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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro ene./dic 2022  Epub 30-Ago-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.68145 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

walter, georg e dora: a infância sob o olhar atento dos irmãos benjamin

walter, georg and dora: childhood under the watchful eye of the benjamin siblings

walter, georg y dora: la infancia bajo la mirada atenta de los hermanos benjamin

Iuniversidade do estado do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: ritaribes@uol.com.br


resumo

Este texto tem por objetivo apresentar uma história dos irmãos Walter, Georg e Dora Benjamin, três irmãos que tomaram a infância como tema de interesse, formação, atuação e produção teórica. Walter mira a infância como perspectiva filosófica para uma crítica da cultura, sensível ao agir e à linguagem das crianças; Georg, como pediatra, médico escolar e deputado, toma a infância como urgência sanitária para a formulação de políticas públicas; Dora, por sua vez, tece contundente análise sociológica do binômio mulheres e crianças atravessado pelas relações de trabalho que a indústria têxtil transferia para o ambiente doméstico. Estas são apenas algumas nuances da multifacetada relação dos irmãos Benjamin com a temática da infância. Nascidos na virada do Século XIX para o Século XX, viveram o oscilar da política e da economia alemãs, as agruras da Primeira Guerra Mundial, e a ascensão e a consolidação do nazismo, que os obrigou, pela condição judaica e intelectual, a deslocamentos forçados, prisão, adoecimento e morte. Parte significativa da produção de Walter salvou-se na medida em que ele depositava seus escritos em bibliotecas ou os enviava em cópia para alguns amigos. Georg e Dora, mais intensamente ligados ao partido comunista, não lograram o mesmo êxito e a maior parte de sua vasta produção fora destruída nas fogueiras de livros que anunciaram o nazismo. Resulta disso um silenciamento sobre a história dos irmãos e da sua vasta produção intelectual, hoje considerada visionária, silêncio que denuncia a gravidade das políticas de exceção dedicadas ao apagamento da história.

palavras-chave: infância; walter benjamin; georg benjamin; dora benjamin; irmãos benjamin

abstract

The following text introduces the story of the siblings Walter, Georg and Dora Benjamin, who understood childhood as a topic of interest, training, performance and theoretical production. Walter sees childhood as a philosophical perspective for a critique of culture, sensitive to children's actions and language; Georg, as a pediatrician, school doctor and deputy, takes childhood as a health emergency for the formulation of public policies; and Dora weaves a strong sociological analysis of the binomial women/children crossed by the work relations transferred from the textile industry to the domestic environment. These are just a few nuances of the Benjamin siblings' multifaceted relationship with the theme of childhood. Born at the end of 19th and the beginning of the 20th centuries, they lived through the oscillation of German politics and economy, the hardships of the First World War, the rise and consolidation of Nazism which forced them, due to their Jewish origins and intellectual condition, to undergo displacement, imprisonment, illness and death. A significant part of Walter's production was saved when he deposited his writings in libraries or sent copies to friends. Georg and Dora, who were more closely linked to the communist party, did not achieve the same success, and most of their vast production was destroyed in the book bonfires perpetrated by the Nazis. This has resulted in a silencing of their history and their vast intellectual production, which is now considered visionary-a silence that denounces the policies of exception dedicated to history's erasure.

keywords: childhood; walter benjamin; georg benjamin; dora benjamin; benjamin brothers

resumen

Este texto tiene como objetivo presentar una historia de los hermanos Walter, Georg y Dora Benjamin, tres hermanos que tomaron la infancia como tema de interés, formación, actuación y producción teórica. Walter mira a la infancia como perspectiva filosófica para una crítica de la cultura, sensible al accionar y al lenguaje de los niños; Georg, como médico pediatra, médico escolar y diputado, toma a la infancia como una emergencia sanitaria para la formulación de políticas públicas; Dora, a su vez, hace un fuerte análisis sociológico del binomio mujeres y niños atravesado por las relaciones laborales que la industria textil transfería al ámbito doméstico. Estos son solo algunos matices de la multifacetada relación de los hermanos Benjamin con el tema de la infancia. Nacidos en el cambio del siglo XIX al siglo XX, vivieron el oscilar de la política y la economía alemanas, las penurias de la Primera Guerra Mundial y el ascenso y consolidación del nazismo, que los obligó, por su condición intelectual y judía, a desplazamientos forzados, encarcelamiento, enfermedad y muerte. Una parte significativa de la producción de Walter se salvó en la medida en él dejaba sus escritos en bibliotecas o los enviaba en copia a algunos amigos. Georg y Dora, más intensamente ligados al Partido Comunista, no alcanzaron el mismo éxito y la mayor parte de su vasta producción fue destruida en los incendios de libros que anunciaba el nazismo. Esto resulta en un silencio sobre la historia de los hermanos y de su vasta producción intelectual, ahora considerada visionaria, silencio que denuncia la gravedad de las políticas de excepción dedicadas al borrado de la historia.

palabras clave: infancia; walter benjamin; georg benjamin; dora benjamin; hermanos benjamin

walter, georg e dora: a infância sob o olhar atento dos irmãos benjamin

Figura 1 Walter, Georg e Dora - 19061  

Este texto tem por objetivo contar (um)a história dos irmãos Walter (18922-1940), Georg (1895-1942) e Dora Benjamin (1901-1946), ainda pouco conhecida em território brasileiro. Difícil escapar à armadilha de anunciá-la como uma história sobre “os irmãos do Benjamin”, armadilha que o próprio Walter nos aconselharia evitar. Se a notoriedade póstuma do primogênito se sobrepôs às dificuldades de se prover em vida, a importância da atuação política e da produção intelectual de Georg e Dora não lograram reconhecimento póstumo, nem mesmo na condição de “irmãos do notório filósofo”. E aqui se explicita o contexto de tal apagamento: estamos falando de três irmãos nascidos entre 1892 e 1901 e que não chegaram a completar 50 anos de vida. Em menos de meio século testemunharam a Primeira Guerra Mundial, o fim do Império Alemão, a criação da República de Weimar, a Grande Depressão que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York, a ascensão do fascismo, o nazismo e o holocausto que os vitimou.

Figura 2 Fogueira de queima de livros - Bebelplatz - Berlim 1933 

Se nos últimos anos de sua vida, já como um crítico relativamente conhecido, Walter peregrinou depositando seus escritos em bibliotecas ou enviando cópias para amigos, por correspondência, - e só por isso hoje temos acesso a grande parte de suas obras -, a mesma sorte não tiveram Georg e Dora, cujos escritos podem ter sido incendiados nas fogueiras nazistas de 1933 ou destruídos nos confiscos que se seguiram. Traduzindo em publicidade a crença pré-histórica que via no fogo um elemento de purificação, Joseph Goebbels, sob ordens de Hitler, conclamara os cidadãos - entre eles, estudantes universitários - a transformar as praças em grandes fogueiras de livros, com o objetivo de limpar a Alemanha dos “escritores degenerados” e de quaisquer elementos críticos ao regime nazista.

Parte do pouco que se sabe sobre Georg e Dora deve-se à persistente atuação de Helene Marie Hildegard Lange, conhecida como Hilde, esposa de Georg e melhor amiga de Dora, que após a Segunda Guerra e com a divisão do território alemão, em 1949, veio a tornar-se ministra da Justiça na Alemanha Oriental. Hilde empenhou-se para que os legados do marido e da cunhada não fossem esquecidos e agilizou o resgate ou publicação de algumas obras de Walter, cujo espólio, assim como as narrativas biográficas sobre ele, são frutos de muitas disputas, pessoais e de mercado. Escreveu uma biografia sobre Georg3, reunindo poemas e documentos importantes de sua trajetória profissional na medicina e na política, bem como recuperou publicações acadêmicas de Georg4 que escaparam ao malogro e, também, um volume da Tese de Doutorado de Dora, importante documento para a história das mulheres na ciência.

O ângulo de visada a partir do qual este texto se estrutura é o lugar que a infância ocupa aos olhos dos três irmãos, seja pelas experiências de infância vividas por eles, pela relação com os filhos e/ou com outras crianças, ou ainda, pelos modos como cada um assumiu a infância como tema de estudo, trabalho e compromisso político-social. Escolher a infância como eixo articulador desta história justifica-se tanto pela grata surpresa de perceber a infância como forte interesse e preocupação compartilhados pelos três irmãos, como também pelo caráter inaugural que a ideia de infância evoca: um recomeçar, um poder recomeçar, um modo de (re)inscrever-se na história, um dizer “de novo” para sentir-se “pronunciado”. Todas as referências encontradas (algumas não exploradas nos limites deste escrito) que possam contribuir para a rememoração e reparação dessa história serão apresentadas ao longo do texto.

contexto, família, formação

Imagem 3 Os primos: Georg Benjamin, Georg Chodziesner, Hilde Chodziesner, Walter Benjamin, Margot Chodziesner, Gertrud Chodziesner (Gertrude Kolmar) e, à frente, Dora Benjamin. 1905 

Walter, Georg e Dora nasceram no seio de uma burguesa família judia de princípios liberais. O pai, Emil, que fora banqueiro em Paris, firmou-se em Berlim como comerciante de tapetes e antiguidades e era, também, sócio de inúmeras empresas de comércio e de entretenimento, como, por exemplo, a então famosa pista de patinação no gelo, o Berliner Eispalast, inaugurada em 1909 com capacidade para 4.500 visitantes. Pauline, a mãe, descendia de família rica ligada ao comércio agrícola. Como pode ser observado pelos biógrafos aqui visitados ou nas próprias memórias de Walter, os pais mantinham uma efervescente vida social que incluía tanto a frequência aos mais diversos equipamentos culturais da época, como também eram constantes as suntuosas recepções oferecidas em casa.

A geração dos seus pais testemunhou a unificação alemã, em 1871, e viram tanto emergir, quanto se acabar o Império Alemão, que se estendeu até 1918, contexto fortemente marcado pelo fim da Primeira Guerra Mundial. Viveram a alta inflação posterior à guerra e o consequente empobrecimento da sociedade alemã no avesso da pulsante República de Weimar. Tendo experimentado uma vertiginosa queda em sua condição social, Emil e Paulina Benjamin faleceram, respectivamente, em 1926 e 1930, não tendo visto, portanto, a chegada de Hitler ao poder.

Já a geração dos filhos viveu a Primeira Guerra, entre 1914 e 1918, a derrubada do Kaiser pela Revolução Alemã de 1918-1919, as utopias socialistas inspiradas na Revolução Russa de 1917 e a afirmação de princípios nacionalistas por uma Alemanha unificada à despeito do Império em ruínas. Além da destruição material das cidades envolvidas na Primeira Guerra, as sanções unilaterais impostas pelo Tratado de Versalhes arruinaram a economia e reduziram drasticamente seu território. Esse contexto acelerou o fim do Império Alemão e a emergência de uma República de caráter semipresidencial, de base democrática, nomeada República de Weimar, que se responsabilizaria por reerguer a Alemanha sob princípios humanistas. No entanto, o que se viu desde o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, ainda em janeiro de 1919, é que as utopias foram jogadas por terra e que as mudanças se tornaram premonição de uma República que retrogradava ao âmago do Império recém decaído reabilitando valores pseudo-classicistas e conservadores que silenciosamente a conduziriam ao nazismo.

Num curto espaço de tempo, justamente aquele em que os irmãos viviam a sua juventude, a Alemanha sofrera profundas e vertiginosas transformações. Como nação, perdera poder e território e, internamente, vivia uma intensa reorganização geopolítica. Para termos uma ideia dessas transformações, a cidade de Berlim, onde os irmãos Benjamin moravam, era um centro político desde o Império e contava com cerca de 825.000 habitantes em 1871, momento da unificação alemã. Em 1900 esse número passou para quase 2 milhões de habitantes e, à despeito de ter sido arrasada pela Primeira Guerra, em 1925 a cidade já beirava os 4 milhões de habitantes. Parte desse crescimento se deveu à incorporação de municípios vizinhos (alguns com características rurais) que compunham a região metropolitana, expandida pelo crescente processo de industrialização.

Tais transformações atravessaram radicalmente a biografia e as relações familiares dos Benjamin, reforçando, nos pais, os valores burgueses, e aguçando nos filhos valores críticos e socialistas no emergir de sua juventude. Ao que consta, os irmãos, quando pequenos, não participavam ativamente da vida social dos pais e ficavam mais aos cuidados de babás e preceptoras. Vale lembrar que Walter é três anos mais velho que Georg e nove anos mais velho que Dora, o que sugere terem vivido a primeira infância quase que como três filhos únicos, sobretudo se considerado a ida para escolas em regime de internato. Há indícios de contato constante com os primos, filhos da tia materna, Elise, dentre os quais se destacava Gertrud Kolmar, considerada por Walter “sua alma gêmea”, que se tornou uma conhecida poetisa e, como os primos, também viria a ser vitimada pelo nazismo. Em que pese as diferenças de idade, suas particularidades e os diferentes caminhos trilhados, a correspondência trocada pelos irmãos ao longo da vida - ou a referência aos irmãos nas correspondências pessoais - aponta para um constante afeto e cuidado entre eles.

As crianças do bairro rico, para quem a vida parecia dada, congelaram-se em sépia na fotografia. As guerras colocaram em pauta para eles, imediata ou tardiamente, o urgente tema das condições de vida. Nem mesmo todo o tempo de pose exigido para a fotografia foi capaz de revelar o segredo que o futuro lhes resguardava. A Primeira Guerra, iniciada em 1914, encontrou os irmãos em diferentes momentos da vida e se tornou um marcador a partir do qual erigiram suas singulares histórias. Observemos um pouco do que se seguiu, cotejando as três diferentes histórias e buscando, quando possível, alguns pontos de intersecção: o principal deles é a centralidade que a temática da infância teve para os três irmãos.

Prestes a completar 22 anos, Walter viveu o período da Primeira Guerra realizando seus estudos acadêmicos de Filosofia, tendo sido liberado de se alistar devido à sua saúde frágil e a uma acentuada miopia (a mesma miopia que educou sua percepção aos detalhes). Em 1915 mudou-se para Munique, onde conheceu Scholen e Rilke. Em 1917 mudou-se para Berna, na Suíça, onde terminou seu Doutorado, em 1919. Nesse mesmo período, casou-se com a militante e feminista Dora Sophia Kellner, em 1917, e em 1918 nasceu seu filho, Stefan Rafael. Em 1920 acaba voltando, com a mulher e o filho, para a casa dos pais, em Berlim, relação conturbada, sobretudo com o pai, embora tenha contado com uma mesada que se estendeu até a morte deste, garantindo até o fim os seus estudos acadêmicos.

Georg, no iniciar da Primeira Guerra, cursava uma Licenciatura em Matemática, que foi suspensa ao alistar-se como voluntário e viver a experiência da guerra de trincheiras. Consta que em dois momentos ficara bastante ferido e isso mudaria todo o rumo da sua vida, bem como sua visão de mundo e posicionamento político. Como soldado, Georg percebeu os limites de pertencer, por direito de nascimento, a uma classe que se pretendia superior. Os irmãos também partilhavam dessa visão crítica, o que os levaria, em diferentes momentos, a uma ruptura em relação aos pais que, embora relativamente empobrecidos por causa da guerra, ainda insistiam em se fazer guiar pelas ideologias de um mundo burguês em ruínas. Abalado pela Guerra, Georg foi o primeiro a romper com a estrutura familiar e, mudando-se para um bairro proletário de Berlim, passou a dedicar-se à Medicina social e à política.

Dora, com seus 13 anos, estava ainda em casa fazendo seus estudos elementares quando a Primeira Guerra se iniciou. Para ela, os anos do Pós-Guerra é que foram tempos decisivos de formação, onde se deparou com a paradoxal vida acadêmica. Embora nascida numa família burguesa de origem judaica que valorizava a cultura e que estendia à filha a mesma qualidade de formação garantida aos filhos, Dora - e as mulheres de sua geração - teria que vencer as barreiras da política educacional da época5. Ela terminou o Liceu em 1918 e frequentou cursos secundários criados para mulheres pela conhecida pedagoga e feminista Helene Lange6. Nesses cursos, Dora iniciou uma sólida amizade com Hilde, amiga com quem veio a desbravar, em 1921, os bancos universitários, ela cursando Economia Política e Hilde, como já dito, Direito. Viria a especializar-se, ainda, em Sociologia e Psicologia.

walter

Imagens 4 e 5 Walter Benjamin em 1912 

Walter viveu os anos da Primeira Guerra voltado aos estudos acadêmicos e já despontando como um apurado crítico literário e tradutor, mas a guerra seria definitiva para uma mudança de rumo em sua ação política e na reorganização do seu pensamento. Seus textos de juventude testemunham esse processo (Benjamin, 2002). Ressabiado de uma infância marcada por maçantes aulas particulares e por uma escola conservadora - com castigos corporais, conteúdos pseudoclassicistas e a imposição de um convívio artificial em massa, considerados por ele uma violência -, a experiência no internato agrícola de Haubinda, na Turíngia, onde realizou parte de seus estudos secundários, apresentou a ele uma filosofia de vida com a qual se afinou e que seria definitiva para a escolha pela filosofia.

Tratava-se da pedagogia de Gustav Wineken (1927), diretor dessa escola experimental cujos princípios se pautavam na autonomia do que nomeou cultura juvenil, no equilíbrio de atividades práticas e teóricas, na troca da clássica hierarquia entre professores e alunos por um clima de idealismo filosófico - o eros pedagógico. Valorizava o sentido comunitário do trabalho coletivo, o viver em comunidades e o retorno à natureza como possibilidade de vida saudável. Essa pedagogia visava reformar a educação oficial, ainda moldada sob o regime imperial com ditames prussianos. Ecologicamente, visava uma formação cultural (Bildung) para além dos limites nacionais e onde a juventude era compreendida como genialidade em devir, carecendo de liberdade para tal. A educação da juventude como educação da humanidade. Walter, que considerava Wineken seu primeiro mestre, integrou-se ao Movimento da Juventude Livre7 e mesmo quando entrou para a Universidade, que julgava conservadora e avessa à juventude, promoveu e participou de debates visando as reformas educacionais por ele preconizadas.

Essa postura idealista e até mesmo romantizada foi radicalmente revista com o despontar da Primeira Guerra e a conclamação feita por Wineken para que os jovens assumissem seu lugar ativo na guerra, bem como o seu lugar na nação. Walter, para quem a juventude não devia ser subjugada nem pelo Estado, nem pela Religião, considerou a conclamação de Wineken uma monstruosa traição à juventude e firmou em carta o seu irrevogável rompimento (Jarek, 2018). Tal decisão foi agravada, sobretudo, pelo suicídio dos amigos Christopf Friedrich Heinle, com 20 anos de idade, e a namorada, Friederike Seligson, em 1914, como um protesto contra o posicionamento bélico da Alemanha. Eles faziam parte do Movimento dos Estudantes Livres e o suicídio ocorreu justamente no apartamento que Walter e outro colega haviam alugado para a promoção de debates e estudos sobre as reformas educacionais8. Tais episódios foram decisivos para que elegesse a atividade intelectual como atuação política, como crítica, donde se extrai que, para ele, o lugar da ação é a cultura - visão que consolidara em sua passagem pela escola de Haubinda.

Em termos profissionais, embora com boa formação e contatos importantes, a pretendida carreira universitária se tornou uma frustração devido à eminente rejeição de sua Tese de Livre Docência, “Origem do Drama Barroco Alemão”, à Universidade de Frankfurt, em 1925. Em face de uma sociedade que julgava conformista e de uma universidade que não lhe parecia disposta à crítica, foi se tornando um outsider, um deslocado homem de letras numa sociedade conformista (Gagnebim, 1999). Assumiu para si a tarefa de ser o melhor crítico da Alemanha como “escritor-livre”. Sua atuação profissional, à despeito da amplitude e qualidade de seu trabalho intelectual, passou a assemelhar-se ao que hoje se chama de freelancer, tornando os problemas financeiros uma constante em sua vida. Resenhas, artigos encomendados por periódicos, conferências e programas de rádio passaram a fazer parte do que considerava a garantia da sua subsistência e disputavam tempo com os trabalhos a que realmente desejava se dedicar (Benjamin; Scholem, 1993).

O tema da infância tem um lugar central na vida e na obra de Walter. É a pedra de toque da sua filosofia. A atenção que dirige a ela banha-se no exame minucioso de sua singularidade, no reconhecimento do seu ponto de vista. Sem dificuldades percebemos em conceitos-chave de sua obra nuances do agir e do pensar infantis: o escavar, o colecionar, o olhar que extrai dos objetos a sua vida escondida, a atenção ao detalhe, o pensamento mimético, a certeza de que as coisas poderiam ser de outro modo (E se...?), a sofisticada elaboração autoral da linguagem e do pensamento...

Quatro formas bem pontuais de abordagem da temática da infância atravessam a obra do filósofo: a sua experiência da infância apresentada sob a forma de rememoração e na sua crítica à vida escolar; a infância de seu filho Stefan revelada a partir de minucioso registro de falas e situações vividas pelo menino; a infância das crianças com as quais virtualmente dialogou nos programas radiofônicos que apresentara nas Rádios de Berlim e Frankfurt; e a infância mediada pela produção cultural para crianças, sobretudo livros, que colecionava com afinco. Focaremos aqui a infância do autor e, mais amiúde, a sua relação com o filho, coleção de memórias e registros que se cruzam e dialogam com a sua produção teórica. O autor não se remete a uma infância idealizada ou mesmo a uma perspectiva abstrata de criança, mas à percepção de uma pessoa com singularidade que, assim como o adulto, habita e participa da vida social e cultural.

Essa percepção (ou desafio) pode ser flagrada de modo pungente em duas cartas que escreve a Scholem contando sobre o nascimento de seu filho Stefan, a primeira, no dia mesmo do nascimento, 11 de abril de 1917, e a segunda, apenas seis dias depois, explicando a escolha do nome e revelando ao amigo a profundidade dessa nova experiência:

Entre as coisas mais maravilhosas que observei nestes últimos dias: como um pai percebe imediatamente um ser humano tão pequeno como uma pessoa, de tal forma que a superioridade do próprio pai, em todos os assuntos relacionados à existência, fica muito insignificante em comparação (Benjamin, 1994, p.123).

Com esse olhar afetuoso e sua vocação arquivística seguiu espreitando a infância de seu filho, analisando esteticamente suas ações e a produção da sua linguagem. Num pequeno caderno intitulado “Pensamentos e Opiniões” - título inspirado nas clássicas compilações de textos de pensadores - encontramos registrados em letras miúdas fragmentos que dão a ver a engenhosa construção do menino e a perspicaz observação do pai/estudioso da linguagem. Esses registros são mencionados em carta a Scholem datada de 16/01/1926:

Sobre as “opiniões e pensamentos” do meu filho, guardo desde o seu nascimento um caderno que, claro - devido a muitas ausências não é muito volumoso, mas, mesmo assim, menciona algumas dezenas de estranhas “palavras e frases”. Proponho que seja datilografado e uma das raras cópias seria para você. (Benjamin, 1994, p. 373)

Desse “Caderno” encontrado, que hoje compõe a coleção9 póstuma do filósofo foram publicadas 16 folhas quadriculadas, escritas dos dois lados em letra miúda, sem capa, iniciadas por um soneto que Walter escreve para o filho, datado de 6 de janeiro de 1922:

Qual é o nome desse anfitrião, que diante dele, Embora ele bagunce a casa e irrite a dona, a portinha, porém se abre tão rápido como um leve portão que dá passagem ao vento? Ele tem um nome - Discordo - e volta, para deixar claro / se mostrar Embora eu já tenha esvaziado a mesa e os quartos há muito tempo A alma permanece fiel ao ambiente doméstico feito de três coisas Somente: o sono, as lágrimas e então a criança Mas que o feixe de cada um dos dias Espada sob a claridade sepulte a velha ferida desta alma que desperta Antes que as consolações a embalem novamente no sono A fonte de suas lágrimas há muito tempo está seca Só o sorriso da criança e seu comportamento Podem convidar a esperança para dentro de casa. (Benjamin, 2011, p. 110)10

Os registros são organizados a partir das datas de sua redação, sugerindo uma escrita de memória e não imediata aos fatos narrados. Apresentam um verdadeiro inventário de expressões, construídas no diálogo com os pais:

puá / pular - [schringen, ao invés de springen, ele come o P] mememédio / remédio - [tetetezin, ao invés de Medizin] uma cáne / carne - [ein Leisch, ao invés de Fleisch, ele como o F] zip-zup / letra - [Sipper-Supper, ao invés de Buchstabe, talvez onomatopéia de alguma coisa, ele não haveria assimilado ainda a palavra Buchstabe, e, provavelmente, inventou a palavra] iseis / setenta e seis - [un´siebzig ao invés de sechs und siebzig / em alemão “seis e setenta”, inverte unidade e dezena] uma linha de trem / para a linha de bonde - [Bahnlinie] um escreve / lápis - [ein Schreibe / literalmente “um escrevo” uma nini / menina - [eine Mimi, para “kleines Mädchen”, menininha] um tóom / a chaminé da locomotiva - [interpretação da onomatopéia] escola da infância / jardim da infância - [Kinderschule / ao invés de Kindergarten] corrojoso / horroroso - [eulich / ao invés de greulich = horroroso, certamente associado a Eule, coruja] páta, tatáta / batata - [Toffeln, Tatoffeln / ao invés de Kartoffeln] passagaio / papagaio - [Kogel Geis, ao invés de Papagei, porque explicaram a ele ser um pássaro = Vogel] mamagaio / papagaio - [talvez, associação de Mama = mamãe, Papa = papai] capel / papel - [Kapier ao invés de Papier / talvez associado ao verbo kapieren = captar, entender]. (Benjamin, 2011, p. 113)11

Há uma fina e refinada relação entre a observação que faz da criação da linguagem por seu filho e a sua produção teórica acerca da linguagem, da faculdade mimética, da construção de semelhanças e da brincadeira infantil como forma de participação e interpretação da vida social. Exemplos disto, encontramos o relato de algumas brincadeiras, como do dia em que Stefan foi tomado pela ideia de imitar os objetos - uma sineta, um relógio, uma pera rolando pelo chão - ou da alegria de ser chamado pelos pais com nomes inventados - Stefan Stefanzerich, Leão Doméstico, Monsieur Trésor. Soma-se a isto o registro de uma brincadeira relatada a Walter por Grete, empregada da família: Stefan faz de conta que é o pai, e a empregada, o filho. No jogo, como pai, pede que o filho não o perturbe, pois tem muito que trabalhar (Benjamin, 2011).

O registro desta última brincadeira dialoga com os escritos do filósofo em que afirma que a criança não é um Robson Crusoé, isolado da sociedade, mas que, ao contrário disso, a criança é um sujeito inserido na cultura, filho da sua classe e do seu povo (Benjamin, 2002). Na brincadeira, o menino apresenta a sua perspectiva do que é ser filho de um intelectual que trabalha em casa. O pai, por sua vez, ao arquivar o relato, acolhe a interpretação infantil como “opinião e pensamento” de uma pessoa importante, e assume a crítica, sinalizando as nervuras do inconciliável no cotidiano de adultos e crianças - um intelectual que pensa a infância, trabalhando em casa, tendo ao lado uma criança na plenitude do seu ser.

Os registros de “Opiniões e pensamentos” cessam em 1932 - mesmo ano em que Walter inicia os escritos da “Infância em Berlim por volta de 1900”, obra com caráter autobiográfico, tecida, porém, visando escapar às armadilhas da lógica ensimesmada das autobiografias burguesas. Como de costume, uma cópia do trabalho fora enviada a Scholem para apreciação. Em carta escrita ao amigo em 10/12/1932 agradece sua leitura, confessando a alegria de ter conseguido o tom alegórico pretendido: “Você não poderia ter-me fornecido melhor confirmação da pertinência do meu escrito, dizendo que eles podiam se referir, em alguns trechos, a passagens da sua própria infância” (Benjamin; Scholem, 2014, p. 42). Esta obra apresenta relampejos da sua infância e da cidade de Berlim olhada com o vigor dos seus olhos de criança. A mesma cidade em que nasceu e que em breve, em 1933, teria de deixar para traz devido à perseguição nazista. As possibilidades de publicação de seus escritos, inicialmente na Alemanha e depois em outros países, na medida em que o nazismo se alastrava, iam se tornando rarefeitas e a obra (que adquire três versões mobilizadas pela tentativa de publicação) acaba sendo publicada como uma obra póstuma.

A partir de 1933 Walter vive um constante migrar. Mesmo quando permanecia numa cidade por mais tempo, mudava constantemente de endereço. Preocupações com o filho - que tinha 15 anos quando Walter inicia seu refúgio - são constantemente mencionadas nas cartas a Scholem, bem como a avaliação das consequências das muitas ausências na relação com o filho. Preocupações com o irmão que havia sido preso e, posteriormente, levado para um campo de concentração e extermínio. Adoecimentos. Empobrecimento. A substituição gradual de seus organizados cadernos de estudo por toda sorte de papéis que lhe caíssem às mãos. Depósito de textos em bibliotecas ou envio para amigos, como forma de guardá-los. Textos seminais produzidos em contexto de exceção. A obra da vida em aberto. Três meses preso no campo de Nevers - Borgonha. Morre em 1940, numa tentativa frustrada de cruzar as fronteiras entre França e Espanha, levando consigo uma maleta com escritos, da qual não se separava.

georg

Imagem 6 e 7 Georg Benjamin em 1926 

A experiência como soldado na Primeira Guerra provocou profundas transformações na vida de Georg, tanto nas relações familiares, quanto na sua formação e atuação profissional e política. Estudou Medicina e, sensível à intensificação das desigualdades sociais do pós-guerra, voltou-se à medicina social que, à época, vinculava-se à concepção da Higiene, concebida como saúde pública. Especializou-se em Pediatria e a partir de 1924 tornou-se Médico Escolar.

O olhar atento para a infância insere-se num conjunto de ações ético-políticas empenhadas por Georg como resposta às profundas transformações que vivera e vira se desdobrar como consequência da Guerra: uma imensa população desvalida perambulando pela cidade, crianças órfãs ou que se perderam de seus pais. A própria cidade se redesenhou política e arquitetonicamente no pós-guerra, num acirrado processo de industrialização para impulsionar a economia, tendo ao revés um vertiginoso crescimento da população urbana.

Dar visibilidade à profundidade das transformações políticas, sociais e culturais vividas em tão curto espaço de tempo é importante para entender o pano de fundo das ações de Georg, um jovem com menos de 25 anos que, como seus contemporâneos, queria dividir a vida e a história social num “antes”, imperial e belicista, a ser deixado para trás, e um “agora”, utopicamente democrático, a ser construído e com o qual se comprometia. Estudou Medicina, especializando-se numa abordagem social e ecológica, perspectiva que já buscava no Movimento Wandervogel, movimento juvenil com caráter cultural e educativo de que participara, que concebia criticamente o desenvolvimento das sociedades e a importância de fortalecer a relação com a natureza. Tornou-se membro da Associação Livre de Estudantes e Trabalhadores e, mais tarde, da Associação Médica Socialista, atuando no Serviço de Saúde Proletária. Na política, filiou-se, em 1920, ao USPD - Partido Social-Democrata Independente - e, em 1922, migrou para o KPD - Partido Comunista da Alemanha. Foi eleito, em 1929, e reeleito, em 1933, como Deputado Distrital da região de Berlim-Wedding. Sua atuação política, associada à sua condição judaica, seriam definitivas para o flagelo que viveria, mais tarde, sob o regime nazista.

O território que compunha o bairro de Wedding - o mais pobre de Berlim - fazia parte de uma aldeia agrícola, o que justifica a tradição agrícola e artesã que o caracterizava no século XVIII e que vai ser profundamente alterada, sob o olhar testemunhal de Georg, na primeira metade do Século XX, quando se transforma num centro da indústria metalúrgica e da engenharia mecânica e, por conseguinte, um celeiro do movimento operário (Komander, 2006).

A temática da cidade tornou-se central para Georg. Com as transformações urbanas, o pós-Guerra tornou realidade uma cidade com crianças em situação de rua, desnutridas e maltrapilhas, passando fome, necessitando recorrer a pequenos roubos e/ou à prostituição. Daí extraiu sua implicação com o trabalho social e o movimento trabalhista, de forma articulada. Em seu Doutorado, Georg estudou as “Residências para solteiros” e sua contribuição para a vida de homens jovens que migravam do campo para a cidade em busca de trabalho. Semelhantes aos cortiços, emergiam no contexto de uma reorganização arquitetônica das cidades em expansão, aliada à necessidade das famílias mais pobres de alugarem cômodos de suas casas a terceiros, por curtos espaço de tempo, como fonte de renda, fazendo surgir a figura do “inquilino por hora”.

Em 1922, Georg foi admitido como médico num hospital público e em 1925 foi aprovado no exame para ser médico escolar numa instituição em Berlin-Wedding. Foi pioneiro na perspectiva de uma medicina social, o que justifica a atribuição de seu nome a vários centros médicos hoje existentes na Alemanha. Em 1926 casou-se com Hilde, melhor amiga de sua irmã, Dora. No ano de 1929, pioneiramente, Hilde abriu seu escritório de advocacia. Em 1927, ano que em Hilde se filiara ao KPD, tiveram um primeiro filho que veio a falecer aos três meses de idade. Mais tarde, em dezembro de 1932 nasceria Michael Benjamin, carinhosamente chamado de “Mischa”.

No ano de 1929, mesmo ano em que foi eleito Deputado Distrital, organizou a Exposição “Nervos Saudáveis”, no Hospital de Berlim-Wedding. O evento reuniu os três irmãos: Walter escreveu o portfólio, e Dora, que além de participar da concepção da Exposição, conclamou o público para a luta contra o trabalho infantil. Numa conjuntura marcada pela desigualdade, desemprego, aviltantes condições de trabalho, moradias insalubres, população de rua, alcoolismo, crimes e altas taxas de suicídio, o mote da Exposição era chamar a atenção para as relações entre a realidade social e as condições de saúde da população. “Procure ver o doente, não o crime” era o slogan dado como resposta à culpabilização das populações marginalizadas, visando que a adicção fosse compreendida e tratada como uma enfermidade social.

A complexidade do trabalho de Georg, articulando cidade, políticas públicas de saúde, infância, famílias e condições de trabalho, parece reverberar entre os irmãos: Walter, por exemplo, leva para os seus programas radiofônicos para crianças temas como o surgimento dos cortiços e as consequências do contrabando de bebidas no cotidiano, e Dora, cada vez mais passou a se voltar ao trabalho com crianças filhas de trabalhadoras. Pode-se dizer que Georg, com o estudo da moradia para os homens jovens para o novo mercado de trabalho e com a preocupação com a alta taxa de gravidez entre os adolescentes que acompanhava, e Dora, com os estudos e atuação centrados no binômio mulheres e crianças, ofereceram grande contribuição para os estudos de gênero associados à geração, quando ainda não recebiam essa nomenclatura.

Com a chegada de Hitler ao poder, Georg foi preso após o incêndio do Reichstag, Sede do Parlamento, em 1933, por ser Deputado pelo Partido Comunista, reeleito nesse mesmo ano. Em 1936, acusado de alta traição ao regime nazista, e também por ser judeu, foi condenado a 6 anos de prisão no campo de Bandemburg-Görden, e, depois, levado para o campo de concentração e extermínio de Manthausem, localização que Hilde custou a obter dadas às condições em que o marido fora preso. Ela, por sua vez, perdeu a licença para advogar por ser considerada “meio judia” e por suas convicções políticas.

Na primeira prisão a experiência de Georg nos movimentos de militância foi fundamental para fomentar um convívio mais equânime entre os presos. Já no campo de Manthausem, pedia a Hilde, que passara a trabalhar para um escritório soviético em Berlim, que sempre que pudesse levasse alguma comida para partilhar (Heye, 2020) e um jogo de xadrez. Consta que construiu peças de xadrez com cascas de pão e que esse jogo - postumamente encontrado - fez parte da vida social que estabeleceu na prisão. Era uma "necessidade quase indispensável que lhe dava tranquilidade, satisfação, alegria na luta e sensação de realização” em brechas criadas nas oficinas de trabalho, no jogo às cegas feito na escuridão da noite e que exigia a narração das jogadas, e até mesmo no corredor da morte. Ou seja, mesmo preso, Georg exercia sua militância política e sanitária. Resistência notada pelo regime nazista, que no relatório final de Brandemburgo “atesta o espírito de resistência ininterrupto de Benjamin. Literalmente, diz: ‘A sentença cumprida não afetou o judeu de forma alguma. Sua atitude política ainda deve ser avaliada negativamente, mesmo agora’.” (Lange, 2015, s/p).

A resenha12 que Berndt-Peter Lange faz para o jornal der Freitag, em setembro de 2015 sobre o lançamento do livro “Prisioneiros Políticos em Prisões Nacional-Socialistas”, de Leonore Ansorg, indica nova pista para os estudos sobre as condições carcerárias dos presos políticos judeus e Georg é um dos presos de quem o livro trata. As correspondências trocadas entre ele e Hilde, de 1939 a 1942, estão entre as fontes tratadas pela autora. Nessas cartas destacam-se a cifrada conversa política e a constante preocupação com o filho.

Georg e Hilde haviam decidido esperar que o filho Michael, que tinha 1 ano de idade quando o pai fora preso, crescesse um pouco para poder compreender minimamente a situação do pai. Disseram-lhe que ele estaria trabalhando no exterior e que enviaria cartas regularmente, cartas que a mãe traria das raras e esparsas visitas permitidas ou algumas poucas que o pai conseguiria fazer chegar às suas mãos. Em carta de 16 de maio de 1936, dois dias após ser preso, em casa, Georg escreve a Hilde sobre o futuro:

Querida Hilde, agora tens que tentar viver de forma completamente autônoma com nosso filho, e com os amigos e familiares que te ajudarão. Temos que levar em conta que será uma situação longa e difícil. No futuro terás que tomar todas as decisões sem me levar em consideração. Meu pequeno, nosso Mischa, terá que esquecer-me por um momento. Espero que consiga fazê-lo bastante depressa. Ou queres enviar-lhe algo, de vez em quando, da parte de Georg, que está em viagem? Faz o que te parecer conveniente. Querida mulher, o que mais me tranquilizaria é saber que não te deixarás abater pelo destino! [...] Tenho um pedido para tua primeira visita: traga-me sempre um retrato de Mischa que eu possa ver. (Heye, 2020, p. 110. Tradução minha.)

Em outra carta, do mesmo ano de 1936, Georg se questiona se essa “explicação” ao filho seria mesmo a melhor escolha, ao mesmo tempo em que recorre aos seus conhecimentos acerca da imaginação infantil para dizer que em curto espaço de tempo as lembranças que Mischa tem dele perderiam vivacidade e adotariam um caráter irreal, de fábula, o que considerava, na radicalidade vivida, o menos doloroso (Heye, 2020). Hilde conta que grande parte do pouco que podiam conversar nessas visitas era sobre Michael, seu desenvolvimento e até mesmo alguns diagnósticos à distância quando relatada alguma preocupação de saúde ou de ordem psicológica.

Georg sempre enviava ao filho um bilhete, uma carta, uma anotação, um objeto, que eram entregues ao filho pela mãe acompanhados da narrativa encomendada pelo pai. Desafios sobre conhecimentos gerais - “Que mares atravessas para ir de Hamburgo a Shangrilá?” - e algumas advinhas - “O pássaro tem e o relógio também / Você não pega apenas para escrever / Vá rapidamente para seus brinquedos / E na locomotiva você vai ver” (Heye, 2020, p. 133). Ela registrava esses momentos num diário e os contava a Georg quando possível. Para marcar os quatro anos de Michael, mãe e filho organizaram um álbum de figuras de animais, que recebeu de Georg uma poesia para ilustrá-lo:

Que fascinante: Os macacos pulam, um faz careta para você, o outro estende o braço: querendo seu doce. Agora estão lá em cima, Agora, aqui embaixo, Eles giram e se mexem, sempre felizes e engraçados, os macacos no zoológico. (Heye, 2020, p. 132. Tradução minha)

Quando o menino, aos 7 anos, aprendeu a jogar xadrez, o pai se alegrou e o elogiou. Bernd-Peter Lange (2015, s/p) apresenta um excerto de carta escrita por Georg em de abril de 1940: “É uma surpresa que agora você tenha aprendido a jogar xadrez. Acho que não comecei antes dos 10 ou 11 anos. Mas eu sempre gostei de jogar, mesmo agora!”. O xadrez, então, passou a ser o eixo a partir do qual a família estruturava sua conversação através de cartas: com Hilde, servia de metáfora para uma atualização da conjuntura política, com o filho, uma espécie de pedagogia para entender o poder e as contradições da vida. Exemplo disso, em julho de 1941 escreveu ao filho: “Hoje você recebe uma tarefa de xadrez - um pouco mais difícil do que antes - com a qual você pode aprender que quando você joga xadrez - e, a propósito, na vida também - você às vezes tem que fazer grandes sacrifícios para conseguir vitória” (Lange, 2015, s/p). Em outros escritos, apresentava lances e desafiava o menino a descobrir o erro ou a fragilidade do adversário. Um olhar atento a essas cartas e aos lances “político-pedagógicos” indicados ao filho permite compreender o irredutível e resistente ângulo de visada que Georg tinha sobre a sua história presente, mesmo na condição de prisioneiro.

Noutra carta, Georg elogia o menino por ser sensato e sabido, e decide, junto com Hilde, pressionados pelo contexto que se agravava com a deflagração da Segunda Guerra, que chegara a hora de revelar ao menino “a verdade sobre o destino de seu pai”. Hilde conversou com Michael em dezembro de 1941, ao fazer 9 anos. Sabendo disso, o pai lhe escreve: “Me alegra muito que Hilde tenha podido contar-te, agora, porque agora já és bastante maior e sensato para entender muitas coisas que antes não podíamos te contar. Me alegra muito receber as tuas cartas”(Heye, 2020, p. 136).

É uma nota manuscrita de Hilde apensada à correspondência penitenciária trocada com Georg que nos dá a ver o derradeiro encontro entre eles, não exatamente um encontro, mas uma ida dela e do filho aos arredores do espaço aberto da ferrovia onde Georg exercia seus trabalhos forçados e que permitia a troca de raras palavras e distantes acenos: “Em julho de 1942, pudemos ver Georg novamente, numa saída para o seu local de trabalho, na estação ferroviária de Wuhlheide, com outros prisioneiros do campo de educação trabalhista de Wuhlheide” (Lange, 2015, s/p). Em seu diário, Hilde anota que Michael elogiou a força do pai, que lidava com certa desenvoltura com os materiais da ferrovia, em contraste com a fraqueza recalcitrante de seus companheiros (Heye, 2020).

Semanas depois, seria anunciada a morte de Georg.

dora

Imagem 8 e 9 Dora Benjamin s/d e 1933 

Dora é uma imagem exemplar das mulheres emancipadas, modernas, letradas e seguras de si de sua época. Scöck-Quinteros (2014), em artigo dedicado à biografia de Dora, apresenta diferentes etapas de sua vida destacando a importância de ter sido uma mulher cientista, independente e, sobretudo, atuante - social, política e intelectualmente -, seja na emergente República de Weimar, seja nas escassas brechas dos tenebrosos tempos do regime nazista. Ao escolher essa perspectiva, a autora desinvisibiliza um aspecto camuflado do nazi-fascismo: o machismo. A biografia de Dora denuncia a escassez de referências sobre a importante cientista política e mostra o significado da ruptura democrática de 1933 para a história das mulheres intelectuais na Alemanha, tanto pela abrupta interrupção nos processos de luta pelos direitos femininos que se consolidavam no nascente Século XX, quanto pela violência e repressão instaurada que resultam no apagamento desse passado histórico.

Dora formou-se em Economia na Universidade de Greifswald, compondo a primeira geração de economistas mulheres. Dedicou seus estudos à tríade constitutiva da identidade feminina na primeira metade do Século XX: o trabalho doméstico, a criação e a educação dos filhos, e o trabalho remunerado. Seu foco era a produção industrial de confecções de vestuário que, na esteira das indústrias têxteis, contratavam o serviço das mulheres para ser realizado em suas próprias casas. A escuta atenta a essas mulheres e crianças, a partir de questionários, entrevistas e visitas às casas dessas famílias operárias, permitiam afirmar que o trabalho fabril realizado em casa piorava a situação de vida. Agravam-se as condições de moradia, elas sofriam com ausência de folga, os salários eram inferiores, o trabalho realizado em casa não necessariamente permitia às mães darem atenção aos seus filhos e as crianças da casa acabavam por trabalhar a fim de ampliar a produção. Por sua vez, as operárias que trabalhavam nas próprias fábricas tinham salários superiores e deixavam seus filhos em casa, mas nesses casos, o tempo de amamentação era menor e os índices de doenças e mortalidade, maiores.

Com sua Tese de Doutorado em Ciências Econômicas, “A situação social das trabalhadoras berlinenses da confecção vestuário, com especial atenção às crianças”, defendida em 1924, Dora produziu sólida documentação sobre profissão e maternidade que permitia denunciar a influência das condições de trabalho das mulheres na educação e na saúde das crianças. Recomendava, junto disso, a necessária regularização do trabalho das mulheres, que esse trabalho deveria acontecer nas fábricas, que as fábricas deveriam criar creches e jardins de infância que permitissem atender as crianças, que deveria haver preocupação com a formação das pessoas que atenderiam as crianças e, ainda, que deveria ser pensado um fundo de seguridade a ser pago às mulheres parturientes durante o período de amamentação. Além dessas questões pontuais, Dora sinalizava a importância de melhorar as condições das residências e de seus entornos, o que passava, necessariamente, por uma organização não só das mulheres.

Dora destacou-se, ainda, como escritora de ensaios de crítica social em diferentes periódicos alemães. Schöck-Quinteros (2014) cita a importância do seu último artigo, publicado na revista Soziale Praxis, em 1931, intitulado “A cultura da mulher: uma sinfonia vital no Século XX”. Trata-se de uma crítica política contundente ao crescimento do trabalho infantil na República de Weimar, decorrente da romantização do trabalho remunerado feminino remanejado para o espaço doméstico pelas indústrias de vestuário. Em seu artigo, Dora questiona, ainda, a relação entre as condições do trabalho das mulheres e o fato da Alemanha ter as maiores taxas de suicídio feminino da Europa (Schöck-Quinteros, 2014, p. 11).

“O trabalho infantil é uma desgraça cultural”, afirma categoricamente Dora, em seu artigo. No entanto, apesar das leis existentes de proteção às crianças, sua preocupação com o trabalho feminino não sensibilizava as classes médias, que justificavam idilicamente ser uma forma das mães estarem junto seus filhos e, por consequência, serem culpabilizadas no caso de introduzi-los ao trabalho infantil. Esse sonho de uma mulher-mãe-trabalhadora, dizia Dora, não passava de caricatura. Sua Tese e toda sua produção teórica eram uma exposição de compromisso social. Mas, assim como seus irmãos Walter e Georg, cujas críticas foram incompreendidas e/ou recusadas pela ciência institucionalizada. Também a sua crítica política não encontrou pares no debate acadêmico na Economia. Dora entendeu esse silenciamento como expressão de uma concepção dominante sobre os papéis femininos e masculinos na sociedade e no próprio campo de estudos. Por essa razão, embora almejasse uma carreira acadêmica, afastou-se da Economia e aproximou-se da Pedagogia e da Psicologia, interesses que já vinha cultivando desde que se envolvera com o trabalho de seu irmão Georg.

Direcionou-se, então, para as políticas sanitárias socialistas, tratadas como questão educativa, com foco na atenção às crianças. Em colaboração ao trabalho do irmão, no hospital Berlim-Wedding, e na escola, Dora começou a trabalhar diretamente com crianças em situação de vulnerabilidade e iniciou um estudo sobre as consequências da vida nas ruas para a saúde das crianças. O trabalho com as crianças a acompanharia por toda a sua curta vida, inclusive nos difíceis momentos em que se encontrava prisioneira nos campos nazistas, quando pioneiramente passou a realizar pesquisas sobre a presença das crianças nos campos de concentração e, também, a buscar articulação com redes internacionais de proteção - no que contava com sua cunhada Hilde - visando salvá-las, libertando-as dos campos. Num dos formulários que teve de preencher para a polícia suíça, em 1943, declarou-se psicóloga que tem como trabalho a reeducação de crianças vulneráveis. Já acumulava, nessa ocasião uma longa trajetória dedicada à assistência social.

Dora preocupava-se com as pessoas refugiadas desde que teve de emigrar para a França em 1933 e viu demorar mais de nove meses sua autorização de residência. Sabia que essa autorização, ao longo dos anos, se tornaria o principal problema dos refugiados, seguido pela dificuldade de encontrar trabalho que se aproximasse daquilo que faziam antes no país de onde emigraram ou não fossem ilegais. Já nesse período, na condição de refugiada, Dora cuidava de crianças refugiadas em seu pequeno apartamento. Um grande problema para os refugiados era salvar seus documentos, livros ou material de trabalho, posto que muitas vezes precisavam fugir só com a roupa do corpo. Parte do pouco que levara consigo para a França, sobrevivendo às fogueiras nazistas na Alemanha, foi sendo expropriada nas chamadas “visitas domiciliares”, entre estes, documentos e cópias de textos de Walter. Todo seu material fora destruído em Paris. Só em 1935 ela conseguiu se reaproximar de seu campo profissional, mas não consta que tenha publicado textos em periódico entre os anos de 1933 e 1940 (Scöck-Quinteros, 2014).

Dora e Walter compartilharam alguns anos de refúgio quando emigram para a França, mobilizados pela ascensão de Hitler, em 1933; passam juntos os anos de 1935 e 1936, e voltam a se encontrar 1940, em Lourdes, por algumas semanas até a ocupação total da França, em junho 1940, que os leva a destinos diferentes. Dora já vinha numa desgastante luta por sobrevivência. Em 15 de maio de 1940 ela havia sido levada para um campo de internato específico para mulheres solteiras e sem filhos, o Vélodrome d'Hiver, em Paris. Em 23 de maio, uma semana depois, foi reencaminhada, de trem, com outras muitas mulheres, para o campo de Gurs, o maior da França. O estado de saúde de Dora13 acabou sendo decisivo para que ela não fosse mais uma vez remanejada de campo, conseguindo sair de lá em junho de 1940, quando vai para Lourdes, onde se encontrou uma última vez com Walter, que viria a falecer em 26 de setembro.

Lá, supostamente, Dora permaneceu até ir para Aix-en-Provence e, no mesmo dia, fugir para a Suíça, em dezembro de 1942, pela fronteira de Legacy. Foi barrada na Fronteira que tinha por ordem enviar de volta todos os estrangeiros, mas por causa de um atestado médico e por um conjunto de intervenções institucionais mobilizadas a seu favor, logrou permanecer no campo de recepção de Charmilles e receber licença para ir para Zurique14. Em carta escrita para Karl-Otto Thieme, em 30 de maio de 1943, Dora lamenta morte do irmão nos Pirineus e todo o sofrimento que a antecedeu, mas também pondera que, considerando a fragilidade de Walter, chegava até ser uma sorte não ter vivido os anos que se seguiriam, sobretudo o ano de 1942 (Schöck-Quinteros, 2014).

Na Suíça, Dora vê se reafirmarem todos os problemas postos para os refugiados já vividos por ela no início dos anos 30, sendo que, com a expansão sem escalas do nazismo, percebe que os ‘refugiados raciais’ passam a contar com menor proteção que os migrantes por causas políticas. As preocupações de Dora com as crianças refugiadas permaneceram, sobretudo no tocante àquelas deportadas durante e posteriormente ao regime nazista. No entanto, a possibilidade de atuação numa instituição que atendia tanto crianças com diferentes deficiências ou em situação vulnerável resultante dos processos sofridos lhe renovara a esperança de atuar no campo de trabalho há muito escolhido. Esperançosa pelo fim da Guerra e do nazismo, envolveu-se em projetos dedicados a pensar os princípios norteadores para futuras reformas educacionais. Após anos de vida precisando esconder-se como estratégia de salvar a própria vida, salientava a importância de tornar clara a postura antifascista de uma reforma vindoura, de considerar a experiência vivida pelos refugiados nos cursos de formação dos professores e, também, a importância de conhecer outros países para expandir a própria situação vivida. O envolvimento nesses debates reabilitou em Dora seu sentimento de liberdade e de exercício de democracia, ao mesmo tempo em que sua presença, formação e experiência atestavam credibilidade aos fóruns de que participava.

Schöck-Quinteros (2014, p. 23) menciona, por exemplo, a participação pioneira de Dora na Conferência de Refugiados em Montreux, no início de 1945, representando a Organização de Ajuda aos Trabalhadores Suíços. Era a primeira refugiada se pronunciando num fórum desse tipo: “uma mulher pequena, de cabelos grisalhos e marcada por doenças graves” que fazia uso da palavra “por aqueles ‘refugiados que não podem se representar, pelos filhos refugiados’”. Seu apelo público era para que não se negligenciasse as “questões de retorno e de migração”. Caberia a essas crianças e jovens, traumatizados, deportados com seus pais ou mesmo sozinhos, “a reconstrução da Europa” (Schöck-Quinteros, 2014. p. 23). O compromisso de Dora era com o restabelecimento da vida e da democracia. Quem reconstruiria a Europa, se sua intelectualidade crítica havia sido dizimada? Talvez tenha sido essa questão profunda que a mobilizou, mesmo com sérios problemas de saúde, a retomar, em 1944, o trabalho psicopedagógico com crianças e jovens visando contribuir com o recomeço de suas vidas.

Dora é a única dos irmãos que teve, em vida, a oportunidade de ver chegar o fim da Segunda Guerra Mundial e da política nazista de Hitler. Sofrendo de um câncer de mama, descoberto em 1944, seu estado de saúde se agravara e ela veio a falecer em Zurique, na Suíça, em 1 de junho de 1946.

palavras finais

Figura 10 “Bibliotek” - Bebelplatz - Berlim - 1995  

A imagem acima é uma escultura do israelense Mischa Ullman, intitulada Biblioteca. É composta por estantes vazias de 20.000 livros e fica submersa na Praça Bebelplatz, em Berlim. Convida os passantes a uma experiência estética dos subterrâneos da história. Ao seu lado, uma placa estampa a célebre frase extraída da obra “Almansor”, do poeta Heinrich Heine, datada de 1921: “Isso foi apenas um prelúdio; onde queimam livros, no final também queimam pessoas”. Vale acrescentar a ela, como uma imagem dialética, a sentença do irmão primogênito escrita em seu derradeiro texto sobre o conceito de História: “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 1987, p. 224).

É a “(in)segurança dos mortos” que nos inscreve na história, não apenas para o resguardo de tradição dos que vieram antes, mas também para a utopia de construir “invejas ao futuro”, expressão que complementa a sentença anterior. Que consequências éticas se podem extrair do apagamento da história e do silenciamento dos seus sujeitos? Não basta, pois, apenas recontar e reparar as suas biografias, mas restituir o tempo histórico que os liga a nós, e nós a eles, para que suas histórias não esmaeçam, cristalizadas e para que nós não nos esqueçamos que a mesma história que os reveste define a nossa existência. Esquecê-la pode nos condenar a repeti-la. Restabelecer a biografia dos irmãos Benjamin é também reconstituir na história corrente a narrativa que nos torna próximos - um duplo exercício de deslocamento.

Stefan, filho de Walter, nascido em 1918, tinha 15 anos quando o pai iniciou seu refúgio, e 22 quando o pai morreu, em 1940. Por insistência do pai, migrou com a mãe (não judia) para a Itália e, depois, para a Inglaterra, onde permaneceu. Nesse meio tempo, chegou a ser preso e enviado a um campo na Austrália, em 1941. Estudou História Natural, Geografia e Filologia. Na Inglaterra, tornou-se um livreiro erudito e manteve um Sebo. Como o pai, também era colecionador. Não foram encontrados indícios de que Stefan tivesse conhecimento das anotações que o pai fizera das suas “opiniões e pensamentos”, mas a tese de doutorado de Mattos (2019, p. 16) apresenta o fac-símele de uma carta escrita por Stefan para Adorno em 27 de novembro de 1966, por ocasião da publicação dos dois primeiros volumes reunindo as cartas de seu pai (Gesammelte Briefe). Nessa carta, Stefan agradece o esforço de Adorno e de Scholem e pondera que, mesmo ainda não tendo tempo para a leitura integral, “Já algumas vezes ao mínimo folhear aleatório fui atordoado por nomes meio esquecidos do passado. Como regra, surpreendentemente pouco se sabe sobre os próprios pais, e é graças a vocês e à editora que isso mudou agora no meu caso” (Mattos, 2019, p. 14, tradução da autora). Os registros das “opiniões e pensamentos” são referidos em algumas das cartas de Walter.

Stefan teve duas filhas, Mona, que trabalha com cinema e tem um filho pequeno, e Kim, que é professora de inglês. Nasceram, respectivamente, em 1970 e 1971. Stefan faleceu em 1972. O pouco que Mona e Kim sabem sobre a vida do avô vem de relatos feitos pela mãe, segundo a qual, Stefan, tratando sua história familiar como uma dor traumática, pouco falava15. Mais que isto, só vieram a saber, com surpresa, na juventude, quando a obra do avô ganhara uma repercussão sem precedentes. Resistindo ao tempo, aos malogros e a um roubo sofrido na casa de Stefan logo após a sua morte, algumas fotos e livros resistem, ao lado da miniatura de um templo budista comprado na Itália e de uma gaita trazida da Rússia - presentes de Walter ao filho.

Michael, filho de Georg, nascido em 1932, tinha 1 ano quando o pai foi preso, e 9 quando o pai morreu. Não chegou a conhecer os tios, Walter e Dora. Quando adulto, confessou não saber ao certo se o que lembra do pai - de cuja presença desfrutou no primeiro ano de vida e, depois, entre dezembro de 1933 e maio de 1936, antes de completar seus 4 anos de vida - remete-se às raras vezes que esteve com ele, ou se são memórias construídas a partir do diário e dos relatos da mãe. Formou-se em Direito, tornou-se advogado e professor universitário, e seguiu a perspectiva comunista dos pais. Teve dois filhos, Georg e Simone. Michael faleceu no ano 2000. Hilde, sua mãe, faleceu em 1989.

Walter, Georg e Dora produziram um monumental trabalho de abordagem e politização da infância no que se refere ao reconhecimento da sua singularidade, no respeito à participação ativa das crianças na dinâmica social e na pontuação da urgência de se construir políticas públicas voltadas à proteção, provisão e garantias de expressão subjetiva. Focaram dimensões basilares da vida das crianças, que, décadas mais tarde, subscreveram a Convenção dos Direitos da Criança e que ainda se mostram atuais na base de suas formulações.

O caráter monumental do seu trabalho está, também, no silêncio cortante que emerge da estante vazia e submersa. A história oficial atribui as mortes de Walter e Georg ao suicídio, e a de Dora, ao adoecimento. Reparar tal distorção implica referenciá-los como vítimas de crime político de Estado. E contar e recontar a sua história. Só a luta diuturna e cotidiana contra o fascismo pode, quem sabe, deixá-los, enfim, em segurança.

referências

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Recebido: 11 de Junho de 2022; Aceito: 01 de Agosto de 2022

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