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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro ene./dic 2022  Epub 27-Sep-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.67323 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

walter benjamin: “infância, uma experiência devastadora”

walter benjamin: “infancia, una experiencia devastadora”

walter benjamin: “childhood, a devastating experience”

anelise monteiro do nascimentoI 
http://orcid.org/0000-0003-4911-8301

Iuniversidade federal rural do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: anelise.ufrrj@yahoo.com.br


resumo

Construído no diálogo entre os processos de institucionalização da infância e as práticas educativas este artigo sistematiza dados de uma pesquisa que teve como objetivo conhecer a experiência de infância na Educação infantil. O campo empírico são cadernos de campo de observações realizadas em vinte e uma instituições públicas que atendem à Educação Infantil na cidade do Rio de Janeiro. Para compreender como infância e experiência se dão nesse contexto, o referencial teórico tem como suporte os estudos da filosofia de Walter Benjamin, a Sociologia e a Antropologia da Infância, e a análise do contexto político que envolve as práticas de institucionalização das crianças. O recorte adotado neste texto apresenta um exercício de aproximação entre as interações e as falas das crianças das escolas participantes da pesquisa e os fragmentos de Obras Escolhidas I e II de Walter Benjamin. A proposta é, a partir dos conceitos de infância e experiência presente na obra do filósofo, compor uma coleção composta de elementos que indiquem como as crianças vivem suas experiências de infância dentro do ambiente escolar. Ao pensar a infância pelo viés da experiência concordamos com o legado atribuído por Benjamin ao trabalho de Kant sobre o tema da experiência. Experiência - algo que experimentamos, mas também algo que nos une/aproxima pelo viés da geração, da história, da narrativa. Independentemente do formato da institucionalização das crianças, ou seja, se elas frequentam creches, escolas exclusivas de Educação Infantil ou escolas de Ensino Fundamental que têm turmas de pré-escola, com base na leitura dos cadernos de campo, podemos concluir que, a experiência de infância se dá na relação com os outros, com os objetos, com a cultura, com a sociedade e com a natureza. A pesquisa evidenciou que, assim como a criança presente na obra de Walter Benjamin, as crianças das nossas creches e escolas também são atraídas pelos detritos e pelo que eles lhes apresentam como possibilidade de atuação. Não reproduzem diretamente o mundo dos adultos, estabelecem uma nova e incoerente relação com o que o mundo lhes apresenta. O que as crianças produzem em suas interações é fruto de um refinado processo em que experiência coletiva e experiência individual se cruzam, tendo a cultura como ponto de encontro.

palavras-chave: infância; experiência; walter benjamin

abstract

Built on the dialogue between the processes of institutionalization of childhood and educational practices, this article considers data from a research project that aimed to gather knowledge of the experience of childhood in early childhood education (ECE) settings. The empirical basis of our study is a collection of observational fieldnotes gathered in 21 public ECE institutions that serve the city of Rio de Janeiro. In order to understand children’s experience in these settings, our theoretical framework is supported by a reading of Walter Benjamin's philosophy of childhood, by sources in the sociology and anthropology of childhood, and through an analysis of the political contexts that influence the practices of institutionalizing young children. The quote adopted in this text represents the results of a comparison between the speech and interactions of the children in the schools participating in the research and textual fragments from Benjamin’s “Obras Escolhidas I e II.” We drew on the concept of childhood experience present in the work of this philosopher in order to explore how children experience their childhood within the context of the school environment. When thinking about childhood through the lens of children’s experience, we draw on the legacy attributed by Benjamin to Kant's work on the concept of experience itself. Here, the latter is understood, not just as an event, but as something that unites/brings us together through the intersection of generation, history, and narrative. Regardless of the format of children's institutionalization-that is, whether they attend daycare centers, exclusive early ECE settings, schools or elementary schools that have preschool classes-based on our reading the fieldnotes we conclude that the experience of childhood takes place in the context of relationships with others, with objects, with culture, with society and with nature. Our research showed that, like the child as characterized in the work of Benjamin, the children of our day care centers and schools are attracted by what he calls “debris”and what the latter present to them as possibilities for action. They do not directly reproduce the world of adults; rather, they establish a new relationship with what the world offers them, which is not exactly coherent with that world. What children produce in their interactions is the result of a refined process in which collective and individual experience intersect, with culture as a meeting point.

keywords: childhood; experience; walter benjamin.

resumen

Construido en diálogo entre los procesos de institucionalización de la infancia y las prácticas educativas este artículo sistematiza los datos de una investigación que tuvo como objetivo conocer la experiencia de la infancia en la educación infantil. El campo empírico son cuadernos de campo de observaciones realizadas en veintiuna instituciones públicas que tienen a cargo la Educación Infantil en la ciudad de Río de Janeiro. Para entender cómo la infancia y la experiencia tienen lugar en este contexto, el marco teórico se apoya en los estudios de la filosofía de Walter Benjamin, la Sociología y la Antropología de la Infancia, y el análisis del contexto político que hace a las prácticas de institucionalización de las y los niños. El recorte adoptado en este texto presenta un ejercicio de aproximación entre las interacciones y los discursos de los niños de las escuelas participantes en la investigación y los fragmentos de las Obras Escolhidas I y II de Walter Benjamin. La propuesta es, a partir de los conceptos de infancia y experiencia presentes en la obra del filósofo, componer una colección integrada por elementos que indiquen cómo viven los niños sus experiencias de infancia dentro del ámbito escolar. Al pensar en la infancia desde el punto de vista de la experiencia, coincidimos con el legado atribuido por Benjamin a la obra de Kant sobre el tema de la experiencia. Experiencia - algo que experimentamos, pero también algo que nos une/acerca a través de la generación, la historia, la narrativa. Independientemente del formato de la institucionalización de las y los niños, es decir, si asisten a guarderías, a escuelas preescolares exclusivas o a escuelas primarias que tienen clases de preescolar, a partir de la lectura de los cuadernos de campo, podemos concluir que la experiencia de la infancia se da en la relación con los otros, con los objetos, con la cultura, con la sociedad y con la naturaleza. La investigación evidenció que, al igual que el niño o niña presente en la obra de Walter Benjamin, los niños y niñas de nuestras guarderías y escuelas también se sienten atraídos por los escombros y por lo que éstos les presentan como posibilidad de acción. No reproducen directamente el mundo de los adultos, establecen una relación nueva e incoherente con lo que el mundo les presenta. Lo que los niños y niñas producen en sus interacciones es fruto de un refinado proceso en el que experiencia colectiva y exeriencia individual se cruzan, teniendo a la cultura como punto de encuentro.

palabras clave: infancia; experiencia; walter benjamin

walter benjamin: “infância, uma experiência devastadora”

As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é o óleo para as máquinas; ninguém se posta diante de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebite e juntas ocultos, que é preciso conhecer. (Benjamin, 2000a, p. 13)

Construído no diálogo entre os processos de institucionalização da infância e as práticas educativas este artigo sistematiza dados de uma pesquisa que teve como objetivo conhecer a experiência da infância na Educação infantil. O campo empírico são cadernos de campo de observações realizadas em vinte e uma instituições públicas que atendem a Educação Infantil na cidade do Rio de Janeiro (dentre elas, escolas exclusivas de Educação Infantil e turmas de Educação Infantil em escolas de Ensino Fundamental). Para compreender como infância e experiência se dão nesse contexto, o referencial teórico tem como suporte os estudos da filosofia de Walter Benjamin, a Sociologia e a Antropologia da Infância, e a análise do contexto político que envolve as práticas de institucionalização das crianças. O recorte adotado neste texto apresenta um exercício de aproximação entre as interações e as falas das crianças das escolas participantes da pesquisa e os fragmentos de Obras Escolhidas I e II de Walter Benjamin. A proposta é, a partir dos conceitos de infância e experiência presente na obra do filósofo, para compor uma coleção composta por elementos que indiquem como as crianças vivem suas experiências de infância dentro do ambiente escolar, tal estratégia se apoia na ideia do autor de que

[…] para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém. O mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirido) (Benjamin, 2007, p. 249).

Metodologicamente o primeiro movimento foi revisitar o livro Rua de Mão Única (Benjamin, 2000a). Os escritos organizados em fragmentos pareciam fios dentro de uma cesta que, ao serem manipulados, revelavam um pouco de história, de memória e de poesia. A trama dos fios da escrita, que parece conduzir inicialmente à biografia de Benjamin, apresenta uma memória que vai além da experiência pessoal, uma vez que verdade e alegoria se fundem na tentativa de traçar um panorama que traz, como pano de fundo, a história e a cultura.

Ao buscar compreender uma escrita que tem a “montagem literária” como método, é preciso renunciar à segurança do previsível (Jobim e Souza, 2008, p. 47), tentando reconhecer, no fragmento, o todo. Como se construiu essa escrita? Qual seria o seu formato se o autor tivesse tido a oportunidade de uma revisão final? Como se relacionar com uma obra inacabada?

No exercício de compreensão das inúmeras lacunas existentes no livro - palavras são encaradas como texto - o foco toma o lugar do sentido que o escritor pretende atribuir ao pensamento e o enquadramento convida a olhar todo o cenário que cerca o momento da escrita. Assim, os textos de Benjamin em Rua de Mão Única são montagens, colagens de palavras, miniaturas, memórias materializadas em títulos que anunciam seus fragmentos e remetem a uma cidade, por cujas ruas, não obstante, nunca se tenha caminhado − cidade está inquieta com sua aposta de futuro, mesmo que hoje esse futuro represente o passado. Trata-se de enredos atravessados por uma subjetividade marcada por um tempo navegante em outra perspectiva do que é história, do que é passado e do que é infância. Como ler, então, os seus escritos?

Partindo da Rua, denominada pelo filósofo como Asja Lacis1, lancei-me como uma observadora curiosa, na busca por um momento de intimidade, no qual autor e leitor partilham os mesmos códigos. No entanto, para isso, foi necessário renunciar à precisão de um engenheiro e deixar que a rua se rasgasse dentro da pesquisadora, não com os instrumentos e os maquinários da modernidade, mas como o “óleo de máquina [...] um pouco em rebite” (Benjamin, 2000a, p. 13), por meio da escuta atenta de quem acredita que a experiência precisa ser compartilhada.

Ao traçar as linhas dos fragmentos presentes no livro Rua de Mão Única, o próprio autor faz de sua obra uma experiência profunda. Parece desejar, “insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e retorno” (Benjamin, 1994, p. 253). Da escrita em pequenos papéis, das descontinuidades provocadas pelas constantes mudanças, das notas amarradas e dos elementos que compõem o livro, surge uma indagação: estaria o autor, ao narrar sua experiência entrecruzada pelo futuro da grande metrópole e pelas ruínas do passado, à procura de aliviar seu coração do medo ou de gozar duplamente de sua felicidade? Uma constatação é inevitável: é na experiência narrada pelo autor que a figura da criança emerge e com ela tentamos pensar o presente.

A compreensão da experiência de infância seguiu com a leitura do texto “A doutrina das semelhanças”. Nesse escrito, Benjamin (1994) destaca a faculdade mimética como fundamental à vida do homem. O autor considera que essa faculdade codetermina as funções humanas superiores e, ainda, acredita que a brincadeira infantil constitui sua escola. Benjamin chama atenção para o fato de que a faculdade mimética está se extinguindo não só da vida dos sujeitos, ao longo dos anos, como também da humanidade, ao longo dos séculos. Assim, os homens estariam cada vez mais distantes das correspondências mágicas que dizem respeito ao instante, ao relampejar, ao efêmero e ao transitório, possibilidades presentes na brincadeira infantil, pois “os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também de moinho de vento e trem (…)” (Benjamin, 1994, p. 108).

Além da obra de Benjamin, são os estudos de Gagnebin (2004; 2008), Bolle (2009), Konder (1999; 2003), Agamben (2005), Jobim e Souza (1994; 2008), Seligmann-Silva (2008), Muricy (2008; 2009), Bock (2008), Scholem (2008) e Kramer (2011; 2010; 2009a, 2009b; 2008a; 2008b; 2008c; 2008d), que dão suporte à escrita deste artigo, que nasce do anseio de reflexão sobre a prática docente, apoia-se no referencial aqui relacionado e busca, por meio do conceito de experiência formulado por Walter Benjamin, investigar a experiência de infância dentro das práticas educacionais. Nesse sentido, assim como os conceitos de infância e experiência, pretende-se se beneficiar da crítica que Benjamin faz à Pedagogia. Para o filósofo, a Pedagogia é o processo de adaptação entre a natureza do educando e a meta da Educação: o homem integral, o cidadão (Benjamin, 2002). Logo, como se dá esse processo de adaptação? Como esse processo se materializa em experiência na vida das crianças? Estas são algumas perguntas que orientam este trabalho que está dividido em quatro seções. Na primeira seção apresentamos o percurso metodológico. Na segunda seção trazemos o conceito de experiência e a possibilidade que tal conceito traz para se pensar as interações entre as crianças dentro da Educação Infantil. Na terceira seção apresentamos o encontro entre os eventos do campo e os fragmentos de Benjamin em um esforço de aproximação entre o que é próprio da infância e se revela em diferentes contextos. Por fim, a quarta seção é destinada às considerações finais.

entre a “caminhada e o sobrevoo”: a construção do conhecimento como coleção

Existe uma coisa que podem os adultos: andar. Mas existe outra que eles não podem mais - aprender a andar. (Benjamin, 2011, p. 5)2

Em suas pesquisas, Benjamin (1994; 2000a; 2002), além de trazer a contribuição de uma leitura crítica da modernidade, lança um olhar sensível para as questões que envolvem as crianças. Desse modo, ao pesquisar a experiência de infância dentro das instituições de Educação infantil, opta-se tanto pela abordagem benjaminiana de infância, na qual as crianças são capazes de subverter a ordem das coisas e instituir novas ordens, como por seu conceito de experiência, partindo das seguintes indagações: Como se materializam as experiências de infância dentro dos contextos escolares? Sobre que aspectos se pautam? O duplo movimento que orienta a análise dos dados do campo, a caminhada e o sobrevoo (Benjamin, 2000a), se coloca como ferramenta para encontrar respostas para estas questões, ou quem sabe, fazer novas perguntas.

Em Benjamin, a infância é responsável pela experiência fundadora do que se conhece como humanidade. Por esse motivo, num primeiro momento, realizamos uma leitura panorâmica do banco de dados, indo ao encontro das crianças. Nesse sobrevoo, o foco central não teve como orientação o contexto em que são produzidas as experiências da infância, mas sim suas significações.

Para tanto, a leitura dos fragmentos de “Rua de mão única” foi entrecruzada com o material de campo. Como resultado, percebe-se que alguns dos elementos que o autor utiliza para retratar a infância e, consequentemente, indagar a sociedade moderna, estão presentes também nas ações, nas interações e nos discursos das crianças que participaram desta investigação. O sobrevoo sobre os dados oportuniza enveredar na concepção de infância de Benjamin tendo a possibilidade de reconhecer não só a infância retratada na obra do autor, como também as crianças do presente, de diferentes classes sociais e culturais, e suas muitas descobertas, seus investimentos e seus desejos sobre o mundo.

As situações descritas nos cadernos são interpretadas como falas, gestos e imagens. Embora a leitura seja feita sobre a totalidade dos dados, preserva-se a fragmentação e busca-se novos sentidos, abrindo para outras interpretações. Assim, descontextualiza-se o objeto na tentativa de compreendê-lo como texto. As situações observadas são nomeadas como evento.

Corsaro (2011) define eventos de interação na Educação Infantil como sequências de ações compartilhadas que começam com o conhecimento da presença de dois ou mais atores que se relacionam em alguma área e com suas tentativas de constituir um sentido comum. O evento é marcado pela identificação responsável por sua abertura ou por seu início, e a negociação de sentidos define como a situação e a partilha irão decorrer. Evento também tem sua inspiração na concepção de linguagem de Bakhtin (2003), pois nela o termo ganha sentido de acontecimento discursivo.

Além desses elementos, o fio condutor da leitura do campo é a categoria infância, e os eventos selecionados trazem as ações das crianças, suas interações e suas interpretações sobre o contexto em que estão inseridas. O movimento foi o de tomar os eventos como coleção (Benjamin, 2007). Assim, os eventos foram lidos como texto, descontextualizados, na busca por novos sentidos e na tentativa de se encontrar sentidos neles próprios à luz dos conceitos benjaminianos de infância e experiência. Buscando perceber “como a estrada se insinua através da paisagem”, olhamos o todo para entender “as leis do terreno” (Benjamin, 2000a, p. 16), nesse caso, a infância, como uma categoria que marca os sujeitos crianças.

No esforço de descontextualizar as situações, outros traços compõem essa paisagem. Seus contornos são produzidos pela especificidade da pesquisa, que se fez em vinte uma instituições de Educação infantil, da cidade do Rio de Janeiro, cidade marcada por grande diversidade cultural, social, política, geográfica, religiosa e econômica. Dessa forma, os dados empíricos são produzidos aqui no entrecruzamento de histórias, experiências e questionamentos de quem observa essas realidades. Assim, a leitura panorâmica produzida pelo sobrevoo oportuniza reconhecer as marcas da infância dessas crianças e revela a experiência de quem observa. O trabalho de campo ocorreu entre os anos de 2005 a 2008.

da filosofia do futuro à experiência do presente: ser criança em contextos educacionais

Experienciar significa necessariamente, nesse sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história. O mistério que a infância instituiu para o homem pode de fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra. (Agamben, 2005, p. 65)

É na perspectiva de compreensão dos movimentos da sociedade que Benjamin (1994) desenvolve seu conceito de experiência, conceito que é uma das bases da reflexão proposta aqui. No texto “Experiência e pobreza”, o autor manifesta sua preocupação com a “perda da experiência”. O conceito de experiência é entendido em um sentido amplo, mais abrangente do que aquilo que comumente se expressa para o senso comum. Pode-se tomar como exemplo a palavra Erlebnis que, traduzida como vivência, indica situações mais pessoais - psíquicas ou corporais. Já experiência está mais voltada para situações histórico-coletivas, interações vividas no campo da cultura a que se pertence, e, nesse sentido, guarda uma relação direta com a narrativa, por meio da qual os homens se apropriam das experiências uns dos outros (Benjamin, 1994).

O conceito de experiência é um dos eixos centrais da obra de Benjamin. Em 1913, ligado aos movimentos juvenis, o autor escreve o ensaio “Experiência” (Erfahrung), no qual a considera como uma máscara por trás da qual os adultos se escondem. Nela, a inexpressividade, o impenetrável e a constância são a sua marca. Assim, o adulto é alguém que não mostra sua verdadeira face, pois, por detrás da máscara, ele já viveu tudo, sua existência está encerrada. Como ver essa figura? Como se relacionar com ela? Quem seriam, então, os jovens ou as crianças diante desse outro que já experimentou tudo? O autor acredita que “travamos nossa luta por responsabilidade contra um ser mascarado” (Benjamin, 2002, p. 21). Estaria o jovem filósofo desejoso de responsabilidade? Ou buscando o reconhecimento de que, embora tenha pouca idade, mesmo assim, possui responsabilidade? No ano da escrita deste ensaio, Benjamin era um jovem promissor, estudava Filosofia, Literatura Alemã e Psicologia.

Tentando compreender para além da máscara, o autor desmistifica essa figura e o seu desejo do novo: “ele também já foi jovem um dia, também ele quis outrora o que agora queremos, também ele não acreditou nos seus pais; mas a vida também lhe ensinou que eles tinham razão” (Benjamin, 2002, p. 21). Assim, o adulto veste a máscara, alimentando com a sua ação a máquina que reproduz sempre o mesmo, indicando com o seu olhar que os jovens, um dia, também farão parte dessa engrenagem. Benjamin anuncia que tudo o que está entre o momento em que se deseja o novo e a vestimenta da máscara não é mais do que espera, visto que a grande “experiência” ainda está por vir, e ela está, segundo o autor, ligada à “escravidão da vida […] anos de compromisso, pobreza de ideias, lassidão” (Benjamin, 2002, p. 22).

Em 1918, em “Sobre o programa da filosofia futura”, Benjamin anuncia uma forma particular de experiência que nasce no diálogo com a concepção kantiana3. Sobre o diálogo entre Benjamin e Kant, Muricy (2009, p. 196) destaca:

[...] é pela consideração do legado de Kant, em sua grandiosidade e em seus limites, que Benjamin irá apresentar seu programa filosófico. Kant teria dado uma solução admirável à problemática da certeza do conhecimento [...] e não soubera validar a ’integridade de uma experiência efêmera’.

O conceito de experiência kantiano está pautado na visão de mundo do esclarecimento, cuja fonte são as Ciências Naturais. Dessa forma, a questão para Benjamin está em, após Kant olhar a perspectiva do conhecimento para além das questões matemático-mecânicas que a aprisionam na dicotomia mítica do sujeito-objeto, pela relação do conhecimento que se materializa através da linguagem (Muricy, 2009, p. 196).

É esse contexto que cerca a escrita de Sur le programme de la philosophie que vient (Benjamin, 2000c), elaborado, segundo Scholem, por Benjamin, em novembro de 1917. Logo nas linhas introdutórias, Benjamin reconhece o valor da obra de Kant e afirma que a tarefa da filosofia que virá (ou do futuro) é a de elevar o conhecimento. Segundo Benjamin (2000c), Kant e Platão são, sem dúvida, os únicos filósofos a não se preocuparem imediatamente com a extensão e com a profundidade do conhecimento, mas, sobretudo, e em primeiro lugar, com a sua justificação.

O problema da teoria kantiana, como de toda a grande teoria do conhecimento, apresenta duas faces, considera Benjamin (2000c), mas somente para uma delas se pode encontrar uma explicação válida. A primeira das faces é a questão da certeza de um conhecimento que permanece; a segunda, a questão da dignidade de uma experiência que foi efêmera. O interesse da filosofia é orientar tanto para o valor atemporal do conhecimento como para a certeza de uma experiência temporal, considerada como o primeiro - se não o único - objeto desse conhecimento. A experiência é vista como fonte do conhecimento: o conhecimento é relacionado a algo que permanece e a experiência a algo que tem uma data, uma origem.

A crítica de Benjamin (2000c) é que, para ele, os filósofos não perceberam a experiência na sua estrutura global, pois a consideraram como algo singular, limitado no tempo. Assim, a mediocridade da experiência, proposta na época, influenciou o pensamento de Kant, mas, para a “filosofia do futuro”, seria de grande importância distinguir e separar os pensamentos kantianos que devem ser mantidos daqueles que devem ser reformulados e dos que devem ser rejeitados. Dessa forma, Benjamin propõe que a “filosofia do futuro” se vincule não somente a alguns aspectos propostos por Kant com relação à experiência e à metafísica, como também ao seu ponto de vista metodológico.

Benjamin reconhece a relevância da relação proposta por Kant entre experiência e conhecimento, todavia destaca que Kant desconsidera os elementos subjetivos do conhecimento ou acredita que o conhecimento é formado pela relação empírica com o objeto. Assim, não há previsão de uma experiência dentro de uma estrutura coletiva. O conceito de conhecimento de Kant é fundado na Matemática e na Mecânica e cabe à “filosofia do futuro” a tarefa de relacioná-lo com a linguagem, uma vez que "Kant a entièrement perdu de vue que toute connaissance philosophique trouve son unique moyen d’expression dans le langage, et non dans des formules et des nombres" (Benjamin, 2000c, p. 193).

Benjamin propõe, portanto, um conceito de conhecimento que, fundado na essência linguística, englobaria os domínios da experiência que Kant não conseguiu sistematizar em sua obra. Sobre a interlocução entre Benjamin e Kant, Jobim e Souza (2006, p. 146) considera que:

[...] ao ampliar a noção de experiência, Benjamin quer que a questão da verdade seja pensada em uma outra dimensão. [...] a compreensão do conceito de experiência é colocada nos termos de uma experiência transcendental [...] que só a linguagem sustenta.

Só a linguagem permite ao homem sair dele mesmo e encontrar o outro. Isto é transcendência. E é isto que a experiência proporciona.

Também analisando a ampliação do conceito kantiano de experiência por Benjamin, Lavelle (2008, p. 14) destaca que o conceito de experiência presente na obra de Kant compreende a experiência como mecânica e como própria do racionalismo dos iluministas. O conhecimento está relacionado ao senso interno, e a experiência é algo imediato e incomunicável, a fonte de toda racionalidade. Ao analisar a obra de Kant, a autora descreve que uma experiência autêntica somente seria possível mediante uma revelação estritamente subjetiva e não comunicável com os outros. Para a autora, a obra de Benjamin anuncia uma forma particular de experiência e, sem abandonar a relação entre esta e o conhecimento, o filósofo teria um projeto de elaboração de um sistema cujo foco central seria uma teoria da experiência.

Ao analisar o trabalho de Kant, Benjamin compreendeu que seu conceito de experiência estaria pautado na visão de uma época, no paradigma do conhecimento próprio da modernidade.

Sem abandonar a relação entre experiência e conhecimento instituído por Kant, o texto de 1918 propõe assim a elaboração de um conceito superior de conhecimento que pudesse incluir a dimensão religiosa e histórica de experiência (Lavelle, 2008, p. 31, tradução nossa).

Para Agamben (2005), o experimento da razão pura kantiano seria um experimentum linguae que se funda na possibilidade de nomear os objetos transcendentais ou de assegurar sua permanência, mesmo diante de sua ausência material. De acordo com Agamben, um experimentum linguae, do tipo proposto por Kant, pode ser encontrado na infância, uma vez que para as crianças os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem, porque elas vivem a experiência da linguagem como tal, na sua pura autorreferencialidade. Por conseguinte, é no sentido de uma experiência crítica, comunicável e produzida, que se funda o interesse por compreender a experiência de ser criança no cotidiano das instituições.

Para Benjamin, as experiências e o conhecimento alteram as relações entre os sujeitos e o contexto em que estão inseridos. No caso da infância, o conhecimento se dá “como assombro, como triunfo, como fulguração” (Kramer, 1997, p. 36). O conhecimento está, então, pautado nas possibilidades de intercambiar experiências por meio de narrativas (Benjamin, 1994). Dentro das práticas escolares, esse intercâmbio de experiências pode ser responsável por uma série de apropriações que são produto das aprendizagens presentes nas atividades pedagógicas e, também, do contato entre as crianças, com e sem a mediação dos adultos. Nesse caminho, na busca por essas apropriações transformadas em aprendizado social que, ao serem partilhados, constroem e alimentam de sentido o ser criança ou a experiência de infância desses sujeitos, encontra-se este texto.

interações entre crianças: desnaturalização de uma condição

Nada mais reconfortante e, ao mesmo tempo, elucidativo do que permitir ao olhar que, da altura desses anos, venha repousar sobre os campos da infância. (Benjamin, 2002, p. 49)

Que elementos cercam a experiência de infância das crianças? Neste tópico encontram-se alguns deles, que podem ser percebidos no contraponto com os fragmentos de Walter Benjamin.

O encontro com as crianças, à luz da leitura da obra de Benjamin revelou que por intermédio da capacidade mimética, a criança se lança na brincadeira e incorpora um cenário em que, ao mesmo tempo, ela é atriz e espectadora.

Em Benjamin (2000a, p. 91), “Esconderijos”:

Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual se tem a certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava, eu retinha a respiração. Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente nítido, que se aproximava calado. Só assim é que deve perceber o que é corda e madeira aquele que vai ser enforcado. A criança que se posta atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, num espectro. A mesa sobre a qual se acocora é transformada no ídolo de madeira do tempo, cujas colunas são as quatro pernas talhadas. E atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se estivesse vestido com um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente. Por nada nesse mundo pode ser descoberta. […] O que havia de verdadeiro nisso pude vivenciar em meus esconderijos. Quem me descobrisse era capaz de me fazer petrificar como um ídolo debaixo da mesa, de me urdir para sempre às cortinas como um fantasma, de me encantar por toda a vida como uma pesada porta. Por isso expulsava com um grito forte o demônio que assim me transformava, quando me agarrava aquele que me estava procurando. Na verdade, não esperava sequer esse momento e vinha ao encontro dele com um grito de autolibertação […].

Na creche, Leandra, Aline, Daniela e Valeska (crianças de 2 e 3 anos):

Estamos na sala, num momento de brincadeira. Leandra pega uma boneca e um regador e diz que vai levar o filho na pracinha. Aline e Valeska também pegam bonecas e começam a seguir Leandra pela sala. Daniela (a professora) senta para brincar com as crianças. Pega um cachorro de pelúcia e começa a cantar, brincando com as crianças que fazem os sons dos animais: “O cachorro é amigo do outro cachorro / olha o que eles fazem: au, au, au, / au, au, au”. “O gatinho é amigo do outro gatinho / olha o que eles fazem: miau, miau, miau / miau, miau, miau”. Leandra, no seu passeio pela sala, acha uma baleiazinha de plástico e começa a cantar a música que cantaram na roda: “A baleia, a baleia, é amiga da sereia... olha o que ela faz, olha o que ela faz: tchibum, chuá, tchibum, chuá”. Leandra canta e movimenta o brinquedo. Seus movimentos não são aleatórios, ela canta fazendo o brinquedo mergulhar num mar imaginado. Canta toda a música. É muito afinada. Este é um momento de expressão. Ela dá o seu próprio ritmo que se assemelha ao movimento das ondas imaginadas (Caderno de Campo C11).

Ao reconhecer a brincadeira como constituinte da faculdade mimética, Benjamin lança a questão: Qual a utilidade para as crianças desse adestramento da atitude mimética? Na verdade, a faculdade mimética está no campo da experiência extrassensível que se manifesta na brincadeira e que, por isso, é inerente à criança. Tal como no labirinto apresentado por Gagnebin (2004), o desejo predominante é o da exploração: a criança se lança à brincadeira “sem medo de perder-se” e, assim, mergulha em uma dimensão temporal, em que o instante é o tempo mais prolongado de uma existência. Ser cortina, mesa, baleia ou a própria onda, é transcender esses objetos e movimentos em sua materialidade, o que não é um exercício para a criança, mas sim a sua própria existência.

Na pré-escola, Luan e Daniela (crianças de 3 e 4 anos):

Luan se esconde embaixo do cavalete de pintura. Daniela, atenta, pergunta: - O que você está fazendo aí? É escondendo? Luan sorri e balança a cabeça fazendo o movimento afirmativo. Seus olhos estão arregalados, dando a entender que quer continuar escondido. Depois de um tempo sai e vai até a recreadora: - Tia Dani, ninguém me achou… Dani diz para o Luan voltar a se esconder e se dirige ao grupo: - Gente, cadê o Luan, vocês viram o Luan? Algumas crianças se voltam para o cavalete, acham o amigo e querem se esconder também (Caderno de Campo C11).

Assim como o menino Walter em “Esconderijos”, Luan também espera pelo momento de seu grito de autolibertação. Uma espera que envolve angústia e ansiedade. Na possibilidade de não ser descoberto, afasta-se do menino que, ao recorrer ao adulto, tem esse instante preservado e compartilhado com aqueles que poderiam ter tirado de Luan a possibilidade de viver o temor de ser petrificado na forma de um cavalete.

Em Benjamin, “As cores”:

Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, aí me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela, que se apresentava hora chamejante, ora empoeirada, ora esmaecida, ora suntuosa. Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam um regaço tão logo as tocava com uma nuvem úmida. Coisa semelhante se dava com as bolhas de sabão. Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo de cores de sua cúpula até que se rompessem. Perdia-me nas cores, fosse nos céus, numa joia, num livro. De todo modo, as crianças são sempre presas suas (Benjamin, 2000a, p. 101).

O instante do encontro é o momento único no qual a criança se incorpora ao cenário, na mesma medida em que é por ele incorporada. Para Bock (2008, p. 12), cor e criança se tocam mutuamente, pois “a criança se mistura, ativamente, e se perde, passivamente, nas cores”. A criança não toma as cores como características dos objetos; elas são em si possibilidades que, na sua busca como caçadoras, farejando rastros4, ganham espaço nos seus processos de interação e significação do mundo. A infância permite à criança a possibilidade de uma experiência extrassensível que se manifesta na forma como ela se relaciona com os elementos presentes em um determinado local, em um dado momento, como se pode perceber no evento narrado a seguir.

Na creche, Carla (2 anos):

Carla, uma das meninas olha para mim e diz: - Carro rosa é de menina. Depois dá uma explicação: - O carro rosa é a mesa rosa que estou. (Por que será que ela fez questão de explicar? Será que ela achou que eu não entenderia que uma mesa pode ser um carro, na imaginação? Ou eu fiz uma cara de quem não entendeu?). Carla continua dirigindo o seu carro rosa e depois vai para debaixo da mesa. Puxa as cadeiras. Fica lá um pouco e depois arrasta uma cadeira para sair. A recreadora diz: - É assim que faz, Carlinha? Ainda debaixo da mesa, Carla responde: - Eu abri para sair do ônibus (Caderno de Campo C11).

O carro, a mesa, o ônibus, a criança, toda a cena parece ser tomada pela cor rosa. Carla é a presa da cor. Ao mesmo tempo que o rosa surge como um traço de sua identidade feminina, reiterado por meio da narrativa, a mesa é totalmente destituída de suas funções instituída socialmente, e isto é anunciado por ela: seu compromisso está em “colorir-se” de rosa, e todo o resto pode ter novos sentidos.

Ao olhar a infância como uma categoria inserida na história e na cultura, a obra de Walter Benjamin traz grandes contribuições ao desmistificar o conceito de infância que compreende as crianças como filhotes do homem, como seres puros destituídos de inteligência e desprovidos de sentimentos, conflitos e desafios (Kramer, 2008a). O autor faz um convite para olhar as crianças e, por suas práticas, compreender o contexto social e o momento histórico e político que cercam um povo.

Na creche, crianças de 2 anos:

As crianças estão sonolentas e muitas sentam e reclinam a cabeça sobre a mesa. Aos poucos vão interagindo entre si. Daniela [a professora] senta-se junto às crianças e logo um vai para o seu colo. Começa a conversar e falar com elas. Leandra (2 anos) é a mais serelepe e começa a contar um caso: - Tem um macacão lá em casa… eu vou matar o macacão… o macacão bateu na porta da menina e matou ela... o macacão estourou a menina toda... o macacão subiu na minha cabeça... o macacão me bateu e furou a minha barriga aí eu matei ele... aí eu dei um tiro no bicho e ele me sujou todinha, e eu dei um tiro nele e matei ele. Leandra fala da morte o tempo todo e a história do macacão continua. Eu comento com a professora se não seria um jeito de ela falar do que aconteceu na madrugada anterior (uma madrugada violenta, na qual houve tiroteio na comunidade em que a menina mora. A professora fica meio sem saber o que dizer e como dar um rumo a essa fala da menina). (Caderno de Campo C11).

Seja realidade, fantasia ou ressignificação, a narrativa de Leandra faz parte de um contexto. Na hora da entrada na creche, é feito o seguinte registro5:

Os comentários na porta são a respeito do clima nos morros, na noite anterior: - Ninguém dormiu... - Um dos bandidos foi morto no meu quintal… (comenta a mãe de uma menina). - O negócio foi feio… - Foi tiro a noite toda… (Caderno de Campo C11).

Assim como são influenciadas pelas questões sociais e políticas da classe a qual pertencem, as crianças também vivem desafios postos nas interações com outras crianças.

Em uma pré-escola, crianças de 5 anos:

- Aqui na escola tem uma menina chamada Helena. Ela faltou hoje. Eu não sou amiga dela - diz Amanda sendo imediatamente interrompida por Julia: - Todo mundo tem que ser amigo. Lembra aquele dia que a tia Ana Lúcia fez todo mundo dar um abraço? Amanda continua: - Eu não sou amiga da Helena porque ela não é minha amiga. Ela me diz que só vai ser minha amiga se eu não for amiga da minha prima. Ela fala isso e eu não falo nada, então deixa. Eu não esquento a cabeça por causa de amigo. Eu já tenho muitos amigos. Ela pensa que eu só tenho a Larissa, o Felipe e a Mariana de amigos, mas eu tenho muitos! (Caderno de Campo F11).

Aceitação, negociação e exercício de argumentação são pontos que podem ser destacados nesse fragmento, pois as crianças não vivem uma socialização passiva. São influenciadas pelas intervenções dos adultos e das outras crianças. Nos contextos escolares, essas intervenções são responsáveis por embates que, muitas vezes, tentam ser minimizados pelos adultos.

O tema do brincar e do brinquedo encontram destaque na obra de Benjamin e nos ajudam a traçar as experiências de infância das crianças dessas instituições. Para o autor, é no jogo que está a origem do que é denominado como hábito. Os exercícios de comer, dormir, vestir-se ou lavar-se são ações vividas de forma lúdica. Assim, afirma que “o hábito entra na vida como brincadeira” (Benjamin, 2002, p. 102).

[…] - Vocês estão brincando de quê? Bia: - De mãe e filha. Eu sou a mãe, ele é o pai e a Fernanda é o bebezinho. (Nesse momento, Fernanda, que assume o papel de bebê, chora). Francisco se aproxima e diz: - Ela quer o papai. Bia (Mãe): - Ela quer a mamãe! Fernanda se posiciona: - Eu quero o papai! (e joga todos os cartões no chão). A mãe repreende: - Você está de castigo, não pode fazer isso! O bebê, parecendo não ter escutado a reprimenda da mãe, propõe ao pai: - Vamos brincar, papai, vamos brincar?! Mas o pai reforça as palavras da mãe: - Não, porque você está de castigo. (O bebê joga os cartões de novo, com força, no chão). O pai intervém: - Agora, para. Você está de pirraça. […] uma disputa surge entre as crianças e, após a intervenção da professora, todos voltam para o jogo. Bia anuncia: - A mamãe agora está trabalhando! (Nesse momento o bebê sai da casa engatinhando, se afasta do lugar da brincadeira e desce as escadas). Ao perceber, a mãe recorre ao pai: - Ô, pai, vai lá pegar o bebê! Como ele não atende prontamente, insiste: - Ô, pai, vai. Francisco explica: - Não posso, porque eu agora estou descansando. O bebê começa a brincar de bruxa e fica pedindo para o pai: - Me salva, papai! Francisco: - Força, Batman, acaba com a bruxa!!!. (Gesticula forte, batendo no ar) e vai ao encontro do bebê. (Caderno de Campo E21).

Ao assumir situações cotidianas como inspiração para o jogo, as crianças criam espaços de trocas de experiências e narrativas. Os traços que imprimem a seus personagens são compostos por suas percepções tanto do que vivem individualmente, como do que partilham como membros de um grupo social. Por exemplo, quando assume o papel de bebê, Fernanda faz pirraça; Maria Clara, a mãe, dá o limite; o bebê testa o casal. Tratam-se de práticas e soluções muito próximas das vividas por esses sujeitos em outras inclusões sociais para além da escola, e que são ressignificadas nesse contexto.

Um aspecto que diz respeito à natureza das brincadeiras das crianças está presente nesse evento como prática, embora se materialize mais explicitamente no evento em que Karla transforma a mesa em carro. Em “História cultural do brinquedo”, Benjamin (1994) considera que é um equívoco acreditar que o conteúdo do brinquedo determina a brincadeira. Para ele, “a criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou policial…” (Benjamin, 1994, p. 247).

Para Benjamin, o brinquedo possibilita o diálogo entre a criança e o mundo. A brincadeira seria o elo entre a criança e as gerações anteriores. Elo que tem o adulto como mediador, pois:

[...] mesmo quando não imita os utensílios dos adultos, o brinquedo é uma confrontação - não tanto da criança com o adulto, como deste com a criança. Não são os adultos que dão em primeiro lugar os brinquedos às crianças? E, mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (bolas, arcos, rodas de penas, papagaio) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformaram em brinquedos (Benjamin, 1994, p. 250).

Nesse sentido Benjamin apresenta caminhos que podem auxiliar no conhecimento das crianças e no reconhecimento da infância como uma categoria que, embora marcada pelos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais de um povo, preserva traços da história que se presentifica por meio da linguagem, narrada e vivida na brincadeira. Nesse sentido, a filosofia ajuda a pensar essa outra criança, como outro eu, crianças e adultos, história e narrativa, constituindo a trama da sociedade e tecendo fios que se cruzam e ampliam as possibilidades de compreensão do mundo e da busca por novos caminhos.

considerações finais

A metodologia que teve como orientação um sobrevoo ou o olhar panorâmico sobre o material do campo de todas as vinte e uma instituições participantes da pesquisa mostrou indícios das experiências de infância das crianças na Educação Infantil, de modo geral. A leitura dos cadernos de campo indica que − independentemente do formato da institucionalização das crianças, ou seja, de se elas frequentam creches, instituições exclusivas de Educação Infantil, ou se estão em turmas de pré-escola dentro de escolas de Ensino Fundamental −, a experiência de infância se dá no encontro entre os processos individuais e coletivos resultantes das relações das crianças com seus pares, com os adultos, com os objetos, com a cultura/história, com a sociedade e com a natureza. Portanto, pode ser percebida por meio da observação de suas formas de apropriações, reproduções e reinvenções do mundo, assim como do exercício de criação de modos próprios de interpretá-lo e de se relacionarem entre si, criando suas regras, normas e expectativas que conduzem não só as ações pessoais, como ainda o contexto em que estão inseridas, por intermédio da circulação que se dá na cultura de pares (Corsaro, 2002, 2009, 2011).

A afirmação de Walter Benjamin, de que “as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas são parte do povo e da classe a que pertencem” (Benjamin, 1994, p. 248), sustenta a premissa presente nesta pesquisa: a infância como categoria varia de acordo com a sociedade em que as crianças estão inseridas, traz marcas da cultura e da história do povo do qual fazem parte. Entretanto, ao mesmo tempo que possuem singularidade, as crianças e suas infâncias apresentam semelhanças e, no caso desta pesquisa, uma delas está no fato de que as interações que produziram esses eventos, ocorreram na escola, o que leva também a conclusão de que a escolarização abre a possibilidade de construção de uma experiência de infância coletiva. Ao pensar a infância pelo viés da experiência concordamos com o legado atribuído por Benjamin ao trabalho de Kant sobre o tema da experiência. Experiência - algo que experimentamos, mas também algo que nos une/aproxima pelo viés da geração, da história, da narrativa.

A pesquisa evidenciou que, assim como a criança presente na obra de Walter Benjamin, as crianças das nossas creches e escolas também são atraídas pelos detritos e pelo que eles lhes apresentam como possibilidade de atuação. Não reproduzem diretamente o mundo dos adultos, estabelecem uma nova e incoerente relação com o que o mundo lhes apresenta. A experiência de infância se mostrou como um exercício de alteridade entre ser criança e ser adulto, tema presente nas brincadeiras de faz de conta. Nesses momentos, as crianças expressam em suas interpretações especialmente o que envolve suas compreensões sobre os papéis sociais de crianças e adultos. São muitos os eventos em que brincam de “pai e mãe” ou “casinha” e, nessas dramatizações, estão mais ocupadas em saciar um desejo do presente do que em se preparar para o futuro. O que produzem é fruto de um refinado processo em que experiência coletiva e experiência individual se cruzam, tendo a cultura como ponto de encontro. Os eventos nos levam a concluir que brincar se ser adulto é exercitar um papel no presente, fazer de conta que se é o pai, a mãe, a tia, a professora, é experimentar determinadas situações que, ao serem trazidas para o contexto escolar e alimentadas pelos diferentes membros do grupo, inserem a criança em uma prática que desafia suas concepções, instaura dúvidas e cria não só novas possibilidades e percepção do mundo que as cerca como de ações sobre ele.

Diante da aproximação entre os eventos observados em instituições de Educação Infantil da cidade do Rio de Janeiro evidenciamos a necessidade de outros estudos dessa natureza, que, ao optarem pela observação de crianças em diferentes contextos, possam ajudar na compreensão de suas formas de significar o mundo, dando visibilidade ao que é próprio da infância, e o que é particular de cada criança. Deste modo, as discussões tecidas aqui, podem servir de base para a elaboração de políticas públicas, especialmente as que buscam a universalização da Educação e a ampliação do tempo de permanência das crianças nas instituições, para que, ao olhar para as experiências de infância das crianças, aceitemos o convite para penetrar em suas lógicas de compreensão da ordem social em que estamos inseridos e possamos com elas ampliar a compreensão do mundo que nos cerca.

Pesquisadora: - Por que existe criança? Algumas crianças respondem: - Não sei! Paloma: - Eu sei, para cuidar. Luiza: - Para não fazer bagunça!… Por que você sempre escreve aí? Pesquisadora: - Para não esquecer. Luiza: - Escreve aí, para não bater, para não brigar com o irmão. Pesquisadora: - E os adultos, por que existe adulto? Ana Clara: - Para brigar com o filho quando ele faz bagunça. Paloma: - Para cuidar do filho, para brincar com a gente. (Caderno de Campo E18).

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Recebido: 17 de Maio de 2022; Aceito: 08 de Agosto de 2022

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