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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro jan./dez 2022  Epub 23-Abr-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.63103 

Artigos

Pensar infância e experiência com a criança Benjamin

Thinking childhood and experience with the child Benjamin

Pensar infancia y experiencia con el niño Benjamin

Eduarda Aleycha Luciano SantanaI 
http://orcid.org/0000-0002-4779-8879

Paula Ramos de OliveiraII 
http://orcid.org/0000-0001-9620-5964

IUniversidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, Brasil - E-mail: santanaeduarda@outlook.com

IIUniversidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, Brasil - E-mail: paula-ramos@oul.com.br


resumo

Walter Benjamin é um instigante filósofo que em suas obras nos faz pensar nos conceitos de experiência, criança e infância. Viajar por entre suas experiências e narrativas nos aproxima do mundo da criança Benjamin. Trata-se assim de uma viagem filosófica no sentido de nos levar rumo a algo que nos é desconhecido e que ao final pode nos transformar. Atravessaremos os seguintes textos de Benjamin: A hora das crianças narrativas radiofônicas (2015), Infância berlinense: 1900 (2013), Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação (2009), Rua de mão única (2013) e O contador de histórias. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (2018). Atravessar esses textos é permitir experimentar outras formas de olhar o mundo e estar nele. É permitir experienciar as experiências da criança Benjamin que se oferecem a nós como narração. É percorrer lugares pouco habitados, isto é, lugares únicos. É atravessar o mundo de uma criança sentindo seu tempo e olhar. De acordo com Jorge Larrosa (2003), a infância é um enigma. Nos permitimos entrar neste enigma que é descortinar imagens de experiência da criança e da infância, nos aproximando deste mistério que uma vida filosófica e pulsante como a deste filósofo é capaz de nos oferecer.

palavras-chave: walter benjamin; infância; criança; experiência.

abstract

Walter Benjamin is a seminal philosopher whose work makes us think about the concepts of experience, child, and childhood. A journey through his life experience and personal narratives brings us closer to the world of his own childhood. As such, it is a philosophical journey in the sense of taking us towards something that is unknown to us and that in the end can transform us. We will travel through the following texts by Benjamin: Children’s Hour Radio Narrative (2015), Berlin Childhood: around 1900 (2013), Reflections on the child, the toy and education (2009), One-Way Street (2013) and The Storyteller:Reflections on the works of Nikolai Leskov (2018). To navigate these texts is to allow and encourage us to experiment with other ways of looking at and being in the world. His narrative allows us to experience the experiences of the child Benjamin, to traverse its unique and sparsely inhabited places, and thus to travel through any child’s world, feeling a child’s temporality and a child’s gaze. According to Jorge Larrosa (2003), childhood is an enigma. Benjamin’s narratives allow us to enter this enigma, to unveil images redolent with the experience of children and childhood, and thereby to approach this mystery that is both philosophical and pulsating with life, like the life of this philosopher himself.

keywords: walter benjamin; childhood; children; experience

resumen

Walter Benjamin es un filósofo instigador que en sus obras nos hace pensar sobre los conceptos de experiencia, niño/niña e infancia. Viajar a través de sus experiencias y narrativas nos acerca al mundo del niño Benjamin. Se trata así de un viaje filosófico en el sentido de que nos lleva hacia algo que nos es desconocido y que al final puede transformarnos. Atravesaremos los siguientes textos de Benjamin: La hora de las infancias: narrativas radiofónicas (2015), Infancia en Berlín hacia 1900 (2013), Reflexiones sobre niños, juguetes, libros infantiles, jóvenes y educación (2009) y Dirección única (2013). Atravesar estos textos es permitir experimentar otras formas de mirar el mundo y estar en él. Es permitir experimentar las experiencias del niño Benjamin que se nos ofrecen como narración. Es recorrer lugares poco habitados, esto es, lugares únicos. Es atravesar el mundo de un niño sintiendo su tiempo y mirar. De acuerdo con Jorge Larrosa (2003), la infancia es un enigma. Nos permitimos entrar en este enigma que es develar imágenes de experiencia de los niños y de la infancia, acercándonos a este misterio que una vida filosófica y palpitante como la de este filósofo es capaz de ofrecernos.

palabras clave: walter benjamin; niñez; niño y niña; experiencia.

pensar infância e experiência com a criança benjamin

Tudo que não invento é falso.

Manoel de Barros

introdução

O presente texto busca pensar as visões de criança, experiência e infância nas seguintes obras de Walter Benjamin: A hora das crianças narrativas radiofônicas (2015), Infância berlinense: 1900 (2013), Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2009), e Rua de mão única (2013). O que vem a ser infância(s)? Quem é a criança de Benjamin? Quem é a criança Benjamin? O que vem a ser experiência para esse autor? Como é possível ligar os conceitos de infância(s) e criança ao de experiência?

experiência em benjamin

Comecemos com o conceito de experiência de Walter Benjamin, já que é um dos conceitos centrais em sua filosofia. Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2012), e de acordo com nossa compreensão, em seus primeiros escritos, o autor em questão queria ampliar a forma como vinha sendo vista a experiência. Portanto, uma das críticas, nesse momento, era contra a visão que se tinha de que a experiência do adulto era pretensamente superior a dos jovens. Mais adiante, nos textos de 1930, Benjamin retoma a questão da experiência, mas agora de uma forma diferente. O autor nos mostra que na modernidade a Erfahrung (experiência coletiva) estava se enfraquecendo, no entanto, em contrapartida, a Erlebnis (experiência vivida) estava ganhando forças.

Conforme Jeanne Marie Gagnebin (2012), Benjamin entende a “experiência coletiva” como característica do mundo pré-capitalista de trabalho, sendo que a organização social dessa época era comunitária e centrada no artesanato, condição esta propícia para que a Erfahrung ocorra. O ritmo do trabalho artesanal torna possível a narrativa. É um tempo no qual se tem tempo para contar, diferentemente do ritmo do trabalho industrial que aliena. O ritmo do trabalho artesanal imprime uma outra temporalidade, não cronológica. O trabalho industrial, por outro lado, está imerso em uma temporalidade cronológica, que não está no agora. Tanto a narrativa como a experiência estão em um tempo que não é linear, contínuo e quantitativo, mas sim em um tempo que é instante e que se dá no agora. Benjamin ainda nos diz que essa “experiência coletiva” quando é narrada transmite um saber prático.

No que diz respeito à “experiência vivida”, o filósofo a caracteriza como algo que se dá na modernidade, no sujeito solitário. Com o advento do capitalismo, as formas de vida mudaram e, consequentemente, não havia mais as condições para que a Erfahrung ocorresse, pois, conforme Renato Franco (2015), no plano econômico a atividade artesanal chega a seu fim, no plano cultural a narrativa - em sua forma tradicional - desaparece, e no plano social surge o homem imerso nas multidões/massas, condições essas, portanto, desfavoráveis à “experiência coletiva”.

Além de mostrar o declínio que a Erfahrung estava sofrendo, o autor em questão diz também que o ato de contar, a narrativa, estava entrando em vias de extinção. Para Benjamin, narrativa e experiência estão intrinsecamente relacionadas, já que a arte de contar parte sempre dela (experiência) e diz de uma experiência que é coletiva. Dessa forma, se não há Erfahrung, não há narrativa - em sua forma tradicional. Em suas palavras: “[...] A arte de contar histórias se aproxima de seu fim. [...] É como se tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inalienável [...]: a faculdade de trocar experiências” (BENJAMIN, 2018, p. 20). Continua: “Uma causa desse fenômeno é clara: a cotação da experiência caiu” (BENJAMIN, 2018, p. 20). Segundo Jeanne Marie Gagnebin:

O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. (GAGNEBIN, 2012, p. 11).

Alexandre Fernandez Vaz (2009) nos mostra ainda mais a íntima relação que há entre experiência e narrativa. Segundo ele, o ato de narrar parte de uma experiência, porém, esta última só se fortalece quando é compartilhada, narrada, posta ao plano da consciência. Em outras palavras, a narrativa parte da experiência, mas a experiência só ganha forças quando é narrada, relacionando-se à transmissão de histórias de geração para geração e caracterizando-se por sua abertura.

Mas o que a experiência e a arte de narrar têm a ver com infância? Walter Benjamin entre os anos de 1929 a 1932 apresentou programas radiofônicos, em emissoras de rádio de Berlim e Frankfurt, destinados às crianças. O autor, através desses programas, narrava suas experiências a elas. Este era um espaço no qual Benjamin chegava às crianças através do diálogo. É interessante que ele narrava - diversos temas - de tal forma que ia dando vida ao que dizia, já que, justamente, eram relatos de experiências, e não um mero conjunto de informações. Benjamin estabelecia uma relação com aquilo que narrava, logo, havia muito dele em seus relatos. Segundo Oliveira (2018, p. 214):

As palavras, para o narrador, traduzem imagens e cenas que foram experiência para ele. Imagens e cenas, quando se tornam experiências, ficam impressas/gravadas em nós e, por isso, podem virar palavras, contando, com elas, do que se trata para nós. E pela narração podem se tornar experiência para outros. É o que Benjamin faz.

As narrativas que constituem esses programas partiram das experiências do autor e o mais interessante é que elas podem se tornar experiência para os ouvintes, no caso as crianças. Podem se tornar experiência para os(as) ouvintes/crianças, já que o conteúdo do que foi narrado pode tocá-los(as) de modo que fique impresso/gravado neles(as). Nesse sentido, podemos afirmar, portanto, que tanto “[...] as experiências podem se tornar narração [...] como as narrações podem se tornar experiência [...]” (OLIVEIRA, 2018, p. 210). Aqui, mais uma vez, podemos observar a relação intrínseca que há entre esses dois conceitos.

Walter Benjamin, em seus programas, conseguiu estabelecer ainda uma forte relação entre narrativa, experiência e infância, pois, como vimos, suas narrativas partiram de suas experiências e além de narrar às crianças imagens de suas experiências, em alguns programas o autor também narrou imagens de infâncias. Portanto, essa relação entre narrativa, experiência e infância se dá, acreditamos, desse modo, e soma-se a isso o fato de Benjamin estar falando para/com crianças/infância(s). Um exemplo está no programa Um menino nas ruas de Berlim. Nele Benjamin diz: “[...] Armários com portas decoradas com paisagens, retratos, flores, frutas ou coisas semelhantes gravadas na madeira. Este trabalho é chamado de marchetaria” (BENJAMIN, 2015, p. 47). E continua: “[...] Hoje eu quero apresentar a vocês estas imagens e cenas, mas não gravadas em madeira e, sim, servindo-me das palavras” (BENJAMIN, 2015, p. 47).

Tais imagens e cenas estão gravadas em Benjamin pela experiência. E servindo-lhe das palavras, neste programa, ele conta/narra imagens e cenas de experiências infantis, inclusive a sua, à(s) infância(s)/crianças - seu público. Como já dissemos acima, se a experiência só ganha forças quando é compartilhada, essa “experiência da infância” tem que se tornar narrativa. Nesse sentido, acreditamos que tanto a infância, a experiência - em seu sentido pleno - e a narração podem se tornar formas de resistência, nos tempos atuais, contra o enfraquecimento que a narrativa e a experiência vêm sofrendo, mas também contra a sociedade administrada que a todo momento quer provocar a reificação das consciências. Os próprios programas de Benjamin são, para nós, formas de resistir, pois, nos parece, que neles, as crianças são convidadas a mergulhar dentro daquilo que está sendo narrado - no instante/agora do narrado.

a infância ou infâncias de/para benjamin:

Mas o que seria infância(s)? Gostaríamos de pensar a infância como uma condição que nos habita, conforme Walter Kohan. Entretanto, cada cultura pensa nesse conceito de uma forma diferente. Até mesmo dentro de uma determinada cultura pode haver múltiplas concepções de infância; por isso, o plural. Jeanne Marie Gagnebin (2009) irá dizer que Walter Benjamin pensa dessa forma também. Vejamos a citação a seguir:

Não há, pois, segundo Benjamin, pedagogia possível sobre a infância em si, a criança, o aprender e o brincar em si; somente pode existir uma reflexão histórica e política sobre as diversas possibilidades de relações entre crianças e adultos, adultos e crianças. (GAGNEBIN, 2009, p. 219).

Portanto, podemos afirmar que há várias maneiras de se pensar a infância, a criança, o aprender e o brincar. Mas ainda assim a infância ou as infâncias são - e devem ser - para nós, adultos, um enigma, como adverte Jorge Larrosa. Como podemos conhecer as crianças então? Benjamin, através de suas obras, nos responde essa questão: é preciso ouvi-las. Para compreender algo é necessário conhecer de dentro. Logo, acreditamos que é necessário saber das próprias crianças o que é estar nessa condição.

Em Rua de mão única e Infância berlinense: 1900 vemos algumas imagens de “experiências da infância”. Essas obras são fruto do início de uma mudança de vida, escrita e pensamento de Benjamin. Rua de mão única, segundo Renato Franco (2015), por exemplo, se configura como uma nova forma literária. Os fragmentos/textos curtos que o compõe são dispostos sob o princípio de montagem. Outra inovação desta obra é o fato de a leitura ser não linear. Entretanto, apesar de os fragmentos serem diferentes uns dos outros, em seu conjunto eles se relacionam.

Podemos dizer que Rua de mão única é um dos trabalhos mais críticos da série “imagens do pensamento”, de Benjamin. Dessa forma, ele possui um caráter fortemente político. Além disso, segundo Renato Franco (2015), muitos comentaristas veem essa obra como sendo surrealista. Acreditamos que seja devido ao fato do autor, nela, ainda conforme Renato Franco (2009), ter apagado a oposição - tipicamente burguesa - entre pensamento consciente ou sonhos, entre interioridade e exterioridade, entre vida pública e vida privada. Além do mais, na obra em questão, o autor realiza uma aproximação entre vida e sonhos, o que dá a ela um caráter ainda mais surrealista.

Em Rua de mão única são muitas também as imagens de experiências da infância apresentadas. Destacamos o fragmento intitulado Ampliações. É interessante o fato de Benjamin tê-lo colocado bem no “centro da rua”, como nos diz Jeanne Marie Gagnebin (2017), ou seja, no centro do livro, o que nos faz pensar o quanto essas experiências de criança, que são a nós apresentadas, têm importância para ele.

O fragmento em questão é constituído por seis descrições de criança, no entanto, apresentaremos aqui somente uma delas denominada Criança lendo, que exemplifica a profundidade de tais descrições que parecem a um só tempo simples e complexas. Vejamos:

Durante uma semana ficamos completamente entregues aos efeitos do texto que nos envolveu como flocos de neve, suave e secreto, denso e constante. Entramos nele com uma confiança sem limites. [...] A sua respiração para no ar dos acontecimentos e sente na face o sopro de todas as figuras. Ela se mistura muito mais de perto com as personagens do que o adulto. Sente-se indescritivelmente tocada pelos acontecimentos e pelos diálogos, e quando se levanta está inteiramente coberta da neve que caiu da leitura. (BENJAMIN, 2013, p. 34).

A citação acima nos mostra a profunda relação que a criança, descrita por Benjamin, tem com os livros. Como podemos observar, ela fica durante uma semana entregue aos efeitos que a leitura de um texto lhe causou. Esta criança consegue realmente adentrar em suas páginas e, dentro delas, consegue se misturar aos personagens, sentindo-se assim tocada pelos acontecimentos e diálogos da história. Quando sai dessa imersão, ela não volta mais do mesmo jeito que entrou: “sai coberta da neve que caiu da leitura”.

Embora a concepção de experiência e de experiência de leitura para Jorge Larrosa (2011) não seja propriamente a mesma para Benjamin, nos parece, que em alguma medida, podemos estabelecer algumas aproximações. Para Larrosa, a experiência é uma relação. Dessa forma, ele afirma que o que realmente importa não é o texto em si, mas a relação com o texto. Em outras palavras, o que importa é o que nos passa com sua leitura. Assim sendo, quando nos relacionamos com o texto abrimos espaço para que algo nos ocorra, isto é, abrimos espaço para a experiência, para o que é outro dentro de nós. Portanto, nos transformamos, não somos mais os mesmos após a leitura. Para Larrosa o texto nos lê e atravessados por ele nos abrimos a uma experiência.

Já a criança de Benjamin consegue estabelecer uma relação com aquilo que lê, logo, sua leitura se torna experiência - no sentido de Larrosa. Tudo isso graças a sua abertura que permitiu uma relação de atravessamento com o texto. Algo lhe ocorreu, lhe passou, tanto é que no final, ao sair, já não era mais a mesma. Dessa forma, vemos uma infância mais propícia à experiência e aqui destacamos a experiência de leitura, pois, está mais aberta para que algo lhe ocorra.

Após a discussão acima, podemos nos perguntar que infância é essa de Benjamin. Chegamos à conclusão de que a experiência de criança, acima exposta, nos faz perceber o quanto a criança é capaz de ver o mundo de forma crítica, reflexiva e sensível, e como então podemos ver a infância como uma forma de resistência em Benjamin.

Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2009), a experiência da leitura nos faz questionar o real e aí reside o poder da leitura. É interessante que a autora diz ainda que para Proust e Benjamin a força da literatura está em seu poder de transgressão. A partir da leitura de um livro, podemos viajar a lugares estrangeiros, podemos entrar em contato com o que é outro. Logo, essa experiência pode nos transformar. Por isso, para alguns, os livros são tão temidos. Portanto, podemos dizer que há uma relação entre infância e resistência, justamente pelo fato da criança, no autor, possuir uma forte relação com os livros.

Do mesmo modo, podemos encontrar algumas imagens de experiências da infância, e de criança, em Infância berlinense: 1900. Essa obra também é de suma importância para aprofundarmos os conceitos que estão sendo explorados. Nela, Benjamin evoca lembranças de sua infância, nos contando assim sua experiência como criança. Contudo, cada comentarista a interpreta de um modo. Dessa forma, começaremos com a visão de Alexandre Fernandez Vaz (2009). Vejamos a citação a seguir:

Em Infância berlinense por volta de 1900, Benjamin (1987a, 1980) rememora, na forma de pequenos textos, a metrópole onde vivera até o exílio, na qual se desenrolara a experiência da infância e da juventude. Quando escrevia os pequenos textos, Benjamin estava ciente de que essas lembranças de forma alguma “resgatavam” a história de sua infância e juventude: tratava-se de condensar a experiência então vivida, segundo os interstícios da memória e do esquecimento, com a experiência atualizada, do adulto que conserva e perlabora [...] a textura de sua memória. (VAZ, 2009, p. 56-57).

O objetivo de Benjamin em Infância berlinense: 1900 não era, então, conforme o autor acima, resgatar a história de sua infância, mas sim condensar/unir a experiência que já havia vivido com a experiência que estava vivendo no momento. Essa junção, consequentemente, ocasionaria uma reelaboração em sua memória. A memória está em constante movimento. O adulto a conserva, porém a reestrutura também.

Nesse sentido, uma das grandes inovações desta obra é o fato dela ter quebrado o encanto que separava a história e a memória da experiência do presente, como nos diz Alexandre Fernandez Vaz (2009). É nessa perspectiva que Renato Franco (2015) afirma que Benjamin, ao relembrar sua infância, descobre, em suas experiências de criança, o filósofo e historiador materialista que se tornou. Mas o interessante é que esse filósofo também revela a criança que foi. Rememora sua experiênca, narra-a e se revela para nós, leitores, enquanto experiência. E não sabemos quantas experiências mais podem advir de uma experiência de leitura.

Por outro lado, Jeanne Marie Gagnebin (2009) vê Infância berlinense: 1900 de uma outra forma. A fim de entendermos melhor sua interpretação, começaremos falando sobre o conceito de educação para Benjamin. Segundo ela, para esse autor, educar seria integrar “[...] cada geração no quadro maior da humanidade inteira (e, portanto, relativizar seu narcisismo geracional e cuidar de preservar as condições de vida das futuras gerações!) (GAGNEBIN, 2009, p. 221)”.

Podemos dizer que a autora vê essa obra então como sendo estruturada a partir de dois aspectos - o histórico e o cosmológico. Dessa forma, as lembranças evocadas por Benjamin, na verdade, são tanto imagens da experiência de uma criança burguesa, do início do século XX, em Berlim, ou seja, imagens de uma experiência histórica, como são também parte de algo mais amplo, isto é, cosmológico, na medida em que diz respeito à geração humana.

Jeanne Marie Gagnebin (2009) afirma que o grande mérito de Infância berlinense: 1900 está no fato de Benjamin desconstruir, de forma sistemática - e através da rememoração crítica - a ilusão de muitos adultos “[...] de que exista um reino encantado da infância, uma idade da inocência e da felicidade” (GAGNEBIN, 2009, p. 222). Essa perspectiva afasta a infância de concepções distorcidas, difundidas no senso comum, como também daquelas produzidas pela indústria cultural.

Vejamos agora algumas imagens de experiências da infância apresentadas, por Benjamin, em Infância berlinense: 1900. Para tanto, escolhemos o fragmento intitulado As cores:

Havia no nosso jardim um pavilhão abandonado e carcomido. Eu gostava dele por causa das janelas coloridas. Quando, lá dentro, ia passando a mão de vidro em vidro, transformava-me; ganhava a cor da paisagem que via na janela, ora flamejante, ora empoeirada, agora mortiça, depois luxuriante. [...] O mesmo acontecia com as bolas de sabão. Eu viajava dentro delas pela sala e juntava-me ao jogo de cores das cúpulas até elas se desfazerem. Olhando para o céu, para uma jóia ou para um livro, perdia-me nas cores. (BENJAMIN, 2013, p. 108).

Na infância de Benjamin, vemos a criança sensível e capaz de mergulhar na profundidade das coisas. Olhando as janelas coloridas, Benjamin se transforma em cor, da mesma forma que brincando com as bolas de sabão se juntava ao jogo de cores. Como é que entramos no interior das coisas? Pela experiência.

“Perdia-me nas cores”. Afinal, o que é perder-se? Pensamos que talvez seja ficar absorvido por. Se for isso, podemos dizer que as cores absorveram o autor. Ele saiu de si, rumo a algo, ou a uma situação, que não poderia prever. Foi ao encontro do que é outro. Estava aberto. Logo, o resultado disso tudo só poderia ser experiência. Nos parece, nesse sentido, que a criatividade, a imaginação, a autenticidade e a reflexão são formas da criança Benjamin estar no mundo.

A experiência de criança, acima exposta, nos possibilita dizer que a infância, para Benjamin, é aquela que se entrega ao inesperado. É justamente por estarem abertas que as crianças conseguem se entregar às coisas, às situações, à experiência. Além da abertura, outra palavra que acreditamos fazer parte do universo infantil é a intimidade. É por meio dela que as crianças se relacionam com os livros, com as cores e com tantas outras coisas. Podemos dizer, portanto, que estar aberto/entregar-se é a chave para a experiência.

Intensidade, outra palavra que nos faz pensar. Nos parece que ela também compõe o universo do qual estamos falando. As relações que a infância desenvolve são intensas e é devido a isso que essas relações são sobremaneira profundas e não superficiais. Deste modo, acreditamos que tanto o inesperado como a intensidade suscitam a experiência, também. Além do mais, a imaginação, como já dissemos acima, é algo forte nas crianças.

Podemos chegar à conclusão de que Rua de mão única e Infância berlinense: 1900 são obras nas quais, segundo Renato Franco, Benjamin “[...] valoriza a percepção infantil, destacando-lhe o potencial crítico” (FRANCO, 2015, p. 17). Nelas, as crianças são vistas em sua singularidade, são vistas como sujeitos. Além disso, os programas radiofônicos, do autor em questão, (reunidos na obra A hora das crianças narrativas radiofônicas) também nos descortinam, com as imagens que nos trazem, uma visão de infância em consonância com as obras aqui apresentadas.

considerações finais

“A infância ainda é, para nós, adultos, um enigma”. Essa é uma frase que deveria nos fazer pensar muito. Este texto de Jorge Larrosa (2003), O enigma da infância, nos diz que não se pode captar uma imagem da infância, mas sim uma imagem do encontro com o outro. Dessa forma, não seria uma imagem da infância e sim uma imagem a partir do encontro com a infância. Esse encontro, segundo ele, seria “[...] um autêntico face a face com o enigma, uma verdadeira experiência, um encontro com o estranho e com o desconhecido que não pode ser reconhecido nem apropriado” (LARROSA, 2003, p. 198).

Acreditamos que as obras de Walter Benjamin nos possibilitam esse encontro com a infância, essa aproximação ao enigma. Podemos dizer que há dois encontros nessas obras: o primeiro é o encontro do autor com a(s) infância(s), e o segundo é o encontro do autor com sua própria infância. Nelas vemos “imagens de experiências da infância” e “imagens de experiências de criança”.

Tanto A hora das crianças narrativas radiofônicas como Infância berlinense: 1900 e Rua de mão única nos levam a diversos lugares e situações. É, nesse sentido, uma verdadeira experiência que Benjamin nos possibilita ter com a infância. Experiência essa que nos transforma e, portanto, modifica nosso modo de pensar e de enxergar as crianças.

Qual é o tempo da infância, da experiência, da criança? É um tempo que não está pautado na linearidade, na continuidade e que não se mede em termos quantitativos. É um tempo que se dá no agora, no instante. Há muitos tempos para a infância, para a experiência e para a criança, mas este aqui descrito nas obras do autor é o tempo da infância, da experiência, da criança e da narrativa de Benjamin.

Nessa perspectiva, a criança não é um sujeito incompleto, mas sim já é em toda a sua potência. E, assim, aprendemos com ela pelo que diz de si e do seu mundo. É nesse sentido, que o autor, em seu texto intitulado Programa de um teatro infantil proletário, diz: “[...] as crianças sobem ao palco durante a encenação e ensinam e educam os atentos educadores” (BENJAMIN, 2009, p. 118). Ou ainda como afirma Ailton Krenak (2016), “os maiores mestres são as crianças”.

A frase de Manoel de Barros (2008, p. 13) “Tudo que não invento é falso” nos lembra a infância de/para Benjamin. “Inventar” é algo que as crianças fazem o tempo todo: inventam brincadeiras, palavras, como também dão novos significados às coisas, ou seja, tiram dos objetos a utilidade imposta pelos adultos. É por isso que Benjamin (2009, p. 85) diz que “o brincar significa sempre uma libertação!”

Walter Benjamin, em suas obras, nos descortina uma visão de infância e criança que nos possibilita a nós um encontro com esses “enigmas”. Em tempos nos quais a experiência está em falta e a narrativa, consequentemente, em vias de extinção, a infância, em forma de resistência, as mantêm vivas.

As crianças têm história, fazem experiência com histórias, e narram suas próprias histórias. Brincam, imaginam, se transformam. Sempre estão em busca de relações intensas, profundas. Movimentam-se a todo o momento, se interessam pelo que é outro. É para elas, portanto, que o nosso olhar deve se voltar, mas procurando compreendê-las de dentro, ouvindo-as, querendo saber delas mesmas o que é estar nesta condição.

Em Benjamin percebemos que a experiência da infância, “[...] para ser como tal vivida, precisa de um tempo e de um olhar que lhes são próprios singulares” (VAZ, 2009, p.65). Com Benjamin nos demoramos no tempo e no olhar de uma criança e de uma infância que continua a atravessar seus leitores e a manter viva a experiência de uma narração que rompe as barreiras de todos os tempos. Viajar com Benjamin é experimentar olhar outras formas de estar no mundo pelas experiências de uma criança que se oferecem a nós como narração e se tornam experiências com força de infância em quem as lê.

referências

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Recebido: 22 de Outubro de 2021; : de ; Aceito: 21 de Março de 2022

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