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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.17  Rio de Janeiro  2021  Epub 27-Maio-2021

https://doi.org/10.12957/childphilo.2021.56331 

Dossier "Infâncias e necropolítica: outros possíveis"

O erê e o devir-criança negro: outros possíveis em tempos necropolíticos

The erê and the becoming-black child: others feasible on necropolitics times.

El erê y el devenir-niño negro: otros posibles en tiempos necropolíticos

Alexandre Filordi de CarvalhoI 
http://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Ellen de Lima SouzaII 
http://orcid.org/0000-0002-7945-9353

IUniversidade Federal de Lavras, Lavras, Brasil - E-mail: afilordi@gmail.com CNPq/FAPESP - 2020/04174-7

IIUniversidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil - E-mail: ellen.souza@unifesp.br


resumo

O objetivo deste artigo é o de investigar como a noção de devir-criança negra, intermediada pela experiência do erê no candomblé nagô suscita outros possíveis existenciais para as crianças em tempos necropolíticos que efetiva-se no jogo da “normose” (Butler, 2019) e tangencia o apagamento da memória. A hipótese central é de que as crianças negras são marcadores de singularidades sociais potentes para se alterar a lógica dos coeficientes mortíferos que perpassam a necropolítica atual. Ao mesmo tempo, sustenta-se que sem o enfrentamento do carrego colonial (Rufino, 2017; 2018) não há como mitigar-se a força e a presença da necropolítica nesses tempos. Para tanto, o texto atualiza a condição da necropolítica contemporânea considerando sua genealogia colonizadora. Em seguida, a partir de pesquisas com crianças negras no candomblé nagô Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam, na cidade de São Paulo, destacar-se-á a relação do erê na deflagração do devir-criança negra considerando que o axé (energia vital) denota uma resistência contra a pulsão mortífera dos tempos necropolíticos. O giro potente do erê seria a resistência a toda e qualquer prefiguração de papeis e representação estática de vida, agenciando seus devires “africamiticamente”, bem como suas condições para criar outros possíveis para re-existir em tempos necropolíticos.

palavras-chave: devir-criança negra; erê; necropolítica; candomblé.

abstract

The purpose of this article is to investigate how the notion of a child’s becoming-black is mediated by her experience of the erê-an intermediate psycho-spiritual archetype in Brazilian Candomblé-which in turn raises other existential questions relelvant for children in necropolitical times characterized by “normosis” (Butler, 2019) and loss of historical and cultural memory. The central hypothesis is that black children are signs of powerful social singularities, with the capacity to change the logic of the deadly coefficients that traverse the territory of contemporary necropolitics. At the same time, it maintains that without confronting the colonial burden (Rufino, 2017; 2018) it is impossible to mitigate the power and presence of necropolitics. To achieve that, the text updates the reader on the condition of contemporary necropolitics against the historical backdrop of the colonization process. Then, from research with black children in the Nagô Candomblé Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam, located in São Paulo, the focus turns to the resources available in Candomble practice-most especially the mediation of the erê by the axé (vital energy)-that provides for resistance against the deadly energies that characterize these normopathic, necropolitical times. The powerful influence of the erê lies in the resistance to any and all foreshadowing of roles and static representation of life and agency, and in embracing their becoming-African (cf. “Africamite”), as well as working to create the conditions that make it possible to live beyond necropolitical times in the intimation of a new age.

key-words: becoming-black child; erê; necropolitics; candomblé

resumen

Este artículo investiga cómo la noción de devenir-niño negro, intermediada por la experiencia del erê en el candomblé nagô, emerge otros posibles existenciales hacia los niños en tiempos necropolíticos que entra en vigor en el juego de la “normosis” (Butler, 2019) y toca el borrado de la memoria. La hipótesis central sostiene que los niños negros son marcas fuertes de potentes singularidades sociales para cambiarse la lógica de los índices mortíferos que están atravesando la necropolítica actual. Sin embargo, al mismo tiempo, se sostiene cuanto es importante enfrentar el peso colonial (Rufino, 2017; 2018), sobre todo para atenuar la fuerza y la presencia de la necropolítica en estos tiempos. Más adelante, con las investigaciones desarrolladas con niños negros en el candomblé nagô Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam, localizado en San Pablo - Brasil, se subraya la relación del erê con el devenir-niño negro, considerando que el axé (energía vital) denota resistencia contra el impulso mortal de los tiempos necropolíticos. El giro potente del erê sería la resistencia a todas y a cada una de las prefiguraciones de papeles y representaciones estáticas de la vida, agenciando su devenir "afrikaans", así como sus condiciones para crearse otros posibles y reexistirse en tiempos necropolíticos.

palavras clave: devenir-niño negro; erê; necopolítica; candomblé.

o erê e o devir-criança negro: outros possíveis em tempos necropolíticos

O sintoma brutal da necropolítica tangencia o apagamento da memória, a supressão e a distorção das narrativas que dão contornos aos acontecimentos que violam o direito à vida e que sufocam as causas violentas de histórias cujos arquivos ainda cheiram a sangue. Fazer esquecer, reordenar os encadeamentos dos fatos pelo interesse de ocultação e ignorar a produção sistemática da morte são gradientes próprios da necropolítica.

Na contemporaneidade se organizam forças econômico-políticas implicadas diretamente na gestão complacente da morte (Berardi, 2020; Butler, 2019; Carvalho, 2020; Federici, 2019; Mbembe, 2018a, 2018b; Varikas, 2014). Os atributos necropolíticos são diversos quando concernem ao montante considerável das vidas humanas: vidas matáveis, descartáveis, substituíveis, invisíveis, clandestinas, degredadas, enfim, vidas sem valor de troca. Tais atributos são organizados numa “estrutura de endereçamento”, nos termos de Butler (2019, p. 158), manifestando a pulsão mortífera da geografia dos qualificados-desqualificáveis: são os párias, os desterrados, os apátridas, os estrangeiros, os migrantes, os miseráveis, os precarizados, os periféricos, as escórias, os exilados, os forçados aos guetos e aos campos de refugiados, os corpos índices e abstraídos em dados necrológicos.

Como aponta Carvalho (2015), a política de trajetividade demandada em tal conjuntura, leia-se, a imposição dos circuitos existenciais como trajetórias programadas, lateja na pobreza, nas guerras que forçam migrações, nos corpos negros aviltados pela herança perversa da colonização. Dita política também se instala na exploração contumaz do trabalho mambembe e sem garantia legal, no improviso da moradia e da busca pelo alimento depositado em latões de lixo, na liquidação étnica dos povos originários, nos circuitos neocolonizadores de dominação psíquica, afetiva e corporal (Federici, 2019).

Seria desnecessário sublinhar a fragilidade das crianças no contexto necropolítico. Entretanto, como o esquecimento parece ser uma bactéria a infeccionar a sociedade, necrosando as sensibilidades humanas que deveriam revigorar os tecidos e os nexos sociais, não podemos deixar de enunciar que as crianças têm sido objetivo perverso da necropolítica. Mais ainda: as crianças negras.

Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. Representam 45,6% do total de crianças e adolescentes do País. Desses, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca. No Brasil, apesar de todos os esforços que asseguraram uma taxa de mortalidade infantil em torno de 19 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil indígena ainda representa um sério problema de saúde pública. Em 2009, relatório oficial da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) revelou a taxa de 41,9 mortes infantis para cada mil crianças indígenas nascidas vivas. Embora esse dado reflita uma forte tendência de queda desde 2000, ele representa valores acima da população em geral (UNICEF, 2010, p. 6).

Ainda não aparelhadas socialmente com condições racionais, psíquicas, físicas, emocionais e materiais para cuidarem de si mesmas, numa espécie de consequência mortífera, as crianças são tocadas diretamente pelos agentes necrológicos que pairam sobre a sociedade atual. Poderíamos designar tal conjuntura de complexo de Miguel Otávio.

Em uma terça-feira, 2 de junho de 2020, Miguel Otávio foi morto, aos 5 anos de idade, ao sofrer uma queda lancinante do 9º andar do edifício “Torres Gêmeas”, no Recife. Sua mãe, Mirtes Renata Souza, viu-se compelida pelo imperativo do trabalho como doméstica na casa de seus patrões. Sem ter onde e com quem deixar o filho, Mirtes Renata Souza o levou consigo para o trabalho. Ao sair para a ronda de passeio com o animal de estimação de seus empregadores, seu filho, sob os cuidados provisórios da patroa, foi autorizado a entrar sozinho no elevador. Dirigindo-se a ermo até o 9º andar e explorando, ainda sozinho, o ambiente, despenca e morre.

Definimos o complexo de Miguel Otávio como a capacidade racional ou não, consciente ou inconsciente, do adultocentrismo banalizar os riscos aos quais as crianças estão submetidas, ao ponto de morrerem de modo gratuito, estúpido, violento, irresponsável e negligente. Tal complexo também diz respeito às desigualdades sociais herdadas de um sistema colonial, que testa, o tempo todo, a vida passiva de morrer. No caso, e quase que majoritariamente, mães, pais e responsáveis negros; habitantes da periferia; servidores de mão de obra barata, instável, precária, arriscada e sujeita aos caprichos de seus “senhores” veem suas filhas e seus filhos ceifados por balas perdidas, violências policiais discricionárias, racismos reificados e eletivos, descasos dos poderes públicos e supressão de oportunidades sociais equânimes (Souza et alli, 2020).

Acresceríamos ainda o seguinte detalhe: o complexo de Miguel Otávio, numa ideia, concerne à morte facilmente evitada que, todavia, efetiva-se no jogo da “normose” necropolítica. Se “a violência não mostrada é um apagamento por oclusão” (Butler, 2019, p. 178), a violência que banaliza a morte de milhares de crianças, sobretudo as negras, por visibilidade costumeira e habitual, não passa de uma tentativa de apagar e de borrar, no certeiro diagnóstico de Césaire (2010), o funcionamento decadente e ferido de uma civilização mortífera.

Sendo assim, o complexo de Miguel Otávio é a normose da necropolítica voltada para as crianças. Weil (2011) define a normose como tudo que, dotado de consenso social, não é percebido como perigoso. A normose dessensibiliza, pela força do consenso comum e do hábito, o assombro diante da violência. Acabamos presos em uma normalidade doentia, pois a característica geral da normose é seu duplo caráter automático e inconsciente. Em termos precisos,

a normose pode ser considerada como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes (Weil, 2011, p. 18. Grifos originais).

A questão que se nos impõe é da seguinte monta: qual o limite social para o volume de suportabilidade e de aceitação de tantas vidas infantis dragadas pelo sorvedouro da necropolítica? Sem nos contrapormos à sua normose, tememos ver na violência da política da morte a normalidade extremada do que passou a fazer parte do sistema social apenas como efeito colateral. O perigo é patente: “toda normose é uma forma de alienação. Facilita a instalação de regimes totalitários ou sistemas de dominação” (Weil, 2011, p. 19).

Durante séculos e séculos, o fantasma da necropolítica assombra a civilização ocidental com mascaradas distintas, porém, todas consubstanciadas em certo grau de normose. Indagamo-nos: não teria sido assim, com a máquina de moer gente do colonialismo, com seu patriarcado, maniqueísmo social entre senhores e escravizados, ademais de o alongamento de suas engrenagens ainda xenófobas, punitivas, violentas e de segregação renovadas (Fanon, 2015; 2020; McClintock, 2018; Memmi, 2007; Schucman, 2020)? Não seria também do mesmo modo com as estratégias de guerra racial e de racismo de estado com mortes justificadas como mero efeito colateral (Foucault, 2002; Kinzer, 2006; Mbembe, 2018b)? Não tem sido assim, entretanto, por meio da precarização da vida, das condições de subsistência e de trabalho, sob as ruínas irrespiráveis do capitalismo (Carvalho, 2020; Brown, 2019; Standing, 2017)? No cômputo geral, ao que tudo indica, as desigualdades sociais e econômicas se avolumam para comprometer a igualdade política.

Neste artigo, assumiremos uma mobilização analítica levando em consideração o cenário acima, contudo, propondo investigar como o devir-criança negro perspectivado pela afrocentralidade da simbólica religiosa pode ser compreendido no âmbito das estratégias e experiências contra-necropolítica. Tal aporte, a nosso ver, traz implicações para o campo da educação, pois, infelizmente, há um excesso de normose pedagógica também, útil e funcional ao sistema de dessensibilização, de empobrecimento afetivo e de padronização epistêmica. Em uma sociedade cuja morte violenta de uma criança é esquecida e superada rapidamente, conforme giram as pautas em velocidades vertiginosas nas redes sociais e na demanda por consumo de informação, a educação é confrontada a ser arquivo vivo, arguto e tenaz contra o apagamento da memória, a inação dos afetos, a normose da eficiência burocrática e o empobrecimento de experiências não colonizadoras dos saberes e fazeres educativos, ainda que não escolares.

Mbembe (2018a, p. 304) situa uma questão que ressoa com nossos propósitos aqui: “Como pertencer de pleno direito a este mundo que nos é comum? Como passar do estatuto de ‘sem-parte’ ao de ‘parte-interessada’”? Neste texto, insistiremos em tomar a criança negra como a parte-interessada mais contundente nos posicionamentos contrários à necropolítica, porque é preciso defender a criança negra, como qualquer outra, da necropolítica.

Para tanto, mobilizaremos o texto em dois movimentos. No primeiro movimento, buscaremos atualizar o sentido de necropolítica e o seu alcance, considerando-a extensão das sujeições raciais inauguradas com os processos de colonização. Ao mesmo tempo, exploraremos como a necropolítica renova formas neocoloniais de relações sociais. O cúmulo desse processo será denominado de “carrego colonial”, inspirados nas pesquisas de Rufino (2017; 2018).

Se isso procede, como sustentamos ocorrer, defenderemos a necessidade de uma virada nos referenciais culturais e existenciais pelas quais as crianças negras aprendem a valorar e a transitar em sociedade com arranjos valorativos próprios. Com efeito, proporemos o erê e a lógica exúlica como agenciamento1 produtivo do devir-criança negra, no sentido de permitir experiências vivenciais que enfrentam o “carrego colonial”. Executaremos essa etapa a partir de pesquisas acerca do devir-criança negra no candomblé nagô “Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam”, na cidade de São Paulo.

No segundo movimento, e em função das consequências analíticas anteriores, assumiremos a manifestação do erê como caráter da potência de realização do devir-criança. O giro do erê é resistência a toda e qualquer prefiguração de papéis e representação estática de vida. No erê, e com ele, a vida é liberalidade plena. No caso da criança, o erê agencia seus devires “africamiticamente”, catalisando a cosmologia do terreiro de candomblé. Por meio da lógica exúlica, no erê, deparamo-nos com a forja de conceitos tais como oralidade, corporalidade e ancestralidade, capazes de aportar para as experiências de infâncias da comunidade de terreiro uma vida que pulsa.

Ao cabo, consideramos como é imanente a tal experiência o agenciamento de uma problematização existencial que gira em outro sentido, ou seja, no sentido próprio da vida outra, no lugar das estratégias de necropolitização da infância, implicando a própria força decolonizadora na educação, em função de outros possíveis.

entre guetos de necropolítica: resistir à pulsão mortífera das neocolonizações

A atualização constante da necropolítica pode ser situada a partir da indagação labiada por Michel Foucault (2002, p. 304) acerca do racismo de Estado: “Como é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos?”. Embora seja certo a inexistência da necropolítica como chave analítica em Foucault, contudo, o efeito prático da ação do Estado autorizando a morte de seus cidadãos, em defesa da sociedade por ele projetada, não deixa de concernir à própria necropolítica2.

A vida subjugada ao poder da morte na contemporaneidade pressupõe o sujeito racial como corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Essa é característica precípua do racismo de Estado, ou seja, normalizar secções sociais justificadas pela morte do outro. No limite, poderíamos dizer que necropolítica e racismo de Estado coincidem em uma dupla aposta. De um lado, trata-se de considerar que as novas tecnologias de destruição da vida, inscritas no controle físico de populações inteiras e da geopolítica de suas possibilidades existenciais, se pautam pela seguinte lógica:

A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. (Foucault, 2002, p. 306).

Por outro lado, deriva-se da autorização da morte pretensamente protetiva a necessidade de se disseminar miríades de fenômenos fronteiriços cartografados pelas novas formas de guetos mortíferos. Federici (2019) não exagera ao sustentar o caráter de fechamento do planeta em guetos, uma vez que a segregação vem operando as condições incontornáveis de assassínios indiretos. “É claro, por tirar a vida”, precisou bem Foucault (2002, p. 306), não falamos exclusivamente do “assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc.”.

Conforme pensamos, a necropolítica agencia condições objetivas, o assassínio direto; e subjetivas, o assassínio indireto, a partir das seletividades com a quais a morte se reduz à aceitabilidade protetiva de um sistema de organização social que está longe de se distanciar da experiência inaugural do Ocidente moderno: o genocídio colonial. Mas o ajuste do genocídio colonial pressupõe, na atualidade, a produção incansável dos guetos, isto é, de índices identificatórios regulares que fazem do racismo de Estado “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização” (Foucault, 2002, p. 306). As vidas vulneráveis, localizadas na explosão dos guetos sociais desamparados pela justiça social, dispõem-se como pequenos campos de concentração. Por eles, tais vidas são segregadas, chacináveis, extermináveis, descartáveis, hierarquizadas sob o manto do darwinismo social; tratadas como dejetos e resíduos importunos, impõem-se a elas uma trajetividade controlada com múltiplas fronteiras e alfândegas informais. Tais vidas são o introito da marcha fúnebre cujo ritornelo necropolítico repete sem cessar:

Na realidade, a destruição da vida humana em larga escala tem sido um componente estrutural do capitalismo desde a sua criação, como a contrapartida necessária da acumulação da força de trabalho, o que pressupõe, inevitavelmente, um processo violento. (Federici, 2019, p. 218).

A explosão demográfica de assassínio indireto presente em tal contexto é inimaginável, claro está, além dos assassínios diretos. Referida explosão marca o silenciamento interessado da exploração humana intensa, marcação pendular cuja primeira volta foram os processos de escravidão colonial. O posicionamento de Federici (2019, p. 317) é certeiro aqui:

a produção de nossa vida torna-se inevitavelmente a produção da morte de outras pessoas [...] intensificando, assim, apesar de um aparente aumento na interconexão global, nossa cegueira quanto ao sangue na comida que comemos, no petróleo que usamos, nas roupas que vestimos, nos computadores que os quais nos comunicamos.

Mas sem prejuízo da argumentação acima, tenderíamos a expandir a perspectiva, pois intensificamos a nossa cegueira necropolítica porque o aprendizado vem de longe: cegueira com o sangue, a fome, as barbaridades do aço e do açoite a partir dos navios negreiros; cegueira com a cor da pele negra, impregnada dos açoites do alvor do açúcar; cegueira com a genealogia do “planeta favela”(Davis apudFederici, 2019, p. 216), desde as abolições da escravidão sem proteção social; cegueira com relação aos corpos negros, que têm dificuldade de elaborar seu esquema corporal perante o homem branco (Fanon, 2015); enfim, mas não é tudo, cegueira com a criança negra e a carga colonial que carrega naquilo que se assimila na necropolítica. Com reflexos evidentes, ressaltamos:

A taxa de homicídios no Brasil, uma das mais altas do mundo, é de 28 por 100.000 habitantes. Entre os jovens negros do sexo masculino, na faixa de 19 a 24 anos, a taxa é de mais de 200 a cada 100.000 habitantes. Os negros são 75% dos mortos pela polícia; mulheres negras são 61% das vítimas de feminicídio. (Ramos, 2020, p. 4).

Se a colônia foi uma experiência organizada, sistematizada e defendida pelo Estado, a neocolonização assume tais possibilidades como pulsão genocida. Aqui, o sujeito racializado pela lógica colonial permanece vulnerável. Atualizado, o sujeito racial, marcado pela invenção colonial, vê-se capturado novamente, porque “o nascimento do sujeito racial - e, portanto, do negro - está ligado à história do capitalismo” (Mbembe, 2018a, p. 309). Assim, é possível mencionar neocolonialismo quando a necropolítica re-regulamenta condições de vida próximas às explorações servis da época colonial e em função da manutenção da opressão exploratória do capitalismo. Os atratores operativos em tal contexto, além das características precisas da díade necropolítica e racismo de Estado, são encontrados nas condições de trabalho impostas e servis, na existência destituída de projetos realizáveis, nas inseguranças civil, jurídica e etnicorracial, na exploração humana normalizada com condições semelhantes às das antigas colônias (Standing, 2017).

Ora, a galvanização do neocolonialismo transitará, de maneira irrefutável, conforme o “capitalismo sempre precisou de “subsídios raciais para explorar os recursos dos planetas” (MbembE, 2018a, p. 309). Por isso mesmo, “as lógicas de distribuição da violência em escala planetária não poupam mais nenhuma região do mundo, assim como a vasta operação em curso de depreciação das forças produtivas” (Mbembe, 2018a, p. 309), não obstante, ensejadas pela colonização ao reduzir as vidas negras em mercadoria, moeda, objeto, recurso a ser esgotado, vida a ser segregada porque é matável.

Aportados nesses precedentes, Nobles (1998) indica que a escravidão tirou os negros da África, mas a colonização tentou tirar a África dos negros. O autor apresenta a indissociabilidade do racismo com a colonização, que implicou em uma perspectiva cristã, binária, cartesiana e patriarcal, sustentando o caráter violento do racismo e do capitalismo globais. Conforme destaca Gomes (2017), o fenômeno perverso e violento do racismo foi e permanece alimentado pelas várias discriminações presentes na colonialidade do poder, do ser e do saber.

Para Said (2007, p.149) “colonizar significava primeiro a identificação - na verdade, a criação - de interesses; esses podiam ser comerciais, de comunicação, religiosos, militares, culturais”. Esses interesses forjados em tais processos transformavam diferenças em desigualdades, perpetuando uma experiência desumanizadora.

Nas e para as colônias, os africanos que foram trazidos, negociados, raptados e/ou roubados tinham de dar sentido e significado à realidade de novos lugares, condição e constituição em povo fragmentado. Para tanto, o mapa mental que dispunham para dar sentido à nova condição de servidão e de barbarismo era o mapa mental de ser africanos. A concepção africana de ser humano definia-se como: emi (espírito), ori inu (dono de um destino traçado por Deus)3, nglo (ser um poder) e ezaleli (ser inextricavelmente misturado com a própria essência). Essa potência ou “força espiritual” tornava alguém humano e proporcionava a cada pessoa uma relação duradoura com o universo perceptível e ponderável. A concepção do significado da pessoa como canal, instrumento de energia e relação divina tornava o africano arredio à escravidão, a menos que fosse desafricanizado (Nobles, 2009).

Ora, a colonização impôs um processo de subalternização desumanizadora, ou seja, gerando guetos necropolíticos, por sua vez, plenos de estratégias de nulificação dos modos de ser africano. No caso do Brasil, o carrego colonial, como mostrou Rufino (2017, 2018), se incumbiu de proceder uma normalização racial da sociedade, passando, historicamente, a conceber o racismo por meio da sua negação, espécie de recalque perverso. Fanon (2015, p. 31) sumariza tal questão em uma ideia: é a psicologia do colonialismo, onde “fala-se neguinho, exprimindo esta ideia: ‘você, fique onde está’”; ou ainda, ficar onde está é saber que o valor de sua vida está condicionado à vontade de seus senhores. Na sociedade brasileira, a neocolonização materializa o poder necropolítico desde o sintoma de se ser o último país do globo a abolir a escravidão perpassando pelo genocídio das crianças e dos jovens negros, normalizando o desenraizamento imposto a todos os africanos brasileiros4.

Além disso, podemos dizer que a assimilação colonial se fez por aqui em cruz. Não apenas sendo a cruz da força espiritual do cristianismo, braço da realidade simbólica do racismo de Estado colonial, mas também porque a cruz assinala os poderes que operam verticalizando e horizontando as relações sociais, isto é, impondo hierarquia e sujeição do igualitarismo necropolítico. Como fato social, toda colônia existiu senão por causa do colonizador. Tal figura planejou e implantou, escudado pelo Estado, a discriminação e a codificação da injustiça, com as torturas policiais e o massacre (Memmi, 2007). Em última instância, e sem exagero, Memmi (2007, p. 100, grifos originais) acerta no diagnóstico: “toda nação colonial carrega assim, em seu seio, os germes da tentação fascista”, pois o fascismo acaba sendo “um regime de opressão em proveito de alguns”.

O que os usurpadores coloniais não contavam, e ainda o fazem, era com a proliferação das encruzilhadas, outra via conceitual e perspectivística da existência, que também estava perpassando pela colonialidade. Esse fenômeno que preferimos designar com Rufino (2017; 2018) por marafunda ou carrego colonial, compreende-se como sendo a condição da América Latina, submetida às raízes mais profundas do sistema mundo racista/capitalista/cristão/patriarcal/moderno europeu, às suas formas de perpetuação de violência e das lógicas produzidas na dominação do ser, saber, poder e do relacionar-se.

É necessário, para isso, destacar que os efeitos do desencantamento desencadeados pela colonialidade produzem bloqueio na comunicação e na aproximação imaginária entre os povos latino-americanos (Dilger; Lang; Pereira Filho, 2020). Todavia, é apostando na potência do cruzo e praticando o exercício de dobrar a linguagem - ações de ampliação de outra forma de comunicação - que a colonialidade se transforma em carrego colonial, ou seja, na má sorte e no assombro propagado e mantido pelo espectro de violência do colonialismo (Rufino, 2017, 2018). Daí faz sentido Memmi (2007, p. 107) defender que nas colônias há “um esforço constante do colonialista que consiste em explicar, justificar e manter, tanto pelo verbo quanto pelo comportamento, o lugar e a sorte do colonizado, seu parceiro no drama colonial, e, portanto, seu próprio lugar”.

A partir desses termos, o carrego colonial também é um carrego de identitarismo que marca, tal como se fazia a ferro e fogo, as vidas negras; espécie de passaporte a funcionar como semiótica a identificar rapidamente a vida que não vale a pena fazer viver, que pode ser aniquilada, hostilizada, odiada e estigmatizada pelas sequelas coloniais. “O Negro [Noir] é um homem negro [noir], quer dizer, que em função de uma série de aberrações afetivas se estabeleceu no seio de um universo de onde ele deverá também sair” (Fanon, 2015, p. 8)5.

Escorados na exploração desses horizontes, passamos a desenvolver a ideia de que, conforme gostaríamos de destacar no artigo, a concepção de devir-criança negra assume problematização e expressão analítica suficientes para, pelo campo da educação, pensarmos em estratégias de mutação das linhas de forças desse carrego colonial necropolítico, ao mesmo tempo, desinibido pelo racismo de Estado. Se “a colonização é a cabeça de ponte da barbárie em uma civilização, da qual pode chegar a qualquer momento a pura e simples negação da civilização” (Césaire, 2010, p. 26), considerar a formação das crianças negras para a produção de outra civilização implica com o rompimento das formas de barbárie compactuadas com os estratos neocoloniais.

Para tanto, como uma expressão de resistência, de encruzilhada e de enfrentamento ao carrego colonial, destacamos as experiências “macumbalísticas”6, no presente caso, referenciadas pelas pesquisas de Souza (2016), elaboradas no “Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam”.

o erê como devir-criança negra: excorporar o carrego colonial

O candomblé nagô é uma expressão para denominar o conjunto de terreiros que praticam e promovem essa vertente religiosa. Entretanto, cada casa de candomblé possibilita um conjunto de experiências singulares. Nos rituais do candomblé não prevalecem o que popular e equivocadamente se chama incorporação. A ancestralidade não mantém relação semelhante a uma possessão. Ao contrário, a ancestralidade canaliza pelo corpo e pela vida a potência de seu trânsito singular, donde, no candomblé, é a excorporação que vigora na relação primordial com o sagrado ancestral. Paralelamente, seria possível mencionar a excorporação do carrego colonial, desde que ele se estruture na noção de ancestralidade, forjada em um ato de resistência mítica que reconhece o poder da oralidade e recoloca a África, melhor ainda, os sentidos de África ou cosmopercepção, nos seus adeptos.

Destarte, no candomblé, o carrego colonial é canalizado para fora, subvertendo a internalização da colonização que buscou tirar a África dos negros. Com efeito, agencia-se a África como força vital expressa em sua palavra, fundamentada na oralidade que excorpora o axé e elimina o carrego. De maneira paralela, “o pensamento nagô é uma provocação à reversibilidade dos tempos e a transmutação dos modos de existência, sustentada pela equivalência das enunciações” (Sodré, 2018, p. 23).

No candomblé, o axé denota uma resistência contra a pulsão mortífera da necropolítica colonial. Apesar de Memmi (2007, p. 31) acertar ao enunciar que “quando um povo não tem outro recurso a não ser escolher seu tipo de morte, quando só recebeu de seus opressores um único presente, o desespero”, contudo, o axé emerge como hálito e grito contra a morte normótica do colonizador. Nesse veio, basta-nos lembrar que a concepção de axé adveio do àse das mãos e do hálito dos mais antigos, perpassado de pessoa a pessoa, numa relação interpessoal dinâmica e viva. De acordo com Santos (2012), o axé é recebido pelo corpo e em todos os níveis da personalidade, atingindo os planos afetivos, sensitivos e perceptivos pelo sangue e frutos; pelas ervas e oferendas rituais, sempre interpeladas por palavras pronunciadas. A transmissão de àse, por intermédio da iniciação e da liturgia, implica na continuação de uma prática, de certa experimentação de perspectivas, de determinadas expressões e narrativas históricas, além de constante agenciamento do grupo “terreira”.

Por conseguinte, o candomblé passa a ser termo para referenciar um culto afro-brasileiro. Há mais, contudo. Pelo fato de a relação religiosa permitir conexões com a ancestralidade que cruzou o Atlântico nos porões dos navios negreiros, na contramão, o candomblé traça rotas com a África, implicando toda a potência vital do axé nessa empreitada.

Toda afirmação existencial, presente no candomblé, transita na excorporificação da África que vive nos trópicos como saída do universal colonial imposto. Tal África se configura como territorialidade para a proteção dos adeptos do candomblé, a partir não somente de e com seu axé, mas de sua e com sua língua e política, além de seus e com seus princípios filosóficos próprios, cujo vínculo individual se dá desde a ritualização vivenciada para a manutenção da memória de seus antepassados. Assim, a ancestralidade, conforme Oliveira (2007, p. 30), supõe que:

Dos rituais secretos às festas públicas; da hierarquia dos terreiros à vida comunitária, tudo é perpassado pelo princípio da ancestralidade. Ancestralidade pretensamente advinda da tradição africana, que ressignifica as práticas do povo-de-santo e as aproxima de um manancial de legitimidade - a África mítica - que serve como arma ideológica na disputa do mercado religioso bem como na construção de um projeto político, que passa pela identidade do negro brasileiro. Se de um lado a África-símbolo não é a realidade do continente africano contemporâneo, como dizem os “acadêmicos”, de outro é também verdade que este símbolo é utilizado com eficiência na construção da identidade do negro no Brasil.

Referida “identidade do negro brasileiro”, contudo, não pode ser confundida com políticas de subjetivação de identitarismos, capazes de reduzir as diferenças e as singularidades humanas a juízos de valores e de identidades, ambos capturados e sedimentados pela associação binária do pertencimento e do não-pertencimento ou da inclusão e da exclusão. Conceber a identidade negra a partir de rotas contra-coloniais é agenciar no negro seu próprio devir. Em outros termos, tal identidade é nominalista, no sentido que abrange um nome atribuído a toda potência móvel de produção social em que negros e negras afirmam que o que dizem deles não se reduz aos identitarismos cristalizados pela expropriação das próprias diferenças entre a negritude. Nos termos de Mbembe (2018 a, p. 62. Grifos originais): “Se a consciência ocidental do negro é um juízo de identidade”, por outro lado, é preciso atentar que a declaração de identidade ocorre quando “o negro diz de si mesmo ser aquele sobre o qual não se exerce domínio; aquele que não está onde se diz estar, muito menos onde é procurado, mas sim ali onde não é pensado”.

Está em questão a negritude esconjurando a estrutura identitária da segregação cujo marcador histórico continua sendo o despertencimento e a despossessão de sua vida pelo poder colonial, com suas perversões na fabricação de negras e negros tolerados7. O que conta, no caso da afirmação da identidade negra, é o gesto da autodeterminação, além da autopercepção e a autodeterminação como esferas de produção singular de subjetividades que passam a ter impacto na vida individual, social e política da negritude, como destaca Kilomba (2019). Impossível, com efeito, desprezar o registro preciso:

revelar a identidade é também se reconhecer (autorreconhecimento), é saber quem se é e dizê-lo, ou melhor, proclamá-lo, ou ainda, dizê-lo a si mesmo. O ato de identificação é também uma afirmação de existência. “Eu sou” significa, desde já, eu existo (Mbembe, 2018a, p. 263).

Tal concepção desmontaria uma possível aporia entre identidade e devir, pois a identidade mencionada é também agenciada pelas inconstâncias e multiplicidade de experiências em torno do “eu sou”. Em outros termos, os territórios existenciais não estão dados, têm de ser firmados a todo momento em que negras e negros efetivam suas vidas fora do “nome ‘negro, [que] foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação” (Mbembe, 2018a, p. 264); logo, sinais latentes da necropolítica neocolonizadora. Em outros termos, “eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita” (Kilomba, 2019, p. 28, grifos nossos).

Ainda mais, poderíamos assentir à produção de devir-negro pelo fato do termo identidade, nesse caso que precisamos, explodir as identidades às negras e aos negros atribuídas desde o confisco colonial que os inventaram, ao mesmo tempo, como negras e negros (Césaire, 2010; Fanon, 2015; Mbembe, 2018 a; Memmi, 2007), isto é, desde o instante em que foram reduzidos a objeto, negando-lhes o direito de serem sujeitos. No limite, a ética da ancestralidade, a pulsão de vitalismo do candomblé, a expressão corporal com suas simbólicas idiossincráticas e toda subjetividade negra, doravante, são perspectivados como lugares de “uma multiplicidade de singularidades, em que cada uma dessas é apenas aquilo que é, ou seja, singular naquilo que liga a outras singularidades e delas as separa” (Mbembe, 2018a, p. 274).

A ancestralidade extensiva no candomblé se fundamenta na cosmopercepção da reexistência, logo, de todo modo de ser, marcando o devir-negro como excorporação do processo global de colonialidade do poder, do saber e dos modos de ser. Por conseguinte, poderíamos anunciar que o devir-negro é a multiplicidade dos coeficientes experimentais que, pelas diferentes experiências com a negritude, reabilita cada singularidade e cada diferença negras como território existencial livre de representação identitária acerca do que é ser negro. Eis por que as ancestralidades são muitas e variadas no candomblé, o lugar e a plasticidade do corpo múltiplas, o axé insoldável e antidogmático, a aceitação fraternal universal, equânime e isonômica. Seja como for,

Os integrantes do “terreiro” recriam a herança sociocultural legada por seus ancestrais. As novas contribuições recebidas pelo “terreiro” são profundamente africanizadas, retendo, das ideias forâneas, unicamente as que reforçam sua própria concepção de mundo (Santos, 2012, p. 55).

Circunscrever a criança nesse amplo contexto demanda o aprofundamento no legado ancestral que o candomblé concedeu à centralidade do axé como força a assegurar a existência dinâmica e singular da vida. Isso se dá na medida que o axé não deixa de ser devir, no sentido de sua impossível redução a termos cristalizados por significantes prévios. As mesmas afirmações de Deleuze e Guattari (2012, p. 96) acerca das linhas de devir poderiam ser, assim, destinadas ao axé:

uma linha de devir não tem nem começo nem fim, nem saída nem chegada [...]. Uma linha de devir só tem meio. Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois.

No “meio” do axé existem condições para que a criança negra experimente a própria decolonização de sua infância, muitas vezes reduzidas aos pelourinhos do adultocentrismo. No candomblé, ademais, a criança não é reduzida a uma etapa da vida, porém, é recepcionada como inversão de perspectiva e de valor, pois é na e pela criança que a criação da força existencial telúrica e lúdica podem transitar livremente. No candomblé, o adulto não deixa de ser trânsito e rota com e na criança, pelas seguintes razões.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a lógica que permeia o universo “macumbalístico” é pautada em Exu que, por princípio, manifesta a implosão de toda identificação por identitarismo. Na compreensão de Rufino (2019, p. 24)

Exu é a substância que fundamenta as existências; é a linguagem como um todo. É o pulsar dos mundos, senhor de todas as possibilidades, uma esfera incontrolável, inapreensível e inacabada. Ele é o acontecimento, antes mesmo da inscrição deleuziana, por isso ata-se o verso que aqui abre caminho: “Exu nasceu antes da própria mãe”.

As pesquisas de Souza (2016) vislumbraram a lógica exúlica para as crianças, a partir de produções de culturas infantis no “Ilê Axé Omo Oxe Ibalatam”. Souza destaca que o conceito de infâncias - no plural - não é abordado com a finalidade de abranger todas as infâncias. Trata-se, contudo, de reconhecer a existência das singularidades e das complexidades manifestadas em um estado de trânsito, de passagem intensa e por “meio”, naquele sentido proposto por Deleuze e Guattari (2012), tendo em foco o alcance, a potência e o sentido que o giro aporta em e por Exu.

Importante assinalar que, já na compreensão de mundo yorubá, o conceito de criança não se situa pela oposição semântica ao adulto. Ao contrário, a criança se revela como construção possível de trânsito, isto é, condição não estática, cujo movimento, em ritmo de transitividade e narratividade, insere-se na ordem e na natureza do axé, aquela força vital e de permanente movimentação circular e agenciadora de ancestralidade.

Em segundo lugar, as distintas consistências das infâncias derivadas da lógica de Exu reportam polifonicamente diferentes multiplicidades e singularidades de linhas de devires: gestação, nascimento, infância, adolescência, juventude, adultez, velhice e ancestralização. Essas linhas de devires podem ir e vir, numa perspectiva capaz de sabotar a recognição, a interpretação e a representação simbólica eurocêntrica de percepção espaço-temporal. Destarte, o entendimento do que seja “criança” não se constrói, a partir daí, cognitivamente e por intermédio da relação de oposição binária, mas dança conforme a exuberância, a intensidade e a experimentação sempre passageiras daquelas mesmas linhas de devires: ora simultâneas, ora em progressão, porém, não excludentes e experienciáveis em qualquer fluxo de vida.

Na direção acima, gostaríamos de tomar como exemplo a experimentação do erê, que, em Souza (2016), é recepcionado no âmbito da corporalidade que, por sua vez, expressa a ancestralidade como um ato político e de reexistência. Não seria exagero afirmar que o erê é um dos planos de consistências potentes do devir-criança negra, girando fora dos circuitos necropolíticos.

Mas antes de apreendermos a relação do erê com o devir-criança negra, destacamos a existência de sua polissemia. Para Souza e Andrade (2020), o erê é coextensivo ao brincar. O termo adviria de xirê, que se relaciona com brincadeira, subsumindo a presença da criança, de meninos e de meninas. Segundo Verger (1999, p. 84),

No Brasil, certos pais-de-santo afirmam que erê é uma contração da palavra asiwere, que em yorubá significa “louco”. Esse mesmo estado é classificado pelos nagôs da África como tinuerde (que chegou nas bagagens) evidenciando muito bem a posição de adjunto, daquele que vem depois.

São bem-vindas as distintas compreensões em torno de como as relações significativas do erê emergem, pois o erê transgride e rompe com a gramatologia dos poderes adultocêntricos, sobretudo aqueles arraigados aos sentidos e às lógicas de causas e efeitos. O erê é um arroubo nas convenções hipostasiadas pelos hábitos sociais, quase sempre funcionando como agentes colonizadores das potências pueris. No candomblé, contudo, o erê, aclimatando Benjamin (2004, p. 70), transita pelas “crianças [que] são cenógrafos, que não se deixam censurar pelo sentido”.

O adulto que experimenta o erê no candomblé excorpora toda potência da criança que em sociedade teve a infância excessivamente governada ou desidratada pelo adultocentrismo, inclusive o educacional. No erê, “como uma criança que secou consegue fazer-se de criança melhor ainda porque não emana mais dela qualquer fluxo de infância” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 71-72); ou seja, no erê a criança manifestada não é capturada pelos estertores dos saberes que prendem a criança numa infância programada para ela, muito menos nos psicologismos eivados de epistemologias a colonizar as potências das crianças. Se Deleuze e Guattari (2012, p. 73) ainda sublinham que “é o próprio devir que é a criança”, rapidamente conseguimos compreender como o erê consiste em ser o próprio devir-criança, uma vez que ele sempre é criança. Por isso mesmo, o adulto erecizado pode fazer aquilo que a potência circunstancial das linhas de seu desejo está a convocar, e não, necessariamente, o que lhe é solicitado, por exemplo, em um ritual.

Acerca do erê, as fartas palavras de Verger (1999, p. 47), além de belas, são lapidares:

[…] estado de entorpecimento em que se concentra o iniciado durante dezessete dias que é interrompido por períodos de possessão, que, por sua vez são seguidos de um outro, de caráter menos violento, chamado de estado de “erê”. Nele o comportamento do “adoxú” toma uma forma infantil e incoerente. Os dois estados se sucedem durante a iniciação, de acordo com as exigências do ritual. O estado de erê permite ao noviço momentos de relaxamento e repouso, inclusive a retomada de algumas funções fisiológicas interrompidas durante o transe do orixá […] após o estado de erê, eles caem novamente no estado de inconsciência […] o noviço, ao sair do estado de erê, reencontra sua antiga personalidade. Mas, com a volta à consciência, ele perde completamente a lembrança de tudo o que se passou durante o período de reclusão. O inconsciente do iniciado fica, entretanto, influenciado pelo que lhe foi despertado, ou ressuscitado, durante a iniciação, e seu comportamento, em consequência, modifica-se discretamente sem que se dê conta. Embora estando definitivamente livre do estado de inconsciência, continuará, entretanto, ao passar pelo estado de erê cada vez que sair do transe do orixá [...] o erê conhece todas as preocupações do noviço em estado normal, porém as encara com um total desinteresse, como se tratasse de outra pessoa. Ele abstrai as noções de julgamento, de moral e de educação que formam a personalidade do noviço em estado normal. O comportamento do iniciado em estado de erê, é mais influenciado por certos aspectos de sua personalidade que pelo caráter rígido e convencional atribuído ao seu orixá. É a revelação de um aspecto de seu caráter, muitas vezes difícil de perceber quando o iniciado exerce um controle, uma censura rigorosa sobre seus atos e palavras. É, de certa forma, como um personagem embriagado que não toma mais conhecimento do que faz e diz coisas que não ousaria expressar se estivesse senhor de si. Cada erê tem um nome inspirado na natureza do orixá, mas esse nome não é o mesmo para todos os iniciados de Xangô, de Oxum, ou de Ogum. Eles podem chamar-se, por exemplo, “Foguete” ou “Trovãozinho” para os de Xangô; “Estrela do mar” para os de Iemanjá; “Limpinho”, “Prateado”, “Pingo de Prata” ou “Branquinho” para Oxalá; “Peixinha”, “Pingo de Ouro”, “Princesinha” ou “Jasmim” para Oxum; “Panelinha de Barro” ou “Pipoquinha” para Obaluaê.

O erê que dança de modo pueril nos terreiros de candomblé, sempre multipersonificado, múltiplo e irrepetível em seus gestuais, rodopios, saltos, risos, escárnios e suas gingas, desdobra para o devir-criança negra a frágil, porém, potente resistência contra a necropolítica, pelas seguintes razões.

Em primeiro lugar, o erê é vitalidade inconsumível. A vida por ele excorporada remete-nos ao trânsito livre da miríade de povos africanos antes de conhecerem a sujeição colonial. No e pelo erê, o corpo pode se afirmar miticamente como um território africano, ou seja, uma geopolítica do próprio devir-negro. O erê, com efeito, é um plano de imanência irredutível cujo corpo, pelo axé, faz transbordar a vida que deseja se afirmar tal como se manifesta livremente. Portanto, aqui o adulto não se opõe à criança, como antônimo ou anti nómos; aqui, vidas se encontram tramando devires.

Em segundo lugar, a lógica exúlica circunscreve à relação de acolhimento e continuidade permanentes no trânsito imprevisto da infância na adultez. Por esse caminho também se corrompe parte das relações de poder impostas pela colonialidade do poder, pois para além de acolher o outro, evoca-se a cosmopercepção que anuncia Senghor (1990): eu sinto o outro, eu vivo o outro e eu sou o outro, portanto, sinto, logo sou.

Em terceiro lugar, o erê, com toda carga ancestral nele depositada, faz girar o devir-criança negra mesmo em indivíduos não negros. Se no erê o adulto não prescinde do devir-criança, muito menos prescindirá do devir-negro, uma vez que é impossível a ancestralidade do erê não trafegar como força contra-colonial para o continente africano. É assim que, para Souza (2016, p. 137), o erê deflagra

a “loucura”, entendida como a necessária perturbação da ordem estabelecida, adultocêntrica, a objeção necessária à naturalização dos papéis sociais e a prescrição do seu status, a subversão de modelos rígidos para a restauração de um estado e uma disposição social incentivadora de uma circunstância de convívio entre os seres do Orum e do Ayê, entre adultos e crianças, entre os estados de consciência e inconsciência, palco da manutenção dos saberes ancestres, constituído como um fórum em que, num aparente caos, são repensados e reafirmados os laços e os contratos com o sagrado e o secular. [...] Em poucas palavras, erê o meristema do tecido ideológico do Candomblé, é o último ponto do pé de okotô, condição do crescimento incessante e espiral da concha de caracol de Exu, cuja expansão se inicia em Olorun e não termina jamais, pois a graça de Oxum, a mãe do ovo, o novo sempre vem e virá, nomeando o amanhã: Pilãozinho, Florzinha, Mel, Raio de Sol… Este último, talvez, o primeiro de cada manhã (Souza, 2016, p. 137).

Face ao montante insuportável de morte que o carrego colonial busca atualizar, a experiência do erê situa para o campo da educação elementos capazes de problematizar o quanto referido carrego se dissipa como um tumor mortífero quando se trata de dar lugar e azo ao devir-criança negra. Se é próprio da necropolítica a prescrição e a administração da morte, seria incoerente não considerarmos que matar a multiplicidade da vida psíquica, afetiva, sensitiva, simbólica, corpórea e lúdica, a partir dos dogmatismos instalados nas neocolonizações do sistema exploratório capitalista, não passa de um lance de aposta da própria necropolítica.

encruzilhadas de chegada: finais sem fim para novos começos

A “estável imunidade branca”, expressão utilizada por Kilomba (2019, p. 72) para se referir ao duradouro processo de estabilização da superioridade branca no Ocidente, também se presentifica na força de um capitalismo racial como “o equivalente de uma vasta necrópole” (Mbembe, 2018a, p. 24). Como vimos, a necropolítica tem sido o marcador político desse duplo processo: a imunidade branca funcionando como salvo-conduto para marcar as vidas não vivíveis e as vidas negras, sujeitos racializados que são, padecendo de um abate tolerado no engendramento da própria necropolítica.

A violência fantasmagórica da necrópole colonial ronda na contemporaneidade com outras roupagens. Ao cabo, contudo, o final é o mesmo: a dimensão política se articula gerando relações específicas de poder cuja taxonomia hierarquiza vidas confiscadas por novas identificações mortíferas. Essas se alinham com a racialização da perseguição cultural, simbólica e subjetiva da negritude, além de empurrá-la para a miséria humana, a precarização, o açoite cotidiano da degradação material aportada em marcadores raciais (Hosang; Lowdens, 2019).

Se toda criança é a permuta comunicável entre gerações, sendo potência imanente às transformações, por renovação, de gerações vindouras, as reflexões acima tecidas insistem em destacar o fato de que, sem a libertação das crianças do carrego colonial, o pacto com as estratégias de neocolonização não estará bloqueado ou interrompido. Para eclodirmos um mundo livre dos estigmas do carrego colonial, o devir-criança negra emerge como cisão na velha perspectiva: “O nome ‘negro’ foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação”, associado “a ordem de se calar e de não ser visto” (Mbebme, 2018a, p. 264).

A necropolítica é, de certo modo, a racionalização aplicada à ordem de fazer calar a vida negra, não apenas pela morte, mas por tudo aquilo que pode, de geração em geração, reparar os caminhos perdidos da identidade negra. Não foi sem razão que em 28 de julho de 2020, durante um cerimonial iniciático no candomblé, uma criança do “Centro Cultural Ilê Axé Egbá Araketu Odê Igbô”, localizado na cidade de Araçatuba - SP, viu-se sequestrada pela violência necropolítica. Vítima dos capitães-do-mato da cultura negra, atuando no sufocamento religioso, a criança teve seu processo iniciático interrompido. Mencionar intolerância religiosa, embora de fato presente, é pouco diante da situação, pois a guarda da criança foi retirada de sua mãe. O conselho tutelar local recebeu uma denúncia anônima, alegando que a menina estava mantida em confinamento, sofrendo maus-tratos e abusos sexuais. A avó materna requereu a guarda da criança, mantendo-a assim durante 17 dias. O Ministério Público que havia chancelado o pedido de guarda da avó, recuou e avalizou o pedido de revogação feito pela mãe, que recebeu apoio do IDAFRO - Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras.

Casos de intolerância religiosa envolvendo crianças das Religiões Afro-Brasileiras são constantes no Brasil. A latência de um Estado aparelhado pela religião dos colonizadores exemplifica não apenas o sacrifício simbólico da cultura afro-brasileira, mas também escancara a normose de como o cristianismo é utilizado como ordem de fazer calar e de condenar territórios existenciais negros que, desde a colônia, veem-se pressionados à assimilação cultural por várias estratégias de violência. Reconheçamos: “Há nomes que carregamos como insulto permanente e outros que carregamos por hábito. O nome ‘negro’, deriva de ambos [...] extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e castrar” (Mbembe, 2018b, p. 264)

O exemplo acima poderia ser transposto para conselhos tutelares, escolas públicas, universidade, partidos políticos, empresas e fábricas, vizinhança, ruas, supermercados, enfim, uma série de lugares sociais que acabam funcionando como nódulos de transmissão do carrego colonial.

Considerar a potência do devir-criança negra como ação anticíclica de todo esse processo é urgente. Se de fato estamos longe de vivermos em uma sociedade pós-racial (Fanon, 2015; Kilomba, 2019; Mbembe 2018 a), uma vez que a necropolítica é sintoma pujante de referida sociedade, produzir condições singulares para que as crianças negras afirmem seus próprios devires-negros é questão não somente de sobrevivência, mas, sim, de aceno contra toda brutalidade somática, debilitação e violência simbólica, sem contar o estrangulamento de toda potencialidade dos modos de ser negra/o.

Ao sustentar que “a política - e o poder - funciona em parte por meio da regulação do que pode ser mostrado, do que pode ser ouvido”, Butler (2019, p. 178) nos dá condições de justificar por que outras cosmologias, ordens discursivas, vivências religiosas e culturais, corporeidades, além de outras relações com a educação, são aí vitais: porque elas cindem a regulação da política e do poder necrológicos vigentes.

O erê dançarino, solto, descontrolado; o erê como potência sem comportas do carrego colonial; o erê assumindo a aliteração radical da diferença, confrontando o lugar do adulto no mundo com a sagacidade pueril, excorporando gestos instáveis, consagra a criança como elo vital entre a ancestralidade e o devir. Como vimos, o erê intercede encontros sem pertencimento logocêntrico, afetivo, comportamental, individual e relacionalmente que pudesse nos relançar na “Weltanschaaung de um povo colonizado” (Fanon, 1995, p. 105).

A centralidade que a criança ocupa no erê funciona como espécie de convite para afirmarmos outros imaginários e outras simbólicas capazes de enriquecer a potencialidade do próprio devir-criança negra. Tomar a criança negra por tema, por sua vez, incita-nos a agir favorecendo a valorização de experiências que, a um só tempo, abram o devir-criança para o devir-negro e o devir-negro para o devir-criança, sem perder de vista o trânsito de demanda solvente de qualquer necropolítica. Nesse caso,

Se você não tem um imaginário, se você não ocupa um imaginário, se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, pelo ambiente da visão, a visão da cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, que não tem sentido nenhum. Você foi jogado em qualquer lugar (Krenak, 2019, p. 29-30).

Desde sempre, a criança colonizada foi jogada em qualquer lugar; também ela sofreu furtos pedagógicos, ou seja, padeceu com as estratégias de normose do conhecimento e dos saberes, com a perda da esperança da transformação da vida, vendo cerceada, desde cedo, a textura contestadora da própria criança. Se a educação permitisse aflorar seu lado erê, os educadores, talvez, dar-se-iam conta de que os valores-refúgios da educação são ferramentas úteis na manutenção das mesmas perspectivas mortíferas de outros imaginários, possibilidades relacionais distintas, modos variados de simbolizar a vida e de desejar a vida. No lugar de repetir o carrego colonial, por que a educação e as escolas não se transformam em terreiros povoados de erês?

Numa tradução ambígua, os nagôs chamam de emi algo que oscila entre “alma”, considerando certa influência cristã, e “coração”, porém, não no sentido físico (okan), circunscrevendo aspectos do caráter individual (iye-iwa). Todavia, o coração aportaria uma característica eterna ou imprescindível da personalidade humana, porque transcende a realidade do corpo físico (ara-aye), estendendo-se até a realidade do corpo “espiritual” (ara-orun). Guardadas as diferenças doutrinárias ou ritualísticas, em ambos os casos, o corpo configura-se como um microcosmo com um virtual “coração” coletivo. Pensaríamos assim: em todo “coração” do devir-criança negra há um coletivo negro, uma ancestralidade irredutível, uma esperança contra-colonial. Mas também o “coração” do devir-criança negra pode ser uma centelha de vida a consumir o poder da morte e, com ela, um giro alucinante de vida como experiência de territórios existenciais fora das rotas traçadas pelos mapas dos colonizadores da infância negra.

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Recebido: 01 de Dezembro de 2020; Aceito: 06 de Abril de 2021

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