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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.17  Rio de Janeiro  2021  Epub 30-Maio-2021

https://doi.org/:10.12957/childphilo.2021.56340 

Dossier "Infâncias e necropolítica: outros possíveis"

do poder disciplinar ao biopoder à necropolítica: a criança negra em busca de uma infância descolonizada

del poder disciplinario al biopoder a la necro política: el niño negro en busca de una infancia descolonizada

from disciplinary power to biopower to necropolitics: the black child in search of a decolonized childhood

IUniversidade Federal De Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil - E-mail: nilmalinogomes@gmail.com

IIUniversidade Da Integração Internacional Da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco Do Conde, Bahia, Brasil - E-mail: cristina.teodoro@unilab.edu.br


resumo

O artigo discute como a emergência do termo “menor” na sociedade brasileira, a partir de meados do século XIX, forjada principalmente pela prática do discurso jurídico e médico, traçou um percurso de institucionalização para as crianças pobres, primeiro, no período pós abolição da escravização até os anos trinta do século passado e, posteriormente, até o período da democratização do Brasil, considerando a promulgação da Constituição Federal de 1988. A análise para os períodos propostos pautou-se tanto no conceito de poder disciplinar quanto no de biopoder, ambos cunhados por Foucault. Ainda, discutiu-se a emergência da criança negra, a partir do seu status de criança cidadã, contida na Constituição Federal de 88 e no Estatuto da Criança e do Adolescente criado na década de 1990. A partir desse período até os dias atuais, o texto versa sobre os novos dispositivos criados pelo Estado Brasileiro, que têm assegurado condições desiguais para as crianças negras e principalmente promovido o aumento de homicídios entre elas. A análise do último período apresentado, fundamentou-se no conceito de Necropolítica, desenvolvido por Achille Mbembe. Por último, defende-se o princípio de que outra infância para a criança negra somente será possível a partir de um devir-outro, uma nova abertura do mundo e, sobretudo, uma descolonização da infância para as crianças pertencentes ao grupo étnico-racial negro.

palavras-chave: poder disciplinar; biopoder; necropolítica; infância negra; descolonização.

resumen

El artículo analiza cómo el surgimiento del término “menor” en la sociedad brasileña, a partir de mediados del siglo XIX, forjado principalmente por la práctica del discurso jurídico y médico, trazó un camino de institucionalización para los niños pobres, primero, en el período posterior a la abolición de la esclavitud hasta los años treinta del siglo pasado y, posteriormente, hasta el período de democratización en Brasil, considerando la promulgación de la Constitución Federal de 1988. El análisis de los períodos propuestos se basó tanto en el concepto de poder disciplinario como en el de biopoder, ambos acuñados por Foucault. Asimismo, se discutió el surgimiento del niño negro, con base en su condición de niño ciudadano, contenida en la Constitución Federal de 1988 y el Estatuto del Niño y del Adolescente creado en la década de 1990. Desde ese período hasta la actualidad, el texto trata de los nuevos dispositivos creados por el Estado brasileño, que han asegurado condiciones desiguales para los niños negros y promovido principalmente un aumento de los homicidios entre ellos. El análisis del último período presentado se basó en el concepto de Necro política, desarrollado por Achille Mbembe. Por último, se defiende el principio de que otra infancia para el niño negro solo será posible a partir de un devenir-otro, una nueva apertura del mundo y, sobre todo, una descolonización de la infancia para los niños pertenecientes al grupo étnico-racial negro.

palabras clave: poder disciplinario; biopoder; necro política; niños negros infancia negra descolonización.

abstract

The article discusses how the emergence of the term "minor" in Brazilian society, from the mid-nineteenth century, forged mainly by the practice of legal and medical discourse, outlined a path of institutionalization for poor children; first, in the post-abolition period of enslavement until the thirties of the last century and, later, until the period of democratization of Brazil, considering the promulgation of the Federal Constitution of 1988. The analysis for the proposed periods was based on the concept of disciplinary power and biopower, both coined by Foucault. Furthermore, the emergence of the black child was discussed, based on its status as a citizen child, contained in the Federal Constitution of 1988, and in the Statute of the Child and Adolescent created in the 1990s. From this period up to the present day, the text deals with the new devices created by the Brazilian State, which have ensured unequal conditions for black children and mainly promoted the increase of homicides among them.The analysis of the last period presented was based on the concept of “necropolitics,” developed by Achille Mbembe. Finally, we defend the principle that another childhood for black child will only be possible through a becoming-other, a new opening of the world and, above all, a decolonization of childhood for children belonging to the black ethnic-racial group.

keywords: disciplinary power; biopower; necropolitics; black child; black childhood; decolonization

do poder disciplinar ao biopoder à necropolítica: a criança negra em busca de uma infância descolonizada

introdução

Como emergiu o termo “menor”, na sociedade brasileira? Quem era/é considerado “menor”? Quais as diferenças entre o termo “menor” e “criança negra”? Essas foram algumas das perguntas que nortearam a discussão proposta neste artigo. Na primeira parte do texto, o conceito de “poder”, desenvolvido por Foucault, foi fundamental para a busca de possíveis respostas. Cabe salientar que o objetivo não foi aprofundar o estudo sobre o “poder”, mas a forma com que ele foi apropriado em sociedades disciplinares que passaram a funcionar, principalmente, entre os séculos XVIII-XIX e que se consolidaram no século XX.

Como bem argumenta Pogrebinschi (2004), a preocupação de Foucault, ao analisar o tema “poder”, parece ter sido o desejo de rompimento com aquilo que ele denomina de teoria jurídica do poder, refletido fora do campo do Estado, mais especificamente, no da soberania e de suas instituições. O “poder”, na perspectiva do autor, diferentemente dos que o interpretam como repressão, é analisado em termos de combate, de confronto, enfim, de guerra. Nesse entendimento, “poder” é compreendido como

a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (Foucault, 2001, p. 89).

Para Foucault (2001), o “poder” está, ao mesmo tempo, em todos os pontos do suporte móvel das correlações de força que o constitui; está em toda parte, de maneira que na relação de um ponto com outro, enfim, multiplica-se e provém, simultaneamente, de todos os lugares. Assim, o objetivo de Foucault era mostrar que houve uma espécie de desbloqueio tecnológico da produtividade do “poder”, a partir dos séculos XVII e XVIII, e, além disso, ressaltar que naquele momento já era possível deixar de se falar em “poder da soberania” para se falar em “poder disciplinar”.

Para ilustrar como que o “poder disciplinar” foi operacionalizado, utiliza-se como exemplo o Instituto Disciplinar criado em São Paulo no início do século XX. A partir das práticas lá ocorridas, foi possível verificar as técnicas de poder, para além da repressão, e elucidar como tais práticas serviram de base para a construção de políticas institucionais de atendimento à criança pobre. Dessa forma, na segunda parte deste artigo, é possível verificar como que o biopoder ganhou funcionalidade a partir da década de 1930, momento em que houve uma mudança significativa na realidade brasileira como um todo e, consequentemente na política de atendimento à criança pobre ou ao “menor” no Brasil.

O levantamento bibliográfico revela que nesse período, ocorreu, não a exclusão do poder disciplinar, mas sim, uma complementação com o biopoder, ou seja, é evidente, no âmbito nacional, a criação de leis e regulamentações de políticas nunca vistas na história do atendimento à criança pobre no país.

A terceira parte deste artigo esclarece que o uso dos conceitos de poder disciplinar e biopoder alteram-se, a partir da emergência da criança negra, no contexto de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente e no campo da produção de conhecimento sobre crianças pobres no Brasil. Nesse contexto, a “raça”, ao ser evidenciada, retira a possibilidade de se analisar a infância pobre como homogênea, sendo necessário considerar as condições e oportunidades desiguais daquelas pertencentes ao grupo étnico-racial negro. Assim, os conceitos de poder disciplinar e/ou de biopoder tornam-se insuficientes para que seja possível analisar a situação atual das crianças negras, sendo necessária, então, a complementação pelo conceito de necropolítica, cunhado por Achille Mbembe, principalmente diante do contexto atual de aumento de morte de crianças negras pelo Estado brasileiro.

O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte, como se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos, em princípio não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-lo infinitamente, quer em pequenas doses (o mundo celular e molecular), quer por surtos espasmódicos - a estratégia dos pequenos massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica de separação, de estrangulamento de vivis secção, como se pode ver em todos os teatros contemporâneos do terror e do contraterror (Mbembe, 2017, p. 65).

Como poderá ser constatado, a criança negra, antes considerada como “menor”, continua com uma posição cristalizada no imaginário coletivo, ou seja, como perigosa, delinquente e, por suposto, merecedora de confinamento. Por outro lado, essas crianças estão sendo assassinadas nas comunidades das periferias das grandes cidades e ainda contadas através do halo do “menor”. Trata-se, então, de uma reatualização do racismo à brasileira, em que o genocídio da população negra chega cada vez mais cedo. Isso posto, outra infância é possível para a criança negra? Essa é a pergunta com a qual convidamos o leitor, na última parte do artigo, para a abertura do mundo, a criação de um “devir-outro”, e de uma outra infância possível.

a emergência do menor: o poder disciplinar

Malheiros (2018) explica que Foucault encontrará no projeto genealógico de Nietzsche um uso bem definido dos conceitos de “proveniência” (Herkunft) e “emergência” (Entsteung), ambos direcionados à problematização da “origem miraculosa” (Wunderursprung) das coisas, considerando, particularmente, pesquisas históricas e, quando se pretende descobrir a essência das coisas, sua identidade primeira, estado de perfeição e verdade. Para o autor, a análise da emergência trata dos acontecimentos, ou seja, da maneira como se associam suas significações com as relações de poder; sua análise procura determinar, na descontinuidade dos acontecimentos, os diferentes e sempre cambiantes sistemas de submissão aos quais as coisas estão associadas, tendo em vista que aquilo que emerge dos acontecimentos e sua significação, dependem do estado das forças - ou linha de forças - em determinado momento.

Nessa perspectiva, busca-se compreender o momento, na história, em que emergiu a representação da criança tida como “menor”. Müller (2005) e Londoño (1996) perceberam, ao pesquisar sobre a história da criança no Brasil, com particular atenção para o termo “menor”, que o conceito de criança não era o mesmo em todas as pesquisas. Segundo a autora, com base na pesquisa de Londoño (1996), a origem do termo “menor” surge, inicialmente, no período colonial como sinônimo de idade, fase etária, e a partir de 1830, com o Código Criminal do Império, passou a ser associado à responsabilidade penal, determinando que os menores de 14 anos, com exceção dos escravos, não poderiam ser responsabilizados penalmente se não tivessem agido com discernimento. A esse respeito, Mariano (2013) explica que a Teoria de Ação com Discernimento, utilizada à época, concedia à autoridade judiciária o poder de, por juízo próprio, avaliar o grau de consciência de uma prática criminosa. Entretanto, essa teoria e, particularmente, o papel do juízo diante dos processos de avaliação, passam a sofrer severas críticas.

Segundo Müller (2005), na década de 80 do século XIX a questão da imputabilidade e do discernimento foram motivos de intensas críticas do filósofo e jurista brasileiro, Tobias Barreto. Duas delas, ganham destaque. Primeiramente, o jurista considera que: como o discernimento está vinculado ao conhecimento da ilegalidade do ato e à decisão consciente de praticá-lo, seria contraditório a imputabilidade penal de crianças, uma vez que desconheciam seus direitos e deveres civis. Para Tobias Barreto, o discernimento estava vinculado à consciência e, esta, diretamente relacionada ao conhecimento e à responsabilidade, as quais só poderiam ser adquiridas por meio da instrução; sendo assim, era preciso criar instituições que se responsabilizassem pela educação e instrução das crianças, antes que elas pudessem responder criminalmente. Assim, para Barreto não caberia ao Juiz avaliar o grau de consciência, mas sim ao médico, que reconhecia como o profissional mais apto, moral e cientificamente, a julgar o discernimento, tanto do menor quanto dos loucos.

Esta fala reflete a sua crença no saber médico como aquele capaz de desvendar o criminoso antes do crime. Revela também o momento em que a medicina, tomada como ciência e defendida pela sociedade, pode pôr em relação um elemento físico ou a conduta desviante com o objeto que o explica: o crime será concebido por seu caráter desviante, e a criança criminosa por seu estado de anormalidade. (Müller, 2005, p. 426).

Interessa ressaltar como o direito começa a ser questionado enquanto verdade única, emergindo da discussão aqui delimitada, outras áreas de conhecimento, como a medicina e a educação. O debate proposto por Tobias Barreto ocorreu no contexto da discussão para a criação do segundo Código Penal (Código Penal dos Estados Unidos do Brasil), que adveio na República sob o lema positivista: “Ordem e Progresso”. No Código, se afirmava que não eram considerados criminosos os menores de nove anos de idade, nem aqueles entre nove e quatorze anos que tivessem atuado sem discernimento. Caso houvesse agido com discernimento, a criança era submetida a um regime educativo e disciplinar. Foi a partir desse momento que o termo “menor” se firmou no vocabulário jurídico bem como, passou a ser utilizado pela imprensa da época para nomear crianças pobres e desprotegidas moral e materialmente.

Se no primeiro momento a introdução do menor na lei veio para inibir e responsabilizar penalmente os menores por seus atos de delinquência (que atingiam a sociedade e o Estado), no segundo momento a ideia da introdução dos menores na lei surgiu como uma forma de resguardo da ordem e do progresso social, contra o receio que tinham a sociedade e o Estado do potencial perigo que era uma infância pobre e moralmente abandonada. (Kaminski, 2002, p. 21).

Santos (2006) argumenta que a República recém-instaurada, impulsionada pelo nacionalismo, e cujo lema era “ordem” e “progresso”, moldava a forte dicotomia entre os mundos do trabalho e da vadiagem, protagonizados, respectivamente, pelo imigrante e pelo nacional, principalmente aqueles advindos da escravização. Essa análise é possível ao considerar que, na segunda metade do século XIX, houve deslocamento da economia da região nordeste para a região sudeste e que esta última passou a concentrar o desenvolvimento industrial e econômico do país.

Além disso, o fim do sistema escravagista e a entrada maciça da mão-de-obra imigrante resultaram em profundas transformações na configuração social e racial da região. De acordo com Santos (2006) estima-se que, especificamente, na cidade de São Paulo, a terça parte das habitações existentes eram compostas por cortiços, de modo que as pestes e epidemias aumentavam em função da ausência de condições mínimas de salubridade e saneamento.

Rolnik (1989), ao pesquisar a cidade de São Paulo à época, corrobora com essa argumentação quando menciona que abrir as portas para a pobreza europeia, por meio da entrada de imigrantes e da oferta de trabalho assalariado, implicou diferenciar internamente a pobreza e produziu, ao mesmo tempo, a figura do "marginal”. Esse processo trouxe consequências para a organização da cidade, em que o contingente negro passou a experimentar um agudo processo de marginalização devido não apenas à preterição de sua mão-de-obra em favor da mão-de-obra imigrante, na redefinição da noção de trabalho, mas também em decorrência de seu "deslocamento" dos espaços que ocupava com a remodelação da cidade. Assim, por exemplo, além dos quilombos paulistanos, que se desenvolveram no final do período da escravização em São Paulo, as casas de cômodos e porões e os locais na periferia das cidades tornaram-se as únicas opções de moradias baratas para os negros libertos. Nesse período, a eugenia era a ideia corriqueira entre os teóricos e autoridades e a “limpeza social” a prática corrente.

Nesse contexto, de acordo com Müller (2006), a constatação do aumento da "delinquência" infantil e do número de menores que vagavam pelas ruas permitiu a associação entre crianças pobres e abandonadas e criminalidade. Com isso, as crianças passaram a representar um perigo para os comerciantes e transeuntes e tornaram-se, consequentemente, caso de polícia, transformando as questões de opressão política e de miséria socioeconômica da população trabalhadora em problema de segurança pública. Nesse cenário, não havia qualquer preocupação do Estado com a educação formal ou com a proteção das crianças pobres, uma vez que era obrigação dos filhos trabalharem para ajudar no sustento familiar. Aqueles que não conseguiam trabalho ou que não suportavam o ambiente hostil das fábricas eram classificados como “vadios” e sujeitos à prisão, restando-lhes perambular pelas ruas em busca de pequenos trabalhos informais ou pedir esmolas, ou então, o encaminhamento às instituições que lhes ensinariam o valor do trabalho:

A pena para vadiagem é incontestavelmente o trabalho coato. E é a pena específica, porque realiza completamente as duas funções que lhe incumbem: tem eficácia intimidativa, porque o vagabundo prefere o trabalho à fome; tem poder regenerativo, porque, submetido ao regime das colônias agrícolas ou das oficinas, os vagabundos corrigíveis aprendem a conhecer e a prezar as vantagens do trabalho voluntariamente aceito. (Godói, 1904 apud Santos 2006, p. 222).1

Com base nessas práticas discursivas, são criadas, no início da República, as primeiras instituições direcionadas ao atendimento da infância e da criança, tendo como resposta o confinamento em função de serem consideradas vadias e perigosas à sociedade da época. Assim, essas instituições foram criadas como uma forma de disciplinar. Segundo Deleuze (1997), Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX, atingindo seu apogeu no século XX. Para Foucault, elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento, pois o indivíduo passa por diferentes espaços fechados, cada um com suas leis: a família, a escola, a fábrica, o hospital e, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. Assim, o poder disciplinar é aquele que toma o corpo como foco de estratégias de saber-poder, desenvolvendo tanto uma microfísica do poder quanto uma anatomia política dos indivíduos, ou seja, “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (Foucault, 2001, p. 143).

De acordo com Pogrebinschi (2004), além da multiplicação das instituições de disciplina, Foucault observou que os séculos XVII e XVIII também assistiram a uma efusão de dispositivos disciplinares ao longo de toda a extensão da estrutura da sociedade. Nessa concepção, a disciplina é uma técnica que fabrica indivíduos úteis, ou seja, por exemplo, além de ampliar a produtividade dos operários nas fábricas e oficinas, ela faz aumentar a produção dos saberes e das aptidões nas escolas, de saúde nos hospitais e de força no exército. Dessa forma, para Foucault, a disciplina tem por objetivo tornar o exercício do poder menos custoso - seja econômica ou politicamente -, buscar estender e intensificar os efeitos do poder ao máximo possível e, ao mesmo tempo, ela tenciona ampliar a docilidade e a utilidade de todos os indivíduos submetidos ao sistema. Isso ocorre por meio de dispositivos disciplinares ou técnicas do poder disciplinar: 1) distribuição dos corpos no espaço e controle temporal das atividades; 2) vigilância hierárquica; 3) sanção normalizadora; 4) exame.

Ao analisar o Instituto Disciplinar, é possível verificar quais desses dispositivos disciplinares eram aplicados. Fundado no ano de 1902 em São Paulo como uma Colônia Correcional destinada ao enclausuramento e correção pelo trabalho dos “vadios e vagabundos” a instituição era voltada, também, ao confinamento dos menores tidos como perigosos à sociedade, e se configura como uma das primeiras instituições criadas no início da República (Santos, 2006).

O ingresso no Instituto Disciplinar ocorria sempre por sentença de um juiz de Direito, que determinava o tempo de penitência dos sentenciados, e rigoroso exame médico que extraia medidas antropométricas.

O instituto dividia-se em duas seções: uma recebia os maiores de nove e menores de quatorze anos, que realizaram ações com “discernimento”, e a outra de crianças entre nove e quatorze anos que não eram consideradas criminosas, ou seja, “pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados”.

A organização do espaço é uma das características do poder disciplinar. A técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório, segundo o objetivo que dele se exige (Machado, 1998).

As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de imóveis, mas ideais, pois projetam-se sobre a organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões difusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas [...]. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma ‘ordem’. (Foucault, 2001, p. 126-127).

Assim, tudo indica que a organização dos menores por idade e, também, por características, permitia o desenvolvimento de um saber específico sobre seus comportamentos e corpos. Apesar de ser baseado na clausura, o encarceramento, o espaço, a partir do poder disciplinar, eram pensados de uma maneira mais flexível e fina.

De acordo com Santos (2006), na instituição, a regeneração pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho eram moedas correntes no cotidiano dos internos. Além do trabalho agrícola, eles também eram obrigados a desenvolver atividades físicas, recebiam aulas de “ginástica moderna” e instrução militar completa com manejo de armas e exercícios de combate com o propósito de formar excelentes soldados para a defesa nacional. Também recebiam aulas de educação cívica com vistas a reprimir o “desamor” que muitas vezes expressavam pela pátria.

No poder disciplinar, o controle sobre o tempo ganha importância já que as atividades deveriam ser reguladas nas menores frações de tempo possíveis, tanto no sentido de controlar o tempo do indivíduo de forma rigorosa quanto no de fracionar suas ações em repetições curtas que se davam em curtos períodos de tempo. Controlar o tempo, tinha como objetivo estabelecer uma sujeição do corpo, visando produzir o máximo com rapidez. Assim, o trabalho era utilizado não apenas para impedir o ócio, mas, para desenvolver comportamentos produtivos. O quantitativo de atividades, trabalho e exercícios físicos, pareceriam ter como objetivo, ainda, a vigilância.

Outra questão importante é o castigo. Santos (2006) menciona que no Instituto a ausência de castigo físico nos menores não significava, necessariamente, ausência de punições. Havia uma rígida aplicação de castigos de acordo com o delito praticado.

Numa escala crescente estas punições constituíam-se em: advertência ou repreensão particular ou em classe; privação do recreio, atribuição de pontos negativos; isolamento nas refeições, perda definitiva ou temporária de insígnias de distinção ou empregos de confiança, cela clara com trabalho e finalmente a cela escura, ‘mas somente para as faltas graves’. (Santos, 2006, p. 226).

De acordo com Santos (2006), havia ainda um rígido sistema de recompensa, em escala gradual, que militarizava o cotidiano dos menores. O sistema compreendia a inscrição do nome no quadro de honra, disposição em lugares de honra à mesa nas horas das refeições, suprimento de frutas, empregos de confiança e, inclusive, prêmios diversos, por vezes, até mesmo em dinheiro.

A disciplina, por meio do instrumento da sanção normalizadora, traz consigo uma maneira de punir que formula em toda rede institucional uma espécie de modelo reduzido de tribunal. Entretanto, na medida em que o padrão normativo não visa simplesmente punir ao molde judiciário (punir por punir), pode-se dizer que ele visa normalizar, isto é, tornar os ‘anormais’ objetos de um processo de saber para adequá-los às normas, em um processo corretivo. Com isso, as punições disciplinares são da ordem do exercício, isto é, para os alunos que não aprendem, aprendizado intensificado, multiplicado. Nesse sentido, a punição, nos termos normativos, é menos uma vingança da lei ultrajada e mais a repetição dessa lei, uma ‘insistência redobrada’, de modo que a correção passe pelo arrependimento. (Morais, 2019, p. 197).

O castigo e a punição eram utilizados como um corretivo, uma forma de reduzir os desvios. Na sanção normalizadora, os indivíduos são diferenciados em função de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor. A punição característica do poder disciplinar, contudo, não visava reprimir: “a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições, disciplina e compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (Foucault, 2001, p. 153).

Vigiar e punir há todo tempo, o tempo todo. Outra forma de vigiar, no instituto era, nas palavras de Santos (2006), quando os internos eram impedidos de ter qualquer possibilidade de comunicação com o mundo exterior, com exceção dos pais, que podiam visitá-los sob a presença de um funcionário. Do mesmo modo, as correspondências eram enviadas somente para os pais ou tutores, mas não antes de serem lidas e aprovadas por um superior em um rígido esquema de censura. Com a vigilância, o poder disciplinar torna-se um sistema integrado, convertendo-se em um conceito de dispositivo. Não há um centro nem um chefe no topo da forma piramidal desse poder: a engrenagem como um todo produz poder; trata-se de um poder em essência relacional.

Nesse contexto, o poder disciplinar funciona como uma máquina que se organiza na forma de uma pirâmide e que opera como uma rede. Com sua forma hierarquizada, contínua e funcional, a vigilância também estabelece uma simetria crescente entre poder e produção, poder e saber.

O exemplo da prática do Instituto Disciplinar permite compreender como que emerge, em meio a todos os dispositivos descritos, a chamada sociedade disciplinar na qual se formam vários processos históricos interiores, dentre os quais, os econômicos, jurídico-políticos, científicos, pedagógicos, militares e prisionais. Assim, é possível concordar com as considerações de Morais (2019) de que, na modernidade, práticas até então veladas e marginalizadas passaram a compor o sistema global de poder, tornando-se institucionais e legitimadas por novas formas de conhecimento que dão lugar às ciências. Com isso, o poder, compreendido como uma instância impessoal que se instaura na forma de rede, nas práticas e instituições da sociedade, rearranja-se, fazendo com que todo um complexo de disciplinas corporais passe a reger o comportamento do indivíduo. A “disciplina”, como mecanismo de poder em meio à todas as práticas judiciárias modernas que se instauraram, emergiu quando o exercício monárquico do poder, aos moldes medievais, tornou-se demasiadamente custoso e pouco eficaz. Esse mecanismo visava treinar o corpo dos indivíduos por meio de movimentos repetitivos e a adequá-lo à um sistema de produção, em que o homem não era simplesmente reprimido ao praticar infrações ou infringir os padrões normativos, mas vigiado, ininterruptamente, para que não as praticassem ou as infringissem.

Considerando a análise realizada, é possível compreender que o termo “menor” surge, inicialmente e, como demonstrou Londoño (1996), no período colonial como sinônimo de idade; fase etária. No entanto, foi por meio das práticas discursivas jurídicas e médicas do final do século XIX, que o termo ganha solidez e se constitui em significados para os corpos das crianças pobres, associando as mesmas à criminalidade e como um perigo para sociedade da época. As crianças pobres, transformadas em menores perigosos, passaram, desde então, a ser consideradas casos de polícia, ou seja, como um problema de segurança pública.

a emergência do menor institucionalizado: sob a ótica do regime do biopoder

Pogrebinschi (2004), com base em Foucault, argumenta que foi durante a segunda metade do século XVIII que as tecnologias disciplinares do poder passaram a ser acrescidas, integradas por outras e novas técnicas de poder que não possuem em sua essência, contudo, a ideia de disciplina. Para a autora, o “poder disciplinar” caracterizado pelo poder-saber, pelo exame e pela vigilância, portanto, é complementado pelo biopoder; complementado e não substituído. Nesse sentido, ocorreu uma pequena modificação - ou adaptação -, e jamais uma exclusão. Em outras palavras, tanto o poder disciplinar quanto o biopoder passaram a coexistir no mesmo tempo e no mesmo espaço, sendo que no regime do biopoder há uma extensa produção de saber. É a cidade e a população que entram em cena no regime do biopoder. A cidade e a população passam a ser problemas políticos, problemas da esfera do poder, e esses problemas ou fenômenos também apresentam outras características em si peculiares. Eles são, por exemplo, essencialmente problemas coletivos, de massa, cuja ocorrência se dá sempre em série e nunca de forma isolada ou individualizada, como vimos, por exemplo, como o Instituto Disciplinar: um dos únicos nas primeiras décadas da República.

Em 1927, com a formulação do Código de Menores do Brasil, a questão da “delinquência” passa a ser alvo de medidas do Estado, que visava a assistência e a reeducação do menor. Assim, pela primeira vez é criada uma Lei federal, para a causa. A letra jurídica abandonou as teorias referentes ao discernimento e às noções de culpabilidade e responsabilidade penal, propondo uma reeducação adaptativa, isto é, normalizadora, conforme descrito anteriormente. Nessa conjuntura, segundo Passetti (1999), fecharam-se os 30 primeiros anos da República com um investimento na criança pobre, vista como criança potencialmente abandonada e perigosa, a ser atendida pelo Estado.

O biopoder, de acordo com Pogrebinschi (2004), não intervém no indivíduo, no seu corpo, como o poder disciplinar, mas, ao contrário, intervém exatamente naqueles fenômenos coletivos que podem atingir e afetar a população. Disso decorre que o biopoder precisa estar constantemente medindo, prevendo, calculando tais fenômenos e, para isso, cria alguns mecanismos reguladores. Com efeito, a disciplina, no âmbito do biopoder, é convertida em regulamentação. A autora ainda argumenta que a norma da disciplina e a norma da regulamentação dão origem ao que Foucault chama de sociedade de normalização, uma sociedade regida por essa norma ambivalente, na qual coexistem indivíduo e população, corpo e vida, individualização e massificação, disciplina e regulamentação.

Para tanto, entram em campo outras ciências: exatas e biológicas em que, estatística e biologia, principalmente, passam a ser extremamente importantes nesse momento em que se necessitam de demografias, políticas de natalidade, soluções para endemias. Assim, não é por acaso que o Instituto Nacional de Estatística foi criado em 1936 e, renomeado em 1938 como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de modo que a partir de 1940, era possível comparar dados educacionais, econômicos e agrícolas entre regiões. É importante lembrar que já em 1931, o governo provisório criava um convênio com estados e municípios que permitia articular informações estatísticas, sobretudo educacionais, em nível nacional e regional.

Com a organização do IBGE, as informações, cada vez mais precisas, permitiram um saber até então somente possível pela especulação. Podia-se - era o que se esperava - conhecer a composição da população, normalizá-la segundo normas que, no caso, eram norteadas pelo nacionalismo e pelas ideias eugenistas do governo Vargas. (Silva, 2017, p. 610).

Os anos 20, para Passetti (2006), são de adaptação das iniciativas autônomas e da preparação para a grande conformação das massas como rebanhos nos anos 30. Assim, a prisão e os internatos, em nome da educação para o mundo ou da correção do comportamento, apresentam-se desempenhando um papel singular. “Existem ao mesmo tempo como imagem disciplinar da sociedade - nelas os supostos desajustados deverão ser enquadrados” (Passetti, 2006, p. 355). Se até os anos vinte, havia poucas ou raras instituições, com a regulamentação pelo Estado ocorreu uma massificação. Para o autor, ao escolher políticas de internação para crianças abandonadas e infratoras, o Estado escolhe educar pelo medo,

o objetivo principal era combater o indivíduo perigoso, com tratamento médico acompanhado de medidas jurídicas. Para esta vertente interpretativa do ‘criminoso’ era considerada tão importante quanto o ato criminal e por isso o infrator deveria ser internado para, no futuro, vir a ser reintegrado socialmente. Desde então esta argumentação permanece sendo aceita como justificativa para a alegada periculosidade da criança e do adolescente pobre e a necessidade inevitável de seu encarceramento. (Passetti, 2006. p. 357).

Em 1941 foi criado o Serviço de Assistência ao Menor, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios do Interior e ao Juizado de Menores, que atribuía ao Estado poder para atuar junto aos “menores”, reiteradamente qualificados como “desvalidos” e “delinquentes”. A metodologia adotada foi correcional e repressiva, por meio de reformatórios, patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem, porém, tanto para os que cometessem infração quanto para os abandonados, a medida aplicada passava por alguma forma de internamento e afastamento da convivência social (Saraiva, 2009).

É importante registrar que do ponto de vista do contexto internacional, na década de 1940, especificamente em 1948, com a realização do 9º Congresso Panamericano da Criança, realizado em Caracas, as discussões em torno dos direitos do “menor” foram aprofundadas e, em 1959, com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, criou-se o marco pelo qual a infância passou a ser valorizada e a criança considerada, internacionalmente, como sujeito de direitos pela Organização das Nações Unidas.

No entanto, o Brasil caminha na contramão da história. No contexto dos direitos universais da criança, o país passa a ser pressionado. Deste modo, o atendimento realizado pelo Serviço de Atendimento ao Menor e o próprio Código de Menores, atuante desde 1927, passam a ser questionados. A polêmica sobre a proposta de suas reformulações foi seguida pela cisão entre os legisladores, juristas e setores do executivo ao contrapor aqueles que mantinham a proposição do “menor como objeto do direito penal” e os que defendiam o “menor enquanto sujeito de direitos” (Rizzini, 1995, p. 146).

Apesar da pressão internacional, com o golpe militar de 1964, a Escola Superior de Guerra, por meio da Doutrina de Segurança Nacional, estabeleceu a Política Nacional de Bem Estar do Menor (PNBEM), que introduziu a rede nacional da Fundação do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) em 1970, incorporando o patrimônio material e as atividades cotidianas do seu anterior sistema, o Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Para Saraiva (2009), a FUNABEM foi criada com o objetivo de mudar a imagem violenta associada ao SAM, mas como o incorporou em suas estruturas e equipes, manteve também seus vícios. No contexto da Ditadura Militar, dois outros fatos chamam a atenção: Em 1968, o Fundo das Nações Unidas para Infância firmou acordo com o governo brasileiro e, paradoxalmente, e em plena atividade da ditadura, o país assumiu formalmente os preceitos da Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Se nas duas primeiras décadas do século XX, no que tange ao atendimento do menor, é estabelecido o poder disciplinar, com a construção de instituições de caráter corretivo e normativo, a partir dos anos vinte do mesmo século, especificamente, nos anos trinta e quarenta, emerge a regulamentação desse atendimento, por meio da criação de leis federais e de processos de criação de instituições em todo o âmbito nacional. No entanto, há que se destacar que tanto em um quanto em outro poder, a criança pobre foi tida como menor, perigosa e de risco para a sociedade brasileira, sendo a sua clausura a única medida a ser tomada.

a emergência da criança negra: do biopoder à necropolítica

Os debates iniciados no final da década de 1959 sobre os “direitos dos menores”, retornaram ao centro das discussões na década de 1970, partindo, mais uma vez, de divergências entre juristas e legisladores influenciados pelas Convenções Internacionais pelos Direitos da Infância e pelos fóruns internacionais. Essas convenções propunham que a magistratura favorecesse a promoção da família e da comunidade no cuidado da criança e do adolescente, a salvaguarda dos seus direitos, e “considerando-os sujeitos de direitos, reiterava os princípios enunciados pela Declaração dos Direitos da Criança, de 1959” (Rizzini, 1995, p. 155). No entanto, apesar da pressão, o debate não encontrou terreno fértil dentro da postura autoritária militar, assim, em 1979, aprovou-se o Código de Menores.

A manutenção do termo menor no corpo da lei ainda revela a prevalência de valores morais e a ideia de que somente crianças de famílias pobres estariam sujeitas a necessitar de apoio legal, isso pela impossibilidade familiar de atendimento a suas necessidades. A restrição na aplicação do código aos casos de patologia social, ou seja, apenas ao menor que por se encontrar em situação irregular poderia ter acesso à justiça em função de uma ‘falha’ sua ou de sua família que provocou a situação de carência ou de conduta antissocial, deixa perceber o caráter moral presente na legislação. (Kaminski, 2012, p. 89).

As linhas de força que asseguravam a manutenção da forma como as crianças pobres eram vistas na sociedade passaram da imputabilidade à situação irregular, baseadas, da mesma forma, na culpabilidade da família e de suas condições de desestrutura, ou seja, deixavam-se permanentemente de reconhecer as condições econômicas e sociais nas quais viviam e que foram geradas pelas elites brasileiras.

A década de 1980 foi um marco na história do Brasil, sobretudo devido à promulgação da Constituição Federal de 1988, denominada como “constituição cidadã” foi resultado de um longo e complexo processo envolvendo diferentes atores sociais. Responsável pelo reestabelecimento da ordem democrática, ela conferiu direitos a segmentos sociais negligenciados até então, como as mulheres, os/as negros/as, os/as indígenas, os/as portadores/as de necessidades especiais, os/as idosos/as, as crianças e os/as adolescentes, que passaram a receber atenção especial. Após décadas de debates e disputadas entre diferentes linhas de força, foi a partir do exposto na Carta Federal de 1988 que emergiu a concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos e deveres, credores de “proteção integral” e “prioridade absoluta”, independente de classe social, credo, etnia e gênero. Tal concepção passou, então, a ser incorporada ao cenário jurídico nacional.

O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 (ECA - Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990) ratificou e ampliou o artigo constitucional, tendo como objetivo criar instrumentos para a sua efetivação e aplicação. O ECA inaugurou formalmente, na legislação brasileira e nas políticas sociais públicas, a concepção de que a criança e os adolescente são sujeitos de direitos próprios da idade que vivem um período peculiar de desenvolvimento, e que em decorrência dessas condições, têm assegurada prioridade no atendimento à tais direitos. O Estatuto, ainda, rejeita a concepção paternalista, autoritária, assistencialista e tutelar, que objetifica a criança e o adolescente na atenção das políticas e ações de atendimento de suas necessidades.

O ECA adota um novo paradigma para as relações da sociedade, da família e do Estado com a criança e o adolescente: de respeito à sua dignidade fundamental de pessoa humana, de sensibilidade e atenção às características próprias do processo de desenvolvimento e formação, que requer o cuidado e proteção, a educação e a defesa, a promoção e a abertura para sua participação (art. 15). Essa concepção da pessoa em peculiar processo de desenvolvimento definiu como a família, a sociedade e o Estado devem assegurar os direitos da criança e do adolescente, e ficou conhecida como “doutrina da proteção integral”. O Estatuto estabelece condições ou vínculos normativos para garantir efetividade aos seus direitos.

O Sistema de Garantia de Direitos, que representa o arcabouço da política de atendimento à infância e adolescência no Brasil, tem sido considerado um conjunto de instituições, organizações, entidades, programas e serviços de atendimento infanto-juvenil e familiar, os quais devem atuar de forma articulada e integrada, nos moldes previstos pelo ECA e pela Constituição Federal, com o intuito de efetivamente implementar a Doutrina da Proteção Integral por meio da política nacional de atendimento infanto-juvenil. (Perez; Passone, 2010, p. 667).

Em relação ao encarceramento de menores, diferentemente do que ocorria com o Código de Menores de 1979, em que de acordo com Passetti (2006), em seu texto se levantava suspeitas de antemão sobre crianças e adolescentes pobres, maltrapilhos, negros ou migrantes que vagavam pelas ruas da cidade e eram tidos como “menores” vivenciando situação irregular, com o ECA a prisão arbitrária desaparece. O artigo 112 do ECA assegura que a recomendação da internação seja realizada em último caso, depois de examinadas e exauridas as possibilidades dentre as outras medidas socioeducativas como advertências, obrigação em reparar danos, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida e inserção em regime de semiliberdade. Assim, o ECA recomenda que a internação seja evitada e utilizada como último recurso.

A pretensão era superar a associação histórica e direta entre pobreza-delinquência-criminalidade, que desde o final do século XIX estigmatizou grande parte das crianças e adolescentes pobres, tidas como “menores”, e habita, até os dias atuais, o imaginário social. No entanto, Passetti (2006, p. 366) alerta que,

o novo Estatuto da Criança e do Adolescente redimensiona o papel do Estado em relação às políticas sociais. Em âmbito nacional, ele permanece orientando e supervisionando as ações, mas reduz sua atuação na esfera do atendimento facilitando o aparecimento, em larga escala, das organizações não-governamentais, já que, no artigo 86 do ECA, ‘a política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios’.

Para Passetti (2006, p. 368), o ECA cria uma abertura para uma “nova” forma de filantropia que opera no campo do atendimento como meio para a contenção de custos do Estado e simultaneamente, como geradora de empregos no âmbito privado. Passetti (2006) explica, também que ainda que o ECA recomende a educação para o exercício da futura cidadania e defina as crianças e os adolescentes considerados infratores como inimputáveis, estes continuam sendo vistos como perigosos, provenientes de situações de miséria, passíveis de cometer atos antissociais graves e, novamente, como delinquentes, principalmente por juízes e promotores que atuam segundo a mentalidade do Código de Menores de 1979.

É inegável que o ECA é a mais avançada legislação voltada à criança e ao adolescente, criada no Brasil desde o século XIX, entretanto, ainda, há muito o que melhorar. Do ponto de vista deste artigo, além dos juízes e promotores continuam com o mesmo imaginário sobre as crianças e adolescentes pobres, a representação como menores perigosos continua, também, no imaginário coletivo da sociedade. Para Passetti (2006) a criação do ECA e de suas orientações são essenciais, porém a continuidade da associação direta entre pobreza e criminalidade passou a gerar outras formas de controle, como, por exemplo, ampliaram-se os ramos de vigilância e armamentos informatizados em nome da segurança privada, cresceram as milícias particulares e os grupos de extermínio e houve aumento da exigência de ações jurídicas de penalização de infratores. “Os pobres, permanecem vistos como infratores em potencial e, por conseguinte, como delinquentes emergentes” (Passetti, 2006, p. 367).

Já é mais que o momento de tecer a seguinte pergunta: Quem eram os “menores”? Quem eram as crianças e adolescentes consideradas delinquentes? Vital Didonet, então presidente da Comissão Nacional Criança e Constituinte, em 1986, contribui para a resposta ao relatar que durante os trabalhos para as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), visando a elaboração da nova Constituição Federal de 1988, um dos temas mais graves discutidos pela referida Comissão era

a representação social da criança expressa nos meios de comunicação e no discurso cotidiano a elas referido. Duas expressões dividiam o universo das crianças: de um lado, havia ‘criança’, de outro, ‘menor’. Uma era a criança branca, de classe média ou alta, bem nutrida, sobre a qual repousavam esperanças de futuro. Outra, negra, excluída, padecendo privações econômicas e sobre a qual pesava o estereótipo de ‘coitadinha’, merecedora de caridade, objeto de programas assistencialistas e, pior, ‘risco de se tornar marginal, pivete, problema social futuro’. (Didonet, 2016, p. 67).

Conforme as pesquisas realizadas por Londoño (1996) o “menor” era um termo generalizado. Para o pesquisador, com o Código do Império em 1830, o termo “menor” ganhou corpo baseado na premissa de que os menores de 14 anos não poderiam ser responsabilizados penalmente se não tivessem agido com discernimento. Mais adiante, em 1979 no Código de Menores, atribui-se o termo “menor” àqueles em situação irregular, de modo que, somente a partir de 1980 ocorre distinção de cor e raça dentre o grupo. Assim, o “menor maltrapilho”, delinquente e perigoso no âmbito da Lei, recebe status de criança, fazendo emergir a “criança negra”. De acordo com Rosemberg e Pinto (1997), na década de 80 o Brasil conheceu uma preocupação crescente com a questão da criança pequena, principalmente a pobre. Instâncias governamentais ou intergovernamentais, pesquisadores de diferentes inserções disciplinares analisaram as condições de vida da infância pobre e propuseram medidas corretivas, tanto no plano jurídico quanto no das políticas sociais. Porém, segundo as autoras, praticamente nada se sabia sobre as condições específicas de vida das crianças negras, pois a infância pobre era tratada como se fosse homogênea.

Quais foram as linhas de força que fizeram a criança negra emergir nesse momento da história? O que isso significa?

Para responder às perguntas, recorreremos tanto à teoria foucaultiana, que explica um racismo como o da Alemanha nazista, europeia, forjada no século XIX e experimentado no século XX, quanto à perspectiva de Achille Mbembe, que compreende o racismo a partir da escravidão praticada nas plantations do ponto de vista de quem foi colonizado.

Segundo Farias e Fantinel (2019), a partir do século XIX a questão política passou de simbólica para analítica: “os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social. Para os autores,

O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante): toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquia social, da propriedade, e uma longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida cotidiana, receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. (Farias; Fantinel, 2019, p. 167).

O tempo apontado por Foucault como sendo aquele que inaugura o biopoder, o tempo das instituições disciplinares, que no momento histórico quando a Europa estava ensaiando uma mudança radical na base política de sua sociedade, em que pouco a pouco elaborava as formas políticas do pensamento racial e as formas do racismo de Estado, as colônias já eram verdadeiros laboratórios do pensamento racial, ou seja, não precisaram esperar pelo século XIX.

O Brasil pode ser considerado como uma dessas colônias, já que, sua formação histórica, econômica e social, baseia-se no processo de racialização. Sendo assim, é possível compreender a emergência da criança negra, em um dado momento da história e o que impossibilitava sua diluição na infância pobre homogeneizada, como bem colocou Rosemberg e Pinto (1997). O que queremos afirmar é que sendo a criança negra um produto da racialização da sociedade brasileira, sua generalização como “menor” contido na infância pobre homogênea, não tinha sustentação. Ou seja, ela faz parte de uma sociedade que se utiliza do racismo para reproduzir a raça, por meio da hierarquização e relação direta entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. Em sociedades racializadas, como a nossa, ser negro é não-ser, para usar uma expressão de Fanon.

Dentre outros impactos do não-ser, é não ter identidade, não ser identificado e identificável, ser generalizado, assim, a criança negra, emergida apenas na década de 1980, era/é o menor, era/é o delinquente. Na verdade, a partir da década de 1979, ocorre uma mudança substantiva em relação à questão racial, quando os pesquisadores Carlos Hasembalg e Nelson do Valle e Silva, ao analisar os dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstraram que as desigualdades econômicas e sociais entre aqueles que se definem como brancos, pretos e pardos não podiam ser explicadas nem pela herança do passado escravagista, nem pela pertença de negros e brancos às classes sociais distintas: “tais desigualdades resultam inequivocamente de diferenças de oportunidades de vida e de formas de tratamentos peculiares a esses grupos raciais” (Guimarães, 2003, p. 103).

As desigualdades entre as crianças pertencentes aos diferentes grupos raciais, também ficaram evidentes em resultados de pesquisas desenvolvidas a partir da década de 1990. Ricardo Henriques (2001), por exemplo, um dos poucos pesquisadores a tratar dados desagregados por cor/raça e faixa-etária, ao realizar análises sobre as desigualdades sociais e raciais referentes à década de 1990, destaca que a incidência da pobreza por faixa etária da população, concentrava-se mais fortemente na infância e adolescência e, de forma mais categórica, entre aqueles com pertencimento étnico-racial negro. Resultados semelhantes foram encontrados em pesquisas desenvolvidas pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2010, 2019). Em 2019, de acordo com a pesquisa, as crianças negras eram mais afetadas pela privação extrema de direitos básicos (educação, saúde, moradia, saneamento, entre outros), representando 23,6% em relação a 12,8% das crianças brancas, do universo pesquisado.

Dados de pesquisa recente, 2020, divulgados no relatório da 14º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, desenvolvida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil, chamam a atenção. Pela primeira vez, a partir dos dados da segurança pública, são analisados dados com o intuito de melhorar a compreensão acerca da violência contra crianças e adolescentes no país. No ano de 2019 foram registrados 4.928 casos de mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos (o anuário segue o limite de idade recomendado pela Organização Mundial de Saúde). Esses dados foram extraídos dos registros informados por vinte e um estados presentes em todas as regiões brasileiras, representando 83,56% do total da população do país. Os dados desagregados por cor/raça indicam que os negros representam 75,28% das crianças de 0 a 19 anos vítimas de mortes violentas intencionais no Brasil. Em todas as faixas etárias, o número de vítimas negras é maior que o número de vítimas brancas.

Ao verificar os tipos de crimes que levam à morte, concluiu-se que em todas as idades, o principal tipo de crime que leva à morte de crianças e adolescentes era o homicídio. O percentual de vítimas, por cor e faixa etária, em relação ao total de casos de um determinado tipo de crime demonstra que, independentemente do tipo de crime, aproximadamente 70% das vítimas eram negras, chegando a representar 68,58% dos homicídios e 74,58% das mortes decorrentes de intervenção policial. Ainda, no ano de 2020, especificamente, os meios de comunicação divulgaram, permanentemente, notícias sobre crianças e adolescentes assassinados, particularmente, nas comunidades da cidade do Rio de Janeiro. Os dados demonstram que o genocídio da população negra está ocorrendo em faixas-etárias cada vez mais novas e que a reatualização permanente do imaginário coletivo, pautado na estigmatização e no racismo, é a base (Gomes, Teodoro, 2020).

De acordo com Mbembe (2017), cunhar o conceito de “Necropolítica” tinha como objetivo interpelar o conceito criado por Foucault de biopolítica ou biopoder. Se a biopolítica tem como exercício fundamental a formação de uma tecnologia de controle da vida, a necropolítica coloca ênfase sobre o controle da morte e as condições concretas sob o Estado de sítio e o Estado de Exceção. Ou seja, retomando as críticas foucaultianas à noção clássica de soberania, o autor coloca que “[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2017, p. 5).

Ainda, minha preocupação é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações. Tais formas de soberania estão longe de ser um pedaço de insanidade prodigiosa ou uma expressão de alguma ruptura entre os impulsos e interesses do corpo e da mente. De fato, tal como os campos da morte, são elas que constituem o novo do espaço político que ainda vivemos. Além disso, experi ências contemporâneas de destruição humana sugerem que é possível desenvolver uma leitura da política, da soberania e do sujeito, diferente daquela que herdamos do discurso filosófico da modernidade. Em vez de considerar a razão a verdade do sujeito, podemos olhar para outras categorias fundadoras menos abstratas e mais palpáveis, tais como a vida e a morte (Mbembe, 2017, p. 11).

Ou seja, é possível compreender que a sociedade brasileira se constituiu desde o princípio numa zona de exceção. A exceção nos marca e seus efeitos modelam as práticas discursivas reatualizando os traços de colonialidade. Dito de outra forma, sociedades que passaram por processos de colonização representam “[...] o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual a ‘paz’ tende a assumir o rosto de uma ‘guerra sem fim’” (Mbembe, 2018, p. 32-33), guerra essa conduzida e legitimada pelo Estado no qual “[...] o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita às normas legais e institucionais” (Mbembe, 2018, p. 36). Esse processo acabou por configurar tanto territórios quanto práticas sociais, principalmente nos espaços onde estão as populações negras, racializadas e pobres nos contextos de colonialidade. As guerras assumiram formas atuais e se repetem microcapilarmente em diferentes cenários brasileiros de ocupações contemporâneas onde

[...] Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de ‘viver na dor’: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias. (Mbembe, 2018, p. 68-69).

A citação nos remete à situação vivenciada pela população negra que reside em comunidades de vários cantos do Brasil. Os territórios negros que foram constituídos desde o início do século XIX, como nos lembra Rolnik (1989), já era tido como desclassificado, marginal, desorganizado, devido a sua não proletarização e a forma com que a população distribuía o tempo entre o lazer e o trabalho. Ou seja, o estilo de vida que se desenvolvia nas habitações coletivas, com predominância, de uma vida em grupo não familiar, densidade dos contatos no dia a dia, bem como um conjunto de gestos que liga e sustenta um código coletivo que institui a comunidade, para a classe dominante branca e cristã à época e, atual, desafia os padrões morais. Esses territórios, nesse sentido, deveriam ter permanentemente a presença do Estado, o que significa, para a população, viver em condição de “dor”.

outra infância negra é possível?

Existem diferentes formas de se interpretar a infância. Para Deleuze (1992), por exemplo, ela é compreendida a partir do tempo, ou seja, para ele a história não é a experiência, mas o conjunto de condições de uma experiência e de um acontecimento que têm lugar fora da história. A história é a sucessão de efeitos de uma experiência ou acontecimento. Sendo assim, de um lado está o contínuo, ou seja, a história, as contradições e as maiorias e, do outro lado, o descontínuo, o devir, as linhas de fuga e as minorias. Uma experiência, um acontecimento, interrompem a história, a revolucionam, criam uma nova história, um novo início. Por isso, o devir é sempre minoritário.

Uma infância majoritária, a da continuidade cronológica, da história, das etapas do desenvolvimento, das maiorias e dos efeitos: é a infância que, pelo menos desde Platão, se educa conforme um modelo. Essa infância segue o tempo da progressão sequencial: seremos primeiro bebês, depois, crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos. Ela ocupa uma série de espaços molares: as políticas públicas, os estatutos, os parâmetros da educação infantil, as escolas, os conselhos tutelares. Existe também uma outra infância, que habita outra temporalidade, outras linhas, a infância minoritária. Essa é a infância como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes: ‘a criança autista’, ‘o aluno nota dez’, ‘o menino violento’. É a infância como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do ‘seu’ lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados. (Kohan, 2021 p. 2).

Para Kohan (2021), ambas as infâncias não se excluem, já que, somos habitantes dos dois espaços das duas temporalidades, das duas infâncias. O que distingue uma infância da outra é que a infância majoritária busca o que deve ser (o tempo, a infância, a educação, a política), enquanto que a minoritária, é o que pode ser (pode ser como potência, possibilidade real) o que é. “Ou seja, uma infância afirma a força do mesmo, do centro, do tudo; a outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e conservar; a outra a irromper, diversificar e revolucionar” (Kohan, 2021, p. 2).

A dinâmica das minorias é sempre movimento, como um devir, é uma linha de fuga que não tem como pretensão unificar ou totalizar. A criança cronológica, majoritária, torna-se adulta, aceita os agenciamentos de subjetividade que a sociedade faz, que as instituições impõem; mas a criança tem, também, um devir-criança que é a resistência a esses agenciamentos, é a criança que está no adulto e que sobressai em seus acessos de alegria, em sua curiosidade, no bom-humor ou quando detecta uma nova forma de encontros. Para um devir-criança, não existe o “homem”, a forma-homem, o que há é um movimento de dissolução das formas criadas (Deleuze; Guattari, 1997, p. 19). O universo é para ser experimentado e vivido. Crescer não é uma direção e sentido; é invenção de direções e sentidos. Desenvolver-se não é amadurecer e ficar adulto; é detectar potências de vida e dar-lhes existência. A criança sabe que a vida não é somente biológica e que a comunicação não é só pela palavra. Como argumenta Kohan (2021), com base em Deleuze, o devir-criança é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, ideias, entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia, com intensidade e direções próprias.

Algumas possibilidades ocorrem para refletir sobre outras possibilidades para uma infância negra, considerando a infância como história e como devir, como majoritária e minoritária, resultando em um devir-criança. Como história, que tem uma cronologia e, principalmente, ocupa espaços como as políticas públicas, os estatutos, os parâmetros da educação infantil, as escolas, os conselhos tutelares, a infância destinada às crianças negras, conforme demonstrado, tem deixado a desejar ao definir a criança como “menor”, tanto antes do período de democratização do país quanto pós 1980, quando ganha estatuto de criança negra cidadã, porém, sem direitos. Na verdade, a história tem reservado à criança negra pobre, em qualquer tempo da história remoto ou atual, o mesmo lugar, ou o não-lugar.

A criança negra como parte de seu grupo de pertencimento foi construída com base na racialização, resultado do processo de colonização. Nesse sentido, para uma outra infância para as crianças negras, é necessário a construção de outros processos, outros dispositivos, como afirma Mbembe (2014): uma descolonização. Para o autor, o propósito da descolonização pode ser resumindo em uma palavra que a possibilitou: a abertura do mundo. O autor explica que essa abertura deve incluir a eclosão, o nascimento, o aparecimento de alguma coisa nova, um desabrochar. Logo, abrir é libertar aquilo que estava encerrado para que possa nascer e desabrochar. A questão da abertura do mundo, “de pertencer ao mundo, habitar o mundo, criar o mundo, ou ainda as condições sob as quais nos constituímos como herdeiros do mundo, é o fulcro do pensamento anticolonialista e da noção de descolonização” (Mbembe, 2014, p. 60).

Refletir sobre a abertura do mundo, como uma eclosão, permite-nos compreendê-la como o tempo do devir, que é a possibilidade de construção de um novo. Para uma outra possibilidade de infância para a criança negra, é necessário interromper a história tida como totalitária e única. É necessário um devir-outro.

Outrem surge neste caso como a expressão de um mundo possível. Outrem é um mundo possível, tal como existe num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade. [...] Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro (Deleuze; Guattari, 1997, p. 29-30).

Somente é possível alcançar o devir-outro por meio da abertura do mundo, e isso acontecerá se, como afirma Fanon, de acordo com Mbembe (2014), houver a abolição da raça. Também, isso se concretizará quando se admitir a verdade segundo a qual “o negro não é”. “Não é mais do que o branco”; “o negro é um homem igual aos outros, um homem como os outros”, “um homem entre outros homens". Outra infância negra terá que considerar que: “Uma criança negra não é”, “não é mais do que uma criança branca”, “a criança negra é uma criança igual as outras”, “uma criança como as outras”, “uma criança entre outras crianças”. Na óptica de Fanon, para Achille (2014), o postulado de uma similaridade fundamental, de uma cidadania humana originária é a chave do projeto de abertura do mundo e de autonomia humana da descolonização. Nesse aspecto, um devir-outro deve ser acima de tudo, uma práxis da inter-relação. Ou seja, para Paul Gilroy, segundo Achille (2014) isso tem por objetivo um projeto que não consiste nem na partição do mundo nem na sua divisão. Pelo contrário, “a procura de um centro deve ceder o lugar à construção de esferas de horizontalidade tratando-se, assim, de um pensamento horizontal do mundo que privilegia a ética da mutualidade ou, como sugere Gilroy, da convivência do ser-com outros” (Gilroy, 2010 apud Mbembe, 2014, p.62).

últimas reflexões... para continuar

A representação do “menor”, construída desde o século XIX, ocupa, até os dias atuais, o imaginário da sociedade brasileira, determinando e assegurando um lugar para as crianças negras pobres, onde os direitos de ser criança, não existem. Como foi possível demonstrar, ao longo da história o enclausuramento, o trabalho e a tutela do Estado, foram os meios reservados a essas crianças.

A reflexão proposta permitiu-nos evidenciar o porquê, historicamente, optou-se pela internação das crianças negras pobres e como as técnicas de poder disciplinar foram aplicadas a elas buscando torná-las regeneradas, para fazer parte da sociedade. O que se constatou, também, foi a forma como o poder pautado na regulamentação e na massificação passou a operar. Se nas duas primeiras décadas a institucionalização foi concentrada em poucos lugares, a partir dos anos 30 se proliferou para todo o Brasil, resultando na segregação e vigilância permanente das crianças negras pobres, nas diferentes regiões do país.

No período de democratização do país parece não apenas haver uma manutenção do que estava posto ao atendimento e à visão sobre as crianças negras pobres, mas, o aprofundamento da violência contra elas. Os direitos, contidos tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto das Crianças e Adolescentes, estão distantes de serem usufruídos por elas, o que se tem percebido é certa legitimidade de mortes de crianças negras pobres, ou seja, à medida que o próprio Estado passa a contabilizar a morte, como demonstrado, é porque a vida não tem o devido valor.

Esse é um deslocamento importante de ser observado, há em curso um processo de necropolítica, compreendido, na realidade brasileira e, especificamente na situação aqui analisada, um poder estatal sobre quem deve morrer: a escolha, tem se ampliado em casos de crianças inseridas em territórios historicamente considerados negros.

Como criar outros dispositivos para uma outra história desracializada? Como possibilitar um devir-outro como aquele proposto anteriormente? que resultará em um encontro, em uma nova dinâmica social, uma terceira via, para um mundo aberto. E, finalmente, aprendemos a ser-com os outros, em que as crianças, pertencentes a qualquer grupo étnico-racial, sejam prioridades.

referências

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Recebido: 02 de Dezembro de 2020; Aceito: 11 de Março de 2021

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