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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro jan./dez 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.69450 

Artigos

tempos de infância: linguagem e experiência

tiempos de infancia: lenguaje y experiencia

childhood times: language and experience

adilson cristiano habowskiI 
http://orcid.org/0000-0002-5378-7981

cleber gibbon rattoII 
http://orcid.org/0000-0002-9059-728x

Iuniversidade la salle, canoas, brasil

IIuniversidade la salle, canoas, brasil


resumo

Abordamos no ensaio os tempos de infância, tomando como horizonte a linguagem e a experiência. Walter Benjamin e Giorgio Agamben são os principais pensadores que nos ajudam a abordar sobre a frágil experiência na contemporaneidade, no sentido de que os modos de vida atuais estão repletos de vivências que não são transformados em experiência. Para restaurar a experiência é necessário compreender a infância enquanto condição de existência que acompanha toda a vida; é um sujeito que está exposto à historicidade e que faz história, história descontínua e de acontecimento singular. Para tanto, reacendemos pela potência poética de Manuel de Barros a relação entre tempos de infância, linguagem e experiência, pois apresenta-se aí a intensidade de um vivido que é destituído de um tempo sucessivo e cronológico. A potência criativa dessa linguagem possui no devir-criança o artífice para a criação de outra perspectiva na busca da fonte inaugural das palavras: avançar para o começo e chegar ao criançamento das palavras. A partir dessas abordagens construídas, compreendemos que juntos, Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Manuel de Barros nos convidam para retomar a infância, na busca do sentido primeiro das palavras, que só o encontramos com a presença da infância. Trata-se, aqui, de não firmar uma verdade absoluta sobre as infâncias e seus tempos, mas de encontrar trilhas para pensar como constituir outras relações com e no tempo.

palavras-chave: infância; tempos; linguagem; experiência

resumen

Abordamos en este ensayo los tiempos de infancia, tomando como horizonte el lenguaje y la experiencia. Walter Benjamin y Giorgio Agamben son los principales pensadores que nos ayudan a abordar la frágil experiencia en la contemporaneidad, en el sentido de que los modos de vida actuales están repletos de vivencias que no son transformados en experiencia. Para restaurar la experiencia es necesario entender la infancia como una condición de existencia que acompaña toda la vida; es un sujeto que está expuesto a la historicidad y que hace historia, historia discontinua y acontecimiento singular. Para ello, reavivamos a través de la potencia poética de Manuel de Barros la relación entre tiempos de infancia, lenguaje y experiencia, porque allí se presenta la intensidad de un vivido que está destituido de un tiempo sucesivo y cronológico. La potencia creativa de este lenguaje tiene en el devenir-niño el artífice para la creación de otra perspectiva en la búsqueda de la fuente inaugural de las palabras: avanzar hacia el comienzo y llegar a la niñación de las palabras. A partir de estos planteamientos construidos, entendemos que juntos, Walter Benjamin, Giorgio Agamben y Manuel de Barros nos invitan a retomar la infancia, en la búsqueda del sentido primero de las palabras, que sólo encontramos con la presencia de la infancia. Se trata aquí de no afirmar una verdad absoluta sobre las infancias y sus tiempos, sino de encontrar senderos para pensar cómo constituir otras relaciones con y en el tiempo.

palabras clave: infancia; tiempos; lenguaje; experiencia

abstract

We approach in the essay the temporality of childhood, taking as horizon the language and experience. Walter Benjamin and Giorgio Agamben are the main thinkers who help us to address the fragile experience in contemporaneity, in the sense that the current ways of life are full of everyday practices that are not transformed into experience. To restore experience it is necessary to understand childhood as a condition of existence that accompanies all life; it is a subject who is exposed to historicity and who makes history, discontinuous history and singular event. With this in mind, through Manuel de Barros' poetic power we rekindle the relationship between childhood temporalities, language and experience, because ins this relation present itself the intensity of a lived that is devoid of a successive and chronological time. The creative power of this language has in the becoming-child the artisan for the creation of another perspective in the search for the inaugural source of words: to advance to the beginning and reach the childing of words. From these constructed approaches, we understand that together, Walter Benjamin, Giorgio Agamben and Manuel de Barros invite us to resume our childhood, in the search for the first meaning of words, which we only find with the presence of childhood. Here, it is not about establishing an absolute truth about childhoods and their times, but of finding ways to think about how to constitute other relationships with and in time.

keywords: childhood; times; language; experience

tempos de infância: linguagem e experiência

à guisa de introdução

Notadamente, a infância tem sido relacionada a um tempo sem razão, desprovida de saberes racionais. Convencionalmente, a noção de tornar-se dono de si é um modo de ultrapassar essa “fase”. Contudo, o entendimento que adotamos aqui e que nos propomos a desenvolver é de que a infância não se ausenta nos adultos e nem compreende a infância como idade irracional. Daremos ênfase, aqui, ao tempo da infância; aquele tempo que não se limita nem se restringe a questões cronológicas. Infância, aqui, indica uma pessoa que não sabe tudo, não fala tudo e não pensa sobre tudo, tornando-se desejável e necessária porque representa justamente uma abertura ao devir das formas instituídas.

Não se trata apenas de uma série de etapas pelas quais as crianças passam, mas da intensidade com que a infância é experienciada na vida do sujeito e das condições que a tornam possível. Condições essas que podem significar uma descontinuidade com a história, modos de ser e de agir. Assim, entendemos infância não como uma idade cronológica, mas como uma etapa da vida que vai ganhando sentido na projeção com o tempo; refere-se a uma pessoa que se desenvolve na relação contínua entre passado, presente e futuro. Falar sobre tempo e lugar da infância significa esquadrinhar a infância histórica para estendê-la à infância que vive em cada um de nós.

Organizamos este texto em três seções. No primeiro discutimos sobre tempos de infância. Retomamos conceitualmente as noções de chrónos, kairós e aión. São três tempos experienciados pelas crianças. Tempos que não se excluem, mas são entrelaçados na maneira como as crianças o vivenciam. A partir disso, pensamos na infância minoritária, que pressupõe uma temporalidade outra, o tempo aiónico, extracronológica, criação; um tempo que não é contável nem contínuo.

Na sequência, discutimos sobre experiência e infância. Benjamin (1994) e Agamben (2008) são os principais pensadores que nos auxiliam a pensar nas intersecções entre infância e experiência. Benjamin (1994) diagnosticou o esvaziamento da experiência e a incapacidade de narrá-la em nosso tempo e suas implicações para a vida humana, que não permite mais a transição da experiência para a linguagem, produzindo modos de vida empobrecida de ética, estética e ação política. Agamben (2008) descreve esse problema de Walter Benjamin e questiona se nós seremos ainda capazes de experimentar e de transmitir experiências. Aponta que é necessário entender a infância enquanto condição de existência que acompanha toda a vida. É um sujeito que está exposto à historicidade e que faz história, história descontínua e de acontecimento singular.

Partindo disso, na sequência, problematizamos que a infância e a linguagem constituem um círculo em que a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância (Agamben, 2008). Diante desse entendimento, a infância emerge enquanto possibilidade para o sujeito produzir experiência. Infância e experiência como as condições de possibilidade da existência humana, pois são as condições para se chegar à linguagem, que não cessa quando nos elevamos à condição de falante, uma vez que somos continuamente atravessados pela linguagem vida afora.

Junto a tudo isso, no decorrer do texto reativamos a relação entre tempos de infância, linguagem e experiência através da potência poética de Manuel de Barros, pois seus poemas apresentam a intensidade de um vivido que é destituído de um tempo cronológico e sucessivo. Em seus poemas, “a infância não é um paraíso perdido, mas um tempo que pode se fazer sempre presente na vida adulta, uma vez que elementos como a imaginação, a fantasia, a criação e um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo-a (...)” (Scotton, 2004, p.11). Problematizamos que sua poética se constitui em potenciais linhas de fuga1 que revelam a infância que nos acompanha ao longo da vida e que também resiste às movimentações conclusivas.

Por fim, fechamos o texto tratando do reconhecimento da nossa condição infante.

A experiência da infância pode ajudar a diminuir a saturação de sentido e devolver um pouco de autenticidade à vida nos distintos espaços sociais. Trata-se de um modo de viver que implica suspender a continuidade; significa sentir, pensar, ouvir e observar de forma descontínua, paciente, sem pressa, deixando-se guiar pela paixão.

tempos de infância

Na Filosofia greco-ocidental temos diferentes palavras para se referir ao conceito de tempo, sendo algumas delas: chrónos, kairós e aión. Chrónos estaria relacionado ao tempo contínuo e sucessivo, estruturado em passado, presente e futuro. Aión, designaria o tempo da intensidade, um tempo que não é contável nem contínuo. Enquanto chrónos é o limite, aión é a duração. Chrónos, na mitologia grega, representa o deus do tempo, uma criatura implacável que podia devorar a todos. Casado com Reia, teve seis filhos. Apenas Zeus não foi engolido pelo pai, que tinha medo de perder o seu poder para um dos filhos. Isso porque uma antiga profecia anunciava que um deles assumiria o seu trono. Zeus fez o pai vomitar seus irmãos, dos quais um era Kairós, caracterizado como um jovem atlético, com um tufo de cabelo na testa e a cabeça calva, como explica o mito, justamente para não ser pego pelo pai, Chrónos. É, portanto, essa possibilidade de não ser apanhado pelo pai, isto é, o tempo oportuno, do inédito, do acontecimento, abertura de temporalidade (Kohan, 2004).

Em nossa sociedade, quando falamos do tempo, costumamos usar o tempo Chrónos, relacionado à sequência de tempo linear, definindo um tempo como uma causalidade contínua; esquecemos, com isso, que o tempo também pode ser entendido de outra maneira. Heráclito dizia que o tempo era aión, a brincadeira, o jogo, o acaso. Isto é, aos gregos antigos, o tempo era oportunidade. Quase sempre vivemos submetidos ao tempo chrónos, dominados por relógios e calendários, esquecendo as oportunidades e experiências de vida em outras temporalidades. Quando pensamos no tempo escolar, parece estar relacionado principalmente ao tempo chrónos. São os ponteiros do relógio e o tempo decorrido que controlam esse tempo. As ações no ambiente escolar costumam ser direcionadas por esse tempo, que é o tempo da produtividade. É por isso que vemos crianças totalmente envolvidas no brincar sendo obrigadas a encerrá-lo porque “o tempo acabou” e é hora de fazer outras coisas. O tempo do brincar é um dos exemplos que mostram como o tempo das crianças é controlado por chrónos. De um modo geral, as crianças têm um tempo determinado para os encontros, para brincar, explorar e inventar, um tempo que não é aquele que as crianças vivenciam (Kohan, 2004).

Interromper a expressão da criança, suas linguagens, é matá-la no que ela tem de inventivo e revolucionário (Skliar, 2018). Desse modo, podemos pensar que a criança nasce quando o dever morre. Isto é, com a ausência de preocupação com aquilo que os adultos esperam dela, ela vive de forma inventiva. Para a criança (quase) tudo é novo. Não há mapas a serem seguidos, não há guias marcando rotas, não há manuais que explicam como se deve ou não proceder diante das situações. A criança é aquela que cartografa passos rumo ao desconhecido, estabelecendo descaminhos a cada passo dado em uma exploração na busca de potências escondidas nas novas aventuras. Nas palavras de Kohan (2003, p.14),

[…] a infância é devir; sem pacto, sem falta, sem fim, sem captura; ela é desequilíbrio; busca; novos territórios; nomadismo; encontro; multiplicidade em processo; diferença; experiência. Diferença não-numérica; diferença em si mesma; diferença livre de pressupostos. Vida experimentada; expressão de vida; vida em movimento; vida em experiência.

O tempo aión pode ser percebido na intensidade com que as crianças participam de seus projetos e construções, por isso não há quase nada para distraí-las, vivendo o presente em profundidade e integridade. Como afirma Kohan (2007, p.114), “é o tempo circular, do eterno retorno, sem a sucessão consecutiva do passado, presente e futuro, mas com a afirmação intensiva de um outro tipo de existência”. O tempo na brincadeira não tem pressa, passa devagar. A entrega e o modo com que a criança se relaciona com a vida estão presentes nas suas vivências brincantes, na experiência do desenho e da pintura, ao subir e descer da árvore diversas vezes, na dança, nos movimentos corporais que experimenta.

Entre o chrónos e o aión, vive o kairós, compreendido como o tempo oportuno, do acontecimento (Araújo; Costa; Frota, 2021). Conforme expresso na mitologia grega, trata-se do momento propício que emerge de forma inesperada, um tempo de ruptura e de abertura do tempo chrónos, uma fissura, uma brecha, uma fresta na imaginária linearidade temporal. Trata-se do tempo da ocasião que nos desloca da rotina e nos coloca a viver de uma forma mais espontânea e aberta para acolher as novidades extraordinárias. Kairós parece querer forçar espaço em chrónos, mas escoa diante das horas. Na escola, o tempo kairós pode emergir quando as crianças questionam o mundo e investigam coisas que lhes interessam. E nesse ponto de inflexão emergem resistências por parte das crianças, onde buscam dizer “não” para certas práticas escolares, bem como contracondutas (Foucault, 1977-1978/2008), onde os alunos podem dar as costas para o que a escola e os professores propõem ao promover outros tipos de circulação e sociabilidades. O momento oportuno de observar as diferentes joaninhas no jardim, quando o foco principal da aula consistia em observar os diferentes tipos de cores e flores, por exemplo. Penso aqui no tempo do cotidiano escolar tendo em vista a criação de rupturas, romper com o entendimento da linearidade do tempo e da dinâmica acelerada imposta pelo sistema capitalista, que molda o cotidiano das crianças e as captura numa lógica da produtividade utilitária pelo tempo chrónos. A diferença entre chrónos, kairós e aión nos auxilia a pensar as infâncias e os modos das crianças viverem o seu tempo. Vale ressaltar que os três tempos são experienciados pelas crianças. Esses tempos não se excluem, mas são entrelaçados na maneira como as crianças vivenciam o tempo. Não se trata de defender um tempo em relação ao outro, mas de possibilitar espaços para enxergar o tempo das crianças de outros ângulos.

Nas palavras de Schérer (2009, p.35), “[é] preciso libertar a criança da ‘infância’, quero dizer, dessa situação de controle estrito e, a pretexto de amadurecimento, dessa interiorização das coações e dos comportamentos embrutecedores, em relação aos adultos, que lhe são incutidos pela pedagogia [...]”. É preciso libertar a criança das forças de controle estrito, que visam criar pretextos para civilizar a criança animalesca e as suas paixões. Paixões essas que são vistas em oposição à racionalidade e que, necessariamente, precisam ser domesticadas e convertidas em afetos entendidos socialmente como passíveis de operação em convenções sociais humanas.

Podemos tomar aqui Kohan (2007) sobre a existência de duas infâncias, isto é, a infância majoritária e a infância minoritária. A infância majoritária é aquela largamente defendida, uma infância cronológica representada pela passagem do tempo e percebida pelas fases do desenvolvimento humano como bebês, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Essa visão da infância prevalece na arena política de salvaguarda dos direitos da criança e da formulação de políticas públicas infantis. A infância minoritária, por sua vez, pressupõe temporalidades outras, tempo aiónico, extracronológico, revolução, resistência e criação (Kohan, 2007).

A infância resiste a tudo que tende a capturar e moldar modos de ser criança, como as ideias usualmente construídas por adultos. Deste modo, a criança luta contra uma infinidade de forças que intentam capturar o seu corpo a partir das expectativas: criança educada, bom aluno, prepara-se para o futuro para ser bem-sucedido, se casar, constituir família com uma pessoa do sexo oposto e ter filhos, etc. Contudo, a criança é um corpo que resiste. E todo o corpo que resiste é um corpo que destrói para poder criar, de outro modo, diferente do anterior, sem urgências, sem pressa, sem antecipações.

A espera também pode ser entendida como proporcionar tempo ao outro. A espera é também aquele momento de ouvir e construir com o tempo do outro. Envolver-se com as crianças e lhes oferecer oportunidades de interagir com o ambiente e materiais, e observar como vivenciam seus tempos diários. Então, o papel educativo dos adultos com as crianças consistiria, no melhor dos casos, em proporcionar espaços abertos e experiências singulares para a potencialidade de aprender e de criar sentidos. Trata-se de dar tempo às crianças para que se compreendam, se expressem, investiguem, descubram e deem continuidade aos seus projetos de invenção de mundos.

O tempo da criança é aquele que se expande, de interrupção e retomadas, tempo para captar possibilidades, sugerir teorias, testar experimentações, aprender criando. As crianças estão interessadas em criar, descobrir, projetar, restaurar, recriar e reinventar suas teorias e experimentações. Tudo isso leva tempo. Por isso, é preciso rever a noção de tempo nas proposições escolares. É importante dar às crianças o direito de participar de espaços coletivos de diálogo e experimentação, onde possam se desenvolver com autonomia, terem tempo para, de fato, estudar, construir e desconstruir, brincar, pintar e compartilhar os tempos de sua infância. Em outras palavras, a infância que mais nos interessa, em sintonia com Kohan e Fernandes (2020), são as infâncias extracronológicas, que são compostas por movimento, potência e transformação.

Ao retomar os poemas de Manoel de Barros, passamos a perceber que eles se situam no tempo aión, pois trazem justamente a intensidade de um vivido que é destituído de um tempo sucessivo e cronológico. Vejamos:

Tempo, Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e com os musgos. Assim: tem hora que eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós. O pai passava o seu dia passando arame nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua língua fininha um lagarto. E ali ficava cubando. Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato, Folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Porque o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte. (Barros, 2003, p.133).

A nosso ver, podemos identificar que em Manuel de Barros o presente não é relevante, pois é no passado e no futuro que se estabelece a existência. O poeta introduz um passado e um futuro que ocupa o presente, dispondo variantes que não têm fim. Manuel de Barros nos presenteia com o tempo aión, pois o quando é uma marca de tempo que não se deixa ser preordenado. Trata-se de um tempo que não rege o cotidiano, mas é sim de deixar liberar o imaginário do eu poético e criar um espaço repleto de invenções. O que de fato importa ao poeta em questão é viver de um modo que não seja limitado pelo tempo, onde ele seja livre para usar o tempo dos mais diversos modos. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Vale dizer que o quando infante no poema demonstra estilhaços de memória fictícia dentro do adulto, isto é, a criança que Manuel de Barros não deixou de ser (Nunes, 2015). O tempo no poema é descontínuo, negando períodos etários do existir. O tempo do poema não é de chrónos, da linearidade histórica e das maiorias. Trata-se do tempo aión, do devir, marcado pelas minorias e linhas de fuga. Olhar para as poesias de Manuel de Barros nos ajuda a pensar a infância em seu devir próprio e o tempo aión como aliado da expansão da vida em potência.

Na esteira das poesias de Barros que evoca o quando como marcador temporal, podemos pensar na noção de tempo em Henri Bergson, discutida por Lapoujade (2017, p.11, grifos do autor) quando nos traz a analogia do sino:

a sucessão de badaladas de um sino é, primeiro, uma série de sons que nos emociona de forma confusa, antes de ser um número definido que podemos representar distintamente. Os “dados imediatos da consciência” são antes de tudo emoções, eles são o efeito que o escoamento do tempo produz sobre a sensibilidade. Mas que tipo de emoção é essa? ´verdade que as badaladas do sino têm uma tonalidade emocional particular - anúncio festivos, repetição monótona das horas etc. =, mas, para Bergson, trata-se apenas de emoções superficiais que pertencem ao mundo das representações. Mais profundamente, existe uma emoção que está ligada à passagem do tempo propriamente dita, ao fato de sentirmos o tempo fluindo em nós e “vibrando interiormente”. É a própria duração que, em nós, é emoção.

As ideias de Lapoujade (2017) a partir da noção de tempo em Bergson cabem aqui para pensar o tempo enquanto vibrações de frequências distintas, desmaterializando o próprio ser e tornando-se duração. São exatamente os afetos que nos concedem acesso ao tempo. O luto, a melancolia, a angústia, a solidão, a alegria, a tristeza etc. se atravessam com a duração do tempo e continuidade da nossa vida interior, onde os “afetos ‘temporais’ seriam os elementos impuros que vêm turvar a percepção da pura duração, assim como fazem, a seu modo, as emoções sugeridas por uma melodia” (Lapoujade, 2017, p.14). Esses afetos temporais se traduzem, por exemplo, no arrependimento produzido no tempo ao lamentar algo que já ocorreu; ou a espera que se torna uma disposição relativa ao tempo por inteiro.

Podemos perceber que neste poema a imagem da infância é produzida como um experimento: Hoje eu estou quando infante. Nesse sentido, o hoje e o quando se constituem em duas marcas de tempo com conceitos diferentes. Hoje significa o tempo presente, e quando indica um movimento, um tempo no seu devir, com marcas permanentes e do futuro que não está com pressa para acontecer. Manuel de Barros subverteu o conceito de tempo presente tornando-o um tempo ilimitado, sem hora e data fixas: Eu resolvi \ voltar quando infante por um gosto de voltar... Então agora em estou quando infante. Estou quando infante aponta para uma fuga e distanciamento do presente, para uma irrupção do devir-criança2, uma linguagem que lhe é ilógica e estrangeira.

A linguagem subversiva, que permite que nosso imaginário encontre diferentes significados para estabelecer a conexão entre as informações, também constitui experimento de devir e linhas de fuga. Podemos perceber que em devir-criança, Manuel de Barros restaura imagens da sua infância de uma família rural. Esses acontecimentos são descritos em um ambiente bastante familiar, composto por pai, mãe, irmãos e elementos com os quais nos presenteia dando cor e tom ao cenário: mato perto do rancho, rancho de palha, a diversão das crianças com brincadeiras possibilitadas pela inventividade do imaginário, o pai e a mãe nas suas atividades do dia a dia. Desse modo, o devir-criança na poesia de Barros constitui uma linha de fuga que revela a infância que nos acompanha ao longo de nossa vida e que também resiste aos movimentos finalizadores. Contudo, o tempo nos dias de hoje que escorre pelas mãos trava essa infância que perdura e que resiste, de modo que a perda de experiência se tornou um dos motivos mais ponderáveis nessas tramas.

experiência e infância

É Benjamin (1994) e Agamben (2008) que nos auxiliam a pensar nas intersecções entre infância e experiência. A Modernidade, com seus dispositivos biopolíticos, não permite mais a transição da experiência para a linguagem, produzindo modos de vida empobrecida de ética, estética e ação política. O esvaziamento da experiência, a incapacidade de narrá-la em nosso tempo é uma problemática importante da filosofia contemporânea. Benjamin (1994) diagnosticou o esvaziamento da experiência e a incapacidade de narrá-la em nosso tempo e suas implicações para a vida humana. Chama de pobreza da experiência aquilo que ocorre ao reduzi-la à vivência, decorrente da racionalização da existência, da aplicabilidade da ciência e da tecnologia na vida, destituindo sua aura, como aconteceu com a arte, por exemplo. Benjamin (1994) encontra nos soldados da Primeira Guerra Mundial, que, ao retornarem mudos, sem narrativa aventureira e nada a dizer, evidências tanto do sintoma de empobrecimento da experiência quanto da capacidade narrativa diminuída.

Para Agamben (2008, p.23) - bem como em Benjamin (1994) e Arendt (2010) - a destruição da experiência se deve às relações do nosso cotidiano ao serem destituídas de autoridade: “o que caracteriza o tempo presente é que toda autoridade tem o seu fundamento no ‘inexperienciável’, e ninguém admitiria aceitar como válida uma autoridade cujo único título de legitimação fosse uma experiência”. Para o pensador italiano, a autoridade se funda na narrativa, na palavra e não no conhecimento objetivo. Na nossa sociedade, a autoridade se legitima não mais pelas experiências do sujeito. As experiências ocorrem fora do sujeito; o conhecimento é o que conta de modo que os slogans substituem as máximas e os provérbios. Para ilustrar o que Agamben (2008) chama de autoridade baseada no conhecimento objetivo, basta verificarmos os modos como conduzimos nossas vidas e fazemos as coisas: sempre com a ajuda de especialistas. Desde contar com a tecnologia mais avançada (que é compreensível e razoável) até as coisas mais simples do dia a dia, como cuidar da economia familiar, cuidar do corpo, criar os filhos, usar roupas adequadas conforme as estações do ano. Isto é, existe sempre um método determinado por um conhecimento tomado como legítimo, que se origina fora do sujeito, inexperienciável a priori.

Conhecimentos esses pertencentes aos especialistas, que hoje podemos identificar, principalmente, nas funções exercidas por personal ou coach (atividades profissionais emblemáticas atualmente). Então, a decisão final será sempre do professor, cientista, tecnólogo ou especialista em alguma coisa para exercer a autoridade de formar cidadãos. Como resultado, a autoridade da experiência do próprio sujeito está cada vez mais enfraquecida. Diante dessa experiência, a ciência moderna rejeita a experimentação. Enquanto a experiência é o acaso e o acontecimento, a ciência moderna opera em um caminho lógico com determinações quantitativas precisas. Agamben (2008, p.26) afirma que “a experiência é incompatível com a certeza, e uma experiência que se torna calculável e certa perde imediatamente a sua autoridade”. A autoridade está na tradição experienciada e na memória coletiva. A experiência baseada na autoridade cede lugar à experimentação, apontando caminhos do conhecimento, métodos, para alcançar a certeza. A contemporaneidade efetiva o projeto moderno de destruição do sujeito e do saber a partir da experiência. Em troca disso, solidifica o sujeito do conhecimento, da consciência e seus ideais de objetividade.

Benjamin (1994) já apontava para a necessidade da restauração da experiência. Nos indicou que é possível criar uma nova experiência, fundamentalmente baseada na mudança das noções de tempo e história. Essa noção de descontinuidade do tempo nos leva a pensar que um fato se torna um fato histórico postumamente; desde que um acontecimento esteja relacionado a ele próprio, mesmo que separados por milênios (Benjamin, 1994). Deste modo, o passado não é mais uma imagem eterna, mas se constitui numa experiência entrelaçada com o presente na descontinuidade do tempo.

Agamben (2008), então, interroga se nós seremos ainda capazes de experimentar e de transmitir experiências. Descreve esse problema de Walter Benjamin de uma forma mais próxima das nossas vidas de hoje. Nos aponta que se a Modernidade produziu um empobrecimento da experiência, a contemporaneidade, por sua vez, está promovendo sua destruição. O pensador acredita que não precisamos testemunhar nenhum desastre ou guerra para percebermos o confisco da experiência. Basta o cotidiano para perceber. Afinal, não há quase nada na vida cotidiana das pessoas contemporâneas que possa ser transformado em experiência (Agamben, 2008). Segundo Agamben (2008, p.22), os contemporâneos retornam para “casa à noitinha extenuados por uma mixórdia de eventos”, sejam eles alegres, tristes, intensos ou não, mas que nenhum deles se traduz em experiências. Isso torna nossa vida cotidiana insuportável, diz o pensador:

É esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável - como em momento algum no passado - a existência cotidiana, e não uma pretensa má qualidade ou insignificância da vida contemporânea confrontada com a do passado (aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana tenha sido tão rica de eventos significativos). (Agamben, 2008, p.22).

Seguindo o entendimento de Agamben (2004), o vazio de existência e de sentido se deve à inserção da vida nua (zoé) no mecanismo e cálculo do poder do estado e da transição da política clássica para a biopolítica no desenvolvimento da modernidade. O filósofo italiano, ao recorrer a Michel Foucault, acredita que, do ponto de vista político, essa transformação consiste na produção e regulação da vida nua, de forma a promover a subordinação da população ao dispositivo de poder do Estado, tornando dóceis os corpos, fazendo com que o indivíduo se adapte com as modernas formas de existência. Sem a inserção da vida aos mecanismos e cálculos do poder e essa transição da política clássica para a biopolítica, a sociedade moderna não se desenvolveria (Agamben, 2004). No desenvolvimento dessa sociedade, a vida nua não só faz parte do mecanismo de poder, mas também gradativamente ocupa o centro da arena política moderna, pois a esfera privada tornou-se o paradigma desta última e em detrimento da vida pública. Recorrendo ao que assinalou Arendt (2010), Agamben (2004) analisa que, historicamente, a substituição da vida pública pela vida privada se constitui como uma das consequências dos campos de concentração, dos totalitarismos modernos, dos estados de exceção.

Agamben (2004), principalmente na obra Homo sacer I, reexamina os pressupostos biopolíticos de Michel Foucault tentando expandir tal noção. A principal discordância se refere ao alcance temporal do biopoder. A diferença decorre de um conceito criado por Agamben, a saber, a vida nua - ao mesmo tempo responsável pela origem da política e do direito. Se a política para Foucault, se transmuta em biopolítica a partir da Modernidade, para Agamben a política, desde sempre, se manifestou como biopolítica. Em Foucault, são os dispositivos e as instituições disciplinares que caracterizam a Modernidade. Para Agamben, trata-se do entendimento de que a exceção soberana é a regra. Outra diferença importante se refere ao uso metodológico do conceito. Em Foucault, trata-se de analisar os dispositivos com os quais o poder se relaciona com os corpos e com a vida. Agamben, por sua vez, inclui em sua análise o discurso político-jurídico sobre as teorias clássicas do poder, especialmente a soberania.

Nos antigos gregos - aos quais atribuímos quase todo o nosso vocabulário político -, não existiam palavras para assinalar o que chamamos de vida. Eles tinham dois distintos termos: zoé, que se refere aos fatos simples da vida compartilhados por todos os seres vivos; e bíos, um modo de vida que era particular, limitado às comunidades, vida reconhecida sob os aspectos ético e político. Os gregos não apenas diferenciavam tais termos, mas sobretudo procuravam separá-los. Sob tais aspectos, Agamben aqui retoma o argumento de Hannah Arendt, sobretudo em A condição humana3. O zoé ocorre no âmbito do oikos, na casa, na necessidade do suprir, das condições para viver, como o trabalho, a alimentação, isto é, trata-se da dimensão econômica. A bíos, vida qualificada, ao contrário, pertencia à pólis, que é a política, um lugar de vida livre, igualitária e ética.

Para nós, essa diferença quase que desaparece, de modo que o termo vida representa uma pressuposição nua que pode ser isolada em qualquer modo de vida. Deste modo, a partir das noções de Foucault, na Modernidade, o objeto e a finalidade da política deixaram de ser bíos e se tornaram zoé (Agamben, 2004). A partir de Arendt (2010) poderíamos falar que a vida biológica (reprodutiva e econômica) é o âmago da vida política. Em todo caso, a politização da vida nua - zoé -, enquanto acontecimento político decisivo da Modernidade, altera as noções políticas gregas das quais havíamos nos servido até então. Agamben (2004) nos diz que essa relação de vida nua-política ou vida-soberania é muito antiga, mas que foi com a Modernidade que tais noções foram modificadas.

Ao colocar a vida biológica (vida nua) no centro dos mecanismos do poder, a Modernidade revela o dispositivo originário pela qual se constituiu a política e o direito. Nas palavras de Agamben (2004, p.9), “[p]ode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, tão antiga quanto a exceção soberana”. Esta é a proposta de Agamben, pois é preciso analisar a relação entre biopolítica e soberania. Em outras palavras, como a vida nua está impressa no poder soberano. Portanto, a base do poder político se funda na separação da vida simples, da vida nua e de seus modos de vida. Para o filósofo, a relação entre política e vida nua já existe na definição clássica de Aristóteles, do homem enquanto animal possuidor de linguagem.

De acordo com Aristóteles, a política não se funda com a voz, mas a partir da linguagem. A voz é comum a todos os animais e pode expressar felicidade e infelicidade. A linguagem é um atributo do ser humano, capaz de expressar o que é justiça e injustiça, possuindo capacidade para que uma comunidade possa ser fundada. Destaca-se, então, que o que está em jogo é a relação vida e política no transcurso da voz à linguagem. Carl Schmitt, um teórico e jurista ultraconservador, é um autor relevante na noção biopolítica de Agamben, que define em sua Teologia Política como soberano quem decide sobre o estado de exceção. A partir deste modo de pensar, Agamben (2004, p.35) compreende estado de exceção enquanto estrutura originária da soberania: “[s]e a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica [...] ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”.

Portanto, nossa relação com o poder soberano assume a forma de abandono. A vida ordinária apenas é inserida no ordenamento através da exclusão. Ou melhor, a vida ordinária não está dentro nem fora, mas suspensa numa zona limítrofe. Agamben (2004) explica que esse modo de vida aprisionado no abandono soberano é a sacratio (a sacralidade da vida). O homo sacer, no direito romano, é uma pessoa que, acusada de um crime, poderia ser morta por qualquer pessoa que a queira matar (menos em rituais religiosos). “Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania” (Agamben, 2004, p.91). Desse modo, a sacralidade da vida exprime “justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono” (Agamben, 2004, p.91). Homo sacer é um modelo em que nas modernas democracias, vieram a se tornar o direito à vida. Basta o fato de estar vivo para estar incluído no ordenamento jurídico, enquanto integrantes de um Estado. Simultaneamente, essa mera vida [vida biológica, como falamos hoje] está aí incluída através de uma exclusão. Ou seja, a exposição a um poder de morte derivado do próprio sistema jurídico do Estado.

Trata-se, espantosamente, de um morto ainda vivo. Esta é a condição do homo sacer e da vida de todos nós, sob suspensa. Para Agamben (2004), este é o modelo que rege a biopolítica na Modernidade: de decidir quais vidas valem a pena ser vividas e quais outras não, limitando aquelas dignas de serem vividas à simples sobrevivência. Assim, o Estado regulamenta a vida nua (zoé), mas por uma racionalidade indiferente à vida política (bíos). Assume-se uma política de bandos, se regulamenta e se apodera da vida nua (zoé) - esta diferente da vida ética e política - (bíos). Se a política de bandos se constituiu na exclusão daqueles que não se permitem sucumbir ao instituído e ao modo de pensar biopolítico vigente, então essa indiferença entre zoé e bíos apresenta na atualidade um paradoxo. Por um lado, a vida nunca foi tão regulamentada e propagada na esfera pública, inclusive no âmbito das políticas nacionais. Por outro, nunca se sentiu tanto a perda de sentido dos cidadãos que vivem essa regulamentação.

A partir de Agamben (2004; 2008), podemos cogitar a possibilidade de pensar uma educação que não se deixe enlaçar pelos dispositivos dicotômicos da Modernidade, incluída aqui a constituição da pedagogia moderna. Dito de outro modo, pensar a educação não pelo triunfo da biopolítica que confisca a vida pública tendo em vista a produção da vida nua, do sujeito que apenas sobrevive e que é incapaz de narrar experiência. As instituições escolares estão aí; é necessário torná-las ao avesso. Fazer das experiências brechas nas teorias.

É no poema Achadouros de Manoel de Barros que se reativa a relação entre a infância e a experiência abnegada desde a modernidade, mas que se reacende pela potência poética:

Achadouros, Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa. Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam cheios de moedas dentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio de punhetas. (Barros, 2003, p.67).

Cavar enquanto busca para encontrar achadouros de infância, tarefa que o poeta cultiva para fazer falar a experiência soterrada na sociedade contemporânea. Para encontrar os achadouros, Manuel de Barros mergulha no devir-criança, tentando resgatar a infância que o tempo atual faz sucumbir. Portanto, no anoitecer da vida, o poeta encontrou em suas raízes a criança que outrora fomos e somos. O que importa não é restaurar a evolução das etapas iniciais da vida, mas apenas encontrar a experiência da infância permanente: Sou hoje um caçador de achadouros \ de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu \ quintal vestígios dos meninos que fomos. A infância compreendida pelo poeta revela uma experiência de reagir à sua privação, sempre fazendo da pessoa inexperiente seu estado normal de existência (Nunes, 2015). Isso faz com que o sujeito lírico construa sua própria experiência, traduzindo-se em experiência as vivências do seu cotidiano, visto que a hostilidade atual soterra uma infância duradoura e resistente.

Para restaurar a experiência, Agamben (2008) aponta que é necessário compreender a infância enquanto condição de existência que acompanha toda a vida. A infância não reduzida a uma idade específica, ou como uma figura incapaz, de ignorância, mas enquanto possibilidade de romper com o passado. É um sujeito exposto à historicidade e que faz história, história descontinua e de acontecimento singular. O tempo se constitui na necessidade histórica do sujeito constituir-se sujeito: “[o] homem não é um ser histórico porque cai no tempo, mas, pelo contrário, somente porque é um ser histórico é que ele pode cair no tempo, temporalizar-se” (Agamben, 2008, p.121).

linguagem e infância

Agamben (2008) entende a infância não como algo anterior à linguagem, onde, em dado momento, passa a ser outra coisa porque surgiu a fala transparente e articulada, mas que coabita com a linguagem desde a sua origem. Deste modo, a infância também está condicionada por uma história, que impulsiona o sujeito nascente a construir história, uma relação não linear, mas descontínua com ela. A infância não é passiva, nem incapaz, nem dependente, mas está entre experiência e linguagem, condição e origem de ambas. Condição que se dá ao longo da vida e que na história do sujeito proporciona uma outra experiência de linguagem. Vejamos nas palavras do próprio pensador:

Experimentar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história. O mistério que a infância instituiu para o homem pode de fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância é pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem (Agamben, 2008, p.65).

Essa experiência da infância não é apenas a impossibilidade de dizer, mas de falar a partir de uma linguagem estabelecida e de uma força discursiva, onde encontra aí seus limites históricos; sempre infância, em busca de linguagem. E um espaço de ética e política, pois não há articulação entre voz e linguagem, mas sim um espaço no qual podemos nos lançar, fazer história no presente. Segundo Agamben (2008), é nessa afonia que se tornam possíveis um ethos e uma comunidade. É a “ilatência impresumível que os homens habitam desde sempre, e na qual, falando, respiram e se movem” (Agamben, 2008, p.17). É essa ilatência que não assumimos para fazer experiências do ser falante. Fazer da vida um ethos e buscar uma pólis que “estejam à altura desta comunidade vazia e impresumível”, tarefa infantil da humanidade (Agamben, 2008, p.17).

Agamben (2008) nos oferece uma teorização da experiência em que a infância é indispensável. Entende o pensamento como experimentum. E assim, a infância estaria na diferença entre língua e fala. Sem essa cisão entre língua e discurso, o ser humano seria sempre um falante, sem possibilidade de conhecimento, infância ou história; se constituiria apenas uma natureza linguística. Não estabeleceria quaisquer descontinuidades ou diferença, elementos pelos quais é possível produzir história e saber. Infância enquanto movimento da passagem entre a linguagem e o discurso. Discurso falado ao mundo na voz de um infante constituindo experiência. Assim, Agamben (2008, p.58-59) entende a experiência e a infância não como puras ou em si mesmas, mas relacionadas à linguagem, isto é, uma “in-fância do homem, da qual a linguagem deveria, precisamente, assinalar o limite”.

[...] é na linguagem que o sujeito tem a sua origem e o seu lugar próprio, e que apenas na linguagem e através da linguagem é possível configurar a percepção transcendental como um eu penso. [...] É ego aquele que diz ego. É este o fundamento da subjetividade que se determina através do estatuto linguístico da pessoa... A linguagem é organizada de modo a permitir a cada locutor apropriar-se da inteira língua designando-se como eu (Agamben, 2008, p.56).

Assinalando-se como eu, o sujeito expressa sua singularidade. Para dizer um eu sou, o sujeito necessita estar colocado no universo da linguagem. Com isso, Agamben declara que o ser humano é um ser feito de linguagem e por meio da linguagem. Isto posto, vai ao encontro da experiência primordial e encontra o fato de que o sujeito não é desde o seu começo falante; isto é, cisão entre sujeito e linguagem. É aí que o pensador posiciona a experiência, pura, originária e por enquanto muda:

Uma experiência originária, portanto, longe de ser algo subjetivo, não poderia ser nada além daquilo que, no homem, está antes do sujeito, vale dizer, antes da linguagem: uma experiência muda, no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, da qual a linguagem deveria, precisamente, assinalar o limite (Agamben, 2008, p.58).

Contudo, a experiência pura, antes da linguagem, é uma coisa imaginária porque não há sujeito afastado da linguagem, e nunca o encontraremos em seu ato inventivo. A infância e a linguagem constituem “um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância” (Agamben, 2008, p.59). Diante dessa visão, a infância emerge como possibilidade para o sujeito produzir experiência; infância como condição da experiência humana. Infância e linguagem se referem uma à outra, e embora a infância careça de linguagem, ela também é sua própria condição. O sujeito não nasce falante, e a linguagem não é dada naturalmente, mas aprende-se a falar. Esta é a base de sua historicidade: “[a] experiência é a diferença entre o linguístico e o humano, entre o dado e o aprendido, o que temos e o que não temos ao nascer” (Kohan, 2005, p.234). Infância e experiência tornam-se as condições de possibilidade da existência humana, pois são as condições para se chegar ao mundo da linguagem, que não cessa quando nos elevamos à condição de falante, pois somos sempre atravessados pela linguagem. A infância tem um papel importante nessa continuidade, pois a infância é tanto ausência, quanto a busca de linguagem.

Em Agamben (2008, p. 59), o problema da experiência está diretamente relacionado à questão da linguagem, pois compreende que não há experiência sem ela:

[...] a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito.

A ideia de que a infância precede a linguagem é um mito, pois a infância está intimamente relacionada à linguagem. Agamben (2008) aponta que a infância é um estado da experiência humana em que a linguagem já existe na sua psique. Também destaca a fronteira entre a infância do sujeito e sua constituição como sujeito da linguagem. Então, a aprendizagem do adulto com a linguagem não acaba, por isso vamos encontrar a infância do adulto, porque as crianças têm esse predicado de aprender a falar. Há também um certo abandono da origem da linguagem que toma uma cronologia para representar o antes e o depois da linguagem. Tal origem nunca será capaz de apresentar plenamente os fatos anteriores, porque é algo que ainda está em construção e não parou de acontecer.

A criança não está desprovida da linguagem, bem como as emoções e os afetos são pulsantes em suas variadas expressões. Segundo Lapoujade (2017, p. 16), “é através de um afeto ou de um complexo de afetos que se constitui essa nova ordem do tempo”. Inspirado em Bergson, tendemos a concordar com Lapoujade (2017) quando observamos as crianças e as infâncias que circulam não muito preocupadas com a norma - inclusive elas lutam contra a norma e toda uma série de expectativas que são carregadas contras elas - e muito mais atentas aos seus sentimentos, emoções, vontades e desejos. Como nos lembra Nietzsche (1995, p. 44), “inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer-sim”. Para a criança (quase) tudo é novo, tudo pode ser explorado e muitos são os caminhos a serem seguidos. Por isso, se fez necessário encontrar as potências-criadoras escondidas, muito mais por via das paixões, onde podemos conceber as crianças como rebeldes; e rebeldes, nesse caso, porque podem desconstruir e construir novos valores e novos estilos de vida por vias da linguagem.

O sujeito não nasce falando. Deste modo, a infância está ausente e em busca de linguagem. É na infância que se apropria da linguagem, tornando-se sujeito dela quando diz eu. E assim, a infância só pode ser acessada por meio da linguagem, pois infância e linguagem coabitam, estão integradas em uma circularidade em que a infância é o começar da linguagem e a linguagem é o começar da infância. Isso acontece no poema Desejar ser, de Manoel de Barros:

Desejar ser, Carrego meus primórdios num andor. Minha voz tem um vício de fontes. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna. Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem. Pegar no estame do som. Ser a voz de um lagarto escurecido. Abrir um descortínio para o arcano. (Barros, 2010, p.339).

No poema, a infância depende da linguagem, pois na perspectiva de Agamben (2012), o sujeito não está separado. Manuel de Barros, no desenvolvimento de seus poemas, mergulha na linguagem em busca do sentido primeiro das palavras. O significado das palavras passa por acumulações no decorrer do tempo, ele parece querer “limpar” para ir ao encontro de seus primeiros significados, ouvir sua primeira voz. O significado primeiro da linguagem que só o encontra com a presença da infância. Em seus poemas podemos identificar vozes infantis, pois infância e linguagem estão interligadas e não tem como investigá-las segregadamente. A potência criadora dessa linguagem possui no devir-criança o artífice para a criação de outra perspectiva literária, poética, na busca da fonte inaugural das palavras: avançar para o começo e chegar ao criançamento das palavras (Nunes, 2015). Com Manoel de Barros podemos pensar em novas linguagens ao visitar a infância primeira que se encontra cheia de experiência.

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada, O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos. Haver com ele um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera. Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais rei nem regências. Uma certa liberdade com a luxúria convém. (Barros, 2003, p. 265).

Como podemos perceber, não cabe no poema uma linguagem que é explicativa e lógica, em que descrições e conceitos signifiquem elementos básicos na construção do texto. A partir de Manuel de Barros, definições pauperizam a linguagem poética, pois demarcam seu sentido: O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. \ Há que se dar um gosto incasto aos termos. A ideia de gosto incasto indica que necessitam ser audaciosas, assanhadas, ousadas. O poema enquanto lugar em que a inventividade poética seja explorada ao seu “limite”. Isso para dizer que Barros busca sua potência criadora na infância, emergindo então uma linguagem madruguenta, adâmica, \ edênica, inaugural. Vejamos no seguinte poema:

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada,

Nas metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,

Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas.

Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval pedral etc.

Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural -

Que os poetas aprenderiam - desde que voltassem às crianças que foram

Às rãs que foram

Às pedras que foram.

Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.

Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?

Seria uma demência peregrina.

(Barros, 2010, p. 266).

Manuel de Barros anseia por uma linguagem potente em imagens, sons, cores, liberdade, imersa em significados ocultos, do limo, do barro. Uma linguagem livre de regras gramaticais, quebrando todas as resistências do mundo normativo. Algo que pode ser apropriado ao retomar a infância: Voltar à infância para reaprender a errar a língua. Isso significa afirmar que Manoel de Barros derruba a regra da lógica e institui a regra da liberdade e potência criadora, transgredindo fronteiras e criando novas realidades aplicadas à expressão da linguagem (Nunes, 2015). Não se prender na rigidez da lógica gramatical é o modo que o autor encontra para sobreviver. Para tanto, identifica na infância o campo para o aflorar da criação e transpassar quaisquer obstáculos, remodelando o seu mundo e ao mesmo tempo vivendo a liberdade que os poetas, loucos, artistas e crianças possuem sobre as coisas da vida. Eles são capazes de recriar seu próprio espaço de vida, desencadeando novas expressões de linguagem. O poeta nos convida para retornar na infância a fim de reaprendermos a cometer erros de linguagem e encontrar frases malucas ou colocar a língua para criançar, brincar.

Para Agamben (2008), infância é tanto uma ausência quanto uma busca pela linguagem. Infância e linguagem são condições de transição da língua ao discurso, e assim encontramos a historicidade da humanidade, percebendo que a infância desempenha um papel fundamental nessa perspectiva, ou seja, de romper com algo estabelecido para que novas possibilidades possam emergir. A infância, como experiência que constrói a condição histórica do sujeito, torna-se uma infância afirmativa, ou melhor, deixa de significar ausência, mas significa força e potência.

Esse modo de viver o tempo da infância está presente nas relações que as crianças constituem com as coisas e nos seus modos singulares de pensar e criar. Constituem modos próprios e singulares que rompem com o nosso modo linear de pensar e viver o tempo. Possibilitar que a educação cultive essa força-criança é um desafio nobre. Uma experiência educativa que se realiza no assombro, na curiosidade, na partilha de vida e experiências. Construir modos, lugares e temporalidades outras de ser professor e de vivenciar o tempo com as crianças. A brincadeira como experiência têm essa potência de resistência que é pulsante e curiosa, pois se constitui como modo de entrega e criação. A brincadeira pode se constituir como possível linha de fuga diante da aceleração do chrónos, que, agitado pelo relógio, não leva em consideração o tempo da infância. O enaltecimento dos conhecimentos lógicos, racionais e conscientes colocou de lado outros modos de expressão humana (como imaginação, fantasia e criação poética) enquanto elementos que mobilizam conhecer mais as crianças em suas dinâmicas inventivas, criadoras, portanto, brincantes.

o reconhecimento da condição infante - considerações finais

O tempo infante é o tempo aiónico que se dá pela experiência. Experiência com as brincadeiras e com suas múltiplas expressões. O tempo das crianças não pode ser ajustado e medido pelo relógio de um adulto. Talvez esta seja a linha de fuga para que as crianças não sucumbam à ordem cronológica da existência, como os adultos, à hegemonia de chrónos. O tempo das crianças é um tempo de criação, de curiosidade, da abertura para assombros e desassossegos. Um tempo que se prolonga, que se deixa experimentar, sentir e perceber; que investiga, que ouve a si e aos outros; avanços e interrupções (Kohan, 2004; Araújo; Costa; Frota, 2021).

Nessa perspectiva, a experiência da infância pode ajudar a reduzir essa falta de sentido, estimular o pensamento e devolver um pouco de singularidade à vida nos espaços escolares e em outros espaços sociais. Não se trata de sugerir aqui o estabelecimento de uma vida infantilizada, como um retorno à condição de ser criança. Trata-se de um modo de viver que implica interromper a continuidade, significa pensar e viver, sentir, observar, ouvir, de forma intermitente, sem pressa, pacientemente, deixando-se guiar pela paixão. O que essa atitude significa em um ambiente escolar? Temos uma forte inclinação para tudo pedagogizar, ou seja, tudo se torna ensinável, e tenta-se desesperadamente encontrar explicações plausíveis para cada acontecimento. Então, também não se trata de pedagogizar a experiência, a infância, o acontecimento.

Essa tendência pedagogizadora e intransigente, se deve à hegemonia do saber e da prática escolar limitada ao pensamento científico e técnico que sempre deseja circunscrever o conhecimento, seja transformado em universal, objetivo, traduzindo em informação, utilidade, isto é, uma razão instrumental. Somos muitas vezes lançados a transformar cada acontecimento em uma regra intelectual ou moral útil. Qualquer coisa que se afaste da regularidade, da estabilidade e da lógica do discurso não pode ser tolerada. Tenta-se pedagogizar, impor uma determinada verdade e cognoscibilidade às coisas. Mas ao contrário, o acontecimento rompe com a regularidade e estabilidade; é o desencadeador do pensamento sobre o sentido ou a falta de sentido, saber que é construído na experiência.

Entremeada com o saber da experiência, a infância emerge como acontecimento que leva à descontinuidade das coisas, como uma explosão do que nos constitui e nos coloca em novos começos. O acontecimento está na ordem do imprevisível, incontrolável e inajustável. Se apresenta de uma forma única que provoca a reflexão sobre a experiência. Infância e tempo diluem a ideia de estabilidade, a qual escapa à compreensão de continuidade, uma vez que ela não é um acontecimento absoluto. Um pensar que vê a infância como acontecimento implica descontinuidade e experiência. A infância significa o não-nomeado, a possibilidade de alguma coisa acontecer de muitos outros modos.

Infância, de contínuo nascer, ela é a possibilidade de quebrar essa inércia repetitiva do mesmo que seduz a um mundo sem nascimento. Ela simboliza a possibilidade de uma ruptura radical com a repetição do mesmo, a expectativa de uma repetição livre e complexa, do radicalmente novo, do que não pode ser inscrito na lógica do estabelecido (Kohan, 2005, p. 252).

Novo aqui não significa a busca incessante pela novidade resultando do conhecimento científico e técnico, mas refere-se a novas possibilidades, éticas, estéticas e políticas, de viver, de se reinventar. Resgatar a infância que é condição na existência e formação humana. A palavra infância provém de en-fant e significa aquele que não fala, que não possui voz. É pensar que a ausência de voz não significa falta, pois nos constituímos na e pela linguagem, o que não é possível fazer se não fosse a nossa condição de in-fante, de não falante. O sujeito não nasce falante; torna-se, vem-a-ser. Essa condição de não falante se dará durante toda a vida; adquirirá fala pelas experiências. Esta é a base da história humana. Para Agamben (2008, p. 64), a “pura língua é, em si, anistórica”, isto é, trata-se de natureza, não necessita de história. Se nascêssemos falantes, não teríamos do que nos apropriar. Seriamos sujeitos sem infância, sem nada para aprender ou construir, ou melhor, sem história. É aqui que se funda a historicidade do sujeito. A infância é, portanto, e fundamentalmente, uma condição existencial na história humana que permite a passagem da linguagem ao pensamento e, assim, estimula a criação em todas as coisas. A infância não pode ser abandonada porque é como abandonar o fundamento histórico do sujeito. E porque são infantes e continuam aprendendo a falar, a historicidade do sujeito continua a ser feita.

Em Manuel de Barros, a infância depende da linguagem, pois o sujeito não está segregado dela. O poeta imerge na linguagem em busca do sentido primeiro das palavras, que só o encontra com a presença da infância. Em seus poemas identificamos ecos infantis, pois infância e linguagem estão associadas e não tem como investigá-las de forma dissociada. Seus poemas constituem linhas de fuga que revelam a infância que nos acompanha ao longo da vida e que também resiste aos movimentos finalizadores:

(...) distante de uma obra autobiográfica, o projeto estético de Manoel de Barros desenha a noção de um “Acontecer Infantil” que nos afasta de toda e qualquer ideia de infância como marca de uma continuidade cronológica de uma vida. Uma infância que é ruptura, descontinuidade, que subverte com as normas instituídas, que instaura novas possibilidades de olharmos o mundo e de nos relacionarmos com as coisas que nele habita; que nos incita a questionamentos, a pensar sempre outra vez o impensável; que diferente do adulto, vive o não vivível e espera o inesperado. Essa infância marca um tempo sem a continuidade do passado, presente e futuro. É uma criança sem idade, sempre presente, enquanto devir de uma vida possível (Nunes, 2015, p. 110).

Portanto, todos nós somos fundamentalmente experiência; infância remete ao inacabamento. Construímos história na medida que estamos disponíveis para sair da condição de sem fala para a condição de falantes, traduzindo a linguagem em discurso, construindo cultura. Infância não apenas como um determinado período de vida do sujeito, mas condição de existência, transformando a não fala em língua e criação de cultura. Como no caso das poesias de Manoel de Barros, “que se constrói a partir de uma língua dada que ele desobedece a seu modo e de uma realidade pré-existente que ele recria, a criança, dependendo do encorajamento do adulto, estará recriando a língua e o mundo permanentemente. Mas este processo não cessa com a infância” (Scotton, 2004, p. 11). Assim, a infância escancara nossa condição de incompletude. Somos sujeitos em contínua revolução criadora, permanente processo de constituição de si.

Nos reconhecermos enquanto infantes é assumir o inacabamento, sempre aprendendo a falar. Significa refascinação com a própria vida, assombro, reconhecendo seus prazeres e dores, possibilidades e limites. Desse modo, a infância não é prerrogativa apenas das crianças, mas também dos adultos que enfrentam o desafio de manter viva a condição de infante. Para essa experiência, somos provocados a ferir, a sangrar a adultez daqueles que se veem como maduros, inteiros, independentes, sérios, rigorosos, controlados, autônomos e seguros. A condição de infância possibilita, sem perder a responsabilidade e maturidade construída, assumir a radicalidade da noção de inacabamento, de sujeito que, aprendendo interminavelmente a falar o mundo, abre-se ao devir das formas de si mesmo.

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Recebido: 31 de Julho de 2022; Aceito: 01 de Dezembro de 2022

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