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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.17  Rio de Janeiro  2021  Epub 26-Jul-2021

https://doi.org/10.12957/childphilo.2021.59827 

ARTIGOS

atrever-se a uma escrita infantil: a infância como abrigo e refúgio

writing like a child: childhood as "shelter and refuge"

atreverse a una escritura infantil: la infancia como refugio y cobijo

Iuniversidade do estado do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - Email: wokohan@gmail.com

IIuniversidade dos açores, açores, portugal - Email: magda.ep.teixeira@uac.pt


resumo

O presente texto é um exercício infantil de escrita. A partir de um convite para escrever um texto adulto, académico, a presença de uma mochila infantil altera as expressões que iriam ser elucidadas e a escrita adulta é suspendida pela força criadora da infância: “filosofia para crianças” tornou-se “crianças para filosofia”; “educação moral” passou a ser “finalização (da) moral” e “concepções de infância” voltou-se “infâncias de concepções”. Em diferentes seções do texto apresentamos o que permite pensar esse jogo infantil expressado em cada uma dessas novas expressões: a problematização de um programa e de uma forma de educar a infância; a finalização de uma carga pesada na educação das crianças; o recomeço de um jogo que não coloque a infância como objeto de estudo, mas como força movente do pensar. Para isso são chamados, tanto nas epígrafes quanto no corpo do texto, diversos interlocutores de campos distintos: da literatura, da filosofia, da educação, da “filosofia para crianças” e da própria infância cronológica. O texto conclui propondo pensar as relações entre desconstrução e infância, a partir de uma interlocução com H. Cisoux e J. Derrida. No texto inteiro a relação entre forma e conteúdo é implicitamente problematizada e há um esforço por afirmar a infância não apenas no conteúdo da escrita, mas na sua forma.

palavras-chave: filosofia para crianças; crianças para filosofia; concepções de infância; infância de concepções; educação moral.

abstract

The present text is a childlike exercise in writing. In responding to an invitation to write an adult, academic text, we the authors found that the presence of a child's standpoint acted to change the expressions that were to be elucidated, and that the project that adult writing represents was suspended by the creative force of childhood. "Philosophy for children" became "children for philosophy"; "moral education" became "the end (of) morality" and "conceptions of childhood" became the "childhood of conceptions." As such our text is divided into different sections, in each of which we explore the implications of allowing ourselves to be transformed in our practice by recognition of the child’s voice; the problematization of conventional educational programmatics for one, and the opening of new pedagogical pathways, which recognize childhood as a moving force of thinking, as opposed to an object of study and manipulation. To this end, we engage several interlocutors from different fields--literature, philosophy, education, "philosophy for children", and from chronological children themselves. We conclude by proposing, based on an encounter with the work of H. Cisoux and J. Derrida, that we think about the relations between deconstruction and childhood in such a way that our affirmation of childhood leads to a transformation of the text itself-not only in its content but in its form. As such, we present the reader with a fundamentally childlike text.

keywords: philosophy for children; children for philosophy; conceptions of childhood; childhood of conceptions; moral education

resumen

El presente texto es un ejercicio de escritura infantil. De la invitación a escribir un texto adulto, académico, la presencia de una mochila infantil cambia las expresiones que se iban a dilucidar y la escritura adulta queda suspendida por la fuerza creativa de la infancia: "filosofía para niños" se convirtió en "niños para la filosofía"; "educación moral" se convirtió en "finalización (de) la moral" y "concepciones de la infancia" se convirtió en "concepciones infantiles". En diferentes apartados del texto se presenta lo que permite pensar este juego de la infancia expresado en cada una de estas nuevas expresiones: la problematización de un programa y una forma de educar a la infancia; la finalización de una pesada carga en la educación de los niños; el reinicio de un juego que no sitúa a la infancia como objeto de estudio, sino como fuerza motriz del pensamiento. Para ello, se recurre a varios interlocutores de diferentes ámbitos, tanto en los epígrafes como en el cuerpo del texto: desde la literatura, la filosofía, la educación, la "filosofía para niños" y la propia infancia cronológica. El texto concluye proponiendo pensar las relaciones entre deconstrucción e infancia, a partir de una interlocución con H. Cisoux y J. Derrida. En todo el texto se problematiza implícitamente la relación entre la forma y el contenido y hay un esfuerzo por afirmar la infancia no sólo en el contenido de la escritura, sino en su forma.

palabras clave: filosofía para niños; niños para la filosofía; concepciones de la infancia; infancia de las concepciones; educación moral.

atrever-se a uma escrita infantil: a infância como abrigo e refúgio

Começar é um verbo infantil. Parece haver uma ousadia indómita própria dos inícios da vida que a leva a afirmar permanentes começos ou a recomeçar permanentemente. Sem solenidades. E, talvez por isso, à medida que deixamos a infância cronológica, torna-se cada vez mais difícil, assustador e intimidante começar qualquer coisa. Ou, simplesmente, começar. Não será a própria vida que (re)começa em cada um desses começos? Será essa a vertigem?

Podemos então pensar que a ousadia infantil dos inícios se perde com a idade porque o acumular da sequência cronológica das idades arrasta um peso difícil de descartar. Mas não terá também - ou sobretudo - a ver com a relação que estabelecemos com essa mesma idade? Os modos de produção e consumo dominantes parece que nos levam a ficar mais preocupados com os fins, produtos e resultados do que com os começos. No ritmo vertiginoso de multiplicação dos desejos, deixamos que nos coloquem nas respostas e pomos o foco em eficiências que fecham caminhos, acabando por esquecer daquele verbo infantil.

Repitamos, sem repetir: começar é um verbo infantil e a infância é uma forma de vida, uma vida infantil é uma vida que (sempre) começa, que começa a cada vez, pois a vida ama renascer e assim vai se nutrindo de infância. Infância na vida e vida infantil... por isso, começar é uma maneira de manter viva e dar vida à infância. Talvez também por isso celebramos com tanta alegria começos potentes e exuberantes no mundo cronologicamente adulto: como quando nasce uma criança infante ou quando brota uma ideia infantil.

Uma criança chega como um novo mundo porque, nela e com ela, sentimos que todo o mundo poderá recomeçar. Mas não é só por isso. Uma criança chega como um novo mundo também porque essa chegada nos diz o que, de tão simples, quase tínhamos esquecido: que o mundo não é só velho, inquestionável. Não é só a eficiência das respostas. A criança não nos deixa indiferentes, rompe com conformidades e chega como esperança, cheirando a imprevisível. A perguntas.

Semelhante chegada é a de certas ideias infantis, como a que nos ofereceu Matthew Lipman ao criar a “filosofia para crianças”. Celebramos caráter infantil deste projeto, ousado, irreverente, questionador, comemorando o seu nascimento há quase 50 anos. Com essa ideia começou - ou pelo menos se tornou possível começar - um novo mundo em mundos já um pouco velhos e conformados. Quando a filosofia e a educação institucionalizadas ouviram falar da ousadia de acolher as crianças entre os seus reputados interlocutores de diálogo e pensamento, certamente franziram o sobrolho e torceram o nariz. Filosofia para crianças?! como assim?! Infância na filosofia?!

Mesmo que a apreciassem e estudassem, a filosofia e a educação eram (eram?...) ainda mundos reticentes à infância. Nelas, a infância era (era?), muitas vezes, como um tempo aberrante e inútil que os adultos abreviavam a todo o custo, um declínio ou até mesmo uma enfermidade (Hugo Mãe, 2020, pp. 15, 49, 57). Talvez a filosofia e a educação - muito adultas - tenham percebido, com grande dificuldade e perturbação, esse começo. Mas M. Lipman, A. Sharp e todos os colaboradores da empreitada atreveram-se a começar algo diferente e hoje podemos comemorar um começo infantil que abriu espaço para muitos outros começos em mundos habitados por vidas filosoficamente educadoras.

Recomeçamos, então, sempre que podemos. Em cada escrita, em cada pensamento, em cada encontro com crianças de todas as idades. Pelas razões apontadas, à medida que a adultez vai tomando conta dos nossos corpos, já não se torna tão fácil começar... começar a sério, de verdade. Ou seja, já não nos brota tão simples começar sem fazer de conta, sem fingir: começar de fato, começar iniciando algo novo (nem que seja para nós mesmos) no mundo. Para haver começo, não basta que se retome uma rotina ou que se repita um movimento. É preciso haver anomalia, anormalidade, imprevisto, impensado. Um movimento em vertigem? Tudo isso talvez seja mais sintomático dessa idade em que não somos mais crianças. O início está lá, nos convidando, esperando para acontecer, mas é como se não sentíssemos essa necessidade. Ou então começamos sem sequer percebermos que estamos começando.

Mesmo assim, tentamos - os adultos autores e atores desta escrita - abrigar-nos no que entendemos ser um movimento infantil de começos. Como se estivéssemos debaixo de uma tormenta, de uma chuva tempestuosa e quase sem visibilidade, ficamos atentos e sensíveis a uma escrita que não tome a infância como um objeto de estudo e de análise, uma maleita que urge curar (ou formar ou educar, através da filosofia ou de qualquer outra coisa), mas que se relacione com a infância como nos relacionamos com uma inspiração e uma potência de começos, uma força de que se atenta, cuida, lembra. Um abrigo que é também refúgio. É difícil a empreitada precisamente por ser próprio de escritas adultas fixar e coisificar os assuntos, em vez de se instalar no seu movimento próprio de acolher as fugas e os retiros.

Assim estamos, aqui, escrevendo antes de escrever, desenhando palavras enquanto atentamos começar a escrever: pensando e pensando-nos infantilmente, em busca de começos. Já começados e ao mesmo tempo sem começar. Sentindo como e por onde pode ser propício começar a escrever o presente texto. Cuidando (d)as palavras e sendo por elas cuidados e levados. Inter-esse-ando.

Não por ainda não termos começado, deixamos de escrever e, munidos com a força da repetição, repetimos: estamos atentos e sensíveis, essas duas forças infantis. A infância, sentimos, acompanha-nos, cuida de nós. Sabemos também que as buscas obstinadas e obcecadas podem afastar, ou pelo menos debilitar, a possibilidade de alguns encontros. São caminhos focados nos resultados, que trocam a abertura ao imprevisível pela segurança do já sabido e saboreado, que se refugiam em construções engenhosas e se alojam comodamente nos problemas cujas soluções já conhecem (Bergson, 2009b, p. 124).

Então relaxamos e deixamos que a infância nos invada pela própria escrita, que ela nos inspire, nos escreva e, escrevendo-nos, nos surpreenda com um começo infantil. Ou com a infantilidade própria de qualquer começo que mereça esse nome. Talvez seja o que nos caiba fazer: aceitar e enfrentar a tormenta, descobrir que um abrigo pode ser refúgio e que podemos instalarmo-nos no movimento. Ficamos atentos ao que nele vem, ao que dele possa vir e ao que nos vem a partir dele. Mas também ao que pode querer fugir dele, em nós e fora de nós.

Enquanto esperamos começar a escrita, e sem deixar de escrever, pensamos que uma forma de começar é lembrar os inícios já passados, anteriores ao começo, recordação infantil das palavras que faziam parte do convite primeiro. Havia um livro por fazer e havia um título que nos foi endereçado: “Conceptions of Childhood, Moral Education and Philosophy for Children” (o livro iria ser publicado em inglês, língua adulta entre nós).

À provocação do nome, a infância então sorri e nos sussurra ao ouvido: “vocês estão feitos”. Infância brincalhona, lasciva, arretada, bagunceira. Sorri sem parar e sai correndo. Seria aquele um título demasiadamente adulto, seguro e acabado? Curiosamente cheio de palavras que significam a infância, mas que não parecem elas próprias infantis? Será que, por exemplo, a filosofia para crianças está se mostrando envelhecida? Recordamos o moçambicano Mia Couto: “Velhice não é idade: é um cansaço.” (Couto, 2009, p. 22). Ou talvez seja este um livro que começou antes de começar, um livro com um título que se torna convite porque nele cada um e cada uma é convocado a encontrar-se livremente com essas expressões. Fomos chamados e o nosso convite ecoava: “procurem um abrigo que seja refúgio e preparem-se para o movimento.” Com atenção e sensibilidade, atentamos. Olhamos um para a outra, miramos mais uma vez o título com mais calma e procuramos compreender os motivos de tanto regozijo e galhofa infantil. Traduzimos as palavras do título proposto: concepções da infância. educação moral. filosofia para crianças.

Serão estas palavras formas adultas de capturar a infância e as forças infantis? Olhamos uma para o outro, já mais atores do que autores, e sorrimos outra vez. Não sabemos de onde veio essa pergunta, mas sentimos que a infância, no seu toca-e-foge provocador, já nos deu o seu recado e deixou uma marca entre nós. Inter-esse. Sentir a infância entre nós entusiasma-nos e dá-nos forças, mesmo que o desafio pareça exagerado, grande demais para a nossa pequenice. Nós que continuamos à tormenta. À chuva. Mas não temos medo. Não temos? Repetimos: a infância está dentro de nós, entre nós.

Deixamos um pouco de tempo passar. Se não temos medo, também não temos pressa. De qualquer forma, já estamos molhados. Encharcados. Aos poucos, a infância que nos habita resolve pular nas poças de água. Em todas as que encontra. As poças de água são tão irresistíveis como as perguntas: nelas, solta-se e salta-se o perguntar.

Por que “educação moral”? Por que moralizar a educação se isso parece torná-la regrada e normatizada, des-educativa? Se educar pode ser conduzir para fora, restarão ainda exterioridades para além da moral, dos princípios, dos costumes? E por que moralizar a infância se isso parece des-infantilizá-la? Se infante é aquele cuja potência está numa não fala, a quem serve o adestramento moral?

Porquê “concepções da infância”? O que estaremos a afirmar quando colocamos a infância como objeto de uma atividade conceitual cognitiva? O que deixamos de parte por não nos relacionarmos com ela de outros modos distintos, como na interioridade das sensações e dos afetos?

Porquê, ainda, “filosofia para crianças”? É claro que que não precisamos simplificar a questão sobre a qual tanta tinta se tem derramado (Costa Carvalho, 2020), mas acaso não seria interessante explorar diferentes modos de entrecruzar a filosofia e a infância?

De um modo mais geral, porquê tantos substantivos? Serão substantivação? O que aconteceria numa experiência de escrita que transmutasse a infância e a filosofia em verbos? Infantilar? Infantilizar? Infantilsendo ou infantilestando? Filosofar, filosofando ou filosoficamentestando? Porquê, por que e porque. A infância sempre pergunta e, por isso, é mais movimento do que paragem. Poderíamos continuar elencando “porquês”. Poderíamos? Poderíamos. Contudo, o começo infantil nos convida a outras travessuras. As palavras de um título não são só justaposição de unidades de sentido, mas movem-se umas em direção às outras: acontecem entre. Se são também movimento, então para quê entendê-las estáticas? E se as surpreendêssemos nesse movimento?

E se...? Outro dos exercícios preferidos da infância, mais um apelo à atenção e à sensibilidade. Muito bem, aqui vamos nós. E se recomeçarmos? Recomecemos, então. A infância aproxima-nos uma mochila. Não é uma mochila qualquer, mas uma mochila de estrangeiridades que, dizem algumas vozes infantis, tem o poder mágico, babélico, de con-fundir as falas, de renomear as palavras, de mudar sua aparência... Uma mochila que torna as palavras balbuciantes, que faz com que elas já não possam ser pronunciadas da mesma forma. Uma mochila que, digamos, infantiliza tudo o que entra nela porque retira a fala comum, subtrai a língua primeira de que falavam as palavras. Pois não são a estrangeiridade e a estranheidade amigas da infância?

Não conseguimos resistir a mais este desplante provocador. Deixamos de perguntar, escrevemos palavras em pedaços de papel e colocamo-las na nossa mochila estrangeira. Colocamos cada uma das palavras que nos tinham sido endereçadas, umas atrás das outras, assim:

concepções

da

infância

educação

moral

em

filosofia

para

crianças

São 10 pedaços de papel, cada um com uma palavra. Nenhuma palavra está repetida. Nenhuma pontuação. Nenhuma palavra em maiúsculo. Todas estão escritas no mesmo tamanho, ocupando o mesmo espaço no papel, como se fossem iguais: palavraria igualitária. Escreveu Ruy Belo, poeta infante, que, num poema, nenhuma palavra deve levantar a cabeça no meio das frases (Belo, 2009, pp. 18-19). E valter hugo mãe, outro pensador de infâncias, escreveu vários livros sem letras maiúsculas como al berto ou bell hooks escreveram seus nomes e pseudônimos, tantos e tantos outros movimentos, procurando abolir as hierarquias das línguas escritas. infantilestando.

Enquanto colocamos as nossas palavras na mochila de estrangeiridades, algumas coisas chamam a nossa atenção: a primeira e a última palavras - concepções, crianças - estão no plural; as restantes estão no singular ou não têm plural; algumas são preposições, formas de nexo ou conectividade; algumas são da mesma família semântica, outras têm mantido constantes encontros históricos. Notamos uma ausência: não há verbos, palavras-movimento. Será possível escrever a infância sem eles?

Fechamos a mochila estrangeira com as palavras lá dentro. Sacudimos uma e outra vez, assim como fazem os mágicos, prestidigitadores do mundo. Olhamo-nos e sorrimos. Alguém pisca o olho. Imaginamos o que estará acontecendo dentro daquele babélico mundo. Imaginamos? Um processo de infantilização, involução criadora. Esperamos um tempinho, que sempre os mágicos testam a paciência do público. Seguimos sem pressa. Continuamos atentos e sensíveis. A chuva tormentosa não cessa e estamos num abrigo movente que é também refúgio. Expectantes. Curioso e curiosa. Inquieto e inquieto.

E agora? Quem abre a mochila? Parece um gesto irreverente, atrevido, infantil. Quem se atreve a desocultar um mistério? Quem se anima a dar de cara com uma travessura infantil? Nenhum dos dois, sozinho, parece ter a coragem necessária. Talvez, pensamos, possamos compartilhar o ato irreverente, meter ao mesmo tempo as mãos na mochila das estrangeiridades e esperar o momento em que as duas mãos se encontrem com o mesmo papel, com a mesma palavra. Será a mesma? Em qualquer caso, sair do euzinho de cada um dá-nos coragem. Isso fazemos. Tentamos, pelo menos. Abrimos a dois a mochila de estrangeiridades, brincamos um pouco dentro dela até coincidirmos em um dos papelinhos com palavras em minúsculas. Como se houvesse lá dentro uma palavra que nos esperasse. Seguramos com firmeza antes de tirar as mãos da mochila ao mesmo tempo. 1, 2, 3. Agora! Uma de nós fechou os olhos no processo. Não conseguia ver de tanta emoção, ou talvez fosse pela chuva. Deixamos o papel em cima da mesa. Calhou de ficar do avesso. O lado escrito esconde-se de nós, claro. A infância também ama ocultar-se.

Mas não parece nenhum dos papéis que inserimos na mochila estrangeira. Ela é mesmo mágica, danada, peralta. Como a infância. A cada momento nos exige reinventarmo-nos e faz-nos entrar no mundo infantil das perguntas. Duvidamos sobre como seguir: tiramos um a um os papéis com as palavras e olhamos para cada um deles a cada vez? Ou tiramos todos de uma vez e olhamos o conjunto para tentarmos perceber as mudanças provocadas? Ou olhamos por pares ou trios como apareciam as palavras antes de as colocamos na mochila? Duvidamos também se o que nós façamos poderá afetar os efeitos do que acontece dentro da mochila, se os efeitos que ela provoque serão diferentes em função dos nossos movimentos ou se ela já planejou inteiramente de antemão o jogo inteiro que está jogando conosco. Talvez estejamos exagerando a nossa potência de afetar a infância e seja mais interessante simplesmente seguir tentando estar atentos e sensíveis à infância. Sentir a infância em toda sua força.

Disso se trata nesta escrita. Assim, quase que sem querer, enquanto escrevemos parece que um vento (infantil) soprou e o papel minúsculo retirado da mochila mostrou-se. Não é nenhum dos que colocamos. E é todos ao mesmo tempo. Mas continua do avesso. Voltamos a olhar a escrita e lemos alto as três últimas frases. Nenhuma parece fazer sentido. Como pode este papel que encontrou as nossas mãos ser todos os papéis que colocamos na mochila, não sendo nenhum deles? E como pode continuar do avesso se o vento o virou? Mais risos e sorrisos invadem as letras e o papel desdobra-se:

crianças para filosofia

finalização (da) moral

infância de concepções

As palavras são (quase) as mesmas. Parece que alguma sumiu e alguma mudou fortemente. Fortemente? Mas mesmo que quase todas as palavras se mantenham, a sua ordem está alterada, invertida, oposta. É uma tática infantil: perceber o mundo e as coisas que o habitam pelo avesso ou de pernas para o ar. E logo também uma brincadeira filosófica: inverter as direções habituais do pensamento (Bergson, 2009b). Mas vamos, então, dar atenção a cada uma das expressões que apareceram alquimicamente na mochila? Agora, o viés é mesmo infantil.

crianças para a filosofia

“Whilst P4C sets out to challenge many prejudicial ideas about children and their capacities as thinkers, the western philosophical tradition and methods are often implicit within the materials, methods, forms of training and practice of promoting critical thinking associated with P4C. The ‘movement’ of P4C embraces both the contradictions and the possibilities of the encounter between philosophy and childhood and there are wonderfully generative flashpoints.”

Joanna Haynes and Karin Murris (2019)

O que está primeiro? Pode parecer um detalhe. Não é. Nalguma matemática, a ordem dos fatores não altera o produto. Em filosofia, na educação e na infância, a diferença - qualquer diferença - pode ser crucial.

“Filosofia para crianças”, escrita com essa ordem, marca o que está primeiro. E é isso que vem no início que se considera ser preciso levar para alguns destinatários, os que aparecem precisamente no final da expressão. O movimento proposto por esta expressão dá conta da ideia infante de Lipman e Sharp: romper os cânones instalados na academia e ousar propor que a filosofia também possa ter lugar no percurso educativo das crianças. Por isso, ambos empenharam as suas vidas para levar a filosofia até às crianças, reconstruí-la de uma forma novelada e simplificada para que se tornasse accessível, no dizer de Ann Sharp e Ronald Reed (Sharp; Reed, 1996).

Todavia, a nossa mochila bagunçou a expressão inicial, não esqueçamos. A inversão mudou os lugares de partida e, inevitavelmente, os sentidos. Já não é a Filosofia - uma palavra adulta e (de caixa) alta que chega com cânones e modos de fazer definidos - que é levada às crianças. São as crianças que se achegam à filosofia, que a rodeiam no afã característico da infância e que, com ruído e agitação, a desejam, puxam e desafiam. Como uma invenção insólita no meio do recreio. Primeiro as crianças.

Mais uma vez, olhamos uma para o outro, percebendo o que a experiência infantil da escrita nos pede agora. Um movimento dos corpos. Só poderia ser assim. Nem a escrita, nem a infância se fazem fora de corpos, das suas posições e movimentos, porque é neles que infância e escrita encontram os lugares a partir de onde falam. Não podemos, por isso, mais ficar de pé. Um adulto de pé consome demasiada altura. Visto do chão, parece que nunca mais acaba. Um corpo adulto é uma canseira em altura. Temos que nos acocorar, moquecar, como fazem as crianças quando precisam de ficar ainda mais perto da terra. A infância chegou ao recreio e inventou algo bem no meio do pátio. Enquanto a Filosofia olha as coisas um pouco de cima, a infância acerca-se, abaixa-se, entra na mesma bolha.

Acocorar também não é um movimento fácil num corpo com idade adulta. Surgem problemas parecidos com o começar porque a idade parece afastar-nos de certos lugares, sobretudo da terra. Quando um corpo cresce, vai ficando mais longe do chão, ainda que os pés continuem lá. Nós adultos, fechados nos nossos privilégios e hierarquias, pensamos que o crescimento do corpo é um prémio evolutivo para os olhos que, assim, ficam com muito mais campo de visão disponível. Supostamente ficamos mais prontos para a fuga, em caso de perigo iminente.

Mas essa é apenas a perspectiva do privilégio do olho porque, na realidade, o afastamento da visão trouxe também uma certa desatenção auditiva. À terra, ao chão, à pequenez da superfície das coisas. Como diz tão infantilmente o poeta angolano Ondjaki: “tudo isso eram sons que uma criança escutava, mas que não adiantava explicar aos mais-velhos, às vezes fico a pensar se eles serão mais surdos que as crianças, ou se é uma coisa da idade, isso de deixar de sentir os barulhos mais pequeninos do mundo” (Ondjaki, 2020, p. 192).

A adultez passa por olhar de cima para baixo, por falar de cima para baixo e por esquecer o que venha de outros comprimentos de onda. Ocorre-nos que o logocentrismo (Derrida, 1973, p. 5) talvez tenha beneficiado desse desenvolvimento corporal, convencido de que crescer era o esperado abandono de um modo confuso e inculto de entender as coisas. Um entendimento demasiado contaminado pela indiferenciação transgressora das crianças. O animismo e o primitivismo (Haynes e Murris, 2019) tão presentes na infância foram, por isso, considerados coisas a evitar, a abandonar, a deixar para trás (na terra) durante o processo de crescimento. Eram coisas que deviam ficar no chão, desvios e aberrações, coisas pequenas e disformes (curioso como a linguagem cristalizou estes lugares de pensamento em palavras como “baixo” que ainda hoje, em português, pode significar indigno, ignóbil, abominável). Nesta leitura de necessário crescimento ou desapequenamento, a Filosofia seria mais uma entre as muitas ferramentas inventadas para formar, isto é, para tirar do chão, para transmutar o lodo desconforme em pote de barro conformado, elevando a infância até às únicas alturas capazes de compreender os conceitos.

A nossa escrita pede proximidade com a terra. Tornamo-nos baixos, então. Pequenos. Menores. Acocoramo-nos e fazemo-nos pequeno e pequena - palavras que, em português, também podem designar as crianças. Fazemos a experiência de nos apequenarmos, infantilizarmo-nos, pondo os ouvidos, os olhos e a pele o mais perto possível do chão. Baixamo-nos então bem devagarinho, novamente de mãos dadas porque não conseguimos manter o equilíbrio sozinhos (a infância chama para um certo companheirismo). Rimos quando balanceamos, viramos sob o peso dos corpos desajeitados e quase caímos. Paramos. Retomamos o esforço. Forçamos o exercício dos corpos para que continuemos escrevendo e pensando a partir de onde o fariam crianças imaginadas. Agora sim, estamos pronto e pronta. Voltamos à nossa expressão, recomeçando a partir deste novo lugar: crianças para filosofia.

Numa primeira leitura, parece dizer-nos que já não é só uma questão de a filosofia ser entendida ou praticada pelas crianças, mas que as crianças precisam chegar até ela. Que elas lhe fariam bem, seriam suas beneficentes. As crianças resgatam a filosofia do meio do pátio e levam-na para a sala de aula. “Crianças para filosofia” pode significar que as crianças prestam ajuda à própria filosofia, como uma oportunidade oferecida. Não são as crianças que precisam de algo, mas é a filosofia que precisa das infâncias.

Enquanto escrevemos esta última afirmação, parece-nos que ainda não nos baixamos o suficiente. Talvez nunca nos baixemos o bastante, uma vez subidos a uma certa altura. E logo perguntamos se isso mesmo não pode acontecer em muitas práticas escolares, mesmo as mais bem intencionadas. Isto é, a ideia de que a infância precisa de ocupar um lugar na vida da filosofia poderá continuar refém da sua perspectivação como entidade incompleta em formação? Quer seja a filosofia trazida pelos adultos ou encontrada pelas crianças, a urgência de a levar para dentro da sala de aula falará ainda da infância como falta? E pensar que as crianças precisam ser levadas até à filosofia também exige uma visão desta última como falta? Será possível abandonar esse pressuposto e pensar, ao contrário, que ninguém é mais sofisticado que ninguém, que entre as crianças e as não crianças pode haver um encontro filosófico entre iguais?

No caso do projeto Filosofia para Crianças de Matthew Lipman e Ann Sharp - e de muitos e muitas que ainda hoje nele se inspiram - o encontro tinha fins formativos e as crianças seriam as maiores beneficiadas pelos que, de cima, saberiam como orientá-las (Lipman, 1988). Neste caso, através da Filosofia. O programa por eles criado escolhia uma sede privilegiada para esse encontro: a instituição escolar. As crianças se converteriam, através do contato com a filosofia nas comunidades de investigação, em adultos mais reflexivos e razoáveis e, em última (ou primeira) instância, em cidadãos democráticos. O cenário desse encontro seria a escola e para que esse encontro pudesse ter lugar a instituição escolar teria que acolher desde cedo a disciplina “filosofia” (e, sempre que possível, Filosofia - com maiúscula inicial - para marcar um tom, uma posição, um poder). Há claramente aqui uma maneira de entender a filosofia - como um conjunto de habilidades de pensamento crítico, criativo e cuidadoso (Lipman, 2003, p. 200) - assim como uma maneira de entender a infância - sobretudo como uma etapa da vida. É certo que Lipman chega a ensaiar brevemente um outro tratamento da infância - como dimensão legítima do comportamento e da experiência humana (1988, p. 191-198) -, no entanto apenas para justificar a legitimidade de uma Filosofia da Infância enquanto área de estudos, e logo sempre no enquadramento disciplinar e cronológico de uma fase da vida humana. Assim também, no entendimento da proposta, essa seria a infância que precisava de determinadas mudanças trazidas pela filosofia, como eram a criticidade e a razoabilidade.

Estamos de pé, descendo, empequenecendo-nos. Perguntamos: o que efetivamente mudou com a expressão invertida trazida a esta escrita pela nossa mochila de estrangeiridades? Será esta nova expressão intercambiável com aquela de onde partimos? Filosofia para crianças, crianças para filosofia. Poderíamos trocar de expressão e nada mudar na nossa visão das crianças, da infância ou da filosofia? Trocar uma pela outra seria o equivalente a pormo-nos de cócoras? Ou precisaríamos de algo mais, de outros gestos para conectar filosofia e infância? Quais seriam esses gestos? Serão precisos também entendimentos diferentes de uma, de outra e das suas conexões para que as possibilidades e sentidos do encontro se multipliquem?

Num texto recente sobre a relação entre filosofia e infância, Viktor Johannson (2018) retoma as duas expressões que agora nos ocupam: “Philosophy for Children and Children for Philosophy: Possibilities and Problems” reza o original inglês. O autor mostra, por uma parte, que a ideia de levar a filosofia às crianças é bastante mais habitual na chamada história da filosofia ocidental do que se costuma reconhecer. Se a filosofia é concebida como um modo de vida que se confronta e que desafia os critérios de uma cultura, seguindo perspectivas como as de P. Hadot (1995), quando praticada pelas crianças impacta retroativamente a nossa compreensão da própria filosofia. Consequentemente, poderia dar lugar a uma filosofia das crianças, uma filosofia infantil.

Escutar essa filosofia infantil exige acreditar que as crianças têm alguma coisa a nos dizer, que elas são capazes de pensar filosoficamente (Johannson, 2018, 1158-60). De modo que “crianças para filosofia” faz pensar em crianças filosóficas, crianças filósofas e também em filosofias infantis. Assim como os que pensam numa “filosofia para crianças” pensam nas coisas boas que a filosofia traria para as crianças, a expressão “crianças para filosofia” daria lugar às coisas boas que elas trariam para a filosofia, já não como lodo informe que aguarda modelagem ou como qualquer coisa menor que precisa aceder à maioridade. Mas como protagonistas de uma nova filosofia e, quem sabe?, de filosofias infantis.

Por outro lado, como temos argumentado em muitos outros lugares (Kohan, 2004, 2019), a infância não diz respeito apenas a crianças. Ou, para dizê-lo de outra maneira, há crianças de muitas idades, se pensarmos que a infância não tem a ver apenas - ou sobretudo - com uma temporalidade medida por khrónos, a das etapas da vida, mas com temporalidades intensivas e circulares que se podem experimentar em diversas idades. De modo que “crianças para filosofia” poderia dar lugar a uma filosofia de crianças de todas as idades: uma filosofia popular infantil. Claro que para isso precisaríamos pensar que pessoas de todas as idades têm coisas a dizer e a filosofar. E que a idade é algo que diferencia, mas que não desiguala.

finalização (da) moral

“When I was young, it seemed that life was so wonderful A miracle, oh it was beautiful, magical And all the birds in the trees, well they'd be singing so happily Oh joyfully, playfully watching me But then they send me away to teach me how to be sensible Logical, oh responsible, practical And they showed me a world where I could be so dependable Oh clinical, oh intellectual, cynical”

Supertramp, The Logical Song

As posições individuais tendem a ficar desfocadas quando vagueamos entre expressões, quando o pensamento é mais contato que visão (Bergson, 2009b), mais experiência do que fonema. A escrita provoca-nos a continuar agora esgravatando com os dedos na terra. Acocorados, sujamos as unhas, os dedos, juntamos um fio de água na terra e separamos pedrinhas de minhocas. Talvez a escrita nos peça outras infantilidades. O que se afirma entre as palavras quando lhes pegamos como se fossem torrões de terra nas mãos de uma criança? Palavras-torrões desfazem-se e refazem-se. Palavras-torrões deixam de o ser porque, com água, a terra também se cola às mãos. Palavras-lama que se tornam mãos e mãos que fazem aquilo que há antes de haver palavras. Mãos que se deixam recuar até antes das palavras, antes da linguagem, antes de qualquer diferenciação categorizadora. A infância corre novamente entre nossos corpos atarantados e ri-se alto enquanto despeja o seu fio de água sobre os torrões das palavras. “Educação moral” tornou-se “finalização (da) moral”. Finalização.

É nesta metamorfose da terra nas mãos da infância que pensamos quando lemos o que Haynes e Murris (2019) escrevem: não estamos empacotados em nossos corpos. As coisas vazam, derramam-se nos espaços-entre. O movimento é o de regresso à infância, fletir os joelhos até existir a menor altura possível entre nós e a terra, aí enterrarmos as mãos, até que a escrita se esqueça dos modos adultos comuns de se dirigir às crianças. Abandonar o que está cristalizado. Pedras não sabem ser mãos. Abandonar os ismos que petrificam: universalismos, binarismos, desenvolvimentismos, progressismos, essencialismos, unilinearismos, nos dizem Joanna e Karin. Henri não pedia que fossem executados, mas dizia que se os “ismos” morressem naturalmente, não lhes devotaria uma única lágrima de lamento (Bergson, 2002). E também Mogobe nos alerta para a necessidade de tornar pluriversal o universal (Ramose, 2011).

Atentamos mais uma vez para o que apareceu escrito depois da traquinice da nossa mochila: finalização (da) moral. A palavra “finalização” é curiosa: é um fim que parece que não quer acabar porque pode ter mais de um sentido, verdade? Pode ser fim como término, acabamento. Mas também pode ser fim como lugar que está muito longe, o lugar que está mais longe do centro. E também pode ser a parte mais pequena, ínfima, que fica como um resto, um vestígio, a parte pequena de algo que resta depois de ter sido usado ou consumido. Ou então pode ser entendido como intenção, finalidade, propósito. São muitos os sentidos da palavra e estamos aqui à escuta do que a infância pode estar nos sugerindo pensar tendo trocado “educação moral” por “finalização (da) moral”.

Será que a infância vai querer guardar algo de cada significado de finalização? Afinal, a infância não gosta de renunciar a nada, a nenhum prazer, a nenhum sentido (Cixous; Derrida, 151-152). É desejo pleno. Em certo modo, percebemos que a moral está longe, muito longe da nossa escrita. Parece que a infância é a transgressora moral por excelência porque nasce desconhecendo e desrespeitando a solenidade das normas. Nesse sentido, a infância é vista como uma lonjura: entre nós e ela haveria todas as distâncias desinformadas do que está certo e do que está errado.

Mas também se pode perceber um propósito moral mesmo para além da moral, num sentido extra moral, como queria o bigodudo Friedrich cada vez mais nitidamente lembrado nesta secção. Nesta linha, a moral apareceria como um resto, um vestígio, a última parte de uma maneira solidificada de pensar e de viver a educação que resiste a deixar o seu lugar. Um lugar de fins rígidos ou flexíveis, de intenções sonoras e finalidades bem-intencionadas. Como um pequeno resto de algo que está acabando, que vai acabar, mesmo com todos os esforços por esticar a sua agonia, inclusive de certas filosofias, algo assim como uma ruína (Barros, 2010). Contudo, o sentido mais infantilmente nítido que nos aparece de fim é o de terminar, acabar. Sim, porque a infância adora começar, mas não gosta menos de finalizar (para poder começar de novo?).

E mesmo que ainda sejamos filhos de todos aqueles ismos e estejamos habituados a colocar a criança no começo, há quem a tenha colocado no final. Lembramos, por exemplo, “As três metamorfoses” no Assim falava Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Podemos apresentá-la infantilmente? O espírito transforma-se de três maneiras: primeiro é camelo, depois é leão, e, finalmente - no fim -, torna-se uma criança. Interessante: a criança está no fim e não no início. E o que está no início? O camelo, ou seja, quem carrega o peso, a moral, o “tu deves”. No meio está o leão, o “eu quero” que diz “não!”, libertando-se assim da pesada carga e preparando o caminho para que, no final, o espírito se transforme em criança: “A criança é inocência e esquecimento, um começar de novo, um jogo, uma roda que gira por si própria, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim.” (Nietzsche, 1996, p. 30).

A criança é esquecimento para, no fim, ser um novo começar. É preciso terminar o que temos para podermos começar novamente. É preciso desfazer-se do peso que nos afunda para podermos criar. O primeiro pontapé. O primeiro chute na bola que começa a pelada. E, como numa roda que gira, o fim e o começo se encontram; não há linha, evolução, progresso ou desenvolvimento. O movimento da criança é circular. Corrida na roda. E tal como na roda rolante que ela empurra com seu gancho de arame, o fim é um novo início, pura afirmação, dizer sim. O que termina é a moral, uma carga pesada, o fardo que a humanidade se colocou a si mesma. Uma espécie de “má consciência”, uma doença profunda, prisão dos instintos, o sofrimento do ser humano para consigo mesmo. Expiação de que fala Valter Hugo na epígrafe: a maleita da infância vem da ignorância e da imoralidade. Mas em Nietzsche a criança aparece, no final das transformações do espírito, como um novo começo, como a potência que permite dar um (re)início infante ao “tu deves” do camelo e ao “eu quero” do leão. Apesar de portentosos, nem um nem outro têm, por si mesmos, a força suficiente de uma criança para criar um novo mundo. Que força será esta?

Nietzsche criança. A filosofia está cheia de crianças de muitas idades, desde o seu início. Ignorá-lo tem dado pé a vários equívocos, como o de levarmos a filosofia para a educação como um exercício de oferecer às crianças o que há de adulto na moral, o que há de científico no pensamento, reconstruir o que se faz com o que está feito. O caminho não seria outro? Uma cartografia infantil como caminho? (Almeida; Costa, 2021) Uma prática de (re)criação do que há de infantil na vida? E quem melhor do que as filósofas e os filósofos inquietas para nos falarem dessa infantilidade?

Em outra passagem, desta vez em A Genealogia da Moral, o infante Nietzsche refere-se à grande criança de Heráclito, a que governa em aion (Kennedy; Kohan, 2020) e brinca com seus inesperados e emocionantes lances:

Desde então o homem veio a ser um dos feitos mais felizes da ‘criança grande’ de Heráclito, que tem por nome Zeus ou Azar, e desperta em seu favor interesse, ansiosa expectação, esperanças e quase certezas, como se anunciasse alguma coisa, como se preparasse alguma coisa, como se o homem não fosse um fim, mas apenas uma étape, um incidente, uma transição, uma promessa... (1992, XVI)

Finalizar com a moral é finalizar esse jogo que já não nos diverte e por isso o criticamos. O que torna um jogo infantil? E o que o desinfantiliza? É comum que as brincadeiras das crianças sejam transformadas em esportes, tornados exercícios de performances técnicas subjugadas à rigidez de regras com finalidades competitivas (Cabral, 1991). É o que acontece com a bola em seus diversos jogos. Profissionalizada. Separa-se o jogo da brincadeira, do prazer, da invenção. Já não é mais amadora. Normatiza-se a prática, apagam-se as diferenças criadoras e seca-se a possibilidade de (re)invenções sucessivas. Transforma-se seu tempo, de aión para khrónos. Termina o jogo pelo jogo, o jogo só porque sim. Desfazer esta adultização do ludus leva-nos a escutar a infância, pela sua força afirmativa e criativa. Porque não basta dizer “não” ou dizer apenas “eu quero” e porque não somos meta e sim caminho, episódio, transição, ponte... uma esperança, uma espera do que não se pode esperar (Heráclito, DK 22 B 18). Um esperançar, como queria Paulo Freire (Freire, 2014). Por isso a infância termina com a moral e inicia uma nova filosofia (infantil).

Infância inventiva. Mais uma vez, a língua portuguesa faz-nos pensar como a moralidade (adulta) invade os discursos: “inventar” é um verbo polissémico. Originar, criar, descobrir, imaginar. Mas talvez a força destes sentidos tenha revelado alguns riscos. A infância deixada a si mesma é atrevida e incerta. Inventar também significa mentir, falsear, inventar ideias ou histórias para enganar outros. Foi preciso conter a inventividade tanto quando foi preciso subjetivar a infância, sobretudo no brincar (Almeida, 2018). E ainda a etimologia do inventar nos sinaliza para um sentido de hospitalar que talvez seja ainda o mais infantil de todos (Kohan, 2013).

Fugir a essa continência discursiva, educativa, moralizante talvez seja um desplante: deixar prosthesis e orthesis e receber a criação à medida que chega. Mas a nossa mochila da infância brincou-nos e brindou-nos com “finalização (da) moral” e, a partir desta expressão, sugeriu-nos um fim para a educação moral. O fim de um modo prescritivo de projetar seres humanos. Ouvimos Nietzsche atrás dizendo que o ser humano não era um fim, mas “um incidente, uma transição, uma promessa...” E damo-nos conta novamente dos desafios que a infância brincalhona colocou na nossa escrita. Brincar a sério como se nada mais houvesse do que a urgência da brincadeira. O ser humano como caminho, a vida como ponte, a infância como grande promessa.

A “filosofia para crianças” concebida por Lipman, Sharp e colegas parece ter entendido essa promessa como compromisso estrito com um determinado modelo de ser humano. Racionalidade temperada pelo juízo (Lipman, 2003, p. 111), ou seja, a razoabilidade constitui uma das bases para se compreender a noção de comunidade de investigação que os autores apresentaram (Costa Carvalho; Mendonça, 2016). A educação está, assim, no coração deste projeto, entendida como caminho para promover razoabilidade nas crianças e, assim, a sua socialização democratizadora. Autores como Darren Chetty (2018) têm mostrado que este argumento pode ser politicamente muito escorregadio e até perigoso. O conceito de razoabilidade em filosofia para crianças pode esconder uma forma epistemologicamente enviesada de pensar e afirmar uma “ingenuidade” epistemológica a partir da “ignorância branca” ou “branquitude” que se pensa a si própria como transparente ou neutra - sem cor e sem história ou, talvez, dona de todas as cores e todas as histórias - e, assim, reproduzir a opressão histórica das outras cores, a escravidão ainda presente. Esconder a dimensão contextual, histórica e situada de noções como razoabilidade leva a assumir perspectivas com base numa noção de bom senso ou de senso comum que se pressupõem imparciais e acima de qualquer contexto. Pelo contrário, desafiar estes conceitos, examiná-los, permite fugir de uma comunidade de investigação fechada e denunciar a injustiça epistémica que outras autoras têm mostrado estar presente em mais práticas educativas do que seria desejável (Haynes; Murris, 2011; Fricker, 2017).

De novo, a infância brinca para nos pôr a pensar com seriedade. Será apenas o conceito de razoabilidade? Não se poderia dizer o mesmo dos conceitos de filosofia, de infância e de tantos outros com os quais nos cruzamos em nossas práticas filosóficas com crianças? Até do próprio conceito de conceito? É possível sentarmo-nos em círculo, escutar as crianças e, mesmo assim, reproduzir concepções de razão, de filosofia e até de infância construídos sobre perspectivas (consciente e inconscientemente) moralizadoras e opressoras: não só em termos étnicos, como também de gênero, idade, classe ou qualquer outra característica? Quanto de todas essas forças moralizadoras e opressoras ainda habitam, por exemplo, este nosso texto que se pretende à escuta da infância? Será difícil ou até impossível para nós, adultos inscritos em certas culturas, afirmar um mundo sem hegemonias, um mundo que aceite a igualdade e a diferença, que se afaste de práticas fundadas em características naturalizadas como se fossem ingénuas, neutras ou inocentes? Continuamos com dificuldade em nos empequenarmos?

Finalização (da) moral.

Não deixa de ser curioso o modo como a filosofia para crianças se mostrou, logo desde o seu início, como um lugar privilegiado para operacionalizar propósitos do que se entendesse por educação moral (Sharp; Reed, 1996; Pritchard, 1996a; 1996b). Alguma coisa neste projeto - como, de resto, em quase toda a educação - se tornou apelativa a abordagens preocupadas com a moral dos comportamentos, com educação para os valores, com éticas prescritivas. A exclusão histórica das crianças foi, assim, reproduzida e alargada dentro de um movimento que, no seu início, parecia pretender operar uma inversão. Preocupações éticas continuam hoje fazendo parte das questões que preocupam os e as filósofas e educadores quando se relacionam com a infância. Mas não seria mais interessante experimentar a questão a partir do ethos e não tanto da ética? (Haynes; Murris, 2021, p. 11)

Talvez ainda se tenha brincado pouco como a nossa mochila tem feito nesta escrita, pondo expressões do avesso, ou como a infância desde que é infância, que tanto gosta de fazer o pino. Quando impulsionamos as pernas para o céu para ver o mundo de cabeça para baixo, o interessante não é só ver exatamente as mesmas coisas em localizações opostas (como quando a mochila trocou filosofia para crianças por crianças para filosofia). O mais estimulante no exercício de fazer o pino talvez seja tudo o que nos cai dos bolsos! O que se mostra enquanto o movimento do corpo se faz, tudo o que se escuta que antes ficava mudo, todos os pressupostos invisibilizados que assim espreitam.

Ah... não!, exclamam o autor-ator e a autora-atora desta escrita. Olham uma para o outro. Seremos capazes de mais essa tropelia? Fazer o pino?! As gargalhadas da infância já não passam despercebidas e são cada vez mais sonoras por entre a nossa escrita.

infância de concepções

“It’s a matter of returning to childhood, with deconstruction. Not merely through radical doubt, through ultra-problematic questions. It’s a matter of undoing the problems. […] It is more childlike than every philosopher who claimed to start over ab ovo, from the beginning, no?”

Hélène Cixous e Jacques Derrida (2019)

Estamos de cabeça para baixo. Nesta terceira expressão, a mochila infantil operou uma inversão como na primeira. Passamos de “concepções da infância” a “infância de concepções”. Temos lido, por outro lado, que os conceitos e os problemas estão intrincados no coração de certas tradições históricas, filosóficas. Que não existem no pensamento posições a-históricas ou neutras. Por exemplo, Deleuze e Guattari afirmam que fazer filosofia é traçar problemas e criar conceitos (Deleuze; Guattari, 1991). Mas, na tradição da desconstrução, antes de criar há que des-criar. Arriscar fazer o pino, pois claro. Então, é questão de desfazer os problemas, dizem Hélène Cixous e Jacques Derrida na epígrafe. Nada mais infantil, acrescentam. E nós suspeitamos que eles também foram encontrados por uma mochila de estrangeiridades. Ver do avesso, desfazer para fazer outros ou para fazer outra coisa. Antes de iniciar há que finalizar. Sorrimos.

Sentimo-nos acompanhados. Hélène e Jacques propõem a infância como prática de desfuncionar os problemas, de abandonar o próprio problema enquanto concha e proteção e recuar ao informe, ao que nem sequer se deixa capturar na forma de questionamento. Expor-se sem defesas num abrigo que é refúgio. E logo Friedrich regressa à nossa escrita falando-nos da irrazoabilidade desprotegida de uma vida que se torna muda perante conceitos e abstrações. Uma vida de alguém que “Quando uma tempestade se abate sobre ele, encolhe-se no casaco e afasta-se com um passo lento sob o aguaceiro.” (Nietzsche, s/d, p. 102). Novamente, sentimos cumplicidade.

De forma mais situada e localizada e em terra educacional, Johannson também escreveu longamente sobre a disrupção da infância a partir da ideia de vozes dissonantes que interrompem práticas estabelecidas (2013). Esta dissonância não se confunde com a estrutura assimétrica de poder que enforma as relações educativas entre adultos e crianças. O autor alerta contra o risco já escrito aqui de colocar o diferente como inferior, de impor mundos logo desde o começo das nossas relações com a infância. É grande a tentação adulta de tomar tudo o que conhece como as únicas possibilidades de mundo (Johansson, 2013, p. 202).

A dissonância corre o perigo de ser isolada e reduzida a uma forma inferior de divergir de um suposto padrão (o nosso). E talvez - dizemos nós - nem faça sentido falar de dissonância (no singular) porque haverá sempre inúmeras formas de dissonar. Afina-se de um jeito, mas desafina-se de infinitos. E talvez a escola - a vida? - seja um permanente processo de procura por sintonizações de vozes com distintas (des)afinações. E o mais interessante talvez seja o que acontece no espaço acústico em que as diferentes vozes se encontram e produzem sons juntas: sejam sons considerados afinados, que nos confirmam práticas nas quais nos sentimos confortáveis, sejam desafinações que trazem o desconforto de novas possibilidades imprevisíveis e inauditas.

É certo que filosofia para crianças tem permitido alargar o perímetro do que se entende por filosofia e por infância, assim como trilhar vias de cruzamento entre as duas. Mas ainda assim o que encontramos é pouco mais de um certo mesmo: questionaram-se os critérios de consideração do filosófico, destruindo certos cânones adultocêntricos, para que as crianças pudessem constar entre aqueles e aquelas que podem filosofar. Terá sido apenas um movimento de integrar a dissonância? De a tornar sonante, afinada e apresentável?

A própria palavra “dissonante” parece que é já uma armadilha: é algo que destoa, que desafina. Quando a usamos, não nos estaremos a colocar na perspectiva de um certo tom, o do afinamento, a partir do qual avaliamos o que foge a essa acústica? E quando aceitamos que o instrumento também possa tocar desafinado, não continuamos ainda a instrumentalizar? Haverá uma perspectiva em que as vozes, certas vozes, não sejam ruído, mas som? Talvez mais do que procurar a dissonância, procuraríamos hesitação, tartamudo, balbucio, experimentação, groove? A infância da escrita prepara-se para fazer nascer um palco debaixo dos nossos pés e tornar-nos músicos. Quem se senta ao piano? Quem toca o contrabaixo? Quem sorri quando entram novos instrumentos, outras formas de sentir e de fazer sons? Aceitamos o novo desafio, mais entusiasmados do que nunca. Os facilitadores deixam seu lugar aos improvisadores; a dissonância à diferença; o ensinar ao jazzear (Santi, 2017; Zorzi, Santi, 2020).

Jasinski e Lewis (2016) mostram que a inspiração clássica da filosofia para crianças, na linha de uma pedagogia progressista, mata o que de fato poderia ser único e singular nos diálogos com e entre crianças: experimentar a potência da fala para além dos fins normalizadores e disciplinadores. Os autores acrescentam que, quando a filosofia segue a linha cronológica da aprendizagem de habilidades e disposições institucionalizadas, pode perder completamente a sua dimensão filosófica (Jasinski; Lewis, 2016, p. 3). Por isso, propõem uma passagem da noção de “comunidade de investigação filosófica” (enquanto paradigma ou modelo pedagógico, com regras e fins claros e precisos) para uma “comunidade de infância” (community of infancy), em que os fins estão soltos e a fala não conhece seu próprio status, não obedece à razoabilidade ou alguma regra pré-definida. Inspirados por uma leitura da infância para além da simples cronologia, Igor e Tyson propõem que, na comunidade da infância, sequer se saiba se se chegará a algum lugar. Claro que se recusam bitolas e normas padronizadas. Claro que se fazem caretas bem feias diante de coisas como critérios quantitativos para medir a eficácia de certas práticas em promover o raciocínio. Caretas como as que provocam uma verde sopa de brócolis. A comunidade da infância apenas preserva o último vestígio de uma liberdade dentro da escola: o espaço e o tempo para balbuciar (Jasinski; Lewis, 2016, p. 4).

Voltamos a escutar a infância. O que nos diz a passagem de concepções da infância para infância de concepções? Fizemos o pino e fomos feitos por sons improvisados. Parece que estamos em outro fim, na necessidade de terminar de jogar um certo jogo ou de tocar uma certa afinação. Romper com uma posição que coloque a infância como um dos conceitos prediletos da filosofia, objetivo de análise, e que se ocupe de discorrer sobre este ou aquele correlato de sentido. O jogo, vimos, é facilmente adultizável, politicamente perigoso. É, então, hora de jogarmos outro jogo. De insistirmos na ludicidade por ela mesma. É o instante de escutarmos a infância, de afirmarmos infância, e não de objetivá-la. Voar no movimento das borboletas e não as espetar nos alfinetes dos cientistas. É hora de infância de conceitos e de um exercício infantil de (des)conceptualizar. Não os jogos da infância, mas a infância de um outro jogo. Não o nomeemos. Sintamos a infância. Respeitemos esse balbuciar infantil. Mesmo que aos soluços.

atrever-se a uma escrita infantil

O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve.

Manoel de Barros, (2003)

Começamos a escrever, mas demoramos a começar... e quando parecia que começávamos já precisamos finalizar... assim é a infância: ela está em outro tempo, um tempo circular onde coincidem o início e o fim; um tempo que não passa, que dura num presente fora de consecutividade e de medida. Neste tempo, não há um futuro esperando para se tornar logo passado. É um tempo em que se esquece esse tempo e abre-se um outro tempo: um tempo de brincar, de criar, de filosofar, de amar, de tocar, de artistar, de gozar.

Tentamos nos manter perto da infância ao longo da escrita, atentos e à escuta. Mas também mobilizados e comprometidos corporalmente. O exercício teve algo de memória, começando no que nos juntou à escrita sob a forma de um título que recebemos: concepções de infância e a educação moral na filosofia para crianças.

E fomos chegando quase que ao seu contrário. Ou ao seu avesso? Brincamos então com uma inspiração infantil de pura afirmação, uma roda que gira por si mesma. Entusiasmados com o convite, encontramos uma mochila infantil. Pusemo-la às costas e resolvemos partir. Fomos atravessados por desafios e gargalhadas e, chegados aqui, a ponte da infância nos leva a escrever uma primeira forma de agrupar as palavras que marcaram os compassos da escrita: crianças para a filosofia e infância das concepções para o fim da moral.

Mmmmm. Duas inversões, de crianças e infância que invertem seus lugares com a filosofia e os conceitos. No fim aparece um final. Algo que a infância já não quer. O final é também um começo: o de um mundo extra moral. Extra racional. Extralinguístico.

Mas também há outras formas de pensar como poderia ficar um novo título. Por exemplo: “Terminar a moral para começar a infância das concepções das crianças na filosofia”. Aqui um fim, da moral, aparece como condição para começar infâncias de conceitos e crianças na filosofia. Ou também algo sem tantas preposições, mais enigmático, como chamadas: “fim da moral! Crianças para a filosofia! infância das concepções!”.

E a roda poderia continuar a girar. Sem parar. Títulos e mais títulos. Tempo de brincar e de filosofar. É bonita a sensação de estarmos terminando brincando e filosofando. Propondo formas de início, porque isso, afinal, são os títulos. Terminar começando. A infância não deixa de sorrir: “vocês estão feitos”. Se o leitor ou leitora estão lendo estas palavras é porque essa infância brincalhona, lasciva, arretada, bagunceira foi acolhida. E voltamos a sorrir.

Na conversa com H. Cisoux e psicanalistas, J. Derrida procura o que há de infantil na desconstrução e aponta três pontes. A primeira conexão vem precisamente de um estado de brincar com a linguagem, de uma escrita criativa entre a passividade da invenção e o compromisso corporal da descoberta. Uma relação com a linguagem ela própria difícil de pôr em palavras. Derrida hesita em silêncios que o transcritor coloca em reticências... pergunta, avança e recua de supetão para dizer o que nos acontece numa escrita profundamente infantil, um desejo corporal que não renuncia a nenhum prazer e a nenhum significado e que assim expressa uma perversão polimorfa. Retomamos com o autor os movimentos das nossas mãos nesta escrita que também foi corpo: entrar na mochila, descer até o chão, chapinhar na lama, fazer o pino, tocar música. A escrita criativa seria expressão de um desejo ilimitado de poder experimentar o gozo de escrever qualquer coisa. Escritores criativos, diz Derrida, estão em estado de infância (p. 152). Sonhadores também, replica Hélène Cisoux.

Derrida propõe duas outras pontes entre a desconstrução e a infância. A primeira afirma a própria desconstrução enquanto dispositivo de recuar até desfazer os problemas. Inverter o sentido da marcha. Trocar o (botão) play pelo rewind, e retornar à constituição do campo problemático como tal, seria um caminho que levaria até à infância e, assim, a infância estaria como o destino da desconstrução. Infância no fim? Ou um final infantil? No nosso caso, o que oculta o campo problemático da “filosofia para crianças”, da “educação moral” ou, até, da “filosofia da infância”? De que modos, podemos conviver com conhecimentos, perspectivas, leituras, conceitos de diferentes tradições e tornarmo-nos cientes daquilo que esses conhecimentos, perspectivas e tradições escondem de nós? Que polimorfias se transparentam a partir do gesto de formular os problemas de uma determinada forma? O que se dissimula nessa construção epistémica? Que construções adultas se forçam sobre nós, até mesmo nos discursos emancipadores da infância? O que nos é imposto quando não fazemos a pergunta? O que se censura na própria pergunta?

Há um terceiro sentido em que a desconstrução é infantil: na sua poderosa crítica ao logocentrismo. Porque vive no polimorfo e recua ao informe, a desconstrução é infantil ao afirmar uma não fala (in-fans), a suspensão de todo e qualquer discurso, um mundo pré ou a-linguístico: uma criança sem pio, sem fala. Uma criança também sem origem. Tendo a possibilidade de falar, ainda não se pertence à fala. Uma experiência do “antes de”. No meio da agitação e do labor das racionalizações e verbalizações categorizadoras: interrupção. Como numa língua cega em que todas as coisas podem ter todos os nomes, ainda diz um poeta (Couto, 2011).

H. Cisoux sorri enquanto J. Derrida fala. Por que razões os escritos académicos tendem a esconder os sorrisos de quem fala? E por que as hesitações se tornam reticências?... Hélène sorri e comenta as ambiguidades e potências que a possibilidade de inventar e de criar contêm. Ela é infantil, anterior à linguagem; por tanto, nela duas coisas contrárias podem existir ao mesmo tempo. Podemos acreditar e não acreditar que algo é possível ou impossível, necessário ou inócuo. A desconstrução é esse mundo selvagem, rico e perigoso em que não precisamos de renunciar à contradição e ao impossível. A desconstrução ilumina (!?), diz Cisoux (p. 155), ilumina a eterna criança que somos. A desconstrução ilumina!!! Não só. Também no conto do poeta, o olhar infantil é o que dá luzes ao rio (Couto, 2013). Luz? Socorro, infância...

Voltamos a Deleuze para novo abrigo. Em Lógica do Sentido, o autor sugere quatro dimensões da proposição: a designação (que se ocupa da correspondência entre palavras e coisas, permitindo distinguir as proposições em verdadeiras e falsas); a manifestação (que expressa os desejos e crenças singulares e se desloca para a oposição entre verdade e mentira); a significação (que introduz conceitos universais ou gerais, trazendo a oposição entre condições de verdade e absurdo) e o sentido, a expressão, o acontecimento, que só aparece quando quebramos o círculo coisas-proposição da designação, da manifestação e da significação (Deleuze, 2000, p. 21). O sentido é paradoxal: ele não existe fora da proposição que o expressa, mas também não se confunde com a proposição; ele está na fronteira entre as proposições e as coisas. Como Janus, porta para todos os inícios, o sentido tem uma face virada para as coisas e outra para a proposição. Por isso não há um sentido para o acontecimento: ele é o próprio sentido, no movimento de fronteira ou margem. Margeando, improvisa Deleuze.

É neste mundo plano de sentido-acontecimento que temos escrito o presente texto: um exercício fantástico a partir da potência dos paradoxos que habitam um mundo infantil - impossível e contraditório - que sentimos recriar nesta escrita. Nesse mundo, como agora, o início e o fim coincidem. Nesse mundo, que Heráclito e Deleuze (2000) chamariam aion, é a infância que governa. Um governo infantil. Portanto, é tempo de nos calar. De ficar sem tanta luz e tantas palavras. Para dormir e sonhar. É tempo de terminar. Ou de começar. Os leitores-atores infantis (não) têm a palavra. Nós também já não... (soluço!)

referências

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Recebido: 15 de Maio de 2021; Aceito: 11 de Julho de 2021

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