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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.17  Rio de Janeiro  2021  Epub 28-Fev-2020

https://doi.org/10.12957/childphilo.2021.56160 

Artigos

Música, autismo e diferenças: a representação como violência em levinas e deleuze

Music, autism and differences: representation as violence in levinas and deleuze

Música, autismo y diferencias: representación como violencia en levinas y deleuze

Stephan Malta OliveiraI 
http://orcid.org/http://orcid.org/0000-0002-9806-9844

Luisa Azevedo DamascenoII 
http://orcid.org/0000-0002-2239-5926

Nathalie Emmanuelle HofmannIII 
http://orcid.org/0000-0001-8995-4561

Letícia Azevedo DamascenoIV 
http://orcid.org/0000-0003-3499-8721

Cecília Albuquerque Reynaud SchaeferV 
http://orcid.org/0000-0002-6356-2794

Alba Cristina Martins Da SilveiraVI 
http://orcid.org/0000-0002-5487-2141

IUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: stephanmoliveira@gmail.com

IIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: uff_luisa@hotmail.com

IIIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: nathahofmann@hotmail.com

IVUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: leticiaad99@gmail.com

VUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: cecilia.r.shaefer@gmail.com

VIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, E-mail: acmsalba@gmail.com


resumo

O objetivo do presente artigo consiste em investigar e discutir as noções de diferença e representação em Emmanuel Levinas e Gilles Deleuze, articulando tais noções com um projeto de extensão universitária, uma oficina de música no autismo. A metodologia utilizada é a revisão não sistemática da literatura, por meio da seleção das obras Totalidade e Infinito e Entre Nós - ensaios sobre a alteridade, de Levinas; e “A concepção da diferença em Bergson e Diferença e Repetição, de Deleuze, além de referências secundárias. As principais articulações da investigação realizada com a Oficina de Música consistem em aspectos como a tomada de responsabilidade pela criança autista, por meio de relações assimétricas, que se dão pela via da sensibilidade, aquém de qualquer representação, não totalizando a alteridade e mantendo, ao mesmo tempo, sua diferença radical. Além disto, há a ênfase no trabalho à diferença de cada criança, para além de sua identidade diagnóstica, entendendo-se que todos os participantes encontram-se em processos únicos de diferenciação e que algumas diferenças não são mais privilegiadas que outras, que tais hierarquias são determinadas por relações de poder. Outra contribuição desta articulação se dá na ênfase aos fluxos afetivos intensivos das crianças e à construção de relações de afetação mútua, que aumentam a circulação da potência de vida em cada uma delas. Ratifica-se, por fim, o Projeto como uma proposta para uma clínica, estética, ética e uma política da diferença, alternativa às práticas hegemônicas no autismo na contemporaneidade.

palavras-chave: oficina de música; autismo; diferença; alteridade; representação

abstract

The aim of this article is to investigate and discuss the notions of difference and representation in Emmanuel Levinas and Gilles Deleuze, articulating such notions through the example of a university extension project involving the formation of a musical ensemble composed of autistic children. Our research involved a review of four major philosophical works-Emmanuel Levinas’ Totality and Infinity; Among Us: Essays On Alterity; and “The Concept Of Difference In Bergson”; and Gilles Deleuze’s Difference and Repetition--in addition to secondary references. The main articulations of the investigation carried out in the Music Group consist of aspects such as: taking responsibility for the autistic child through cultivating asymmetrical relationships, a process that takes place through sensibility, below any representation; and not totalizing the alterity involved while maintaining, at the same time, its radical difference. In addition, there is an emphasis in the work on the difference of each child, beyond his or her diagnostic identity, understanding that all participants are undergoing unique processes of differentiation, and that some differences are not more privileged than others, in that that such hierarchies are determined by power relations. Another contribution of this research is the emphasis on the intensive affective flows of children, and the construction of relationships of mutual affection, which increases the circulation of vital energy in each one. Finally, the results of the project are offered as guidelines for clinical practice, and for the cultivation of a politics of difference, as an alternative to hegemonic practices in autism studies in contemporary times.

keywords: music group; autism; difference; alterity; representation

resumen

El objetivo del presente artículo consiste en investigar y discutir las nociones de diferencia y representación en Emmanuel Levinas y Gilles Deleuze, articulando dichas nociones con un proyecto de extensión universitaria, un taller de música en el autismo. La metodología utilizada es la revisión no sistemática de la literatura, mediante la selección de las obras Totalidad e Infinito y Entre Nosotros - ensayos sobre la alteridad de Levinas, y “El concepto de diferencia en Bergson” y Diferencia y repetición de Deleuze, además de referencias secundarias. Las principales articulaciones de la investigación realizada con el Taller de Música consisten en aspectos como la adquisición de responsabilidad del niño autista, a través de relaciones asimétricas, que se dan por vía de la sensibilidad, antes de figurarse cualquier representación, no totalizando la alteridad y manteniendo, al mismo tiempo , su diferencia radical. Además, se hace énfasis en trabajar con la diferencia de cada niño, más allá de su identidad diagnóstica, entendiéndose que todos los participantes se encontraban en procesos únicos de diferenciación y que algunas diferencias no son más privilegiadas que otras, que tales jerarquías son determinadas por relaciones de poder. Otro aporte de esta articulación es el énfasis en los flujos afectivos intensivos de los niños y la construcción de relaciones de afectación mutua, que aumentan la circulación del poder vital en cada uno. Finalmente, el Proyecto se ratifica como una propuesta de clínica, estética, ética y una política de la diferencia, alternativa a las prácticas hegemónicas en el autismo en la contemporaneidad.

palabras clave: taller de música; autismo; diferencia; alteridad; representación

música, autismo e diferenças: a representação como violência em levinas e deleuze

introdução

O presente artigo tem por objetivo investigar e discutir as noções de diferença e representação em Emmanuel Levinas e Gilles Deleuze, articulando tais noções com um projeto de extensão universitária, uma oficina de música no autismo, contribuindo para a fundamentação teórica do trabalho. O Projeto vincula-se à Universidade Federal Fluminense, tendo iniciado em 2017, sendo os encontros realizados no Campus do Mequinho, em Niterói. Utilizamos como metodologia a revisão não sistemática da literatura, selecionando as obras Totalidade e Infinito e Entre Nós - ensaios sobre a alteridade, de Levinas; e “A concepção da diferença em Bergson” e Diferença e Repetição, de Deleuze, por tratarem com bastante profundidade das noções-chave deste trabalho, além de textos de comentadores dos dois autores. Não se trata, contudo, de uma investigação conceitual exaustiva, mas sim de uma investigação que atenda ao propósito de articulação e fundamentação da Oficina de Música.

A Oficina constitui uma forma de musicoterapia de improvisação em grupo, destinada ao atendimento a crianças autistas, as quais manipulam os instrumentos musicais de forma livre e improvisada juntamente aos técnicos participantes, dentro do que se denomina interação musical. Os principais objetivos do Projeto se dividem em uma dimensão clínica e uma dimensão política. Dentro da dimensão clínica, buscamos promover o bem-estar, melhorar a qualidade de vida, aumentar a circulação da potência de vida das crianças e favorecer o desenvolvimento da comunicação e da interação social, da abertura ao outro. Dentro da dimensão política, buscamos combater o estigma e o preconceito, além de valorizar a diferença humana.

Entendemos que uma das principais formas de combate ao preconceito, neste caso especificamente, o capacitismo - preconceito contra pessoas com deficiência -, seja reformular nossa forma de produzir conhecimentos e discursos acerca do autismo, que escapem às formas discursivas dominantes, as quais, via de regra, concebem a condição como doença, como patologia, um mal a ser eliminado, valorando negativamente as formas de vida que foram convencionalmente designadas por autistas. Este modo hegemônico de conceber o autismo, segundo o paradigma biomédico, acaba resultando muitas vezes em uma prática clínica que objetifica a criança autista, isto é, a trata como objeto, como coisa, reduzindo toda a complexidade e riqueza de sua subjetividade e diferença a uma categoria diagnóstica identitária. Em virtude desta necessidade, surge a motivação para a elaboração deste trabalho, visando articular o pensamento de dois grandes filósofos do século XX, Levinas e Deleuze, mais especificamente as noções de diferença e representação presentes em suas obras, com a Oficina de Música. Pouquíssimos autores se aventuraram na tentativa de aproximação entre estes dois pensadores, destacando-se o artigo de Ventura (2020) sobre o intensivo do rosto do outro.

A Oficina constitui-se como uma práxis, cuja prática nos estimula cada vez mais a buscar ferramentas teóricas que a fundamentem, num processo contínuo e inacabado de construção do conhecimento. Neste sentido, o Projeto de Extensão inclui, além do trabalho com música envolvendo as crianças, um grupo com os responsáveis e um grupo de estudos, no qual busca-se debater diferentes materiais teóricos relacionados à Oficina. Chegamos, então, às noções de diferença e representação em Levinas e Deleuze; valorização da primeira e crítica às possibilidades de violência da segunda. A princípio, trata-se de uma articulação não muito simples de ser realizada, entre um filósofo que podemos chamar de filósofo da transcendência, e outro que podemos chamar de filósofo da imanência. Entretanto, as duas noções-chaves escolhidas constituem, a nosso ver, o ponto de aproximação entre ambos. Salientamos que diferença em Levinas aparece, sobretudo, no plano pessoal da alteridade radical, enquanto para Deleuze aparece principalmente no campo das forças, do plano pré-individual.

Na primeira parte do artigo, abordaremos a ética levinasiana e sua ênfase à responsabilidade pela alteridade radical bem como a crítica à representação totalizante do outro; na segunda parte, enfocaremos a noção de diferença na obra deleuziana e suas relações com a representação e a identidade; na última parte, teceremos articulações entre o que foi abordado a partir dos dois pensadores e o trabalho que desenvolvemos no Projeto de Extensão. Realizamos também nesta última parte uma breve interlocução com o trabalho de Fernand Deligny com crianças autistas, como possibilidades para uma clínica, uma ética, uma estética e uma política da diferença.

levinas e a ética da alteridade radical

Emmanuel Levinas nasceu na Lituânia em 1906 e faleceu em 1995. Filho de família judaica, migrou, ainda na infância, para a Ucrânia, onde vivenciou a revolução russa, de 1917. Aos 18 anos, se mudou para Estrasburgo, na França, onde estuda filosofia. Entre 1928 e 1929, estudou com Husserl em Friburgo, assistindo também, neste período, a um Seminário de Heidegger (FERREIRA, 2017). Levinas articulou em toda sua obra o pensamento de sua tradição, o judaísmo, com a filosofia; seu pensamento foi profundamente marcado pelos acontecimentos da segunda guerra mundial, tendo perdido familiares próximos nos campos de concentração e sendo ele mesmo preso em um campo de trabalho forçado como militar francês (havia se naturalizado e ingressado nas forças armadas de seu novo país). Em seu pensamento, o filósofo se volta contra a barbárie que racionalizou o Outro a partir de um eu, subjugando-o no anonimato (FERREIRA, 2017). Ele critica toda a estrutura do pensamento ocidental, o caráter totalizante e universalizante da Ontologia enquanto filosofia do Mesmo.

Apresentaremos, neste tópico, três pontos-chave do pensamento levinasiano, a saber: a constituição da subjetividade, na qual há o predomínio da fruição; a abertura à exterioridade por meio da responsividade/responsabilidade pela alteridade e sua relação com a ética; e a violência contra a alteridade advinda da representação totalizante, derivada do pensamento ontológico.

A constituição da subjetividade é um momento crucial para o indivíduo. Este, desde sempre afetado pelo Outro, volta-se para dentro de si na constituição de sua interioridade. Neste modo primevo do psiquismo, há o predomínio do egoísmo, onde o eu frui de tudo o que o cerca, o alimenta; frui da terra, do ar, do seio materno, que funcionam como o elemental, segundo Levinas (1980), ou seja, aquilo que tem conteúdo sem forma. O eu está em casa, desta maneira, a terra é sua própria morada e, posteriormente, no processo de interiorização do eu, sua morada é deslocada para algo mais circunscrito, que o protege das ameaças do mundo externo, onde pode voltar a fruir plenamente.

Neste modo de funcionamento, há a presença da polaridade alegria/sofrimento, sendo a primeira correspondente ao estado de completo gozo do elemental; e, a segunda, a interrupção deste gozo, em função das próprias contingências daquilo que alimenta o eu. O que possibilita tal interrupção é justamente a abertura à exterioridade, desde sempre presente na interioridade. No entanto, Levinas (1980) afirma que, a despeito de qualquer sofrimento, o que é anterior é a alegria do viver, do fruir de, que a vida é maior que qualquer sofrimento. Segundo o filósofo judeu-franco-lituano, no estado de gozo, o indivíduo encontra-se em plenitude, vivenciando cada momento presente, êxito do Carpe Diem (LEVINAS, 1980; FERREIRA, 2017).

Neste momento inicial da formação da subjetividade, Levinas constrói sua metafenomenologia a partir dos estudos da fenomenologia husserliana. Há uma crítica à noção de intencionalidade em Husserl, que se caracteriza pelo fato de a consciência se relacionar a um objeto, ser consciência de algo. Levinas critica a ênfase dada por Husserl à representação no fenômeno da intencionalidade, no sentido de a consciência representar o objeto, tanto na apresentação deste à consciência (aspecto noemático) quanto na sua constituição pela própria consciência (aspecto noético). Segundo Levinas, a consciência primeva não é consciência de algo, sendo denominada consciência não-intencional ou má-consciência, nas suas palavras. Na construção desta noção, o pensador coloca em relevo a ideia formulada, mas pouco explorada por Husserl, de consciência pré-reflexiva. Trata-se de uma consciência atravessada pela Afetividade/Sensibilidade, que constitui, na verdade, uma intencionalidade afetiva (LOPES NETO, 2014). Portanto, o primeiro modo de relacionamento com a alteridade se dá por meio da sensibilidade, sendo anterior a qualquer forma de representação.

De acordo com Rodrigues (2011), este momento inicial de formação da subjetividade/interioridade é fundamental para a ascensão do sujeito ético levinasiano. Ética segundo Levinas, não diz respeito a normas que regulamentam determinadas práticas, mas se refere à responsabilidade do um-para-com-o-outro. Trata-se de uma convocação feita ao eu pelo Outro, ou melhor, pelo Rosto do Outro, para que o eu se responsabilize por outrem, podendo atender ou recusar este chamamento. Esta responsabilidade pela alteridade aparece à consciência como uma recordação de um passado imemorial, em que o Outro se fazia desde sempre presente à subjetividade, perturbando-a, rompendo com a tranquilidade e o egoísmo do eu (LEVINAS, 1980; 1997). A responsividade inicial, que aparece em função da abertura do eu à exterioridade, irrompe como responsabilidade (LOPES NETO, 2014), a qual remete a uma temporalidade original, diacrônica.

Na ética levinasiana, há o imperativo ético dado pelo Rosto do Outro, “não matarás”. “Responsabilidade por outrem: rosto como a me significar o ‘não matarás’ e, por conseguinte, também: ‘tu és responsável pela vida deste outro absolutamente outro’, responsabilidade pelo único” (LEVINAS, 1997, p. 216). Segundo o filósofo, que mistura sua biografia aos seus escritos, quem mata não olha no Rosto. A ética da alteridade radical consiste justamente em atender a esta convocação que o Outro me faz, no sentido da responsabilidade. Levinas (1997) afirma que, via de regra, as relações humanas são assimétricas, em que um encontra-se em situação de maior vulnerabilidade que outro. Neste movimento de transcendência do Eu em direção ao Outro e de não indiferença pelo outro, a alteridade de outrem, a separação entre o Eu e o Outro, em sua unicidade e diferença radical, é mantida, não havendo a incorporação da alteridade pelo Eu - diferença e unicidade inalienáveis, anteriores ao próprio gênero. “O direito reconhecido à diferença de outrem que, nesta não in-diferença, não é uma alteridade formal e recíproca e insuficiente na multiplicidade de indivíduos de um gênero, mas alteridade do único, exterior a todo gênero, transcendendo todo gênero” (LEVINAS, 1997, p. 245-246). O pensador franco-lituano defende que esta ética é que deve fundamentar a justiça e a política para que disto resulte um Estado de paz, verdadeiramente democrático e justo; que a justiça é apenas devidamente justa quando derivada da responsabilidade original.

Um importante momento da obra de Levinas diz respeito à crítica à Ontologia, sobretudo, à ontologia heideggeriana. O filósofo afirma que a ética é a filosofia primeira, precedendo a ontologia; o cuidado pelo outro, neste sentido, deve preceder o conhecimento que tenho sobre o ser. Uma das riquezas e sutilezas do pensamento levinasiano está justamente na relação que o autor faz entre totalização e totalitarismo. Ele afirma que a Ontologia, base do pensamento ocidental, tende ao conhecimento universalizante e totalizante acerca do ser, no qual o Outro é identificado ao Mesmo. Desta forma, ocorre uma representação da alteridade em sua totalidade, que é submetida ao Eu; a totalização do Outro anula sua diferença radical, ao tomá-lo em referência ao Mesmo. Segundo Levinas, esta totalização é uma das maiores violências que se pode cometer contra a alteridade, estando na base das várias formas de totalitarismo (LEVINAS, 1980; 1997; CARRARA, 2019).

Quando se busca apreender o Outro em sua totalidade, anula-se seu caráter de imprevisibilidade. O Outro é inapreensível em sua totalidade, é incomparável, é um mistério, cujo Rosto aparece como vestígio do Infinito (LEVINAS, 1997). A responsabilidade pelo Outro se dá aquém de qualquer representação, passando sobretudo pela via da Sensibilidade, da consciência não-intencional.

’Relação’ assim a-simétrica do eu ao outro, sem correlação noemática de qualquer presença tematizável. Despertar para o outro homem, que não é saber: precisamente, aproximação ao outro homem ´o primeiro vindo na sua proximidade do próximo - irredutível ao conhecimento (…) Pensamento que é adequação ao outro, o qual foge à minha medida de eu, refratário, precisamente, em sua unicidade a toda medida (p.216) responsabilidade anterior a toda deliberação lógica que a decisão racional requer. Deliberação que já seria a redução do rosto de outrem à re-presentação, à objetividade do visível, à sua força coerciva que compete ao mundo (LEVINAS, 1997, p. 219).

Na relação entre a representação e a objetividade da justiça, que aparece quando o terceiro se interpõe à relação dual, há o encobrimento do Rosto do Outro, em sua incomparabilidade.

Eis a obrigação de comparar os outros, únicos e incomparáveis; eis a hora do saber e, consequentemente, da objetividade para além - ou aquém - da nudez do rosto; eis a hora da consciência e da intencionalidade. Objetividade que vem da justiça (...) Apelo à representação, que não cessa de recobrir a nudez do Rosto (LEVINAS, 1997, p. 214-215).

A violência da representação, portanto, aparece em Levinas nas representações derivadas do pensamento ontológico, que fixam o Outro em um lugar rígido.

deleuze e a primazia da diferença

Gilles Deleuze nasceu em 1925 e faleceu no mesmo ano que Levinas, 1995. Ele enfrentou a morte de seu único irmão durante a luta contra a ocupação nazista, tendo sido também marcado por este período. Entre 1944 e 1948 cursou filosofia na Universidade de Paris, sendo aluno de Canguilhem. Em 1957 começou a lecionar na Sorbonne. Sua obra é marcada por uma profunda crítica aos conceitos fundamentais da filosofia ocidental, como identidade, transcendência, sujeito e objeto, incluindo uma crítica contundente ao pensamento platônico, à distinção entre coisas reais, cópias e simulacros bem como à noção de representação (LIBLIK, 2015).

A questão da diferença ocupa um lugar central na obra do filósofo, surgindo, principalmente, a partir de sua releitura de Henri Bergson. Deleuze começa a delinear sua filosofia da diferença em “A concepção da diferença em Bergson”, Bergsonismo, culminando em uma de suas principais obras, Diferença e Repetição, resultante de sua tese de doutorado.

Nesta última obra, o filósofo realiza uma crítica ao modo como a diferença é concebida na Antiguidade Grega, sendo marcada pela negatividade, aparecendo sempre em referência a algo e, deste modo, subordinada à Identidade. Em Platão, por exemplo, a Ideia pura constitui o Modelo, em torno do qual surge a cópia, idêntica ao Modelo, e o simulacro, uma imitação, cópia mal feita e defeituosa do Modelo (FORNAZARI, 2011). A diferença aparece aqui, então, em seu aspecto negativo, como aquilo que não é o Modelo, que não se alinha à Identidade, ao Mesmo. É importante se ter em mente que a ideia de Cosmos, neste contexto, era marcada pela imutabilidade, por um Logos ordenado e estático.

Deleuze (2000) efetua, então, a chamada reversão platônica, iniciando o pensamento a partir da diferença e não mais da Identidade (FORNAZARI, 2011). Ele passa a concebê-la a partir de sua positividade, afirmando o primado da diferença sobre a identidade. Para isto, o autor encontra profunda inspiração em Bergson, em que diferença é desde sempre diferenciação. Segundo Bergson (2005), quando as coisas são vistas pela ótica do espaço, são percebidas pela nossa inteligência, ou por nossa consciência racional, como produtos, estados prontos, e o que se observa são apenas diferenças de grau entre os objetos. Mas tal percepção é apenas uma ilusão em virtude da duração, do fluxo ininterrupto do tempo. Bergson (2005) nos mostra que, sob a ação da duração, os processos naturais da vida tendem à diferenciação, complexificação e multiplicidade. Sob tal ótica, nada encontra-se estático, tudo permanece constantemente em movimento e, neste caso, é possível intuir as diferenças de natureza entre as coisas lá onde acreditava-se haver meras diferenças de proporção.

Deleuze (1999; 2000) radicaliza, então, a posição bergsoniana, na construção de uma filosofia da diferença, buscando não apenas as diferenças de natureza, mas a natureza da diferença. Segundo o filósofo, a diferença antes de ser diferença de algo, é diferença de si mesma, ou seja, diferença interna. Como efeito da duração, portanto, o ser vivo se diferencia de si mesmo, em um processo onde as virtualidades vão se atualizando (DELEUZE, 1999). Desta forma, a força explosiva da vida resulta em várias linhas divergentes, sem um centro de referência. A reversão platônica efetuada por Deleuze consiste em justamente mostrar que não há mais modelo, não há um lugar privilegiado ou um centro gravitacional em torno do qual todas as diferenças devem se situar; o que existem são linhas que ora convergem ora divergem sem, entretanto, uma referência; uma diferença se relaciona a outra diferença e, principalmente, a si mesma, dentro do ininterrupto processo de diferenciação. Podemos inferir, a partir do pensamento foucaultiano, que o que determina que algumas diferenças se tornem o modelo, ocupando um lugar privilegiado e, portanto, sendo valoradas positivamente, e outras sejam o simulacro, valoradas negativamente, são as relações de força, de poder (FOUCAULT, 2003).

A crítica à representação perpassa grande parte da obra deleuziana. O pensador francês afirma que a primazia da diferença se dá, sobretudo, nas instâncias subrepresentacionais, nas diferenças de potencial das forças intensivas pré-individuais, que aparecem nos processos de individuação e diferenciação do ser vivo, antes mesmo da formação do indivíduo (DELEUZE, 2000). Estas forças pré-individuais, enquanto virtualidades, constituem tendências, cujas linhas podem se diferenciar em uma outra direção dentro do processo de atualização. Deleuze (2000) afirma, por outro lado, que a representação, em sua quádrupla raiz - identidade, analogia, semelhança e oposição - invariavelmente submete a diferença à identidade, conferindo um valor negativo àquela. O filósofo afirma que o indivíduo, por exemplo, é o caso concreto, e, a partir deste, a representação formula e categoriza a constituição dos gêneros ou espécies. Contudo, gêneros e espécies são abstrações, sendo o indivíduo anterior, em sua concretude. “O que está acima da espécie, o que, de direito, precede a espécie é o indivíduo. E o embrião é o indivíduo como tal, diretamente tomado no campo de sua individuação” (DELEUZE, 2000, p. 236). Deleuze efetua também uma releitura da seleção natural darwinista, mostrando a centralidade das diferenças individuais neste processo.

Ora, é a seleção natural, desempenhando verdadeiramente o papel de um princípio de realidade e mesmo de sucesso, que mostra como diferenças se ligam e se acumulam numa direção, mas também como elas tendem cada vez mais a divergir em direções diversas e mesmo opostas. A seleção natural tem um papel essencial: diferenciar a diferença (sobrevivência dos mais divergentes) (…) As grandes unidades taxonômicas, gêneros, famílias, ordens, classes, não mais servem para pensar a diferença, referindo-a a semelhanças, a identidades, a analogias, a oposições determinadas como condições. Ao contrário, essas unidades taxonômicas é que são pensadas a partir da diferença e da diferenciação da diferença como mecanismo fundamental da seleção natural (DELEUZE, 2000, p. 234)

Segundo o autor, as diferenças intensivas constituem a extensão, o corpo, como seu produto, se podemos assim dizer; e este, ao ser tomado pelo pensamento, cria a ilusão da homogeneidade, da semelhança, etc. No entanto, as diferenças de potencial, as intensidades, continuam presentes e apontando para alguma direção, tendência. Mais uma vez, é o congelamento ilusório do fluxo do tempo que dá à representação a ilusão de um produto acabado. A diferença, por sua vez, de acordo com Deleuze (2000), é refratária ao pensamento, criando-se um paradoxo de como pensar aquilo que não pode ser pensado/representado. O pensamento anula a diferença.

Em belas páginas, Lalande diz que a realidade é diferença, ao passo que a lei da realidade, como o princípio do pensamento, é identificação: ‘A realidade, portanto, está em oposição à lei da realidade, o estado atual a seu devir’ (…) que a diferença seja literalmente inexplicável, não há por que espantar-se com isto. Explica-se a diferença, mas, precisamente, ela tende a anular-se no sistema em que é explicada (DELEUZE, 2000, p. 214).

implicações para uma clínica da responsabilidade e da diferença

Buscaremos, nesta seção, tecer algumas articulações entre o que foi apresentado a partir de Levinas e Deleuze, mais especificamente ao modo como concebem as noções de diferença/alteridade e representação, e o trabalho que desenvolvemos na Oficina de Música.

A Oficina de Música consiste em uma musicoterapia de improvisação em grupo, na qual as crianças participantes juntamente aos técnicos manipulam de forma livre e improvisada os instrumentos musicais, criando uma interação musical. Uma das noções que utilizamos da musicoterapia de improvisação é a categoria conceitual musicalidade comunicativa, que consiste na capacidade humana inata para a produção e apreciação musical (MALLOCH e TREVARTHEN, 2009), segundo a qual há uma similaridade dos elementos presentes na música e na comunicação humana, como os elementos do tempo, da tonalidade, ritmicidade, da intensidade e a pausa, o silêncio (OLIVEIRA e LAMPREIA, 2017). O número total de crianças que participam da Oficina é de sete, com diagnóstico de transtorno do espectro autista dado pelo coordenador do Projeto, autor 1 deste artigo, segundo os critérios do DSM-5 (APA, 2013), variando entre os níveis II e III, ou seja, entre as formas moderadas e severas de autismo, incluindo algumas crianças que, até o momento, são consideradas “não-verbais”. As idades variam entre 4 e 7 anos.

No momento atual, somos 6 os técnicos participantes, autores deste artigo - coordenador, uma doutoranda em psicologia, duas psicólogas voluntárias e duas estagiárias bolsistas, uma do curso de psicologia e outra do curso de medicina. Fazemos um trabalho de mediação junto às crianças, facilitando sua expressividade musical, ou seja, incentivando o uso livre e improvisado dos instrumentos musicais, e facilitando a interação com os técnicos e entre elas. Os responsáveis participam eventualmente da Oficina de Música, geralmente quando há alguma demanda por parte da criança, quando esta fica chorosa, por exemplo, ou muito retraída em função do afastamento do/a responsável. A Oficina ocorre semanalmente, tendo duração de 45 minutos em média, sendo tocadas músicas infantis, cantigas de roda, etc. Os instrumentos musicais utilizados consistem no violão, instrumentos de percussão, como tambores, além de flautas e chocalhos. O coordenador do Projeto geralmente toca o violão e os demais participantes acompanham de forma improvisada com os outros instrumentos.

Um dos princípios caros ao Projeto é justamente valorizar a diferença de cada criança, seu modo único e singular de estar-no-mundo. O diagnóstico é utilizado de maneira crítica, de modo a não colocarmos a criança em uma identidade rígida, que muitas vezes se sobrepõe ao nome próprio da criança, em um processo de objetificação da mesma. Reconhecemos, então, cada participante para além do diagnóstico, e ainda que apresentem algumas características em comum, enfatizamos a unicidade de cada uma delas. Buscamos, desta forma, estabelecer uma relação pessoa-pessoa, ou seja, uma relação Eu-Tu, nos termos de Martin Buber (2006), e não uma relação pessoa-objeto, ou Eu-Isso, como frequentemente vemos acontecer na clínica do autismo, como muito bem aponta Santos (2015).

Pensando e agindo junto com Levinas, procuramos aproximarmo-nos da criança, respeitando sua alteridade radical, sua diferença, sem procurarmos apreendê-la em sua totalidade, por meio das representações rígidas que, frequentemente, as diversas teorias e supostos conhecimentos sobre o autismo nos oferecem. Não que a busca por conhecimento não seja importante, mas não podemos jamais pretender obter um conhecimento totalizante acerca da criança concreta que se encontra em nossa frente, pois, se assim o fizermos, estaremos como muito bem nos aponta Levinas, anulando a diferença radical do outro e submetendo-a ao eu, que, neste caso, representa a lógica e discursos dominantes. Cometeríamos uma violência imensurável contra a alteridade, contra a imprevisibilidade, a incomparabilidade e o caráter inapreensível de cada criança, contra o mistério que cada ser humano representa. Buscamos, ao mesmo tempo, nos responsabilizar por cada uma delas, no sentido de uma clínica pautada na lógica de um cuidado integral. Responsabilidade, que passa pelo afeto, pela sensibilidade, aquém de qualquer representação, pela aproximação que não totaliza o outro, mas mantém a distância, o respeito à sua alteridade.

Pensando e agindo com Deleuze, enfatizamos a diferença de cada participante para além da identidade, entendendo que uma diferença se relaciona a outra diferença e que cada ser encontra-se em um processo ininterrupto de diferenciação, de si mesmo e do outro. Todos somos diferentes uns dos outros e a ideia de que uns são mais iguais e outros mais diferentes é mera ilusão, visto que depende do recorte que se faz do outro e das características que o pensamento representativo privilegia. Trabalhamos, ao contrário, com a ideia de que na relação de uma diferença com outra, não há algo como um lugar privilegiado, em que algumas diferenças se situam como se fossem o Modelo, em torno do qual outras diferenças-simulacro orbitariam. Defendemos que o que existem são linhas divergentes, sem um centro-referência, bem como a ideia de que são as relações de poder e de força de uma sociedade específica que fazem com que algumas diferenças passem a ocupar o centro gravitacional, sendo valoradas positivamente, enquanto outras diferenças são comparadas ao que constituiria a referência. Um exemplo concreto se dá com a noção de norma enquanto média, em que a maior parte das pessoas que possuem certas características tomadas como médias são colocadas no lugar privilegiado, representando o Modelo-referência; enquanto outras pessoas que possuem determinadas características que não são compartilhadas pela maioria da população são comparadas com aquelas que representam o Modelo, estando sempre aquém do ponto de vista valorativo, constituindo o simulacro. Portanto, estas pessoas não são tomadas em função de seu modo único de existência, de diferenciação, incomparável com qualquer outro ser, cometendo-se uma violência contra a singularidade do outro, em sua diferença radical. A partir desta primeira violência, inúmeras outras são justificadas, como o preconceito, a discriminação e até mesmo a violência física.

Enfatizamos ainda, assim como nossos dois grandes pensadores, as intensidades afetivas das crianças, suas forças e fluxos intensivos, para aquém e além de qualquer representação. Dentro do processo de subjetivação e constituição da interioridade da criança dita com autismo, buscamos permitir o livre fruir, usufruir o momento presente, como o momento eterno, expressão máxima do Carpe Diem. Além disto, apostando na abertura, sempre presente, da criança à exterioridade, buscamos criar encontros autênticos, no sentido de afetar e sermos afetados pela criança e no sentido de que elas nos afetem, sejam afetadas por nós e se afetem entre si, no sentido de uma fruição não do outro (relação pessoa-objeto), mas do encontro com o outro. Buscamos, desta maneira, possibilitar a livre circulação na criança da força explosiva e criadora da vida, do fluxo vital, levando a um aumento de sua potência de vida.

Uma clínica que se aproxima do nosso trabalho, guardadas algumas distinções, é o trabalho que Deligny (2015) desenvolveu com crianças autistas - que hoje seriam consideradas não-verbais - em Cévennes, na França dos anos 70. Deligny (2015) descreve em várias de suas obras, como em O Aracniano e outros textos, como o trabalho era feito. As crianças permaneciam reclusas durante um tempo variável em uma localidade que adquiriu em Cévennes; participavam de algumas atividades de subsistência, como fazer o pão, o queijo, pegar madeira para o forno, etc, juntamente às pessoas que trabalhavam na clínica, as presenças próximas (MIGUEL, 2015). O autor faz uma distinção entre o fazer dos profissionais, com alguma finalidade, e o agir da criança, sem finalidade, o gesto mínimo cuja única finalidade talvez fosse fruir do momento presente. Deligny (2015) busca criar redes com as crianças, como os aracnídeos, construir um corpo comum na comunidade, definindo os adultos que as acompanhavam como presenças próximas, que não demandavam das crianças, apenas seguiam e acompanhavam seu livre vagar.

Algumas considerações precisam ser feitas com relação a este trabalho de contribuição ímpar para a clínica do autismo na contemporaneidade. Havia um profundo respeito à diferença, ao modo de existência de cada criança, e uma das preocupações sempre presentes de Deligny era justamente não semelhantizar, não enquadrar a uma norma pré-estabelecida, não estabelecer relações de dominação, em que normalmente aqueles que vivem predominantemente segundo o registro simbólico exercem relações de poder sobre aqueles que, nas palavras do pedagogo francês, se situam no registro do Real (tomando emprestado o sentido lacaniano do termo). Deligny estabelecia ainda uma distinção entre o homem que nós somos, estruturado pela linguagem e razão, e o humano vinculado à natureza, ao inato, que engloba todas as possibilidades de existência do ser humano, dotadas ou não de razão ou linguagem (MIGUEL, 2015).

Neste ponto, consideramos importante fazermos uma ressalva. Deligny, por diversas vezes, afirma que as crianças autistas estão fora da linguagem e não possuem consciência de si e do outro. Hoje em dia, sabemos por meio de diversas constatações empíricas que muitas pessoas autistas ditas não-verbais conseguem se comunicar pela escrita, muitas delas se alfabetizam como autodidatas, muitas escrevem de forma muito rica, têm blogs, publicam livros (FLEISHMAN, 2012; KEDAR, 2013; BIALER, 2015; SEQUENZIA e GRACE, 2015). Outras, talvez, não consigam, mas, na grande maioria das situações, é possível perceber claramente o desenvolvimento da linguagem receptiva ou compreensiva com o passar do tempo. Há, de tal modo, uma grande variedade/diferença dentro da arbitrária identidade “autistas não-verbais”. Portanto, ainda que a linguagem e o simbólico não sejam centrais nestas formas específicas de subjetivação, que o pensamento representativo não seja predominante, não é possível afirmar que “elas estão fora da linguagem”. O mesmo vale para a consciência reflexiva de si e do outro; com relação à consciência não-reflexiva ou não-intencional, consideramos tratar de algo presente não só no humano, mas em muitos outros seres vivos. Não vamos nos ater à discussão sobre o que venha a ser o humano, seus limites e extensões, pois isto fugiria do escopo deste trabalho. No entanto, conforme Levinas, entendemos que a humanização, para além do humano inato, passa pela construção de encontros autênticos, marcados pela responsabilidade do um-para-com-o-outro, pela afetação mútua, que preserva, contudo, a alteridade do outro.

Dito tudo isto, pensamos haver uma aproximação da clínica delignyana no autismo com o trabalho que realizamos na Oficina de Música, sobretudo, no sentido de não normatizar, não semelhantizar, de buscar combater relações de dominação simbólica, que tendem a resultar em estigmas e discriminações, em violência contra a alteridade, além de buscarmos a valorização da diferença e singularidade de cada criança, de todos os modos possíveis de existência.

Considerações Finais

Buscamos, neste artigo, tecer uma articulação entre as noções de diferença/alteridade e representação em Levinas e Deleuze, com um Projeto de Extensão que desenvolvemos no âmbito universitário, com a proposta de que esta articulação também possa fundamentar nosso trabalho.

Parece-nos que tal articulação é bastante fecunda à nossa proposta clínica na Oficina de Música, uma vez que nos permite construir uma clínica-política, uma ética e uma estética em nosso trabalho que reconhece cada criança dita com autismo para além das identidades rígidas do diagnóstico, na diferença radical e unicidade de cada uma delas. Nos permite e nos capacita construir encontros autênticos junto às crianças da Oficina, no sentido de uma afetação mútua, entre nós técnicos e elas, entre nós e seus familiares e entre elas próprias; encontros que possibilitam a livre circulação da força criadora da vida em cada criança; encontros aquém e além de qualquer representação, que tocam os fluxos intensivos de nossos pequenos pacientes, fazendo fluir seus pensamentos não-representativos, imaginativos, sobretudo, por meio da força da música. Tocamos e afetamos uns aos outros - todos os envolvidos no Projeto - por meio da música, do afeto, do acolhimento. Responsabilidade sensível que sustenta a separação do outro, não totalizando e não anulando sua diferença; que sustenta a singularidade da criança, seu mistério, Rosto como vestígio do Infinito, sua imprevisibilidade e incomparabilidade, enfim o caráter inapreensível de seu ser em sua totalidade pela via do pensamento representativo.

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Recebido: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 28 de Dezembro de 2020

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