo. "Olhamos" para o que tínhamos feito com as mãos e a partir de nossos desejos e percebemos que esses materiais elaborados narravam-se por si mesmos. Tinham formas, texturas e expressividades potentes e que convidavam sempre para novas histórias a serem brincadas. Imagens à disposição do tato. Tínhamos, também, além das costuras, instantes emoldurados em muitas “fotografias” feitas com as câmeras dos celulares (não tenho a intenção de desenvolver aqui uma discussão sobre o conceito de fotografia, mas uso esse termo para destacar o pontencial narrativo desses registros quando vislumbrados dentro de um projeto narrativo que possa ser delineado ou perspectivado, como o da experiência que aqui relato). Além da importância individual que os registros têm, podendo impulsionar novos sentidos quando rememorados e revistos por cada um que os viveu, eles denunciam a caminhada percorrida dentro de determinada “linha do tempo”, integrando a vida de cada criança e a minha própria.

No final do ano letivo, revendo as fotos-fotografias com eles (imagens registradas por mim, mas também por eles mesmos exercitando esta função), esses instantes guardados nas “telas” funcionaram como destaques que saltam aos olhos, fragmentos que, a cada vez que forem revistos, podem atuar como lembranças de “maõs infantis e almas curiosas”, fazendo arte e ciência.

Em relação à pesquisa acadêmica, arrisco ainda alguns horizontes reflexivos para esses materiais produzidos em conjunto, revisitando a experiência e refletindo os comportamentos percebidos das crianças com o devido cuidado para não “fechar” ou tentar significar a experiência de cada criança dentro das minhas perspectivas um exercício quase impossível como o de querer “enfrentar” a morte. Como me disse Marcos: “Ninguém descobriu ainda a fraqueza da Morte. É um fato. Batalha vencida.”. E, talvez, não exista mesmo.

Por que, então, persistir no fazer artesanal? Como nos remete Benjamin fazendo referência a sociedade burguesa, podemos nos empenhar em “afastar” a morte ao máximo, fingindo que ela não nos ameaça e pressiona, podemos tirá-la do alcance da infância, ou das infâncias possíveis de serem protegidas dela, mas estaremos, dessa forma, tecendo no vácuo ou falando para ninguém, num automatismo que não pressupõe a existência de um sujeito que pulsa, que cria, que narra para alguém porque também escuta, alguém que está vivo, mas que precisa estar atento e forte porque a perspectiva da morte está em cada instante, mesmo que de modo silencioso. Viver é viver em relação. Viver é permitir, respirar. Viver é também morrer.

Na dúvida, mantenho a Morte de Marcos - e a ameaça de morte da narrativa numa determinada compreensão - presente na roda de história e de discussão, mandando o seu recado. A Morte como mistério constatado e compartilhado, a morte como fertilizadora.

A nível individual, tivemos criança que não falava quase nada no início do ano letivo, mas, na hora de contar o que tinha costurado, falou um bocado; criança que se arriscou mais na escrita ao longo do processo; criança que tagarelava sem parar e sem conseguir materializar suas impressões porque se perdia no próprio fluxo de pensamento, sem conseguir lidar com materiais concretos como tecidos, tesoura e mapas, mas que conseguiu produzir algo muito significativo com a colaboração e participação fundamental dos amigos; e teve criança que conseguiu, também numa brincadeira coletiva de improviso, devolver a boca para a personagem emudecida. Quantas alegrias!

Então, posso dizer que Alegria, Paciência e a Morte estavam presentes nos encontros da biblioteca, também de mãos dadas, assim como Benjamin e as infâncias. Os enlaces entre o fazer artesanal e o fazer tecnológico seguem como oportunidade e indagação.

E, todo o tempo, tiveram crianças contando histórias com gestos, passos de dança, músicas. A morte, entre outros monstros e personagens, continuou sem herói à sua altura. Mas, a situação de confinamento da pizzaria, ao menos, encontrou na brincadeira de improviso final uma possibilidade de chave capaz de abrir um “portal mágico” situado na sala das máquinas, uma indicação de abertura para outra dimensão de realidade possível (segundo o próprio autor, jogador e costureiro). Não à toa, a criança que liderou esse projeto narrativo, o da “Pizzaria assassina”, foi a criança no grupo que demosntrou maior consumo de conteúdos via mídias digitais e jogos eletrônicos, sendo também a criança com maior desenvolvimento na linguagem oral e escrita. Lucas e seus animatronics. Assim, os jogos foram inspirações para nossas costuras, que despontaram na pesquisa também de mãos dadas com os livros que estiveram todo o tempo presentes nas mesas de trabalho e criação. Livros nas mesas, nas prateleiras e no chão, ao lado de cada tapete que contávamos na roda, no decorrer de todo o processo. A biblioteca revelou-se como o melhor lugar possível para o tipo de FILME-NARRATIVA-DOCUMENTÁRIO-PROCESSUAL que vivemos juntos.

Atravessados pela experiência, estivemos exercitando autorias, co-autorias, experimentando elaborações de discursos, costurando vozes, sons e imagens que se entrecruzaram provenientes das páginas dos livros, das telas dos games, dos programas de televisão, dos cantos sertanejos, das letras de funk, das conversas da esquina, dos perigos da cidade, das brigas em casa, das opiniões dos youtubers, das cabeças e corações. Éramos tantos na biblioteca... “Presentes”. RELATOS, hipóteses. Mas, sobretudo, éramos cada um, individualmente falando.

Nestes exemplos que podem parecer ingênuos, como são os fazeres das crianças muitas vezes quando analisados pelas lógicas dos adultos, tudo, na verdade, sempre partiu do idealizado, porque o sonho foi o ponto de partida, tendo os materiais disponíveis e as presenças dos outros como interlocutores e como limites a serem experimentados e negociados.

Concluo, não sem antes abrir várias janelas possíveis, que as discussões propostas por Benjamin no início do século XX continuam atuais. Entre vida e morte, a sobrevivência da NARRATIVA, quando costurada com dedicação, mãos, alma e olhos, pode manter o recado latente e a CHAMA acesa. A roca, ou a máquina de costura elétrica, em atividade.

referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2014. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. 6. ed. São Paulo: Brasiliense , 2012. [ Links ]

FOSSALUZA, Daniela. Retalhos Animados: Narrativas das Crianças com Tapetes Tridimensionais de Histórias - entre as dimensões artesanais e tecnológicas. 2018. 202 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Gradução em Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018 [ Links ]

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Recebido: 17 de Fevereiro de 2020; Aceito: 03 de Julho de 2020

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