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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro ene./dic 2022  Epub 30-Ago-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.69270 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

infância e crianças: entre movimentos, limiares e fronteiras

childhood and children: between movements, thresholds, and borders

infancia y niños: entre movimientos, umbrales y fonteras

Lisandra Ogg GomesI 
http://orcid.org/0000-0002-3601-7758

beatriz fabiana OlarietaII 
http://orcid.org/0000-0003-1046-0433

conceição firmina seixas silvaIII 
http://orcid.org/0000-0003-0586-1275

Iuniversidade do estado do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: lisandraogg@gmail.com

IIuniversidade do estado do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: olarietaf@hotmail.com

IIIuniversidade do estado do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: conceicaofseixas@gmail.com


resumo

Apresentamos o dossiê “Estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras”, temática abordada no III Congresso de Estudos da Infância (CEI) organizado por integrantes do Departamento de Estudos da Infância (DEDI) e do Programa de Pós-graduação em Educação (ProPEd) da Faculdade de Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os artigos que compõem o dossiê resgatam os debates que ocorreram nos dias do evento fundamentados nos campos da educação, relações internacionais e questões étnico-raciais. Nesta apresentação, inspiradas pelo poema “A ponte” de Mario Benedetti, exploramos a potência de três palavras para pensar a infância e a relação que estabelecemos com ela: fronteiras, estrangeridade e movimentos. Quantas fronteiras a infância e as crianças atravessam na ordem da vida política, cultural, social e biológica? Que movimentos ou mudanças elas produzem, reproduzem e difundem? Como desestrangeirizar a infância, no sentido de tensionar as ações e produções discursivas que fomentam exclusões de diversas ordens? Que movimentos - no campo da pesquisa e na sociedade de forma geral - são instituídos de modo a potencializar a agência da infância? Partindo da ideia de que tanto nossa cultura quanto nossa subjetividade se constituem na relação entre um dentro e um fora que se colocam em tensão, recorremos à filosofia, à literatura, à psicanálise e aos estudos culturais para percorrer essas questões. Neste dossiê, os textos compõem um arranjo que dialoga com a filosofia da infância e se encaminha para além das fronteiras conceituais e metodológicas, no sentido de fazer movimentos para compreender as crianças e a infância por suas perspectivas, suas ações, suas linguagens e posições, em uma ordem tanto objetiva quanto subjetiva.

palavras-chaves: estudos da infância; fronteira; estrangeridade; movimentos.

abstract

We present the dossier “Studies of Childhood: movements, limits and frontiers”, a theme discussed in the III Brazilian Congress Childhood Studies (CEI). The Congress was organized by members of the Department of Childhood Studies (DEDI) and the Graduate Program in Education (ProPEd) of the State University of Rio de Janeiro. The articles that compose the dossier review the debates that took place during the event in the fields of education, international relations, and ethno-racial issues. In this presentation, inspired by Mario Benedetti's poem “The Bridge”, we explore the power of three words to think about childhood and the relationship we establish with children: borders, strangeness and movements. How many borders do childhood and children cross into the political, cultural, social, and biological order of life? Which movements or changes do they produce, reproduce, and spread? How to destrange childhood, in the sense of challenging the actions and discursive productions that promote exclusions of various forms? Which movements - in the field of research and in society in general - are instituted to encourage the agency of childhood? Starting from the idea that both our culture and our subjectivity are constituted in the relationship between an interior and an exterior that are placed in tension, we draw on philosophy, literature, psychoanalysis, and cultural studies to explore these questions. In this dossier, the texts compose a set that dialogues with the philosophy of childhood and goes beyond conceptual and methodological limits, in the sense of making moves to understand children and childhood through their perspectives, actions, languages and positions, in an objective and subjective form.

keywords: childhood studies; frontier; strangeness; movements

resumen

Presentamos el dossier “Estudios de la infancia: movimientos, umbrales y fronteras”, temática abordada em el III Congreso de Estudios de la Infancia (CEI) organizado por integrantes del Departamento de Estudios de la Infancia (DEDI) y del Programa de Posgrado en Educación (ProPEd) de la Facultad de Educación de la Universidad del Estado de Río de Janeiro. Los artículos que componen el dossier, fundamentados en los campos de la educación, las relaciones internacionales y las cuestiones étnico-raciales, rescatan los debates que acontecieron durante el evento. En esta presentación, inspiradas por el poema “El puente” de Mario Benedetti, exploramos la potencia de tres palabras para pensar la infancia y la relación que establecemos con ella: fronteras, extranjeridad y movimientos. ¿Cuántas fronteras la infancia y los niños atraviesan en el orden de la vida política, cultural, social y biológica? ¿Qué movimientos o mudanzas ellos producen, reproducen y difunden? ¿Cómo desestranjerizar la infancia, en el sentido de tensionar las acciones y producciones discursivas que fomentan exclusiones de diversos órdenes? ¿Qué movimientos - en el campo de la investigación y en la sociedad de modo general - son instituidos a fin de potenciar la agencia de la infancia? Partiendo de la idea de que tanto nuestra cultura como nuestra subjetividad se constituyen en la relación entre un adentro y un afuera que se colocan en tensión, recurrimos a la filosofía, la literatura, el psicoanálisis y los estudios culturales para transitar esas cuestiones. Los textos que componen este dossier conforman una configuración que dialoga con la filosofía de la infancia y va más allá de las fronteras conceptuales y metodológicas, en ellos se realizan movimientos para comprender a los niños y a la infancia desde sus propias perspectivas, acciones, lenguajes y posiciones en un orden tanto objetivo como subjetivo.

palabras clave: estudios de la infancia; frontera; estranjeridad; movimientos

infância e crianças: entre movimentos, limiares e fronteiras

A ponte

Para cruzá-la ou não cruzá-la

eis a ponte

na outra margem alguém me espera

com um pêssego e um país

trago comigo oferendas desusadas

entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira

um livro com os pânicos em branco

e um violão que não sei abraçar

venho com as faces da insônia

os lenços do mar e das pazes

os tímidos cartazes da dor

as liturgias do beijo e da sombra

nunca trouxe tanta coisa

nunca vim com tão pouco

eis a ponte

para cruzá-la ou não cruzá-la

e eu vou cruzar

sem prevenções

na outra margem alguém me espera

com um pêssego e um país

Mario Benedetti

a ponte

Talvez o poema “A ponte”, de Mario Benedetti, aponte para os movimentos, limiares e as fronteiras vividas pelo poeta e escritor. Para nós a sua ponte inspirou debates, reflexões e estudos sobre a infância e as crianças. Mas antes da nossa história, queremos contar um pouco da história dele.

Mario nasce em 1920 e vive o início da sua primeira infância em Paso de los Toros, no Uruguai. Sua família busca melhores condições de vida primeiro em Tacuarembó e depois segue para Montevidéu, nas terras do “Rio dos Pássaros Pintados” - uma derivação do guarani para o nome desse país. Em Montevidéu, cresce na Villa Colón, periferia da cidade, e ingressa no Colegio Alemán, mas seus pais o retiram dali quando percebem a presença do nazismo no cotidiano escolar. O menino, que era tido como expoente, segue em outra instituição até parte do ensino médio quando o trabalho se sobrepõe ao estudo. Aos 18 anos Mario passa a viver e trabalhar em Buenos Aires, na Argentina, e permanece na capital portenha por uns poucos anos, mas sempre em movimento entre as margens do Rio de la Plata. Retorna para o seu país natal e deseja um “futuro vermelho” e progressista. Porém, em 1973, um golpe militar implanta a ditadura no Uruguai e ele é obrigado a deixar tudo para trás (Fundación Mario Benedetti, s.d; Ferrari, 2019; Cruz, 2016).

São anos de exílio, são tempos de uma dura realidade para quem vive na América Latina, com golpes que ultrapassam as fronteiras, derrubam democracias, restringem movimentos, infligem movimentos forçados e impõem limites à vida. A repressão militar uruguaia distancia Mario do seu país por mais de 10 anos. Ele cruza fronteiras e vive em outras margens, Cuba, Peru e Espanha principalmente, até poder voltar para o seu Uruguai. Mas o exílio não é algo fácil e só exterior, e seu “Rio dos Pássaros Pintados” já não é o mesmo e tampouco Mario o é quando retorna. No desexílio - uma de suas palavras - também é preciso que na outra margem alguém espere com um pêssego e um país. Quantas fronteiras o poeta teve que cruzar? Que movimentos ou possibilidade viveu nesses anos de dificuldades, incertezas e também de alegrias? Que limiares se mostraram?

Essa é uma pequena parte da história de Mario e nós nos inspiramos na sua poesia quando organizamos o III Congresso de Estudos da Infância1. Foi uma inspiração porque, depois de quase 2 anos vivendo a pandemia deste nosso século, experimentávamos um certo cansaço e desalento da vida que transcorria pelas telas, e também daquelas que não puderam ser transcorridas de nenhuma forma e que foram interrompidas, portanto pairava a dúvida sobre a organização de um evento todo no modo virtual. Mas isto também nos mostrava que, no limiar entre o ser ou não ser, entre o sensível e o inteligível, entre palavras e coisas, há algo possível (Agamben, 2007). Foi a vontade de estar junto, de falar, estudar e refletir sobre a infância e as crianças, de encontrar antigas amigas e antigos amigos - e fazer novos - o que nos moveu, que nos fez contornar o lado pernicioso desse mundo virtual, que nos fez, como Benedetti, cruzar “sem prevenções” as dificuldades e problemas consequentes da crise sanitária, política e social que nosso país atravessa.

Nas nossas histórias como pesquisadoras-professoras dos estudos da infância buscamos outras margens, desejamos ir além das fronteiras conceituais e metodológicas, fazer movimentos para compreender as crianças e a infância por suas perspectivas, suas ações, suas linguagens e posições, em uma ordem tanto objetiva quanto subjetiva. Se as crianças e a infância são para nós uma geração e sujeitos políticos com e de direitos, na mesma medida entendemos que também são deslocamentos, história, tempo, memórias, início, desenvolvimento, potência, pluralidade nos modos de existir e experiência para aqueles que vivem suas infâncias.

Em um sentido benjaminiano, tudo isso aguça nosso querer pesquisar a infância e as crianças, porque somos atraídas por aquilo que está e também não está visível, por aquilo que não se revela e se revela de imediato e que parece não ter coerência para nós, adultos. E se as crianças, nas suas infâncias, formam seu próprio mundo das coisas, é a partir dele que buscamos encontrar caminhos até elas. Encontrar esses caminhos implica abrir espaços para transitar pelas fronteiras. Nossos debates e nossas reflexões a partir do campo dos estudos da infância têm como propósito criar movimentos, produzir mudanças, questionar limiares que estrangeirizam, objetificam determinados indivíduos e sujeitam suas subjetividades.

Fronteira

Quantas fronteiras a infância e as crianças atravessam na ordem da vida política, cultural, social e biológica? Que movimentos ou mudanças elas produzem, reproduzem e difundem? Pela sua vez, que relação estabelecer com nossas próprias fronteiras, com aquelas que nossa cultura criou e que definem quem é e que lugar ocupa cada um dentro dela? Como pensar as fronteiras que, ao mesmo tempo que nos separam nos ligam à infância? Quais são os limiares nos estudos da infância? Parece que isto demanda um sério trabalho sobre os limites do que pode ser visto, pensado, sentido. Como pensar a experiência desses limites? Aliás, é possível pensar em uma experiência dos limites que definem nossa cultura e, portanto, nos encerram? Como pensar nossa relação com o que fica para além desses limites?

Michel Foucault dedicou grande parte de sua obra a pensar nos limites que uma cultura é delineada e a partir dos quais se define. Em História da loucura (1978), se propõe traçar uma arqueologia da loucura mostrando aquela primeira divisão entre razão e sem-razão, a partir da qual será possível pensar a loucura e, posteriormente, capturá-la no conceito de doença mental. Inspirado por Nietszche, pensa em um momento fundacional onde se estabelece uma primeira divisão trágica constitutiva de nossa cultura, que separa e coloca de um lado a razão e do outro a loucura. Esta divisão originária estabelece os limites dentro dos quais uma cultura se reconhecerá e definirá sua identidade. De um lado, a razão, a linguagem legitimada pela cultura que constrói distinções claras, traça a história da doença mental e delineia os contornos do “outro”; o estabiliza criando um território seguro, protegido e sob controle. E, como pano de fundo, a loucura como desestabilização dos sentidos instalados, como ameaça, como desequilíbrio, como caos que o discurso médico oficial se propõe capturar, submeter a uma ordem.

Para Foucault, é possível fazer a história dessa divisão pela qual uma cultura “rejeita alguma coisa que será para ela o Exterior” (1999, p. 142), colocando do lado de dentro a continuidade da história, que se mantém em tensão com um vazio e, para além desse contorno que delimita, um espaço do qual ela se isola. Mas, é precisamente ali onde ela encontra sua espessura, nos dirá. É nesse esforço por traçar os limites onde ela se constitui. “(...) Uma região, sem dúvida, onde se trata mais dos limites do que da identidade de uma cultura. (...) Interrogar uma cultura sobre suas experiências-limites é questioná-la, nos confins da história, sobre um dilaceramento que é como o nascimento mesmo da sua história” (Foucault, 1999, p. 142).

Foucault nos mostra a cultura nascendo de um dilaceramento, de uma divisão originária que é possível encontrar em suas “experiencias-limite”. Ele próprio buscará ao longo de seu pensamento explorar essas experiências-limite que permitem esticar a orelha para escutar o murmúrio daquilo que ficou do lado de fora. Chega a pensar a literatura como um dos espaços capazes de permitir esse tipo de experiência. A literatura possui um caráter fronteiriço entre a loucura e a obra da razão e da história. Ela permite a transgressão das fronteiras da experiência histórica.

Enquanto a loucura questiona a história, a literatura ameaça a obra (2001). Ela permite trabalhar sobre os limites do pensamento ao possibilitar o trabalho da linguagem sobre si mesma. Nós definimos o que somos dentro dos limites da linguagem que a cultura nos fornece. Portanto, essa linguagem redobrada, voltada sobre si mesma, que é a literatura, nos oferece a possibilidade de questionar esse limite e pode levar-nos além da experiência dentro da qual definimos isso que somos.

Graciela Montes, desde seu trabalho de escritora, nos ajuda a pensar a literatura como uma fronteira a partir de uma outra perspectiva. Para ela, a literatura é uma “fronteira indômita”, que trabalha em um espaço marginal.

Como escritora de literatura infantil, para pensar essa região indômita, se inspira nos versos populares da brincadeira infantil “Tá pronto, seu lobo?”: “Vamos passear na floresta, enquanto o seu lobo não vem”. Esse “enquanto”, “enquanto o seu lobo não vem”, marca a fragilidade do jogo, nos lembra da precariedade (o seu lobo está aqui, pertinho), mas é esse, precisamente, o único território no qual se pode brincar, diz a autora.

Um território necessário e saudável, o único no qual nos sentimos realmente vivos (...) o único onde se podem desenvolver nossas brincadeiras antes da chegada do lobo. Se esse território de fronteira se estreita, se não podemos habitá-lo, não sobra mais que a pura subjetividade e, portanto, a loucura, ou o mero acomodamento ao fora, que é uma forma de morte (Montes, 1999, p. 52. Tradução nossa)

Inspirada por Winnicot, ela está falando de um “dentro” e um “fora” em sentido psicológico, mas também existencial. O “dentro” como a subjetividade desejante e exigente e o “fora” como o objeto desejado, os objetos. No meio, no interstício, entre essas duas regiões, “a única margem onde realmente se pode ser livre, ou seja, não condicionado pelo dado, não obrigado pelas demandas próprias nem pelos limites do fora” (Ibidem, p. 51). Pensando na divisão trágica da qual emerge uma cultura, que Foucault nos assinalava, podemos brincar e inverter estas palavras “dentro” e “fora” e ficar com esse “por enquanto”, com esse “meio” com um “entre”; com a fronteira entre um “dentro” e um “fora”, que comunica e, ao mesmo tempo, marca uma distância.

O “dentro” como o lugar da obra e da história e o “fora” como aquele fundo, aquele murmúrio do qual ela emana apenas para assinalá-lo. Podemos pensar com Graciela Montes esta zona, que ao mesmo tempo que é um limite é impossível de domesticar, como uma borda exterior de nossa experiência feita hábito; que escapa da captura absoluta e nos permite renovar os sentidos estabelecidos ao sacudir, ao tornar difusas as linhas que delimitam o caminho, que marcam e legitimam o que cabe e o que não cabe, que definem o que somos. O trabalho da literatura para Graciela Montes está em alargar essa fronteira que não pertence ao “dentro”, mas também não pertence ao “fora”. É o “fora” que habita no “dentro” e que ameaça cada limite que traçamos no esforço de definir, de outorgar sentido. É essa “fronteira indômita”, essa região frágil e não domesticável (esse “por enquanto”), a que nos permite permanecer brincando na floresta, à beira do caminho.

A infância como espaço de desestabilização dos sentidos instalados, como espaço de descobrimento e criação de outros mundos neste mundo, nos incita a explorar e alargar as fronteiras.

Inspiradas por Graciela Montes, nos permitimos pensar os estudos da infância como um trabalho de dilatação dessa fronteira, como a abertura de um “por enquanto”, como a exploração de uma zona de risco onde seja possível abrir, junto com as crianças, o “curral da infância” (Montes, 1999) dentro do qual nossa cultura as tranca. Como a própria Graciela Montes nos ensinou, os currais são feitos para proteger do lobo e dos perigos do fora, mas ao mesmo tempo encerram, não possibilitando sair nem entrar.

Seguindo a Foucault, talvez seja possível pensar essa tarefa como um esticar-nos em direção à infância para podermos explorar e experimentar seus movimentos, limiares e fronteiras.

Estrangeiridade

- Mas não - os rumores insistem - você é estrangeiro; e se finalmente o localizamos, não é para nos deixar comover por suas negativas, suas juras de boa fé. Sua existência permite que nos fechemos em um reconfortante entre-nós. Você é aquele que, finalmente descoberto, situará a fronteira, permitindo separar o joio do trigo, o fora do dentro, o santificado da podridão. (Hausson, 1998, p. 89)

A figura do estrangeiro nos ajuda a continuar explorando já não aquilo, mas aqueles/as que ficam além da fronteira e que ameaçam o “dentro”. Em seu livro “O estrangeiro”, Caterine Koltai (1998) convoca autores para fazer uma reflexão acerca do tema da estrageiridade a partir de uma leitura psicanalista e também política, traçando uma analogia entre os mecanismos de constituição do eu com os processos de produção de identidades políticas (nacionais, raciais, étnicas, etc.), ambos submetidos aos desígnios de estabelecimentos de fronteiras entre um dentro e um fora; entre eu e o não-eu, o outro; entre o nativo e o estrangeiro. Mais que uma analogia, talvez os textos reunidos nesse livro apresentem a implicação do processo de estrangeirização contido em questões sociais - como o genocídio dos índios, exclusão pela miséria, racialização da humanidade e produção do racismo, entre outras - nas constituições subjetivas de homens, mulheres e crianças.

Neusa Santos Souza (1998) recorre ao senso comum para classificar o estrangeiro e, nesta investida, sintetiza tal classificação como sendo o outro: outro lugar, outro país, outra idade, outro modo de vida, outra forma de viver a sexualidade. Diz a psicanalista: “o estrangeiro é o outro do familiar, o estranho, o outro do que não faz parte, o que é de outra parte” (Souza, 1998, p. 155).

Podemos dizer que a experiência de estrangeiridade compôs parte da vida do poeta Benedetti em seu movimento de idas e vindas pelas terras da América Latina provocado pelos limites impostos pelo contexto de pobreza, do asfixiamento das democracias dos seus países, cujas histórias coloniais se fundamentam radicalmente pelo processo de estrangeirização. Os estrangeiros, como descreve Hassoun (1998), são nativos de outro lugar - aquele situado antes de cruzar a ponte do poema de Benedetti -, mas também nativos de terras usurpadas/colonizadas que passam a ser os estranhos no próprio lugar. Ocupar o lugar de estrangeiro - posição demarcada não apenas pelos limites territoriais, mas também pelas fronteiras da classe, da raça, da geração, das ideologias políticas - é assumir, assim, a posição do outro, do diferente, um tipo de alter que não é legitimado e escutado pelo sujeito em relação ao qual faz-se emergir a diferença e o estranho. Dentro de uma lógica de distribuição de poderes - que é o que institui o processo de estrangeirização -, são as crianças, os pobres, os nativos das terras colonizadas, os nativos escravizados que vêm dos lugares situados antes da ponte, os que desejam um “futuro vermelho” que ocupam a posição de estrangeiro, que, como enfatiza Hassoun (1998), é o estranho destituído de qualquer alteridade.

Pela lógica de poder que sustenta a classificação de quem está dentro e quem está fora - o outro, o estranho, o estrangeiro -, podemos dizer que o processo de subjetivação deste último vai se conformando por meio da sujeição do seu eu. Assim, a estrangeiridade mantém uma estreita relação com a dinâmica de dominação/subordinação. É essa dinâmica que vai produzir, a partir da força, dos privilégios, mas, sobretudo, a partir dos sentidos criados por meio da linguagem e sistemas simbólicos, classificações, lugares: dentro/fora; infância/adultez; dominador/dominado; homem/mulher.

O que estamos chamando como processo de estrangeiridade se aproxima às conceituações acerca da temática da identidade realizadas por Woodward (2007) e Hall (2008). Como a denominação de estrangeiro de Santos (1998) e Hassoun (1998), estes autores também definem identidade como algo relacional, mantendo uma estreita relação com algo fora dela, a saber, a outra identidade que ocupa o lugar da diferença. O problema é que a diferença é sustentada, quase sempre, pela exclusão, e algumas diferenças são mais excluídas, mais desmerecidas, mais desprezadas, menos valorizadas. Esses seres mais estranhos, mais diferentes do que outros são os que são estrangeirizados.

O estrangeiro, para Hassoun (1998, p. 97), dilui-se no discurso “literalmente dia-bólico” (oposto ao simbólico), sendo impossível, portanto, simbolizá-lo, como se tratasse de um mero signo, cujo sentido se despreza2. É neste momento, que alguns limites, limiares e fronteiras estabelecidos entre um dentro e fora interdita a linguagem do de fora (o estrangeiro), tornando sua fala inaudível, indecifrável ou sem valor. Os lugares (inclusive os etários) estabelecidos por essa ótica de dominação/subordinação legitimam, por um lado, fala, ações e pertencimentos daqueles que estão dentro e, por outro, produz silenciamentos dos que estão fora. São fronteiras postas como instransponíveis, rigidamente demarcadas, que aquebrantam todas as pontes, interditam as travessias reais e simbólicas, destroem os pêssegos.

Tal empreendimento de conformação dos lugares socialmente demarcados, dos estabelecimentos de fronteiras, de seleção de quem ocupará o dentro e fora se faz a partir de uma enorme trabalho psíquico e coletivo, inclusive o de sustentar uma distinção, contraste entre identidades, tomadas como “hipóstase da menor diferença, da familiaridade às voltas” (Hassoun, 1998, p. 98), a fim de fundar uma espécie de singularidade, um “eu”, um “nós” autêntico radicalmente diferente do outro, “do eles/las”, daquilo que não é familiar. Trata-se da construção de uma fronteira que não se faça indômita, como no sentido do que fora dito anteriormente, pois abole e abomina todo e qualquer tipo de interseção, meio, conexão. Neste caso, a estrangeiridade é um processo por meio do qual radicaliza, expurga a diferença. Como apresentam Hassoun (1998), Santos (1998) e Fanon (2008), o racismo como meio de estrangeirização, por exemplo, apresenta-se na forma mais perversa não quando a diferença é tomada na sua forma radical, mas quando as fronteiras se afrouxam e o outro, o estranho torna-se “perigosamente pouco diferente” (Hassoun, 1998, p. 100).

Trata-se, assim, de um grande empreendimento, posto que essa demarcação ou este modo de concernir a identidade como idêntico, unitário, despido de qualquer estranheza é falacioso. Nada mais cindido, divergente, incoerente do que o “eu”. Como descreve Santos (1998, p. 155) apoiada na psicanálise, “o estrangeiro é o eu”, ou seja, o “eu” carrega um outro, um estranho que forçamos recalcar, porém que insiste em retornar. A borda, a zona, a fronteira, o limiar que separa este outro não são tão rígidos a ponto de serem domesticados. São, assim, “fronteiras indômitas”, que não penas separam, mas também conectam e, neste caso, são como pontes.

movimentos

Foi com o intuito de produzir um espaço-tempo para refletir sobre as experiências dos diversos limites e fronteiras postos para a infância que organizamos o III CEI, apostando em movimentos que permitam dialogar, por em pauta o murmúrio daquilo que ficou do lado de fora; tensionar, sacudir, alargar as fronteiras (acadêmicas, políticas, sociais, etc.) e possibilitar pontes como espaços de criação e resistência dos modos de ser da infância.

O III CEI foi organizado com base nos conceitos que abrem este editorial e foi a partir deles que preparamos este dossiê. O congresso realizado em novembro de 2021 por nós, professoras-pesquisadoras3 vinculadas ao Departamento de Estudos da Infância e ao Programa de Pós-graduação em Educação, ambos da Faculdade de Educação da UERJ, esteve ancorado em 3 eixos: a) Infância-linguagens-movimentos, b) Infância-fronteiras, c) Infância-deslocamentos-limiares.

Com base na diversidade social, cultural e política, os debates trataram das significações e representações dos modos de vida, ideias e práticas das crianças. Corpo, voz, criação, liberdade, inclusão, movimento, lúdico e autoria, a infância foi apresentada e pensada a partir dessas teias de sensações e ações. Certamente que consideramos os conceitos e as práticas inseridas em uma ordem política tanto inscrita no cotidiano, na produção cultural voltada para crianças e nas relações entre infância, mídia e tecnologias, como também por meio de políticas públicas enquanto promotora de direitos. Nesse limiar procuramos delinear nossos diálogos entre o que as crianças pensam, consideram e como apreendem um mundo tão marcado pela diversidade humana, problematizando-o em correlação às atuações políticas e institucionais. Assim as pesquisas abrangeram a originalidade temática e metodológica dos estudos da infância, o qual permite a multidisciplinaridade e interdisciplinaridade a partir de campos do conhecimento que o constituem. Portanto, no decorrer dos nossos encontros refletimos sobre os conceitos, compreendemos e articulamos teorias, problematizamos e constituímos formas de fazer pesquisa que permitiram pensar a infância e as crianças para além do que está dado, portanto enquanto movimentos, limiares e fronteiras.

É nesse contexto e caldo de temas, teorias e métodos difundidos por pesquisas embasadas no campo dos estudos da infância que se origina este dossiê temático. No sentido do poema de Benedetti, trazemos aqui a imigração e os refugiados, as perspectivas decoloniais e o debate sobre protagonismo infantil na América do Sul, os deslocamentos teóricos e práticos nas pesquisas com os bebês e a juventude, as crianças e a cidade, a experiência e a criação na relação crianças e adultos e a criação da infância benjaminiana, com um pouco da história da infância dos irmãos Benjamin. Este conjunto de texto torna-se uma ponte e ao cruzá-la na outra margem esperamos que vocês encontrem “um pêssego e um país”.

referências

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Recebido: 20 de Julho de 2022; Aceito: 16 de Agosto de 2022

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