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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro ene./dic 2022  Epub 23-Oct-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.68447 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

manifesto em movimento: a pé, de motoca, as crianças na Praça da República em São Paulo

manifest in movement: on foot, by motorcycle, the children in the Republic Square in São Paulo

manifiesto en movimiento: en triciclos, los niños en la Plaza de la República de São Paulo

marcia aparecida gobbiI 
http://orcid.org/0000-0001-9850-0190

Ifaculdade de educação da universidade de são paulo, brasil - E-mail: mgobbi@usp.br


resumo

este artigo tem como ponto de partida a existência de um projeto pedagógico que se faz cotidianamente com crianças na Praça da República, situada na cidade de São Paulo. Empreendeu-se como metodologia o uso de duas redes sociais, sendo elas, Instagram e WhatsApp, com as quais foi possível consultar imagens e realizar entrevistas e diálogos breves. Tem como objetivos responder a algumas questões: Que cidade se encontra dentro das experiências de crianças a circular com as motocas na Praça? O que podemos depreender dessa prática? O que ocorre e é possível ocorrer com o espaço público ao considerarmos a presença das crianças, e de modo concreto, como no projeto Motoca na Praça, quando elas ocupam os espaços? Há uma produção de espaço, ainda que efêmera, com a presença das crianças? Uma questão, talvez mais simples, é onde está localizada a infância nesta Praça? Historicamente é possível vê-la produzida, presente ou ausente, nas transformações do espaço concebido, mas sobretudo, vivido e percebido, numa acepção do filósofo Henri Lefebvre que será recuperada adiante? Levanta-se como hipótese que com a presença das crianças, desde as/os bebês, de todas elas sem exclusões, teremos uma produção plena dos espaços urbanos.

palavras-chave: cidade; infância; educação infantil; praças; caminhar

abstract

This paper had as its starting point the existence of a pedagogical project that is still carried out daily with children riding their bicycles in Praça da República, located in the city of São Paulo. The method employs two internet social networks, Instagram and WhatsApp, with which it is possible to generate images and conduct interviews and brief dialogues. It aims to answer some questions: What city within a city is manifested in the experiences of children riding their bikes in the Republic Square? What can we deduce from this practice what occurs or is possible to occur within a public space when we consider the presence of children, as, for example, in the Motoca na Praça project, when children actually officially occupy the square? Is there a production of space, even if ephemeral, that results from the presence of children? Perhaps a simpler question is, where is childhood located in this square? Historically is it possible to see it produced, present or absent, in the transformations of any given space by the presence of children? We rely on the philosopher Henri Lefebvre’s notion of the production of social space to hypothesize what would follow from the production of urban spaces that were transformed by the presence of children of all ages, from infancy on.

keywords: city; childhood; early childhood education; squares; walking

resumen

Este artículo tiene como punto de partida la existencia de un proyecto pedagógico que se realiza cotidianamente con niños en la Praça da República, situada en la ciudad de São Paulo. Se emprendió como metodología el uso de dos redes sociales, siendo ellas, Instagram y WhatsApp, con las que fue posible consultar imágenes y realizar entrevistas y breves diálogos. Su objetivo es responder a algunas preguntas: ¿Qué ciudad se encuentra en las experiencias de los niños que circulan con triciclos en la Plaza? ¿Qué podemos deducir de esta práctica? ¿Qué ocurre y qué es posible que ocurra con el espacio público cuando consideramos la presencia de los niños y niñas, y de manera concreta, como en el proyecto Motoca na Praça [Triciclos en la Plaza], cuando ellos ocupan los espacios? ¿Hay una producción de espacio, aunque sea efímera, con la presencia de niñas y niños? Una pregunta quizás más sencilla sea ¿dónde está localizada la infancia en esta plaza? Históricamente, ¿es posible verla producida, presente o ausente, en las transformaciones del espacio concebido, pero sobre todo, vivido y percibido, en la acepción del filósofo Henri Lefebvre que se recuperará más adelante? La hipótesis es que con la presencia de los niños y niñas, desde los bebés, todos ellos sin exclusión, tendremos una producción plena de los espacios urbanos.

palabras clave: ciudad; infancia; educación infantil; plazas; caminar

manifesto em movimento: a pé de motoca, as crianças na praça da república em são paulo

de motoca na praça com as crianças: aproximações

A cidade estará plenamente viva apenas quando for capaz de sustentar as diferenças, não de forma homogênea, mas transformadora e criativa, refletir e acabar com as desigualdades considerando ações que possam produzir reflexões e mudanças estruturais. Essa sustentação não se faz individualmente e nem mesmo pode ser definida exclusivamente pelo e no universo adulto. Nesse sentido, há que considerar as crianças em todo e qualquer projeto de mudança, seja ele mais ou menos profundo, oriundo de práticas escolares ou existentes fora da instituição escolar. Esta reflexão é um mote para a escrita deste artigo e para pensarmos sobre infância e cidade como tema amplo, relacionando-o a algo bastante específico: os usos de uma praça pelas crianças. Não se trata exatamente de temática original e nem se propõe a isso. Acredito que a contribuição seja possível ao entendermos e observarmos como esses usos são construídos dia a dia numa conhecida praça paulistana em relação com as pessoas e equipamentos no entorno.

A fonte inspiradora para escrita deste artigo é o trabalho pedagógico desenvolvido pela professora Lívia Arruda, de uma turma de crianças e suas frequentes andanças a pé e com motocas pela Praça1 da República e imediações, na efetivação do projeto Motoca na Praça, realizado a partir da e na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Armando de Arruda Pereira2. Na escrita deste artigo foram consideradas as seguintes fontes documentais: imagens compartilhadas por redes sociais, em destaque o Instagram, no endereço projetomotocanapraca, entrevista generosamente concedida pela professora Lívia Arruda3 e o uso do WhatsApp, onde eram estabelecidos diálogos entre mim e a referida professora. Não se trata de discutir sobre projetos políticos pedagógicos ou currículos para a infância, embora sejam, seguramente, temas importantes. Um dos objetivos amplos concentra-se em provocar reflexões sobre a cidade a partir da presença de crianças em alguns de seus espaços, especialmente de uma praça situada na região denominada central do município de São Paulo, a centenária Praça da República, a qual é vista como parte de um território mais amplo desta mesma região, mas que condensa e possibilita reflexões sobre infância e cidade.

Pretende-se, de modo amplo, provocar reflexões sobre o tema infância e cidade, sendo o foco principal pensar sobre as crianças na Praça e seus desdobramentos para a produção e uso desse espaço centenário situado na região denominada central de São Paulo. Optou-se por fazer um recorte em que as falas da professora e imagens com as crianças fossem privilegiadas, proporcionando um primeiro contorno neste tema específico. As vozes das crianças, imprescindíveis em pesquisas que pretendem ser realizadas “com elas”, encontram-se aqui de forma indireta, nos comentários feitos por Lívia, cujas práticas e demais falas encontram-se presentificadas em sons e imagens no Instagram por ela alimentado. Com esse movimento, Lívia afirma que seu objetivo é construir uma narrativa do projeto e não apenas registrar mecanicamente os acontecimentos. Assim, produz-se uma curadoria das fotos postadas no Instagram projetomotocanapraca. Considera-se, contudo, que a centralidade está com as crianças, por serem elas o ponto de partida, sem as quais a Praça estaria mais vazia da concretude da infância.

Ao me debruçar sobre as narrativas imagéticas criadas por Lívia no Instagram, cheguei à percepção de um manifesto em movimento. Estou ciente, que pelas minhas escolhas, produzo uma outra narrativa ao copiar e reproduzir apenas algumas imagens deste Instagram compondo com elas este artigo e as reflexões aqui contidas. Nesse processo, que não desvirtuou as ideias centrais de Lívia4, quais sejam, as de apresentar e provocar pensamentos a partir das crianças em caminhadas e ações pelas ruas e Praca, passei a considerar as reflexões da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui. Segundo ela é possível pensar e produzir uma sociologia da imagem como sintaxe entre imagem e texto e como modo de contar e comunicar o vivido (Cusicanqui, 2015, p. 23), no caso deste artigo e das práticas aqui apresentadas, trata-se do vivido pelas crianças na Praça e arredores, registradas em imagens. Embora estáticas evidenciam movimentos pelas ruas e constituem as crianças e a infância em ato e presença na cidade. Afirma-se que, com isso, há uma contribuição das crianças concernente à produção da cidade. Aproximamo-nos de Cusicanqui (op.cit) para quem com os usos das imagens (desenhos e fotografias) pode-se provocar e desmascarar formas de colonialismo contemporâneo em que seja possível construir o olhar desde as/es/os de baixo, com eles e para eles. Amplio essa reflexão reforçando que - como nas imagens que serão aqui utilizadas - elas podem nos aproximar e fazer questionar narrativas já cristalizadas sobre a cidade e a infância e as relações das crianças com pessoas adultas, interpelando narrativas adultocêntricas, aporofóbicas, racistas, por vezes, naturalizadas e, quem sabe, contribuindo para a elaboração de outros entendimentos da vida e relações nela construídas.

Encontra-se entre as justificativas para a escolha do “projeto das motocas na praça” o fato de ter tomado conhecimento das práticas pedagógicas da professora Lívia e da EMEI pela dissertação de mestrado de Lilith Neiman, em 2019, e de se constituir como região frequentada por mim há alguns anos devido a pesquisas de campo realizadas5 e em andamento6 e que me conferiram certa familiaridade com a região. Contudo, um dos pesos a favor da escolha foi entrar em contato com imagens e audiovisuais pelo Instagram e contatar a professora Lívia para a entrevista mencionada. Isso me permitiu seguir algumas hipóteses já presentes nas pesquisas realizadas e identificar aspectos importantes concernentes à produção de espaço pelas crianças, num espaço circunscrito: Praça da República e ruas vizinhas, assim como as atuais condições sociais e econômicas que também orientam as práticas sociais infantis.

Trata-se de uma pesquisa em que se considerou, como mencionado, o Instagram como lócus da produção de dados, somando-o a caminhadas livres, dentro do possível, feitas pela autora deste artigo na Praça da República e imediações, configurando-se assim em três dias de observações diretas, além da entrevista com a professora das crianças. Ao usar imagens e informações postas no Instagram, do qual me tornei seguidora, passo a fazer uso de uma abordagem com algumas características netnográficas e da etnografia visual, em que uma mídia social foi usada como importante fonte de pesquisa. Busquei me posicionar à espreita, como observadora, participando em pequenos diálogos possíveis dentro da própria plataforma e endereço mencionados.

Ao ser convidada a seguir o grupo pertencente ao projetomotocanapraça, passo a me entender como participante aceita, cujos passos tornam-se vistos, já que me tornei seguidora do grupo virtual dentro desta mesma rede. Com isso, deixo de ocupar o lugar de certa passividade de observadora, pelas janelas da web, e me torno alguém cuja participação, ainda que exígua e virtual, torna-se mais frequente e perdura para além do tempo da escrita deste texto. Não busco analisar mídias sociais exatamente, o que configuraria um trabalho inteiramente netnográfico, mas fazer um uso combinado, como já mencionado, considerando entrevista gravada, caminhadas, imagens e vídeos no Instagram e diálogos pelo WhatsApp. Recorro às imagens escolhidas pela professora e pelas crianças para serem postadas nessa rede social. Ademais, ciente de que se trata de filtros importantes que decidem o que mostrar e o que não mostrar, opto por seguir com elas e refletir sobre a presença das crianças na Praça e o projeto em realização contínua.

Como mencionado, quanto à metodologia, usar imagens do Instagram remete à aproximação de uma pesquisa de campo online, configurando um princípio de etnografia virtual, ou netnografia, como também é possível denominar. Ao optar por esse uso, também em função da pandemia que nos obrigou a convivência em ambiente virtual, busquei dar crédito a esse ambiente, e mais, à internet, como fonte válida de pesquisa e um fenômeno sociológico que não pode passar ao largo de nossos usos e rigorosas e necessárias compreensões. Encontra-se aqui uma questão importante: não se trata de uma pesquisa sobre a internet e seus usos, mas que usa algumas de suas redes como fonte. Nesse caso, o Instagram como objeto provedor de imagens para consulta e a produção de uma narrativa do projeto objeto deste artigo e o WhatsApp como propiciador de contato imediato e diálogo com a proponente do projeto Motoca na Praça.

Metodologicamente foram mantidos os procedimentos básicos de uma etnografia, quais sejam, o estranhamento em relação ao objeto e considerar a subjetividade nele existente e por ele produzida. Os dados são também construção da pesquisadora e que resultam da observação, neste caso, das imagens vistas, e que elas resultam de outras filtragens, majoritariamente da professora Lívia e a curadoria feita para postagens das fotos no Instagram. O relato é fruto de múltiplas textualidades, inclusive derivadas da associação com outros recursos, como a entrevista e caminhada pela Praça, buscando interações presenciais e estar próxima de seu espaço e relações, ainda que não tenha sido possível acompanhar com as crianças. Essa mescla de recursos compôs um método híbrido de pesquisa para a escrita deste artigo, que se ofereceu como forma de estar junto e compreender de modo mais profundo o objeto não objetificado deste breve estudo. Inspirado em Frehse (2005), a reflexão neste campo virtual imagético afirma a existência de outros/as informantes. As fotografias do Instagram se constituíram como campo físico a ser consultado e considerado de modo concomitante, como as fontes históricas e documentais do presente a serem consultadas e levadas a sério. Ao buscar entender as crianças na Praça e possibilidades de produção deste espaço por elas em relação a outras pessoas que a usam de modo mais ou menos frequente, esse método mostrou-se bastante plausível.

Num corte mais profundo para esta escrita, interessa considerar a visibilidade das crianças nesse espaço afirmadas como produtoras de relações e breves suspensões no frenético ritmo temporal com o qual são produzidas as práticas sociais no urbano, também pelas crianças. Elas e as mais diferentes pessoas se encontram, ou se trombam na dinâmica cotidiana. São elas, as trabalhadoras ou desempregadas, pessoas em situação de rua, prostitutas, transeuntes cujos destinos são totalmente desconhecidos, aquelas e aqueles que passam apenas como usuárias/os do metrô, entre outras.

São muitos os questionamentos possíveis quando o assunto reúne a complexidade de uma praça pública, como a Praça da República em São Paulo, as condições de vida atuais nesta cidade e país, a presença de uma escola de educação infantil, também pública, e o projeto pedagógico de uma professora que se faz majoritariamente do “portão para fora” em saídas de motocas com as crianças. Apresento algumas das perguntas que orientaram a escrita deste artigo, dizendo, de antemão, que não se pretende responder a todas, mas uma aproximação.

Que cidade se encontra dentro das experiências de crianças a circular com as motocas na Praça? O que podemos depreender dessa prática? O que ocorre e é possível ocorrer com o espaço público ao considerarmos a presença das crianças, e de modo concreto, como no projeto Motoca na Praça, quando elas ocupam os espaços? Há uma produção de espaço, ainda que efêmera, com a presença das crianças? Uma questão, talvez mais simples, é onde está localizada a infância nesta Praça? Historicamente é possível vê-la produzida, presente ou ausente, nas transformações do espaço concebido, mas sobretudo, vivido e percebido, numa acepção do filósofo Henri Lefebvre que será recuperada adiante? Levanta-se como hipótese que com a presença das crianças, desde as/os bebês, de todas elas sem exclusões, teremos uma produção plena dos espaços urbanos. Apesar de aparentemente irrefutável, trata-se um desafio, pois implica a derrubada de posicionamentos e concepções de infância em que prepondera a centralidade e a suposta sapiência adultas. Ao pensarmos na produção das cidades e do urbano, há desdobramentos fundamentais. A presença da criança remete à produção de outras temporalidades e relações entre elas e delas com adultas/es/os.

Essas perguntas e reflexões nortearam a investigação feita de modo breve, ao longo dos meses de maio e junho de 2022. Cabe elucidar que, embora o estudo de projetos pedagógicos na educação infantil não esteja no foco deste artigo, não podemos desconsiderar o papel da escola - neste caso da educação infantil pública - como um dos agentes promotores da presença das crianças na cidade por meio do incentivo e garantia da circulação e práticas sociais das crianças, assunto do qual nos aproximaremos, sobretudo nutridas/es/os de uma das afirmações da professora Lívia7:

“É a potencialidade do que é a saída. Entender o que só se pode entender estando fora da escola e o que isso pode oferecer, né? Sem grandes pretensões, mas só o fato de você estar fora da escola, junto com o educador, com os colegas, mas fora da escola isso trazia muito, é muito aprendizado, trazia muita coisa para as crianças, né, há aquelas pistas que vamos pegando com as crianças do que elas falavam, do que elas olhavam” (Entrevista realizada em 16/06/2022).

Lívia apresenta muito mais do que uma preocupação meramente protocolar no cumprimento de um currículo escolar. Ela se aproxima das proposituras do urbanista Giancarlo Paba (2014) ao mencionar a potencialidade e ao realizar uma forma de escola ao ar livre e em movimento, que se faz em suas caminhadas com as crianças, ora a pé, ora de motocas. Pretende-se com esses questionamentos e práticas pedagógicas e citadinas da Lívia junto às crianças, aproximar-se da produção de outras problematizações sobre crianças em espaços públicos, ocupando-os, por direito e prazer e, com elas, contribuir junto às demais pesquisas sobre o tema.

Este artigo está subdividido em 6 partes, a saber: 1. De motoca na praça com as crianças: aproximações, são apresentadas algumas ideias iniciais deste artigo; 2. “Não fale com estranhos”, em que se discute a hostilidade dos espaços urbanos para as crianças X espaço de direito e prazer. 3. Praça da República: muito mais que uma parada da linha vermelha do metrô, onde pretende-se abordar as crianças na Praça e seus ritmos juntando à solidariedade em atos; 4. O projeto e a presença: crianças em relações e a produção do espaço, em que busco refletir e afirmar a presença das crianças como elemento fundamental para a produção do espaço urbano e do espaço da Praça; 5. Nas ruas: rompimento de limites e as interações nem sempre presentes; e 6. Em De “explorações tímidas” à ocupação do inimaginável temos algumas conclusões sobre as práticas apresentadas. Quem sabe, de motoca e a pé com as crianças, seja possível conceber diferentes, justas e bons modos de ler, ser e fazer o urbano. Tomara!

Vale sublinhar que esse artigo é, fundamentalmente, sobre encontros num tempo em que preponderam desencontros e tragédias.

“não fale com estranhos”

“Mas, mas é a praça, né? E o entorno que elas vivem sempre foi muito. Eu via muitos professores mesmo e famílias fazendo falas muito preconceituosas em relação à praça ou as pessoas que estavam ali na praça e sendo que aquela era a realidade cotidiana das crianças, não é no dia a dia ali que as crianças estão, é ali que elas passam, é que bacana, poder hora ou outra e para outros espaços culturais. Muito legal. Mas como que a gente está trabalhando com a questão? É ali da praça mesmo e do que cotidianamente as crianças estão vendo, não é? Então, para citar alguns exemplos desde a achar que algumas pessoas ali em situação de rua eram homens do saco e as crianças falavam coisas muito pesadas em relação a isso. A gente por alguns anos ali na praça, era um local de prostituição e de travestis. Então, não é de criança? Eu já tive criança minha jogando pedras em travesti porque falava que homem não pode vestir-se, vestir de mulher e que era mau. Então tinha umas falas muito pesadas assim que eu ouvia das crianças e das próprias famílias, né? Por quê? Por conta de todo o contexto, mesmo às vezes essa fala muito simplificada para as crianças, é o que as famílias podem oferecer. Por exemplo, não falem com estranhos, né? Não, não falem com estranhos, por exemplo. É uma fala muito comum” (Lívia, entrevista em 17/06/2022).

Vivemos em uma sociedade de hipervisibilidade: programas de TV a competitividade presentes em confinamentos para cozinhar, para namorar, para mostrar pessoas supostamente corajosas enfrentando e se alimentando de comidas exóticas em uma expressão, de certa forma, de tortura em praias paradisíacas, hiper visíveis ao nos reconhecermos, às vezes, nas demais pessoas chacinadas nas periferias, entre elas crianças e, majoritariamente negras, sufocadas esvaindo em fumaças.

Nesta sociedade, afirmar que alguém, ou grupos, são invisíveis exige o uso de várias lentes. Na “web”, por exemplo, temos seres visíveis, mas não corporificados, em relações que se fazem nas nuvens e/ou pelas telas, incluindo as crianças, muito sabidas de seus usos desde muito pouca idade, em grande medida ela miserabiliza a vida e os contatos, justifica confinamentos e a construção de seres cativos cujas telas e suas vozes nos pauperizam, não só economicamente. O fato, é que, seja pelas vivências que se fazem em navegações em telas, seja por tantos outros motivos difíceis de serem elencados num artigo, as saídas para os espaços públicos e as relações que isso provoca vão se tornando escassas e pautadas no medo que construímos acerca do desconhecido, que nos interpela e apavora.

Inspirando-me nas reflexões de Guilherme Wisnik (2018), é possível afirmar que não há percepção nítida do que nos acomete, como se uma grande nuvem nos impedisse de ver o outro lado. Uma cortina de fumaça. Há um medo forjado e real que orienta práticas para todos os grupos sociais e etários. Em suas camadas, encontram-se diferentes tempos que se sobrepõem e interagem, compondo temporalidades do medo e a atonia que paralisa e pode prostrar.

Nessas gradações do medo produzimos falas e ações, ora mais, ora menos fortes. Pessoas de diferentes idades e em diversos contextos já ouviram a frase “não fale com estranhos”. Geralmente, podemos identificá-la sendo proferida às crianças. Inferimos que ela parte majoritariamente das mulheres, mães, professoras, avós e pais em diferentes situações. Não à toa prevalecem em bocas femininas remetendo à histórica trajetória de atenção a ser dispensada aos outros. Certamente, num primeiro momento, podemos identificar uma expressão de justificável cuidado destas pessoas em relação às crianças. Contudo, carregam concepções sobre a cidade e as relações que estabelecemos com ela e com as pessoas que a habitam e a produzem. No mínimo, isso gera desconhecimento e retração, forjando um confinamento que nos afasta uns dos outros, restringe processos participativos no cotidiano, ao mesmo tempo, que desinforma e impede de usufruir do espaço público e torná-lo lugar de relações e reflexões sobre esse estado de coisas, que não se faz sem fundamento, já que indubitavelmente há também uma vida agressiva e violenta que ceifa vidas das mais diferentes formas e cria, no programado cotidiano, formas de andar rápido e cruzar espaços, sem tanto vê-los. Parece não haver tempo necessário para compreender o que somos nesse processo.

“Esse local onde eu moro, onde eu estudo, mas que eu, não, não, não quero saber muito. Não entendo. Eu tenho medo. E conforme a gente sair com essas famílias e com as crianças nesses equipamentos culturais. É, percebia essa transformação de olhar e as pessoas que diziam: nossa, que lugar legal que está aqui, perto da minha casa. Eu, só ouvia mesmo “professora é de graça”? Que legal, vou trazer a minha outra filha junto, né? No fim de semana, então, e isso tudo me fez pensar uma série de coisas, né? Até a função da escola. E como? Com a escola também pode ser uma ponte mesmo para todas, para todos esses lugares da cidade que as crianças e as famílias podem aproveitar”. (Livia Arruda, entrevista realizada em 18/06/2022)

Há muito tempo Francesco Tonucci tem apresentado reflexões sobre a hostilidade nas grandes cidades e sua relação com as crianças. Tonucci (2020) critica a especialização e a separação dos espaços que são transformados em lugares para idosos, para crianças, para compras, para bancos, para o lazer, para os hospitais, para as escolas e para os carros, locais onde não se pode andar a pé ou em ritmos mais lentos, privatizados, exigem pagamentos para que possam ser frequentados, refletindo a divisão espacial com base na diferença de classe social.

Essas divisões têm levado ao afastamento dos grupos que passam a frequentar os espaços sem uma interação mais profunda com eles e entre eles, ao mesmo tempo em que a própria ausência de relações provoca processos segregadores e de rechaço aos diferentes: pobres, negras e negros, homens, mulheres, indígenas, idosos e crianças. A cidade vai se tornando sem crianças, ou as mantém à vista apenas em alguns locais e em dependência de adultas e adultos cuidadores, sejam familiares ou não. Catástrofes ambientais, chacinas, pandemias vão se sobrepondo e construindo certo silenciamento e vários receios.

“Professora, é de graça?”. A pergunta direcionada à Lívia e feita por uma das mães de crianças frequentadoras da EMEI, seguiu com uma observação sobre o desconhecimento de determinados locais onde produzir e consumir bens culturais na região. Ambas são reveladoras de uma segregação profunda que obsta determinadas práticas e o conhecimento de como é possível usufruir a cidade. A sensação de risco iminente ronda quaisquer atos e mina os desejos de ir além. Essa pergunta, aparentemente simples, é carregada de compreensões sobre o outro e da existência de fronteiras entre quem pergunta e o território usado de modo incompleto, num uso, que o produz também pela falta e desconhecimento. Se há uma produção concebida deste espaço da Praça e ruas adjacentes, há uma percepção do mesmo nutrida pelo aprendizado da impossibilidade de seu uso, ora pelo medo, ora pelo custo econômico. O projeto motoca na praça permite o rompimento/problematização dessa fronteira, afrouxando as relações e separações construídas ao longo do tempo.

Ao andar pela região e por estar familiarizada com ela, percebi que há simultaneamente fronteiras. Elas foram criadas e representadas pelo histórico afastamento da possibilidade de usufruir dos equipamentos sociais e culturais próximos e da própria Praça como espaço de lazer e de ficar à toa. Algumas compreensões e representações mais recentes se fazem pelo uso violento da força policial, sobretudo noturna, suas bombas de gás eventualmente lançadas no suposto combate ao tráfico existente na região do fluxo ou da chamada cracolândia. A Praça da República é próxima geograficamente desta região, e por isso, recebe os reflexos dessas práticas que se dão, neste recorte mais preciso, em situação de conflito social, em que, como afirmou José de Souza Martins (2014), há o encontro dos diferentes entre si: vendedores ambulantes de artesanatos e produtos do continente africano, como colares e tecidos; população de rua; moradores locais; estudantes das escolas do entorno e da EMEI Armando Arruda; pessoas que circulam e desconhecemos seus motivos; transeuntes; pessoas errantes que saem do fluxo. “Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro” (Martins, 2014, p. 133). O desencontro se dá pelas temporalidades históricas em que cada um desses grupos se situa, mas se acentua pelas representações de uns e de outros. Sem as motocas, não observei formas de encontros entre as pessoas que compõem esses grupos e as crianças, pelo menos, não formalmente. Há trocas de olhares, ao mesmo tempo, em que se nota o passo apressado para se esquivar do enfrentamento da diferença e das desigualdades visivelmente existentes.

Assim, embora sejam moradoras/es das regiões, sentem-se como estranhas e não as aproveitam em suas potencialidades. Contrário a isso, mostram os efeitos perversos de um processo que coloca cada um em lugares específicos e, por vezes, incomunicáveis, em que um grupo, por ser tão visível e rejeitado em sua visibilidade e o que ela comporta, é tornado invisível. A espacialização da cidade não remete apenas a arquitetura excludente, aporofóbica, como denominou Adela Cortina8 e mais recentemente nas denúncias do Padre Julio Lancellotti em São Paulo. Não são apenas os equipamentos colocados em cada lugar específico, mas importa pensar que são as pessoas que devem aquiescer ao que está presente em determinados locais que se mostram como destino e não como direito. Vale ainda ressaltar que o espaço público está em constantes transformações e mais recentemente em virtude de políticas neoliberais que o coloca em disputa, visando o valor da terra notoriamente relacionado a processos de privatização e disputas deles originadas.

Nessas condições, como a infância é produzida? Quais representações são construídas? Quais são as pessoas com as quais as crianças se relacionam direta ou indiretamente na Praça? Entre outros elementos, a infância se constitui, ao mesmo tempo em resposta às relações, ora de medo pelo desconhecido, ora de questões concretas que inviabilizam os usos dos espaços que passam a ser produzidos com base em políticas que mais afastam pessoas do que as colocam juntas usufruindo e produzindo bens comuns. Isso, evidentemente, ultrapassa o pedido de não falar com estranhos - emblemática fala - e adquire consistentes formas de organização social a partir do medo. Ao normalizá-lo, vão, aos poucos, deixando de lado direitos já conquistados. Ao nos debruçarmos sobre as práticas sociais das crianças, consideramos o direito a brincar, a andar livremente e se relacionar com outras pessoas, não necessariamente familiares, como uma perda que é vastamente justificada pela hostilidade urbana. Embora não seja o objetivo deste artigo, é importante ressaltar que essas afirmações seguem, em grande parte das vezes, desprovidas de um caráter propositivo que objetive as necessárias mudanças. Soma-se a isso o questionamento: a cidade é somente hostil?

praça da república: muito mais que uma estação da linha vermelha do metrô

Largo dos Curros, pelos currais, touradas e pastagens existentes no século XIX, Largo da Palha, Largo 7 de Abril. Somente após a Proclamação da República no Brasil, a Praça denominada por um curto período de Praça XV de Novembro, recebeu o nome de Praça da República, tal qual conhecemos hoje. Aspectos de suas transformações históricas e espaciais podem ser observadas nas mudanças de seus nomes que evidenciam compreensões e disputas de seus significados para a população e as relações sociais e políticas que estavam engendradas. Como representações de uma época, as fotografias e os cartões postais nos mostram a dinâmica das mudanças ocorridas ao longo do tempo nesta Praça, desde os currais, ônibus elétricos da extinta Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), ao edifício que abrigou a Escola Normal Caetano de Campos9, quando a Praça fazia parte de um projeto civilizacional calcado no urbanismo parisiense do Segundo Império e que receberá grande impulso pela economia cafeeira (Sevcenko, 2000), conferindo um processo de mudanças não apenas arquitetônicas, mas também de seu embranquecimento pela opção em não absorver a mão de obra de ex-escravizados e favorecer a mão de obra imigrante.

O espaço físico, tal como o temos e percebemos no presente, é fruto das relações feitas no passado, o que torna possível percebê-lo, ainda que em detalhes arquitetônicos ou práticas corporais de seus frequentadores ou passantes. É possível afirmar que a Praça, assim como a cidade, é lugar de acumulação de textos simbólicos no curso de sua história, quase como um grande sistema de arquivos. Ao tentarmos entendê-la em suas reentrâncias, é como consultar um arquivo que emerge em cartas, contos, documentos, leis que ficam esparsas a espreita de quem os consulte e os considere em suas memórias. São movimentos decisivos para a produção e construção dos espaços e das vidas que se fazem neles.

Encontra-se desde esse período alguns impasses entre a presença das crianças nas ruas e a sua retirada para favorecer o projeto civilizacional em curso. A Praça da República compunha o que se denominava à época como Nova Cidade, já que estava no caminho em que eram construídos bairros como Campos Elísios e Higienópolis que distavam do centro ou do triângulo histórico. Alguns códigos sociais compunham esse mesmo projeto de modos e costumes a serem aprendidos pela população que se constituía. As crianças não passavam despercebidas. Os perigos das ruas que começavam a ser alargadas na primeira década do século XX passaram a compor páginas de jornais e não à toa. As crianças eram objeto de preocupação pelos atropelamentos sofridos. Elas são o ponto frágil ao mesmo tempo em que suas presenças são avaliadas como impedimento para o processo de urbanização. Logo, seriam criados mecanismos regulatórios de suas presenças nos espaços públicos, devendo permanecer em espaços privados sob olhares de cuidado (Leite, 2021). As crianças contribuíam para retardar os processos de embelezamento e melhoramento da cidade, tal como preconizado à época. A concepção classista fazia-se presente:

Justamente a essas crianças estavam destinados os prédios suntuosos que compunham a nova arquitetura da cidade, como a Escola Caetano de Campos, transferida para a Praça da República em 1894. Na parte da cidade prejudicada pelo processo de urbanização, retomando a expressão de Celso Garcia, as camadas desfavorecidas viam suas crianças no meio-fio, entre a rua e a calçada, ou então tomadas por asilos (quando identificadas como órfãos), ou até mesmo pelo Instituto Disciplinar ao ameaçarem a ordem vigente. (Leite, 2021, p. 100)

Às crianças pobres, vendedoras de jornais, engraxates, jogadoras de bolinhas de gude que passavam boa parte do tempo em ruas e jardins, os olhares “caridosos” e de políticos voltavam-se preocupados com o ócio que poderiam lhes tomar a vida e as relações que não contribuíam com o projeto de urbanização. Assim, deveriam ser retiradas das ruas, como em um projeto de limpeza urbana para um suposto bem maior ou para serem instruídas. Afinal, é possível somar ao espaço concebido desde o século XIX a concepção de regras orientadoras de seu uso como as que preveem a retirada do espaço público de quem não cumpre com as expectativas. Ao nos remetermos à Praça, tal como concebida inicialmente, certamente, encontraremos usos desejados, grupos sociais esperados e produção e reprodução de determinados comportamentos. Esse espaço e sua concepção nos dizem muito sobre as crianças, sobretudo, quando relembramos os códigos e legislações que, de algum modo, orientavam seus usos e ainda o fazem, muitas vezes, em dissonância com direitos mais recentemente assegurados às crianças.

Essa pequena digressão teve como objetivo menos situar a Praça da República historicamente, o que exigiria debruçar-se profundamente sobre os vastos materiais iconográfico e historiográfico já existentes, e mais sugerir reflexões sobre os processos de transformações e permanências na constituição de uma Praça e arredores, assim como os mecanismos de construção e justificativas de expulsões e presenças envolvendo as crianças ao longo do tempo. Isso contribui, e muito, para a construção de práticas no presente, cujas balizas também são feitas a partir de marcos regulatórios que asseguram garantias fundamentais à infância, como constam no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Convenção dos Direitos das Crianças ratificado no Brasil em 1990, embora possam não ser cumpridos em sua plenitude.

Atualmente, o cotidiano desta Praça e região é composto, entre outras coisas e situações, pelas crianças frequentadoras da EMEI Armando Arruda Pereira10, que a povoam com suas andanças e motocas em diferentes dias da semana. A presença dessas meninas e meninos de tão pouca idade e sua professora em relação com tantas outras pessoas permite-nos pensar nas diferentes temporalidades existentes nessa Praça, ao mesmo tempo em que suas práticas sociais em consonância com um projeto com as crianças e para elas. As crianças têm sido historicamente excluídas de processos de planejamentos dos espaços públicos onde elas mesmas frequentam enquanto crianças e frequentarão como adultas. Com isso, seus ritmos e tempos sequer são apreendidos, exceto, pela ausência, ou pela presença possibilitada pela adulta ou pelo adulto em rápidos relances, já que não há estruturas oferecidas para a permanência e o vaguear livre pela Praça. É a elas que vamos nos dedicar a pensar.

o projeto e a presença: crianças em relações e a produção do espaço

Texto retirado em 18 jun. 2022 dos comentários feitos pela Lívia semanas atrás, no Instagram.

As reflexões feitas neste artigo não existiriam sem o projeto “motoca na praça”, como já parece evidente. No comentário feito por Lívia numa de suas postagens no Instagram, ela nos aproxima de seu trabalho e da construção necessária para ser colocado em prática junto às crianças. Sua elaboração rigorosa considera o espaço vivido pelas crianças e por ela em relação às outras pessoas, mas também, em relação ao que fora concebido pelos planejadores. Ou seja, cronometrar o tempo para que tantas crianças atravessem a movimentada Avenida Ipiranga, mostrada na foto 3, exige conhecer o tempo e o espaço e lidar com ele. O projeto, contudo, não se fez de supetão. Lívia atua há 10 anos como professora do município de São Paulo e há 8 anos na EMEI Armando Arruda, além de ser moradora da região. Isso lhe confere a construção de certa familiaridade e segurança nas práticas propostas. Há ainda, uma aprendizagem e a valorização de atividades que aconteçam fora do espaço escola, de dentro para fora, acreditando que o entorno guarda riquezas a serem descobertas e inventadas pelas crianças. Nas palavras de Lívia:

“As saídas são muito complexas ou envolvem grandes planejamentos ou envolvem grandes logísticas. É difícil de ser cotidiano. Como eu tinha essa intenção de ser algo cotidiano? Eu também gostaria que fosse algo simples, não é? Mas, não sem intencionalidade, não sem ter planejamento. A isso eu juntava muita preocupação de ficar procurando razão para sair, tenho que arranjar 1000 razões para sair, não, a ideia não era essa, porque me incomodava. Seria cotidiano e envolver o brincar também, e a motoca traz um pouco isso. As crianças adoram essas motocas” (Entrevista realizada com Lívia em 18/06/2022)

A construção se faz a partir da observação dos direitos das crianças, da percepção da existência de uma escola pública - a EMEI - numa das mais cógnitas praças da cidade e que não era conhecida pela população local, nasce do desejo de conhecer a cidade e fazer uso dela no entorno da escola apropriando-se dele.

“E aí, óbvio que aí saindo com as crianças é que perceberam, é o que acontecia ali, não é? Nessa saída. Após a saída, algumas coisas foram sendo replanejadas e fui pensando depois. Então, esse projeto começou em 2019, fiz muita coisa, foi bem bacana. Com a pandemia parou um pouco em 2020 fizemos muito pouco, em 2021, pouquíssimo também. E agora a gente está retornando, então, em 2022. A partir dessas saídas de motoca, muita coisa surge, né? Do olhar das crianças ou do que as interações nos convocam a agir. Hoje tem muito foco na gentileza, no trato com as pessoas”. (Lívia, entrevista realizada em 17/06/2022)

Destaco o estudo feito, o rigor da proposta e a participação da professora junto às crianças no enfrentamento das tensões existentes na Praça e no território e a percepção de que ele é produzido pelas pessoas que o habitam e o usam, sem esquecer das crianças. Não são apenas formas concebidas e vistas nos mapas da cidade, mas são usados e produzidos cotidianamente e vivido como arena que evidencia conflitos, agruras e alegrias com e pelas crianças. Há uma disputa em um espaço que historicamente se pretende hegemônico, mas quando firmamos os olhos e corpos inteiros o cruzam e o sentem, é possível encontrar territórios negros, de crianças, de diferentes pessoas e grupos, ora silenciadas, ora desconhecidas, ou, ainda, postas em relevo, a depender do período e do tempo em que são feitos.

O projeto pedagógico que dá origem às saídas, ou que consiste basicamente nas saídas, relações e descobertas delas derivadas, revela entendimento dessa complexidade e atua a partir dela.

“Muito do projeto é trazer essa ‘simplicidade’ do ir lá e fazer. Ir, ver, tentar, fazer... Acho que o mais bonito é que tem ação e que é vivo. Minha intenção é que seja legal para as crianças, essa é a verdade. Claro que encontro muitas razões pedagógicas e humanas, mas na origem, a intenção mesmo é oferecer uma experiencia rica para as crianças, rica de potência, de significado, de vida. Ser legal por si só. Imagina atravessar a avenida [referindo-se à Avenida Ipiranga] de motoca? Para as crianças, dá uma sensação de que tudo é possível”. (Lívia em mensagem trocada pelo WhatsApp, 20/06/2022)

O espaço é uma produção social que, para ser mais bem compreendida, carece de entendimentos de seus três momentos: o concebido (representações do espaço), o percebido (prática espacial) e o vivido (espaço de representações) (Lefebvre, 2013). Ao nos dedicarmos a entender a Praça, seus aspectos históricos e seu desenho gráfico, aproximamo-nos de suas representações tal como produzidas por arquitetos e políticos, projeções que são alteradas segundo relações estabelecidas entre grupos e seus interesses e segundo as produções baseadas nas práticas sociais e vividas, o que levam a necessidade de relacionarmos os momentos estudados por Henri Lefebvre.

Não encontra-se entre os objetivos deste artigo fazer acuradas análises iconográficas, embora contenham o desejo de que ao observarmos com acuidade possamos ativar e perceber o potencial crítico presente em suas margens, em gestos das crianças e da professora que acolhe o tempo das crianças na cidade, ora mais ligeiro, ora com mais vagar em que são vistas surpresa e espanto, denotando, entre outras coisas, formas de cuidado. A montagem da sequência de fotografias 2, 3, 4 e 5 se deu por entender que temos aspectos relevantes sobre um dos percursos feitos pelas crianças. Na fotografia 5 temos temporalidades sobrepostas: o orelhão azul ao fundo, datado dos anos 1970, desde um tempo, em que pesadas fichas telefônicas ocupavam bolsas à espera de uso; o calçadão, por onde passam as motocas, resultado de projeto urbano décadas atrás em que contrariando as históricas égides orientadoras de processos de urbanização da cidade, faz prevalecer o pedestre em relação aos veículos.

Ressalto, para que continuemos a pensar sobre as produções do espaço, que na Praça estudada e praticada pelas crianças cotidianamente, pelo exposto até o momento, expõe práticas que poderiam ser chamadas de “pedagogias da crueldade”, tomando de empréstimo a noção cunhada por Rita Segatto (2018) e a ampliando para situações que se espraiam no cotidiano e didaticamente ensinam a sujeição e a construção de sujeitos-mercadorias, seguramente, desde a infância.

Llamo de pedagogía de la crueldad a todos los actos y prácticas que enseñan, habitúan y programan a los sujetos a transmutar lo vivo y su vitalidad en cosas. En ese sentido, esta pedagogía enseña algo que va mucho más allá del matar, enseña a matar de una muerte desritualizada, de una muerte que deja apenas residuos en el lugar del difunto (Segatto, 2018, p. 11). La sujeción de las personas a la condición de mercancía impuesta a las mayorías por el carácter precario del empleo y del salario, así como el retomo y expansión del trabajo servil, semi-esclavo y esclavo, también son pane de lo mismo. La predación de territorios que hasta hace poco permanecían como espacios de arraigo comunal, y de paisajes como inscripciones de la historia, es decir, como libros de historia, para su conversión en commodities por la explotación extractivista en las minas y el agro-negocio son facetas de esa cosificación de la vitalidad pachamámica (Segatto, 2018, p. 12).

O homem do saco, representação já antiga, mas ainda presente, sobre as pessoas em situação de rua e relembrado por Lívia em sua entrevista, encarna física e simbolicamente aspectos dessa pedagogia. Provavelmente, o homem do saco é negro, e com isso incluímos um elemento a mais à pedagogia da crueldade, como afirmou Nilma Lino Gomes (2018) ao adensar essa noção cruzando-a a práticas racistas.

Relembro a hipótese corrente neste artigo em que se considera que com a presença das crianças, desde as/os bebês, teremos uma produção plena dos espaços em que seja possível questionar o caráter precário da vida. Afirmo que suas presenças - que se fazem em conjunto e como resultado das percepções e representações que elas constroem do espaço - alteram as relações socialmente construídas no universo adulto, colaborando com a desprogramação do cotidiano, ainda que por um brevíssimo espaço de tempo: gestos, palavras, caminhar, observações, modos de ver e se relacionar com o outro conferem ritmos e tempos diversos do esperado e/ou normalizado e exigem, ainda que indiretamente, que sejam estabelecidas outras relações com o momento frenético e o espaço concebido para e pelos/as adultos/as. A melhor forma de conhecer bem um espaço é interagir com ele: sentar-se em bancos, entrar em alguns locais e conversar com as pessoas, viver os caminhos11. Para tanto, estar com as crianças e considerá-las agentes e capazes desde que nascem é fundamental.

Caminhar é uma forma importante para renomear e transformar o mundo. O caminhar pela cidade é uma das formas mais ricas de se ouvir e ver - seria ouver? - o outro em trocas intergeracionais, em que saímos de nós e “pegamos a cidade de surpresa” (Careri, 2020)12, e nos surpreendermos também com as crianças que a produzem diariamente, dentro das condições possíveis, e nem sempre entendemos como isso se dá, pois muitas vezes, não as vemos, mesmo quando estão lá. O espaço público é provocador da visibilidade, confrontos e tensões de vivências de diferentes grupos etários, étnicos, raciais e forçam olhares sobre eles (Trevisan; Carvalho; Bento; Silva; Sarmento, 2022). O projeto que inclui as motocas na Praça traz essa possibilidade de pisar com os pés descalços, ou rodinhas descalças, no chão, ou no caos, como afirmou Francesco Careri (2020). Caos esse construído, como é possível inferir, como método de afastamento e destruição constantes.

Ao considerar o que fora posto, reitero o questionamento já feito: Como é entender e produzir a Praça, com suas agruras, alegrias e belezas, e por que não, a cidade, de motocas guiadas por crianças com até 5 anos de idade? Se, a cidade é produzida socialmente, assim como as ruas e as praças, podemos facilmente supor que as crianças e suas práticas espaciais contribuem e muito nesse processo e lhe conferem uma espécie de coprodução. No que Henri Lefebvre denominou como percebido em sua tríade analítica da produção do espaço.

Elas alteram esses espaços, e o da Praça propriamente dito, no que identifico em dois momentos: há um primeiro em que o ritmo local muda. Devido à passagem de crianças com tão pouca idade, interferem no tempo para o uso do semáforo ao atravessar a larga e movimentada Avenida Ipiranga, perturbam com um ritmo mais lento ao parar e provocar que sejam vistas e percebidas. Num segundo momento, após a passagem das crianças e suas motos, embora não tenha dados suficientes para uma afirmação categórica, é possível depreender que os comentários feitos por aqueles e aquelas que as viram e dialogaram com elas de algum modo - como observável na próxima sequência de fotos - interferiram na esfera do espaço percebido e vivido. Não se trata apenas de testemunhar em silêncio, mas de testemunha em ato cuja participação ocorre de diferentes maneiras, costurando com as crianças o tecido da vida.

Ao mesmo tempo, esse testemunho em ato se faz em registros gráficos que compõem as observações e a interação com o território.

nas ruas: rompimento de limites e as interações nem sempre presentes

Fotografia 8: Trabalhador de banca de jornal observando e sorrindo ao ver as crianças passarem. (Instagram projetomotocanapraca)

Fotografia 9: Pessoas em situação de rua acenando e sorrindo enquanto as crianças passam. (Instagram projetomotocanapraca)

 

No primeiro plano um homem em situação de rua, logo atrás dois homens mais idosos, cujas vestimentas não indicam pertencimento à população de rua, ao fundo, trabalhadores da limpeza urbana que, aparentemente, param para observarem as crianças e outras pessoas, certamente transeuntes. Ao lado as crianças com suas motocas em direção ao Teatro Municipal de São Paulo. (Instagram projetomotocanapraca)

O homem-placa acena para as crianças. (Instagram projetomotocanapraca em 18/06/2022)

O levantar de mãos em aceno às crianças, o girar do corpo e da cabeça seguindo-as enquanto passam pelas ruas e calçadas, como vistos nas fotografias 6, 7 e 8, portam alguns elementos para pensarmos sobre as relações estabelecidas com as crianças, ainda que distanciada fisicamente. As imagens fotográficas, cujo objetivo, segundo Lívia, é produzir uma narrativa imagética do projeto, mais do que mostrar o que aconteceu, contém grande riqueza e podem dar indícios para se perceber as transformações socioculturais da cidade, bem como as contradições presentes. Não se percebe uma interação verbal mais demorada entre as crianças e as pessoas adultas, talvez, algumas palavras sejam proferidas de modo breve. Além das motocas que remetem a outro tempo, observa-se as crianças que vão pedalando, conferindo um ritmo diferente de andar, elas usam coletinhos ora amarelos, ora de cor laranja, como marca que lhes identificam junto às demais pessoas fora da EMEI.

A presença do “homem-placa”, ou plaqueiro, homem que tem amarrado a seu corpo o anúncio de venda de determinado produto, expõe o trabalho precarizado e os milhões de trabalhadores que compõem o mercado informal, ao mesmo tempo, em que parece ter seu ritmo alterado, o mesmo ocorrendo com os dois homens sentados no que deve ter sido uma floreira com bancos de madeira e que aparentam compor parte da população de rua. Ou seja, as crianças passaram pela residência temporária de algumas pessoas que, em suas vidas erráticas, encontraram um minuto para olhar as crianças e viram seus corpos em suas direções evocando a dimensão corpórea no trato com os outros, nesse caso, as crianças.

Temos em poucas imagens: a infância, a colocação do problema sobre moradia que é posto indiretamente pela presença das pessoas da população de rua, que somam moradia a falta de emprego e trabalho. Nesta imagem, infância e rua nos indagam sobre o tempo presente e o futuro, assim como esboçam um presente que se faz no ritmo das motocas com as crianças. Há uma gramática corporal que se produz em relação e são apresentadas nessas imagens. Parece-me que essa junção é essencial para pensarmos sobre o que nos acomete, de modo tão grave, política e economicamente nos tempos atuais.

Entrega de chá de camomila para população13 de rua

Saindo para entregar flores para pessoas na rua.

Se a materialidade da Praça provoca a pensar sobre certo acolhimento devido à presença das árvores, lagos e animais, emblematicamente, ela leva a existência de práticas de contensão e confinamento. Aquiescer a elas seria o mais comum. A presença de uma grande população de rua, segundo dados oficiais do primeiro censo de população de rua do município de São Paulo, que identifica 32 mil pessoas14, tem produzido as mais diversas relações e reações, ora de rechaço, ora de acolhimento. As fotografias 10,11,12 e 13 permitem a identificação de práticas que ensejam um processo de aproximação. Identifico as flores doadas como objeto de mediação social que poderia quebrar o distanciamento entre as crianças e adultas/os/es, entre as demais pessoas que frequentemente são rechaçadas. Combina-se a precariedade da vida à singeleza possível nos gestos de crianças e de quem com elas interage. Embora mais restrita a práticas descolonizadoras, retomo Cusicanqui (2022, p. 101) quando afirma que não pode haver um discurso descolonizar sem uma prática descolonizadora. Essas práticas provocam desdobramentos dessa afirmação, qual seja, implica as crianças, e remete ao projeto pedagógico da professora e da escola a importância de pensar e atuar no sentido contrário a ações de subalternização, desconhecimento e naturalização dos estados sociais em que as pessoas se encontram.

“E eu comecei a me incomodar com isso e começar a achar que de fato essas relações e esse olhar cuidadoso para o entorno precisavam acontecer, não é não um olhar romântico porque o centro é complexo e tem situações complexas e que são muito duras, mesmos de nós adultos. Lidar. Então eu sempre tive muito cuidado. Não trazer algo assim muito duro para as crianças. No sentido de ficar reforçando como é duro, como é difícil, como é perigoso. Minha intenção nunca foi essa, mas sempre foi, de alguma maneira estar olhando para aquilo, para a Praça, e trazendo para as crianças de alguma maneira a complexidade daquilo, né? Então, ao ouvir as falas e questionamentos: Nossa professora, ele é mau? Não sei se ele é mau, não conheço, a gente tem que conhecer a pessoa para saber, a gente não pode dizer que ela. Ela é malvada só porque a gente está olhando. Só que ela está na praça sem fazer nada, só porque ela está com essa roupa só porque está com essa cara. Às vezes ela está chateada por algum motivo. A gente não sabe. Atuação sempre foi nesse sentido. É, não é pra ficar então mostrando para as crianças as pessoas como coitadinhos, ou mostrar como perigosas, né? Mas de olhar para essa complexidade mesmo, e levar a criança a olhar aquilo, né?” (Lívia, excerto de entrevista)

Giancarlo Paba (2014) afirmou a urgência de uma cidade-criança em que a escola seja e esteja aberta a conquista de áreas livres, ao ar livre. Não somente porque natureza, sol e luz proporcionam experiencias de bem-estar, mas pelo direito à vida em geral. Para o urbanista, trata-se de uma escola que tenha curiosidade pela cidade. O caminhar seria um primeiro contato que promoveria a comunicação com os ambientes e o diálogo. Lívia, a professora, ao problematizar as condições atuais em que as pessoas estão vivendo, e, mais que isso, criando o contato entre todas/es/os, aproxima-se, com as crianças, dessas experiências. Junta-se pensamento, teoria, ação e experiência vivida no cotidiano.

Ao observamos as imagens, podemos inferir que o tempo dos corpos, dos gestos, dos passos ao caminhar, entregar chás e flores, andar com as motocas para diferentes destinos ao redor da EMEI dizem muito da cidade sobre a qual se caminha ou se motoca15. Há uma produção do espaço Praça e arredores. Podemos refletir sobre as formas como temos lido a cidade e a própria Praça da República em questão. Talvez, a ida para a EMEI e as saídas proporcionadas sejam o momento em que certa liberdade aconteça, mesmo nos percursos já conhecidos, onde passam com outras adultas. Há um tempo de exploração e conhecimento, como se a cada saída houvesse imprevistos, enfrentamentos, descobertas. Ressalto que não é apenas com o visual que nos entendemos na cidade e a compreendemos, há um corpo todo que está nela, a compõe e a produz. A cidade produz e é produto do olfato, dos odores, das sensações, dos sons e ruídos (Paba, 2014). Há certos ritmos na Praça e as pessoas que nela passam e a usam e que podem ser alterados e produzidos diferentemente com a presença das crianças e seus atos.

Quanto ao projeto em conta nesse artigo, permito-me relacioná-lo com as reflexões de Henri Lefebvre (1973), não considerando-o em sua compreensão mais estrita.

Ele (o projeto) tem em conta o seu conjunto. Se é que há categoria ou oposição dominante, é a do possível e do impossível, detectados pelas transgressões: para alargar o possível é preciso pensar, proclamar e querer o impossível. A acção e a estratégia consistem em tornar possível amanhã o impossível de hoje. Um tal projecto, só ganha sentido por via de uma impossibilidade: ater-se indefinidamente às relações (sociais) existentes. (Lefebvre, 1973, p. 38)

Lefebvre (op. cit.) chamou a atenção para que pensemos sobre os direitos dos indivíduos e dos grupos, determinando as condições de seu ingresso na prática, coletivos que são, os projetos podem produzir o impossível dentro do possível e materializá-lo. Nessa produção encontramos as crianças, cujas presenças, também produzem a cidade a seus modos, e refiro-me a todas elas e não alguns segmentos, ou grupos infantis, mais aceitos e facilmente vistos no universo adulto por pertencerem a determinadas classes sociais, gênero ou raça.

de “ações tímidas” à ocupação do inimaginável

Então, quando eu entrei tinha algumas ações muito tímidas. Assim, por exemplo, íamos fazer uma leitura de história na praça ou fazer uma outra atividade assim, muito pontualmente, desde que eu entrei, é o que acontecia na EMEI. (Lívia, entrevista 18/06/2022)

Não estão entre os objetivos deste artigo expor análises mais densas sobre um projeto e práticas sociais de crianças que vão do que fora chamado de “ações tímidas” ao inicialmente não imaginado devido aos desafios para sua realização. Destaco, nesta finalização, os aspectos metodológicos para a elaboração da escrita que demonstram as possibilidades de usos da internet como campo para investigações acadêmicas, sobretudo, as imagens presentes na rede social Instagram para compartilhamento de imagens e fotos, somando-se a práticas presenciais de caminhadas, entrevista e diálogo feito por outra rede, o WhatsApp. O cenário fotografado e praticado pela professora e pelas crianças alimentou meu foco analítico, que se voltou para as interações e a presença das crianças como elementos fundamentais para a projeção e produção de outras práticas sociais realizadas por elas, no que chamei de ocupação do inimaginável, ou melhor, do até então pouco imaginado ou praticado.

Ao retomar alguns questionamentos que deram origem à escrita deste artigo, observamos a presença de uma cidade vista e construída pela e na Praça em que as experiências infantis não são vastamente consideradas, ao contrário, historicamente ela foi, e afirmaria que ainda é, palco de conflitos que objetivaram desde disciplinar a população e retirar as crianças de suas possibilidades de uso, prevalecendo o desejo do embelezamento com os jardins, e os códigos que visavam a incorporação de práticas civilizatórias para a construção de uma São Paulo europeia, até a presença de recentes marcos legais em que os direitos das crianças são reconhecidos, mas não efetivados no ordinário do cotidiano. Atualmente a circulação das crianças se faz por certa imposição de seus corpos no território, as motocas imprimem ritmos e tempos que diferem daqueles já mencionados neste texto e, seguramente, conhecidos por quem frequenta ou passa pela Praça.

Opto por destacar que, ao serem alimentadas pelas outras possibilidades e ações com as crianças, vão nos fazendo adensar propostas já existentes em que a cidade é compreendida como lugar de projetos coletivos, e no caso da prática aqui analisada, cujo ponto de partida são as crianças em interação com outras pessoas, não exatamente da escola. Um ponto importante a ser recuperado aqui nestas palavras finais é que as tensões e seus sentidos se tornam presentes não como objeto de reações contrárias, que gerariam distanciamento, naturalização e normalização dos não usos da Praça, bem como, do rechaço a alguns de seus moradores e frequentadores, mas tornam-se motivadores de reflexões e problematizações.

Outra fundamental questão é que o projeto em si proclama os direitos dos indivíduos e dos grupos, entre eles, não apenas o direito à cidade, mas a diferença, às relações, aos usos da cidade em sua forma plena, à vida, como bem maior. O projeto pedagógico, que poderia ficar restrito à unidade escolar, como unidade homogênea e apartada do entorno, conquista proporções enormes, antes não projetadas e que se faz no enfrentamento de um árido cotidiano que poderia levar a aquiescer e silenciar. Ele é feito na compreensão dos processos contraditórios que compõe as práticas citadinas, a infância e sua relação com a cidade, e neste caso específico, com a Praça da República em São Paulo.

A Praça se faz em conformidade com o ritmo frenético do urbano paulistano, sobretudo, da região central, em que nos entranhamos e nos estranhamos a cada tempo e cada vez mais a afazeres, sobretudo, sob orientações econômicas. Dentro desse aligeiramento, cujo movimento corporal se faz presente, as crianças nos levaram ao encontro daqueles recebedores dos chás de camomila (sabor informado por Lívia durante a entrevista) e que estavam parados na Praça como a esperar algo. Na resposta dada por Lívia a uma criança, “eles não são maus, nós não sabemos o que se passou, o que os tornou chateados, encontramos alguns bons elementos para pensar sobre representações que orientam práticas sociais nessa Praça, e não só. Não sabemos e supomos que se encontram em situação de rua, compondo uma população com dezenas de milhares de desempregados, entre outras questões da vida que tem sido feita em misérias financeiras. A Praça, lugar de passagem para muitas pessoas, é o lugar de morada provisória para outras tantas e as crianças estão lá, criando esse espaço também com elas e permitindo problematizar as atuais condições de vida em que estão e estamos imersos. A entrega do chá merece destaque por se configurar como ato de cuidado das crianças e da professora exposto na relação com as outras pessoas. Sutil e vigorosamente ato de cuidado e ato político. Ainda que num tempo tão efêmero, provoca-se a pensar, e por que não, fazer presente a vida que vale a pena ser vivida (Butler, 2015). Reflexão, produção de pensamentos e outras ações. Quem sabe reverberando para mais de um minuto implicado ao ato de doar flores e chás, já que ela remete a ponderar que as vidas precárias dessas pessoas nas ruas e praças são passíveis de pesar, de preocupação, de sentimentos. Algo precisa ser destacado: essa prática, aparentemente tão singela, reúne os enquadramentos da vida, como investigado por Judith Butler às diferentes dimensões de cuidado, nesse caso, num aprendizado de cuidado em caráter mais amplo, com pessoas que não pertencem à família consanguínea, que são desconhecidas, e configuram um cuidado não profissional e que carece de maiores aprofundamentos, pois fogem aos limites deste artigo.

Com todo o exposto, retomo uma fala de Lívia em que afirmou: “minha intenção é que seja legal para as crianças, essa é a verdade. Somo a essa intenção que se fez prática e matéria uma outra afirmação, aproximando-a das práticas escolares. Pensar no que “é legal para as crianças” é possível, por tentar entender e extrair disso o supostamente impossível, acrescento outra questão, a presença da poiesis como ato de criação que envolve as práticas escolares e da vida, sem as quais, pouco ou nada acontece efetivamente. Suas presenças são manifestos em movimento, as imagens com as crianças, poderiam ser pensadas como levantes, na acepção de Georges Didi-Huberman (2015) em que se reclama a Praça, a presença das crianças, a liberdade para circular, a escola, a educação pública e a professora, cuja prática me restabeleceu e reforçou alguma coragem pela educação no ir e vir de pessoas, num movimento contínuo de fora pra dentro das escolas. Espero que isso nos revigore e fortaleça para criação de outros tempos com as crianças, desde bebês, essa é a contribuição pretendida com a publicação deste artigo.

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Recebido: 21 de Junho de 2022; Aceito: 27 de Julho de 2022

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