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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro jan./dez 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.64537 

ARTIGOS

ao rosto do adulto, o gesto de Alice nas cidades

al rostro del adulto, el gesto de Alicia en las ciudades

to an adult’s face, the gesture of Alice in the cities

victor anselmo costaI 

kátia maria kasperII 

Iuniversidade federal do paraná, curitiba, brasil - E-mail para contato: vanse.costa@gmail.com

IIuniversidade federal do paraná, curitiba, brasil - E-mail para contato: katiakasper@uol.com.br


resumo

Uma cena do filme “Alice nas cidades”, de Wim Wenders, arde em nós - ela movimenta matérias em nosso pensamento. Trata-se de uma polaroide recém-emitida em que os rostos de um adulto (Phillip Winter) e de uma criança (Alice) se confundem. A partir dessa imagem percorremos a narrativa fílmica, elaborando reflexões sobre a potência de liberdade contida no encontro com a infância. Em um primeiro momento, observando a relação que o personagem Phillip estabelece com seu trabalho jornalístico, discutimos o lugar do investimento de sua angústia e sua aparente indisposição para o devir, manifestas no entendimento que expressa com as imagens que produz com sua máquina fotográfica. Em seguida, compreendemos a chegada de Alice como capaz de desfazer as tramas existenciais que enquadravam o rosto do adulto, lançando-o ao imprevisível. Esse acontecimento se cristaliza em um gesto poético: a criança interpela o adulto com seu próprio rosto, fazendo seu retrato. Aqui, os conceitos de rostificação e de desterritorialização são entretecidos e elaborados a partir dos pensamentos de Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Por fim, nos dedicamos a pensar o valor da inquietude, presente na criança e no viajante, como estratégia de fuga possível em direção a uma liberdade libertada, ou ainda, desrostificada.

palavras-chave: infância; rostidade; cinema; diferença.

resumen

Una escena de la película “Alicia en las ciudades”, de Wim Wenders, arde en nosotros/as - moviliza materias en nuestro pensamiento. Se trata de una polaroid recién emitida en la que los rostros de un adulto (Phillip Winter) y de una niña (Alicia) se confunden. A partir de esa imagen recorremos la narrativa fílmica, elaborando reflexiones acerca de la potencia de libertad contenida en el encuentro con la infancia. En un primer momento, observando la relación que el personaje Phillip establece con su trabajo como periodista, discutimos el lugar de investidura de su angustia y su aparente indisposición al devenir, que se manifiestan en el entendimiento que expresa con las imágenes producidas con su cámara fotográfica. En seguida, comprendemos la llegada de Alicia como capaz de deshacer las tramas existenciales que encuadraban el rostro del adulto, arrojándolo a lo imprevisible. Ese acontecimiento se cristaliza en un gesto poético: la niña interpela al adulto con su propio rostro, tomándole su retrato. Aquí, los conceptos de rostrificación y de desterritorialización son entretejidos y elaborados a partir de los pensamientos de Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze y Félix Guattari. Finalmente, nos dedicamos a pensar el valor de la inquietud, presente en la niña y en el viajero, como estrategia de fuga posible en dirección a una libertad liberada, o aún, desrostrificada.

palabras clave: infancia; rostridad; cine; diferencia.

abstract

One scene from Wim Wenders’ film “Alice in the cities” provokes us to think again about childhood. It’s a fresh polaroid snapshot, where we can see the faces of an adult (Phillip Winter) and a child (Alice) blending and mixing. Starting from this image, this paper makes its way through the movie’s plot, reflecting on the power of freedom that arises from an encounter with children and childhood. First, we examine the relationship between Winter and his job as a photo-journalist, discussing the character of his existential anguish and his supposed indisposition to becoming, which seems to be clear in the way that he reads his own photographs. In a second moment of the film, we understand Alice’s arrival on the scene as something capable of dispersing the circumstances that are constraining him by hurling him into the unpredictable. This event is crystallized in one poetic gesture: the girl confronts the adult with her own face by drawing a self-portrait. Facialization and deterritorialization are two concepts that we weave into our discussion, working off the philosophical thinking of Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze and Félix Guattari. Finally, we propose that worry as a value, characteristic of children and travelers, can produce an opening that offers an escape into a freedom of release-or, so to speak, a defacialized freedom.

keywords: childhood; faciality; cinema; difference.

ao rosto do adulto, o gesto de alice nas cidades

Fonte: Adaptado de Wenders (1974). Wim Wenders Stiftung/Foundation.

Figura 01 Phillip Winter encara seu retrato. 

polaroides

Este ensaio se lança a partir de uma imagem polaroide. Trata-se de um retrato do jornalista Phillip Winter, que o tem nas mãos. Sobre a imagem recém-impressa, película ainda virgem de encontros com o mundo e, portanto, completamente lisa e refletiva, nela se espelha outra imagem, que é também um rosto. O rosto de Alice, a autora da fotografia. Se observarmos com cuidado conseguimos perceber que os dois rostos guardam uma distância. É o adulto e a criança que se sobrepõem - se mesclam ou se digladiam - no quadrado limitado da imagem.

É a partir desta imagem que gostaríamos de nos aproximarmos de algumas problemáticas. Ou, dito de maneira mais apropriada, queremos considerar a imagem enquanto força que toca o real, no momento mesmo em que ela incendeia, acende ou arde (Didi-Huberman, 2012) em nós, sendo capaz de “desconcertar, depois renovar nossa linguagem, portanto nosso pensamento” (Didi-Huberman, 2012). Voltamos para a página anterior e observamos a imagem longamente e o que vemos é desconcertante: o rosto do adulto não aguenta mais. Observamos a imagem um pouco mais e o que vemos é uma alegria: o rosto da criança se impõe, arranha o retrato do homem e abre espaço para outros tempos e outros modos de habitar a existência. Fenômeno físico completamente passageiro, o de um reflexo na superfície especular frágil de uma polaroide; mas seus efeitos, se soubermos atentar o olhar, ardem em nós. Poderíamos dizer que ele nos emociona ou nos espanta, movimento inicial diante da imagem; e que buscamos estender seu efeito em nós por meio da filosofia - um segundo movimento, decorrente da emoção. À exclamação seguem-se as interrogações (Didi-Huberman, 2016).

Ao considerar a imagem como ponto de partida para o pensamento, ao considerá-la suficiente para começar um incêndio, queremos assumir aqui uma posição positiva diante da imagem, mas também diante de toda forma que habita o microcosmos das insignificâncias. Queremos participar do esforço filosófico de reposicioná-la, de tratá-la, não como uma mentira, não como uma irrelevância, não como uma falsidade, mas, tendo em conta suas qualidades vivas e sobreviventes, isto é, “a contingência, a variedade, a exuberância, a relatividade” (Didi-Huberman, 2017, p. 71). Se parte de nosso exercício enquanto educadores e pesquisadores em educação é formular e experimentar conceitos, acreditamos que essas qualidades nos servem de fagulha para abrir clareiras no pensamento. Pensar a imagem, vê-la, como estar diante de forças que vibram entre nós.

São três as reflexões que gostaríamos de compartilhar aqui a partir da imagem polaroide de Phillip Winter e Alice. Primeiro, gostaríamos de comentar um pouco mais sobre o gesto fotográfico que a produziu, no interior da ficção cinematográfica da qual ela foi retirada; queremos assim, tomar os personagens da imagem como interlocutores que nos animam o debate. Em seguida, uma conversa sobre o que está acontecendo na eternidade efêmera daquela polaroide, a saber, os rostos que se desfazem no devir. E por fim, apontar o papel da criança nessa desfaçatez, elogiando o valor criativo da infância tomada como intensidade, liberdade e temporalidade aiônica.

o gesto e a imagem

Alice e Phillip são os personagens centrais do quarto filme de Wim Wenders, intitulado Alice nas cidades (1974). Primeiro filme de uma trilogia do diretor no estilo road movie, gênero cinematográfico em que o enredo se desenvolve na estrada, em deslocamento. No caso do filme de Alice, este deslocamento inicia nos Estados Unidos, onde os dois personagens se encontram, e se desenrola em Amsterdã e cidades próximas. Phillip, alemão que viajou à “América” para escrever uma reportagem sobre suas paisagens, retorna angustiado por não cumprir o prazo imposto pelos editores, sem texto algum, apenas com uma pilha de imagens feitas com sua máquina polaroide. Em sua defesa Phillip diz ao seu contratante, ainda no início do filme: “Ao viajar pelos Estados Unidos você será afetado pelas imagens que vê. E se tirei tantas fotos é porque… fazem parte da história. Ainda não posso explicar”. E seu contratante lhe contesta: “Você deveria se limitar a escrever”. Phillip então se levanta, o rosto sereno mas frustrado, retira sua máquina fotográfica do bolso e a aponta para o homem em sua frente. A polaroide é emitida instantaneamente e ele o guarda em sua bolsa - não chegamos a vê-la. De lá parte para o aeroporto.

É no aeroporto que Phillip se encontra com a menina. Ela está lá com sua mãe, Lisa, que não domina o inglês e solicita ajuda ao jornalista. Todos estão interessados em voltar para a Alemanha, mas uma greve dos controladores de voo impede que o aeroporto de Munique aceite aterrissagens. Decidem então ir juntos até Amsterdã e de lá entrar por terra no país. Porém, um imprevisto faz com que a mãe de Alice não compareça na hora do voo, deixando a Phillip a estranha tarefa de tutelar a criança por um dia, do outro lado do Atlântico, e esperar por ela até que resolva sua situação. Apesar do absurdo deste pedido, Phillip e Alice partem em uma jornada curiosa, sem destino definido e em constante espera, vagando por Amsterdã e arredores em uma situação que nenhum dos dois parece apreciar genuinamente.

E tudo é melancólico nessa aventura. As cidades vão se apresentando para nós desde a janela do carro alugado, do trem suspenso em Wuppertal ou do parapeito de um barco. Há vazio em todo canto. Em uma sorveteria uma criança encostada em um jukebox escuta uma canção que tem algo de rock ou folk norte-americano ; Alice o observa longamente, mas ele não tira os olhos do chão, senão para morder o que resta de sua casquinha de sorvete. A impressão que temos é de que por onde passam, as paisagens, elas mesmas, olham para o chão como aquele menino, como se estivessem tímidas ou ensimesmadas. Mas sentimos algo fluindo por elas, uma atração, um chamado nostálgico. Essa duplicidade de atração e repulsão se manifesta na sequência de planos que Wenders captura das paisagens decadentes dos bairros por onde passam.

Nos poucos momentos em que vemos bairros de casas tradicionais alemãs, a câmera nunca se deixa seduzir pela beleza da tradição. Há uma atração/repulsão muito particular pelo ciclo vital das cidades na era industrial, quase pós-industrial. Por todos os lados há construções e demolições, estruturas funcionais maculando o que foi bucólico, cartazes, grafites, placas de neon e propagandas, chaminés e fábricas inóspitas, bares com azulejos nas paredes, viadutos tapando o céu, lixo espalhado em torno das lixeiras destampadas. Essas imagens incríveis parecem nos comunicar todo o tempo uma mescla de fascínio e repulsão, como fosse a nostalgia que nunca se permite a complacência de se refugiar em um recanto intocado, mas que, em meio a essa severidade impiedosa, não consegue se esquivar da busca por uma nova forma de beleza decadente (Pinto, 2021, tradução nossa).

Neste retorno à Europa o que se sente é uma nostalgia impregnada na atmosfera, a vontade de retornar a um mundo que já se rompeu. O movimento gerado pela maestria de Wim Wenders talvez seja esse mesmo, o de suscitar a beleza e a tristeza em um único plano. Esse efeito nostálgico também se apodera do personagem jornalista. É o que Eduardo Silveira, ao comentar o filme, chamou de sensação de perda de mundo, do sentido de não ter um mundo que chamar de seu: “perda de sentidos, de significados, de relações, de memórias, de objetivos, de intenções, de caminhos, de sensações, de ‘identidade’, etc.” (Silveira, 2014, p. 6). Ou ainda, na formulação de Sara Dutra (2014), “apesar de Winter viajar pelos Estados Unidos, ele não encontra o lugar da experiência em suas paisagens e relações”.

Parece-nos que o jornalista Phillip Winter vivenciou uma forte desterritorialização de seus afetos, mas que responde inicialmente de forma reativa, como que paralisado e sem língua. Algo como a síndrome da “América-em-nós”, como denominou Suely Rolnik (2016) em suas investigações sobre as transformações do desejo no século XX - quando a desterritorialização se torna “síndrome de carência e captura”. Ao viver um processo de desterritorialização, isto é, ao experienciar uma sensação de perda de sentido, de deslocamento das posições subjetivas já conhecidas e estruturadas, ao sentir moverem-se as placas que configuram o território de sua existência, o que se segue é uma espécie de suspensão. Essa suspensão instala para o ser um limiar entre a queda (salto mortal) e o voo (salto vital) (Rolnik, 2016). Salto mortal: ao sentir a iminência da vertigem, a angústia assume a expressão da falta, e todo o desejo é obstruído pela carência. Daí a síndrome, espalhada por todas as Américas, as Américas infiltradas por toda a parte (Rolnik, 2016). Bem diferente é a experiência do salto vital, quando uma desterritorialização abre no ser a possibilidade de, confrontando-se com sua história, com sua “identidade”, com suas posições no mundo, levantar voo em direção a um novo território, imprevisto, incalculável, desmedido. A conquista deste território porvir, absolutamente intempestivo, é o avesso da história - é da ordem do devir (Deleuze; Guattari, 2017).

Observemos um pouco mais o caso de Phillip. O jornalista está tomado pelas paisagens americanas e por isso lhe faltam palavras para escrever suas reportagens. Então faz fotografias sem “saber por que”. O que parece desolador no personagem, nos momentos em que antecedem a chegada de Alice, é a angústia perante suas polaroides. Ele diz:

Tirar fotografias é uma espécie de prova. Enquanto esperava uma foto ser revelada, sempre sentia uma inquietude. Não podia esperar para comparar a foto com a realidade. Mas a comparação não acabava com a inquietude porque a realidade sempre era superior e só aumentava minha obsessão por tirar mais fotografias.

Phillip toma as fotografias como a prova dos nove, como se pudesse extrair delas algum consolo para uma falta que não está no mundo, que não está na paisagem, que não está sequer em sua capacidade fotográfica. A falta é sentida como perda justamente no limiar que falha ao transformar o visível em vibrátil (Rolnik, 2016), quando o que se vê e o que se vive através da experiência fotográfica é tomado como captura e não como intensidade. “Apesar de nômade, Phillip permanece na condição de imobilidade e torna-se espectador das paisagens fora do automóvel” (Dutra, 2014). Phillip Winter procura em suas fotografias um decalque, o aspecto visível de algo que já lhe é inalcançável; deixa escapar toda a névoa de invisível que pode estar rondando sua relação com a imagem, como se seu corpo vibrátil estivesse anestesiado. Ainda assim, Phillip insiste, repete o gesto, fotografa mais e mais. Talvez seja o caso de perceber, com Rolnik (2016, p. 107), que na desterritorialização vivida como carência, o desejo, antes de ser obstruído por uma estratégia de censura, é incitado, “sob a condição de interceptar o acesso ao invisível, entulhar tudo de imagem até que o próprio gesto criador fique soterrado e não possa mais se lançar”.

Poderíamos afirmar também, apoiados nos conceitos que Gilles Deleuze (2007) elabora em seus estudos sobre a pintura, que Phillip está aferrado às formas, fotografa as formas, sem perceber que uma outra fotografia se faria possível: fotografar as forças. É que há uma distinção entre figurar o que é visto e expressar na pintura - e por extensão na fotografia - o que é sensação. Uma coisa é pintar o grito, diz Deleuze (2007), outra ainda é pintar o horror que subsiste em sua forma. Quanto mais implicados com a figuração, maior a distância que guardamos do invisível que a ela está conectado como virtualidade. Se isto vale para pintura, poderíamos admitir que pensar uma “fotografia das forças” é uma questão de ainda mais elevada problemática, dada a relação que a imagem fotográfica estabelece com a captura do visível. Esta talvez seja uma questão que a angústia de Phillip evoca em nós. Como fotografar as forças? Como fazer da fotografia algo diferente de uma procura pela história (o que se perdeu do tempo), pelo decalque (o que se perdeu da biografia) ou pela figuração do real (o que se perdeu das sensações)? Eduardo Silveira (2016, p. 6) destaca como o efeito desta impossibilidade de reencontro com o que foi perdido, mesmo pela fotografia, configura em Phillip uma falha de conexão com a própria experiência e o sentido de sua existência.

Sua angústia está no ato de focar em algo que não reconhece e onde tampouco se reconhece. O resultado disso é um estranhamento (...). As fotografias que tira são possibilidades de ter uma história, de encontrar‐se por um momento consigo e com o espaço no qual se encontra, de provar que existe. Porém, rapidamente o conforto do suposto encontro se perde, pois mesmo sendo uma possibilidade - a sua, e única - as fotografias partem dele e ao ver também nelas a sua perda, ele falha (Silveira, 2016, p. 6).

É próprio da imagem partir. Como já dissemos anteriormente, a imagem é qualquer coisa que incendeia e que, portanto, se consome imediatamente quando nos aciona. Ela não está aí para ser nem o instrumento de uma captura, nem a verdade como imutabilidade e nem a reprodução fidedigna do mundo. Não serve pare reconstruir territórios perdidos. Fazer disso uma imagem é matar o que nela existe de mais valoroso, de mais belo, de mais impuro: “A imagem é a impureza que advém das coisas em si. (…) Mantém-se em algum lugar na interface de uma aparência fugaz e de uma inscrição sobrevivente” (Didi-Huberman, 2017, p. 71). Sua impureza, aquilo que Phillip Winter parecia tratar como algo menor que a “realidade”, é onde reside justamente sua potência inflamatória. E assim poderíamos tomá-las, como uma insignificância produzida pelo gesto fotográfico diante da imensidão de um mundo que é sempre inapreensível em sua totalidade. Insignificância que sobrevive apesar da totalização do real do qual se desprende para vir até nós, em queda, movimento permanente e inconcluso de declínio. “A imagem: aparição única, preciosa, é, apesar de tudo, muito pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai. (…) Em geral, ela desce, declina, se precipita e se danifica sobre nossa terra” (Didi-Huberman, 2011, pp. 118-119).

Não é desconhecido o fato de que Wenders deixa infiltrar em suas produções um forte aspecto autobiográfico, ou ainda, para sermos mais precisos com as palavras: o diretor pensa e se pensa com suas imagens. Com o ensaio “Impossible stories”, Wenders nos dá a ver a proximidade das questões que estamos levantando a partir do personagem Phillip Winter e sua percepção sobre o fazer cinematográfico. “Já fui pintor”, diz o diretor, “pintava paisagens (…). Me tornei diretor de cinema quando percebi que não estava indo a lugar nenhum como pintor” (Wenders, 1992, p. 51, tradução nossa). Diante da pintura, Wenders percebia a sua insuficiência em trabalhar com o tempo da imagem. Quando começou a gravar, acreditava que seria algo banal fazê-lo; que para as imagens revelarem o que ele buscava, bastaria vê-las. Foi com o avançar da sua experiência como diretor que sua postura diante da imagem mudou. “Em meus filmes, as imagens não levam necessariamente a algum lugar; elas se erguem por si próprias” (Wenders, 1992, p. 53, tradução nossa). Por essa relação estabelecida com as imagens, fazer cinema narrativo se torna uma forma de violência contra suas qualidades, na medida em que elas precisam ser articuladas diante da história, de um sentido maior e externo às suas forças.

Me incomodo com a manipulação que é necessária para comprimir todas as imagens de um filme em uma única narrativa; é muito violento com as imagens porque acaba por drenar-lhes toda a sua “vitalidade”. Na relação entre narrativa e imagem, eu vejo a narrativa como um tipo de vampiro, tentando sugar todo o sangue da imagem. Imagens são agudamente sensíveis. Como caramujos, elas se encolhem quando você toca suas antenas (Wenders, 1992, p. 53, tradução nossa).

É bastante elucidativo como essa relação entre imagem e texto se faz presente no filme de Alice quando levamos em conta essa percepção do diretor. Seu cinema parte de paisagens: são elas que instauram mapas capazes de fazê-lo perseguir, até o fim, seu desejo criativo. “Histórias de cinema são como rotas. Um mapa é, para mim, a coisa mais empolgante do mundo; quando eu vejo um mapa, eu imediatamente me sinto inquieto, especialmente se for de um país ou cidade em que nunca estive” (Wenders, 1994, p. 54, tradução nossa). São as imagens que comandam: elas apontam direções, caminhos, bifurcações. O texto, a necessidade de se produzir uma coesão narrativa, a escrita do roteiro aparece neste cenário como um fardo incontornável. Superficialmente, podemos observar elementos desta relação do cineasta com as imagens e o texto na condição de angústia de Phillip: sua relação com as paisagens e as fotografias, no início do filme, parecem remeter àquela visão “very naïv” (expressão do próprio Wenders) com a qual iniciou sua carreira. E a exigência do patrão para que escrevesse a reportagem mais um elemento a se somar em sua angústia. Quando Alice encontra Phillip, o personagem parece estar vivendo uma situação inflexiva na sua relação com seu trabalho.

E não poderia ser mais significativo o gesto de uma criança, incomodada com a ladainha do adulto, tomar de suas mãos a máquina fotográfica e apontar para ele mesmo suas lentes, revelando assim seu rosto. É o que faz Alice diante da vertigem de Phillip. Ela o interpela (destacamos abaixo o breve diálogo que antecede seu gesto), toma de suas mãos a máquina polaroide e faz o seu retrato. Quando Phillip o tem nas mãos para observá-lo, não vê apenas seu rosto, mas traços da menina refletidos sobre ele. Como argumentaremos nas próximas seções, podemos tratar o gesto arteiro da menina como um gesto instaurador de um recomeço, ao desfazer o que no outro é paralisia angustiante. Alice, desta forma, oferece ao seu amigo inesperado uma possibilidade de escapatória; ela lhe oferece seu rosto.

“- Conte-me algo sobre você. - Não sei o que contar. - Não sabe o que pode me contar sobre você? Quantos anos você tem? - Trinta e um. - Quero tirar uma foto sua.”

rostidade

Oferecer um rosto como escapatória; desfazer o rosto do adulto no encontro com o rosto da criança. Para abordar este assunto tão impregnante mobilizado pelo filme de Wim Wenders, gostaríamos de tecer duas citações que nos ajudam a entender as dimensões estéticas e políticas implicadas no fato de se possuir um rosto. Ou ainda, como comentaremos mais adiante, de se produzir um rosto.

A primeira citação é retirada de um estudo do historiador da arte Georges Didi-Huberman. Ele está interessado justamente no lugar que o retrato ocupa nas diferentes artes visuais, especialmente na presença recorrente de formas precursoras do retrato em peças artesanais de povos aborígenes e de populações humanas “pré-históricas”. Seu estudo, portanto, está atravessado de um olhar antropológico e arqueológico. Para o autor, o retrato traz à cena a impermanência do rosto, ou seja, sua iminente possibilidade de desaparição.

Longe, então, de mostrar puramente a representação plena dos rostos, o que os retratos fariam, depois de tudo, seria apenas poetizar - isto é, produzir - uma tensão sem recurso entre a representação dos rostos e a difícil gestão de sua perda, ou de sua espécie de esvaziamento interior, por exemplo, este descarnamento que deixará à mostra apenas um crânio na terra (Didi-Huberman, 1998).

Há uma tonalidade mágica no retrato, que é justamente essa tensão da ausência anunciada de um outro, seja ele um outro amado ou reverenciado, seja ele este outro que me contém. De todo modo, o que se manifestaria de forma mais significativa ao redor de um retrato observado, no embate que ele suscita entre o corpo vivo e a terra que o sepulta, é um lugar de investimento para o sentido de uma ausência. Ou ainda, é como se o retrato nos observasse desde o abismo mesmo que se encerra na singularidade de possuir um rosto, de ser um rosto, de fazer do rosto uma conexão com a alteridade. Diria, portanto, na continuidade deste pensamento, que olhar um rosto e ser olhado por ele desde o lugar produtivo do retrato é também suscitar perguntas que tem que ver com a inquietude de estar sobre a terra, diante de nossa incontornável impermanência. O que este rosto vivo arrasta em nós? O que este rosto de trinta e um anos, que já não sabe o que dizer sobre si, involucra, doa à face ou não abre mão? E o mais importante, por que este rosto, ainda? Vantagem da polaroide: o retrato instantâneo se impõe. Com o gesto peralta de Alice, Phillip é confrontado com sua própria face.

Para avançar nestas reflexões e retornar à Alice, propomos um desvio através do conceito de rostidade que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996) elaboram em seus mil platôs. Para estes autores um rosto não é algo que está dado ao corpo, não é algo nem mesmo humano, senão que ele se faz, é produzido por uma máquina abstrata de rostidade. O rosto guardaria em si mesmo uma característica contraproducente às afetações, ao se tornar um muro branco no qual as significações ricocheteiam; aqui, o rosto é uma defesa. Porém, ele é também e simultaneamente, esburacado, tomado de buracos negros por onde algo escapa dessa lógica protecionista do desejo. O rosto compõe, assim, um mapa, com linhas que o estruturam e o enrijecem, e porções enoveladas em que algo atravessa seus buracos, suas rachaduras. A rostificação se constitui sobre a cabeça, sobre o corpo, e não possui nada de inerente ou universal - ela não opera em todos os agrupamentos humanos da mesma maneira. O processo de rostificação explicita o funcionamento dessa máquina que nos permite localizar e estruturar em um semblante: fortificação do sujeito. Sua manifestação permite que expressemos os binarismos com os quais nos afirmamos, meu rosto de adulto repreende seu rosto de criança, meu rosto de patrão interpela seu rosto de funcionário, meu rosto de viajante se debruça sobre o mundo. O rosto é, portanto, uma política.

Neste sentido, deveríamos ter o cuidado de desfazer em nós este rosto que nos foi construído, e no qual nos metemos quando rendidos a determinados jogos de poder, oferecendo espaço para que possamos ser arrebatados pelo devir, com especial atenção ao que pode ser elaborado nas margens do jogo muro-branco-buraco-negro.

O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino, não por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça, mas por devires-animais muito espirituais e muito especiais, por estranhos devires que certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam enfim à organização do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atravessamos ao invés de nos vermos neles, ou ao invés de olhá-los no morno face a face das subjetividades significantes (Deleuze; Guattari, 1996, p. 33).

Nesta concepção o rosto carrega consigo o que no sujeito é desejo arbóreo, de fincar raízes, de não se permitir desterritorializar. Este rosto rostificado guarda em si a angústia imobilizadora do indivíduo que não se defronta com a diferença que o perpassa, em pensamentos e intensidades, diferença que se desloca sempre através das linhas incontroláveis do desejo. Desfazer o rosto envolveria abrir espaço para que a alteridade nos mobilizasse sempre no sentido de criação de novos modos, no qual nossa própria subjetividade se veria em constante transformação, em uma forma de liberdade que é, também ela, mais que humana. Enfim, entrar em devir com as forças que nos afetam, que nos tombam, que nos arrebatam no caminho. Exercício mais relacionado com a preparação e a possibilitação do que com a vontade ou com o esforço, porque o devir não é um “fenômeno de imitação (…), mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos” (Deleuze; Parnet, 1998). Para escapar dessa máquina de rostidade em preto e branco, precisamos atrapalhar as linhas duras que vem desenhar nosso semblante, o rosto precisa amolecer, precisa se permitir ser invadido pelas presenças agitadas em seu entorno. Permitir-se encontrar no rosto do outro algo como uma “presença morena”, parafraseando a canção de Caetano Veloso , cujo artifício é mesmo o de “entrar pelos sete buracos da nossa cabeça”.

Particularmente interessante para pensarmos no processo de rostificação de Phillip Winter é a relação rosto-paisagem, que Deleuze e Guattari (1996, p. 35) destacam repetidas vezes em seu texto, como componentes de permanente desterritorialização e reterritorialização mútua. “Não há rosto que não envolva uma paisagem desconhecida, inexplorada, não há paisagem que não se povoe de um rosto amado ou sonhado, que não desenvolva um rosto por vir ou já passado”. Perguntar-se sobre um rosto é perguntar também sobre as paisagens que se desenham em suas rugas ou sob suas mechas. Ora, não são justamente as paisagens americanas que roubam de Phillip suas palavras? Paisagens americanas do viajante, paisagens que se infiltram em seu imaginário. Elas se infiltram, à sua revelia, não apenas pelo olhar, mas por todos os buracos de seu rosto.

Quando Wim Wenders nos apresenta o rosto de Phillip Winter atravessado pelo rosto da Alice, sua companheira de viagem, o que parece entrar em jogo é a ruína do rosto do adulto. Como se em uma imagem fosse possível cristalizar essa “presença morena”, ou esses devires-animais, ou essa liberdade que a infância possui e que no adulto estaria interrompida (Skliar, 2018), silenciada ou contida nesse conjunto de traços que faz um rosto. O que o registro imagético de Wenders nos propõe não é apenas o encontro de um homem com seu retrato, e neste caso, um embate com sua própria finitude, questão de todo modo inquietante em si mesma. Mas, ao introduzir a presença de Alice refletida no anteparo que é a polaroide, o diretor nos oferece também uma saída: o elogio a um devir-criança. A criança possui a força capaz de desfazer o rosto do adulto, de lançá-lo às desterritorializações de seus afetos, de abri-lo para o mundo que se atravessa pelas estradas de sua busca improvável. Curiosamente, o retrato de Phillip, atravessado por Alice, não o coloca diante da terra apenas no sentido enunciado por Didi-Huberman (1998), ao pensá-la como depositária de uma angústia diante da finitude da existência, mas lhe possibilita aproximar-se da terra como chão, como aquela baixeza que só as crianças sabem alcançar. Como argumentam Kohan e Carvalho (2021, p. 12), a “adultez passa por olhar de cima para baixo, por falar de cima para baixo”, e para ser tomado por um devir-criança é necessário acocorar-se, deixar-se aproximar do pequeno. O grau de desterritorialização da infância supera o grau de desterritorialização do adulto - é sempre preciso colocar dois termos em devir, e a reterritorialização se fará deste para aquele, de baixo para cima. (Deleuze; Guattari, 1996). É só a partir daí que o viajante Phillip Winter poderá se reencontrar com seu texto e com sua imagem, pela diferença que a criança instaurou em seu próprio ser.

a criança em nós

Destacamos que não estamos tratando aqui da infância certamente habitada por Alice enquanto etapa de vida, evento cronológico. Infância, bem conhecida por nós, atrelada a uma concepção de tempo sucessivo, estágio que antecede a juventude e a vida adulta. Localizável e, assim, pensada politicamente e pedagogicamente. Porém, há uma outra possibilidade de apreendermos o sentido da infância, tomada aqui como uma infância minoritária (Kohan, 2002). Nela, o tempo já não é sucessivo, mas durativo (Kohan, 2010), se afasta da concepção cronológica do tempo para habitar aquela outra, aiônica, envolvendo o tempo sem amarras, o tempo intensivo da brincadeira e do jogo, o tempo vivido e não calculado. Não está restrita às crianças cronológicas, mas se distende até nós formulando blocos de infância (Deleuze; Guattari, 1997): porque podemos habitar com a infância uma zona de vizinhança que seria mais do que apenas uma lembrança da criança que fomos. Suas qualidades são justamente aquelas que nos possibilitam o devir, e por isso falamos em um devir-criança, “a infância como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação (…), um situar-se intensivo no mundo” (Kohan, 2002).

Por isso afirmamos a infância presente, não apenas em Alice, mas sobretudo em seu gesto. Com sua fotografia, Alice introduz para Phillip uma potência de variação. Com seu gesto, Alice possibilita que uma reconexão com a experiência, com o tempo acontecimental, seja efetuada. Oferece para Phillip um recomeço, uma nova possibilidade de encontro com toda a subjetividade que existe em um meio (Deleuze, 2011), em uma paisagem, em seu mundo de travessias, e que não se restringem às suas formas ou funções. Situação em que “o inconsciente já não lida com pessoas e objetos, mas com trajetos e devires; já não é um inconsciente de comemoração, porém de mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam voo” (Deleuze, 2011, p. 86, grifo do autor).

Recomeço de Phillip, recomeço do adulto, recomeço de um rosto desrostificado. Nos parece pertinente o uso da palavra recomeço por aqui, como atentam Kohan e Carvalho (2021) ao comentar da figura da criança em Nietzsche. Para o filósofo alemão, a criança vem “depois”, ela é o último estágio das três metamorfoses que levam o ser de uma existência cativa (o burro ou o camelo que acata), para as duas expressões de sua liberdade: a liberdade negativa e estoica do leão, que destrói suas amarras, e a liberdade libertada da criança, que possui a potência criativa de reconstituição de mundos e de modos. Para chegar a ser criança, o espírito precisa ultrapassar seu corpo de leão. Mas ela não é o fim do espírito, ela não é seu destino. Configura apenas o momento contingente que nos permite abrirmo-nos para um novo começo:

A criança é esquecimento para, no fim, ser um novo começar. É preciso terminar o que temos para podermos começar novamente. É preciso desfazer-se do peso que nos afunda para podermos criar. O primeiro pontapé. O primeiro chute na bola que começa a pelada. E, como numa roda que gira, o fim e o começo se encontram; não há linha, evolução, progresso ou desenvolvimento. O movimento da criança é circular. Corrida na roda (...) O que termina é a moral, uma carga pesada, o fardo que a humanidade se colocou a si mesma. Uma espécie de “má consciência”, uma doença profunda, prisão dos instintos, o sofrimento do ser humano para consigo mesmo (Kohan; Carvalho, 2021, p. 18).

Sabemos a dificuldade em nos lançarmos aos processos de desestabilização provocados pela infância, pelo deslocamento, pelas viagens e travessias pela “América”. Sabemos da inquietude diante do processo de ver se desfazer diante de nós o rosto que nos foi construído e no qual habitamos, dia a dia, em nossas relações, em nossos espaços de estudo, de trabalho e de vida. Sabemos a angústia perante a sensação de que um mundo novo nasce diante de nós, em cada recomeço que esboçamos. Há uma aura sagrada que a rostidade nos coloca, há um Cristo em cada rosto (Deleuze; Guattari, 1997), o conforto de se encontrar estruturado em todas as maioridades que as instituições prepararam para nós e em nós. A maioridade do adulto, do profissional, da nossa identidade. E como nos relembra Giorgio Agamben (2007), todo o objeto sacralizado é também um objeto subtraído do uso comum. Quando algo é sacro, sua esfera de posse não está entre nós, mas em outro lugar, inalcançável.

Mesmo o rosto, este que é nosso, que acreditamos conhecer tão bem, por ser efeito de uma maquinação abstrata, já não pertence a nós. Para restituirmos a possibilidade de desfazer este rosto, de entregá-lo ao meio puro em que podemos desrostificar seus traços, talvez seja preciso também assumir o aspecto profanatório (Agamben, 2007) dessa ação. Como profanar um rosto? Não me parece coincidente que Agamben comente do aspecto profanatório presente no gato que joga com seu novelo e na criança que brinca com os símbolos religiosos. Através do jogo e da brincadeira, usos minoritários que fazem desviar a funcionalidade do novelo e dos símbolos, o gato e a criança devolvem o que foi sacralizado à esfera mais baixa das relações, isto é, ao uso comum. Profanar restitui o uso, sob a condição de inventar novas funcionalidades, de formular variações nos modos de se relacionar com as coisas e os signos. Neste sentido, podemos compreender o gesto de Alice também como um gesto profanatório do rosto do adulto. E o devir-criança uma atualização efetuada na mínima distância deste gesto.

Desde a chegada de Alice, blocos de infância aparecem no caminho de Phillip; seu gesto profanatório nos parece ser tão somente um evento cristalizador desta força intempestiva. Sara Dutra nota muito bem como a brincadeira e o giro - elementos profanatórios citados por Agamben (2007, p. 154) estão presentes desde os primeiros minutos da travessia comum dos protagonistas. “No primeiro encontro entre Phillip e Alice a menina brinca na porta giratória do aeroporto e, quando menos percebe, Phillip está envolto em um jogo infantil. O sorriso trocado com a pequena Alice é o primeiro visto e reconhecido da narrativa fílmica e na estrada do protagonista”. Phillip se depara então com a “primeira condição de sua existência ontológica: a condição de livre” (Dutra, 2014, p. 154). Neste primeiro encontro, com a porta giratória, já começamos a perceber os efeitos da suspensão que os gestos profanatórios deste devir-criança podem instalar diante de nós. O que é profanado se lança novamente para a possibilidade de reinvenção. Sua finalidade é colocada em suspensão e passa então a habitar uma espécie de meio sem fim (Agamben, 2007), em que novas operações podem ser efetivadas. Quanta infância é necessária, então! Todos esses blocos de infância que, se acionados, nos permitem explodir um mundo em novidade (Kohan; Fernandes, 2020), com todo o risco e toda a coragem necessárias nessa ação. Ao oferecer para Phillip traços de sua rostidade por meio de um devir-criança, toda uma nova fabulação se faz necessária. Neste salto vital em direção à uma terra ainda desconhecida, um desmontar da rostidade se apresenta: quem sabe, não mais construir um rosto, rosto de viajante, rosto de fotógrafo, mas matérias não formadas, atingindo novas velocidades, com seus quanta de liberdade, resistentes à rostificação.

É exatamente assim que uma criança, um adulto e todo o resto podem se comunicar na invenção de uma infância por vir, em um exercício de fabulação, de abertura para o que não sabemos da infância e de questionamentos acerca do que cremos saber. Um devir-criança: um corpo que não imita ou quer se tornar uma criança, mas um corpo que, desprendido das suas unidades já conhecidas, experimenta as potências do infantil. Toda expansão de desejo expõe matérias não formadas, tensores, desafia mundos possíveis e mundos reais, produz bifurcações e lança os corpos em devires e experimentações, em uma gradação indiscriminada de intensidades, velocidades e lentidões (Kohan, 2020).

o viajante e a criança: o que faço aqui?

Em certo sentido, o viajante já guarda em si uma relação com a criança. Como nos lembrou Jorge Larrosa (2017), a inquietude é própria aos viajantes e às crianças, por se depararem com aquelas questões referentes ao atravessamento do espaço, seu uso, sua disposição e seu posicionamento. É mesmo o caso de Phillip Winter quando vaga pelos Estados Unidos, pela “América”, e se encontra com seu próprio trabalho. Ele é acometido de uma “inquietude”.

A inquietude, que é uma anomalia de nossas relações com o espaço, leva à pergunta “onde estou?”, ou, o que é ainda mais perigoso, à pergunta “o que faço aqui?”, e essa singular interrogação produz uma enfermidade que não é do ser, e sim do estar, não da alma, e sim do cérebro, e dela adoecem, segundo Chatwin, as crianças e os viajantes (Larrosa, 2017, p. 304).

Ao tratar deste tema, Larrosa está interessado em contribuir para pensar os modos com os quais se habita uma investigação filosófica. Interessa-se pelo elogio de uma prática de investigação filosófica que seja também um “lugar de vida” (Larrosa, 2017, p. 306). Podemos extrapolar suas implicações e fazer com que toquem uma questão que não se limita às práticas das instituições onde trabalhamos e estudamos, mas também com a vida no que ela tem de mais rasteiro, que é sua própria dispersão. A pergunta “o que faço aqui?”, que a criança e o viajante nos colocam, é uma pergunta que concerne à vida de qualquer um e de qualquer uma, assim como concerne à Phillip Winter em seu trabalho jornalístico e ao educador e à educadora que escrevem este texto. “O que faço aqui?”, como nos ensina Larrosa, é uma questão vital quando levamos a experiência e o sentido a sério em nossas pedagogias e em nossas investigações filosóficas, mas também em nossa experiência enquanto viventes. E a infância que Alice manifesta em seu gesto poderia ser tomada como um dos valores que nos colocariam, a nós adultos, sempre defronte dessas mesmas questões: “o que faço aqui?”, “onde estou?”, “como me desfaço deste rosto?”.

Nosso argumento inicial era de que Phillip Winter estava perdido, de que ele se manteve apegado a uma ideia de mundo que já não existia mais e que retirava de suas fotografias apenas um muxoxo, uma ladainha. Em seguida, elaboramos uma discussão sobre como essa incapacidade para se libertar de sua inquietude, em um sentido produtivo, estava cristalizada naquele retrato, que é também o episódio que marca a ruína de seu próprio rosto. Neste momento é que avançamos até a criança ou que ela vem até nós. Porque é ela que vem ao socorro do adulto. É ela que produz, no adulto, uma libertação.

Quando esquecemos da infância, quando destinamos a ela espaços de tolhimento e de sua interrupção, mesmo para aqueles que estão vivendo a infância cronológica - as crianças -, perdemos valências em nossa liberdade social. É o que nos alerta Kohan (2010) ao comentar o conceito de infantia em Jean-François Lyotard: negar a infância é também um traço dos totalitarismos. “A pergunta que não podemos calar é se acaso é possível sair do esquecimento da infância em alguma forma de vida - e de morte - social ainda por inventar” (Kohan, 2010, p. 135). Força política da infância: ela que desfaz a trama das razões, das certezas, do espírito carrancudo. Essa infância não fala de si (Skliar, 2018), apenas participa da vida com seu modo particular de ser, criativo, inventivo, colorido e fugaz. Força que escapa, que se perde, que já não está mais, senão como lampejo em cada um e cada uma, e certamente com maior frequentação em alguns de nós, dentre eles, as crianças cronológicas. Está, apostamos, no gesto profanatório de Alice. Pensar este gesto envolve um esforço na direção contrária ao seu esquecimento, e portanto, a tentativa de contribuir para a construção de espaços de possibilitação para novas formas de liberdade.

Sob o signo da criança a liberdade não é outra coisa senão a abertura de um porvir que não está determinado nem por nosso saber, nem por nosso poder, nem por nossa vontade, que não depende de nós mesmos, que não está determinado pelo que somos, mas que se indetermina no que vimos a ser. A liberdade é a experiência da novidade, da transgressão, do ir além do que somos, da invenção de novas possibilidades de vida (Larrosa, 2002).

Talvez por isso Alice nos interesse. Por isso seu rosto se revela na efemeridade da polaroide e nos toca, nos mobiliza. Porque, à semelhança do jornalista Phillip Winter, nós também podemos refletir sobre o nosso próprio rosto o riso intempestivo da criança e partir para novos mundos. A presença da infância no filme de Wenders, e particularmente a imagem polaroide com a qual abrimos este texto, servem como uma rajada de vento para nos expor a face ao mundo e lembrar-nos de que “o rosto humano existe para ser atravessado por projetos arriscados de existência. (…) O que importa é maquinar estratégias para arrancar a vida da triste moldura em que se vê prensada. Desencantar o rosto dos estados confinados que o frequentam” (Preciosa, 2010, p. 71).

Wim Wenders Stiftung/Foundation

Figura 02 O gesto de Alice. 

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Recebido: 07 de Janeiro de 2022; Aceito: 13 de Abril de 2022

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