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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro ene./dic 2022  Epub 23-Oct-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.67716 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

infância e alteridade: experiência e criação na relação entre crianças e adultos

childhood and alterity: experience and creation in the relationship between children and adults

infancia y alteridad: experiencia y creación en la relación entre niños y adultos

deise arenhartI 
http://orcid.org/0000-0002-4464-0646

daniela de oliveira guimarãesII 
http://orcid.org/0000-0002-7358-230X

Iuniversidade federal do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: deise.arenhart@hotmail.com

IIuniversidade federal do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mail: danguimaraes@uol.com.br


resumo

o objetivo desse trabalho é dar visibilidade e refletir sobre as manifestações das crianças na perspectiva da alteridade, confrontando um olhar que, na concepção moderna, tem afirmado a infância na perspectiva da falta e negatividade. Desse modo, as experiências empíricas são destacadas, especialmente, nas relações das autoras com as crianças como pesquisadoras (em uma pesquisa de doutoramento) e como docentes na educação infantil. A pesquisa de doutorado se deu com dois grupos de crianças entre quatro a seis anos de idade, em espaços de educação infantil em dois contextos distintos e desiguais socialmente: um grupo de crianças moradoras em uma favela e outro de classe média/alta. Os registros foram produzidos a partir da interação com as crianças em situações de brincadeira, entrevistas individuais e coletivas, fotografias e trocas de fotografias. Na interlocução com a Filosofia, a Sociologia da Infância e a Geografia da Infância, buscamos refletir sobre como as crianças significam suas experiências e como anunciam novas possibilidades de se relacionar com a cultura escolar. A brincadeira é trazida como experiência que as une como grupo social, independente das condições desiguais que os contextos oferecem, pela qual é possível criar rotas de fuga, transver os limites institucionais, exercer a alteridade e produzir alegria. As expressões de alteridade das crianças ainda podem ser percebidas nas formas genuínas com que exercem suas relações com os espaços e tempos. Assim, os espaços se convertem em lugares e territórios de infância, a partir dos sentidos atribuídos que interrogam os convencionalmente instituídos pelos adultos; o tempo é vivido pelas crianças na perspectiva da experiência e da reiteração, o que confronta o tempo cronológico, linear, das rotinas rígidas e padronizadas. Enfim, olhar a infância a partir da perspectiva da alteridade, nos provoca a pensar e produzir outros modos de relação entre adultos-crianças, para além de uma perspectiva colonizadora e tutelar, mas como abertura e reinvenção.

palavras-chaves: infância; alteridade; expressões infantis.

abstract

The objective of this paper is to make visible and reflect upon the lives and experience of children from the perspective of alterity, Contesting a traditional gaze that understands childhood from the perspective of lack and negativity. The researchers-a doctoral researcher and an early childhood educator- conducted the study with two groups of children aged between four and six years old, in early childhood educational spaces in two distinct and socially unequal contexts: a group of children living in a favela and a middle/upper class group. Data was produced from observing the interactions of children in play situations, and from individual and collective interviews, photographs and photo exchanges. The researchers sought, through the theoretical lenses of philosophy, sociology, and geography of childhood, to reflect on how children signify their experiences and how they announce new possibilities of relating to school culture. Play is identified as an experience that unites them as a social group, regardless of the unequal conditions in which they live, and through which it is possible to create escape routes, transcend institutional limits, exercise otherness, and produce joyful interaction. Through the ways in which they exercise their relationships with with the world through play, spaces become places and territories of childhood, expressing assigned meanings that interrogate those conventionally instituted by adults; and time is lived by children from the perspective of experience and reiteration, which confronts the chronological, linear time of rigid and standardized routines. Finally, looking at childhood from the perspective of alterity provokes us to think and produce other modes of relationship between adults and children, beyond a colonizing and tutelary perspective, as an opening and reinvention.

keywords: childhood; alterity; childish expressions

resumen

El objetivo de este trabajo es dar visibilidad y reflexionar sobre las manifestaciones de niños y niñas desde la perspectiva de la alteridad, enfrentándose a una visión que, en la concepción moderna, ha afirmado la infancia desde la perspectiva de la carencia y la negatividad. De este modo, se destacan, especialmente, las experiencias empíricas en las relaciones de las autoras con los niños y niñas como investigadores (en una investigación doctoral) y como docentes en la educación infantil. La investigación del doctorado se llevó a cabo con dos grupos de niños y niñas de entre cuatro y seis años, en espacios de educación infantil en dos contextos distintos y socialmente desiguales: un grupo de niños y niñas viviendo en una favela y otro de clase media/alta. Los registros se produjeron a partir de la interacción con las niñas y niños en situaciones de juego, entrevistas individuales y colectivas, fotografías e intercambios de fotografías. En la interlocución con la Filosofía, la Sociología de la Infancia y la Geografía de la Infancia, intentamos reflexionar sobre cómo niños y niñas significan sus experiencias y cómo anuncian nuevas posibilidades de relacionarse con la cultura escolar. El juego es traído como experiencia que los une como grupo social, independiente de las condiciones desiguales que ofrecen los contextos, a través de la cual es posible crear rutas de fuga, cruzar los límites institucionales, ejercer la alteridad y producir alegría. Las expresiones de alteridad de niñas y niños además pueden percibirse en las formas genuinas en que ejercen sus relaciones con los espacios y los tiempos. Así, los espacios se convierten en lugares y territorios de infancia, a partir de los significados asignados que cuestionan los convencionalmente establecidos por las y los adultos; el tiempo es vivido por niños y niñas desde la perspectiva de la experiencia y la reiteración, lo que confronta al tiempo cronológico, lineal, de las rutinas rígidas y estandarizadas. Finalmente, mirar la infancia desde la perspectiva de la alteridad, nos provoca a pensar y producir otras formas de relación entre adultos-niños, más allá de una perspectiva colonizadora y tutelar, sino como apertura y reinvención.

palabras clave: infancia; alteridad; expresiones infantiles

infância e alteridade: experiência e criação na relação entre crianças e adultos

infância e experiência

De acordo com Kennedy (1999), no contexto da construção moderna de uma ideia de infância

[…] dizer o que é uma criança, é ao mesmo tempo dizer o que é um adulto, ainda que seja dizer o que ele não é. Dizer o que é uma criança é também dizer como tornamo-nos adultos; e dizer o que é um adulto é dizer que relacionamento temos com nossa infância (Kennedy, 1999, p. 82).

Podemos afirmar que, no âmbito da Modernidade, enunciar a criança é relacioná-la ao adulto, na perspectiva da incompletude, de um vir a ser. De modo especial, desde o emblemático trabalho de Ariès (1986) acerca das diferentes representações da infância na iconografia européia, na Idade Média e na Idade Moderna, é recorrente a tematização da produção social da infância. Ou seja, o entendimento de que os diferentes mundos sociais, políticos e econômicos constituem diversos modos de ser criança e diversas concepções da infância. Nesta linha, o advento da modernidade e o consequente acirramento do modo de produção capitalista e produtivista atravessado pela ideia do homem racional, individual, empreendedor, promove uma perspectiva da infância separada e hierarquicamente inferior à experiência adulta. Neste plano, percebemos tanto a valorização romântica da infância apartada da sociedade, lugar da pureza, ingenuidade e graça, como a ideia da infância como falta, em relação ao universo lógico racional predominante.

Em outro prisma, para Kennedy (1999), o confronto entre mundo adulto e mundo da infância expressa a história do relacionamento incômodo entre desejo e razão nos adultos. A criança representa uma condição-limite do humano. Assim, “como o louco, o divino, o animal - ou no patriarcado, a mulher - […] a limiaridade da criança ao mesmo tempo que a exclui, a privilegia” (Kennedy, 1999, p. 82). Ou seja, os modos de expressão criativos e desviantes das crianças em relação à ordem dominante, a capacidade de fazerem “história do lixo da história”, como propõe Benjamin (1984, p. 14), produzem um movimento ambíguo na interação com os adultos. De um lado, a valorização e o cultivo da infância; de outro lado, o apressamento da instauração de modos de ser normatizados, racionais. A partir dessa compreensão, no panorama moderno, diversas correntes da psicologia e variadas pedagogias constituem-se no movimento de colonizar, territorializar, corrigir, educar a infância, num movimento de superá-la. Por outro lado, a infância segue como provocação da possibilidade do novo, diverso, inesperado.

É possível notar que a relação com as crianças e com a condição da infância também possibilita integrar a racionalidade e o desejo, outros modos de significar a vida. Para Kohan (2003), no contraponto da infância enquanto etapa, idade cronológica, algo a ser ultrapassado, é importante considerar a infância como condição de possibilidade da existência humana. Na interlocução com Agamben (2001) e Benjamin (1984), o autor situa a infância como experiência, ou seja, “[…] longe de ser uma fase a ser superada, a infância se torna uma situação a ser estabelecida, alimentada […]” (Kohan, 2003, p. 244). Trata-se de considerar a experiência para além daquilo que se repete, automatiza e destitui-se de sentido, para compreendê-la como acontecimento, diferença entre o dado e o aprendido, o que temos e o que não temos ao nascer. Ou seja, “que o ser humano não nasça já falando, que tenha infância, que seu falar e ser falado não estejam determinados de antemão, é que constitui a experiência, o que a torna possível” (Kohan, 2003, p. 243). Na contramão da experiência como “máscara do adulto”, inexpressiva, impenetrável, sempre igual, como sugere Benjamin (1984, p.23), trata-se de considerá-la como o que nos acontece, possibilidade do discurso vivo, tensão entre o velho, a cultura estabelecida e o novo. É porque o ser humano nasce numa realidade povoada de sentidos, constituída de linguagem, que se torna possível apropriar-se dela e reinventá-la. Assim, é na descontinuidade entre o mundo dado e o mundo aprendido, reinventado, que se produz a experiência da infância.

Essa visão coaduna-se com Larrosa (1998), que problematiza a infância como objeto de saberes cientificamente organizados e de instituições reguladoras. Para o autor,

A infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento (Larrosa, 1998, p. 230).

Assim, a infância é produzida, subjetivada, ao mesmo tempo em que produz, enunciando e anunciando algo sempre para além dos limites de nossas instituições normativas e normalizadoras. Ou seja, “a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas de nosso saber e do nosso poder” (Larrosa, 1998, p. 232).

Ao prosseguir com essa reflexão, Larrosa (1998) abre um campo fértil de análise dos compromissos da educação com a infância, compreendida como sinal de que sempre algo novo nasce no mundo. Trata-se de uma dimensão política da relação adulto-criança e da educação. Para além da tendência a transformar as crianças em algo diferente do que são, para além dos movimentos de esvaziamento e modelação da infância, é possível pensar com a infância novos inícios, a interrupção do instituído e já dado. No encontro do velho e do novo, da criança e do adulto, que seja possível pensar a condição da infância como desvio, diferença, criação em cada um, adulto e criança.

É nesse caminho que esse trabalho traz extratos de uma pesquisa e de relatos reflexivos de uma experiência de pesquisa com crianças pequenas. Nas interações adultos-crianças, como acontecem possibilidades alteritárias? Como a infância constitui-se como experiência de reinvenção do mundo, novidade e ressignificação da cultura?

contornos da pesquisa e das interações com as crianças

Os eventos e diálogos trazidos nesse texto têm como base uma pesquisa de doutoramento, desenvolvida entre os anos de 2009 e 2010. A pesquisa buscou dar visibilidade às produções culturais de dois grupos de crianças de quatro a seis anos de idade em instituições de educação infantil no Rio de Janeiro: um grupo de crianças empobrecidas e moradoras em uma favela, que frequentava escolas públicas da comunidade e outro oriundo da classe média/alta, que estudava numa escola privada cuja arquitetura era um castelo1.

A constituição desses grupos se deu pela tentativa de buscar trazer para as culturas infantis uma análise que considerasse, simultaneamente, os condicionamentos de geração e classe social na interpretação das manifestações das crianças. Nesse texto, apoiando-se nos aportes da Filosofia da Infância em diálogo com a Sociologia da Infância e a Geografia da Infância, a ênfase será dada na discussão da alteridade, ou seja, dar visibilidade ao que pode ser “comum” nas crianças e o que as diferencia dos adultos, independente de seus contextos de inserção.

Partindo de um olhar das crianças como sujeitos que se definem não pela falta, mas pela diferença, o estudo das culturas da infância tem se apresentado como uma porta de entrada para a compreensão da alteridade infantil (Sarmento, 2005). Assim, interessa levantar, por meio da pesquisa, os modos de ação e significação construídos pelas crianças em suas relações de pares: as rotinas, regras, significados, criações, valores partilhados entre elas e na relação com os adultos, com relativa autonomia desses porque construídos em seus espaços autogovernados, especialmente, por meio do brincar.

Desse modo, a pesquisadora permaneceu durante 12 meses imersa nos cotidianos das crianças pesquisadas. A partir de uma perspectiva etnográfica, o olhar estava focado nas crianças, que se fizeram sujeitos na pesquisa e foram indicando as formas de aproximação, as estratégias e os instrumentos metodológicos construídos. Como se tratava de dois grupos distintos e desiguais socialmente, os caminhos metodológicos também foram se produzindo de forma diversificada em cada grupo. O fato, por exemplo, de a pesquisadora ser uma mulher de classe média, adulta e branca teve impactos diferentes em cada grupo de crianças, uma vez que essas levam para suas relações as diferentes inscrições de classe, gênero e, no caso dessa pesquisa, especialmente, de geração. Além disso, era preciso considerar as nuances que constituem as subjetividades dos sujeitos que se expõem para esse encontro; reconhecer cada criança como enigma, impossível de ser capturada em sua absoluta alteridade (Larrosa, 1998).

Nessa direção, a pesquisa se coloca como um caminho aberto, como acontecimento, como encontro e, portanto, como experiência de aprendizagem sobre nós mesmos, pesquisadores (Pereira; Souza, 1998). Na relação da pesquisa como aprendizagem que se dá no processo de sua tessitura, alguns instrumentos foram se mostrando possíveis àquelas realidades, ainda que não da mesma forma nos dois contextos: observação e registro em diário de campo, entrevista coletiva e individual, brincadeiras, fotografia e trocas de fotografias. Capturar a alteridade sem o impulso adultocêntrico de colonizar o imaginário e as expressões das crianças foi uma perspectiva que exigiu um processo de reflexibilidade constante na relação com as crianças, além do acionamento da infância no corpo da pesquisadora, que constantemente se convidava para participar das brincadeiras das crianças e por elas era conduzida.

A participação da pesquisadora nas brincadeiras das crianças foi uma condição que favoreceu muito a construção de uma relação de confiança e a construção de um lugar de adulta atípica (Corsaro, 2005), por meio do qual foi possível adentrar e conseguir maior inteligibilidade dos mundos sociais das crianças. Para Benjamin (1984, p. 14), “muito mais próximo da criança que o pedagogo bem intencionado, lhe são o artista, o colecionador, o mago”. Nessa perspectiva, a pesquisadora buscava modos de aproximação das crianças e consideração da alteridade da infância que buscavam desviar de movimentos colonizadores dos sentidos na relação com elas, de modo geral, típicos da condição docente.

Passamos, a seguir, a dar visibilidade e a pensar a partir das expressões criadoras das crianças que se produziram nesses contextos. A intenção é provocar deslocamentos na forma hegemônica de ver a infância como falta para passar a reconhecer as contribuições das crianças a partir da diferença. Nessa direção, se destaca o movimento de escuta sobre como significam suas experiências e como anunciam novas possibilidades de ver e viver a vida, provocando-nos a rever o mundo instituído, padronizado e controlador, principalmente, nos ambientes escolares.

a infância e o brincar, no avesso da cultura instituída

Ao olhar para os dois grupos da pesquisa, vimos que as marcas da desigualdade se estampavam nas práticas e formas de cada escola se relacionar com eles. Enquanto a escola do castelo (classe média/alta) tinha a brincadeira e as linguagens artísticas como eixo de seu currículo, na escola da favela a brincadeira era vista como atividade condicionada ao cumprimento das atividades ditas mais nobres (os chamados “trabalhinhos”) ou como moeda de troca pelo bom comportamento das crianças. Não era, pois, direito garantido, mas as crianças deveriam conquistar esse direito através de um comportamento que, via de regra, significava obediência às normas da escola.

Contudo, vimos que as crianças criavam, nos subterfúgios da cultura escolar, nas suas interações marginais (Arenhart, 2016), rotas de fuga para poder brincar e dar sentido às suas experiências na escola. Vejamos o evento abaixo:

Assim que se inicia uma atividade dirigida em sala, Marcelo e Maria Clara2dizem estar com sono e a professora disponibiliza colchonetes para dormirem. Então, eles dois deitam do lado de uma caixa de brinquedos e começam a brincar escondido, deitados, pegando os brinquedos cuidadosamente, sem que a professora perceba. Luan e Lucas percebem os dois colegas brincando às escondidas e dizem à professora que também querem dormir. Mas a professora diz que, se deitarem, vão ficar sem Educação Física. Então, ficam olhando os colegas que estão a brincar e desistem da ideia, mas não os entregam à professora. (Diário de campo, grupo da favela, dia 17/09/2010).

É muito recorrente ver nas atitudes das crianças a intolerância com situações de burlas, principalmente quando estas resultam em maior vantagem para quem está violando a regra. Na escola onde se sucedeu o evento acima, mesmo sem deixar de ocorrer algumas situações dessa natureza, pudemos perceber com muita frequência atitudes na contramão dessa lógica. Como demonstra o evento, as crianças que percebem os colegas transgredindo, quando afirmam que vão dormir para poder brincar enquanto os demais estão trabalhando, não entregam os colegas que iniciaram antes esse movimento, mas se tornam cúmplices e aderem à ideia, querendo juntar- se a eles. Interessante ainda é perceber que, mesmo não sendo possível para Luan e Lucas também brincarem às escondidas e, desse modo, continuam em desvantagem frente a Marcelo e Maria Clara, a cumplicidade permanece. Assim, foi possível perceber que a transgressão não era vivida somente no plano individual, mas era também apoiada pelo grupo que, por meio dela, se fortalecia na garantia de seus interesses comuns.

Ao cerceamento das experiências que constituem a cultura infantil na escola, que prescinde da interação, do movimento e, especialmente, da brincadeira, as crianças respondem construindo formas alternativas de viver sua condição infantil, andando à contrapelo da cultura escolar.

Assim, no limite ou na impossibilidade, vimos que as crianças buscam brincar. Está na brincadeira a possibilidade de ir além do instituído, de produzir desvios, de dar sentido ao tempo-experiência e criar novas realidades. A brincadeira ainda coloca as crianças em contato com o mundo, com elas mesmas e com o outro. Baseada na transposição do real, movida pelo desejo de ir sempre além de si para passar a ser um Outro, a brincadeira leva a uma experiência de alteridade.

As crianças, mesmo em circunstâncias de vida desiguais, tornam-se parceiras pelo desejo e pela necessidade comum de brincar. O direito à infância está intimamente ligado ao direito de brincar e as crianças anunciam que sabem disso tornando-se, por todos as vias, as maiores defensoras da brincadeira.

Brincadeira é uma coisa legal pras crianças, assim, que as crianças gostam. Se alguém falar assim: vamos parar de brincar de brincadeira? Aí a gente diz que não, porque é uma coisa muito sagrada pras crianças. (Lua, 5 anos, grupo do castelo).

Como entender a grandeza do significado do “sagrado” para a criança que brinca? Temos levado em conta essa profunda seriedade com que a criança encara sua experiência de brincar? Que implicações a compreensão da brincadeira como território sagrado das crianças poderia trazer para as práticas pedagógicas?

Interessante notar que essa defesa da brincadeira como “coisa sagrada” é feita em nome de todas as crianças, com a clareza de que há algo comum que as unifica. Assim, para além da defesa do brincar como fator de desenvolvimento humano, tão marcadamente feita pela psicologia do desenvolvimento, aprendemos, na escuta das crianças, que defender a brincadeira também passa pelo compromisso ético e político com os direitos das crianças e com a afirmação da alegria. Em nossa pesquisa, quando perguntamos a elas o que era importante para uma criança ser feliz, a grande maioria das respostas trouxe, além do afeto da família e da garantia das condições materiais de existência, a experiência da brincadeira.

“_ Pra ser feliz? É... brincar! Brincar de pique-esconde, pique-pega, pique gelo, tomar banho de mangueira... Quando eu to brincando eu sou feliz!” (Paulo, 5 anos, grupo da favela).

As crianças vão para o espaço aventura e a professora começa a falar de uma brincadeira que hoje vai ensinar para eles. Trata-se do jogo da Queimada. Muito entusiasmada, digo-lhes que eu brinquei muito de queimada quando era criança e Estrela, então, exclama: “- Ah, é por isso que a Deise é tão feliz!” (Diário de campo, grupo do castelo, dia 25/08/2010).

Abrimos esse texto com Keneddy para dizer que a infância está em relação com a adultez; como nos tornamos adultos tem a ver com a forma como vivemos e nos relacionamos com nossa infância. Se tomamos a infância na perspectiva da experiência, de uma condição existencial que permanece em nós e não se finda numa etapa etária, a conclusão a que chega Estrela tem toda correspondência com essa ideia. Ela anuncia uma temporalidade que não é essa de linearidade e transposição entre passado e presente, como se o passado correspondesse ao que não existe mais na nossa experiência presente. Ao contrário, ela anuncia que o que somos é o que é possível ser a partir do que vivemos. Para aqueles que insistem em colocar as crianças como promessa que se revelará somente no futuro adulto, ela alerta que ser feliz começa cedo, não se pode esperar!

Gagnebin (1994), a partir da análise da obra de Walter Benjamin, filósofo crítico da Modernidade, que traz em seu trabalho a remomoração da infância constituindo-se como reflexão crítica do presente, afirma que este olhar para o passado não tem uma dimensão romântica ou idealizada, mas profundamente política; ou seja, “a lembrança do passado desperta no presente o eco de um futuro perdido do qual a ação política deve, hoje, dar conta” (Gagnebin, 1994, p.101). Para a autora, a ação presente relaciona-se com a opacidade do passado e a retomada de um fio da história que se perdeu no caminho. Quando a pesquisadora traz sua experiência da infância na relação com as crianças, de certa forma, denuncia um lugar importante para o brincar e se torna parceira dessa experiência que passa a ser vivida em cumplicidade com elas.

Ainda na trilha de pensar sobre as marcas de alteridade das manifestações das crianças, sobre o que as difere da cultura adulta e as aproxima como coletivo, abordaremos outra dimensão que se destacou em nossa pesquisa, a saber, as formas genuínas que elas travam suas relações com o espaço e o tempo.

a infância, o espaço como “lugar de…” e o tempo como experiência

Na relação com o espaço vamos construindo nossa condição humana de sujeitos culturais: o ser humano constrói o espaço e, ao mesmo tempo, é construído por ele. Este é um postulado importante, afirmado e desenvolvido, especialmente, pelo campo da Geografia da Infância, que tem se dedicado a estudar a infância na sua relação com os espaços. Essa é uma chave importante de ser incorporada para passarmos a reconhecer que as crianças diferem entre si porque inseridas em diferentes lugares, ou se identificam entre si também porque inseridas em lugares comuns, e, ainda, que as crianças transformam os espaços porque, na condição de sujeitos culturais, vão inserindo suas marcas e se humanizando nesse processo.

Assim, em diálogo com as ideias desse campo e as observações empíricas de nossos encontros com as crianças da pesquisa, também foi possível perceber que o espaço, além de ser formador da humanidade do sujeito, quando visto por sua relação específica com a infância, exprime sua alteridade pelas diversas formas de ocupação e reinvenção que mobiliza.

As crianças indicaram que, aqueles espaços da escola mais inusitados, que geralmente são áreas de passagens ou espaços vãos, que passam despercebidos aos olhos dos adultos ou mesmo que não são convidativos para que os ocupemos, estes, quando ao alcance dos olhos das crianças, viram esconderijos, caminhos mágicos, casinhas, campos de futebol e o que o desejo de brincar permitir. Trazemos alguns eventos que expressam essa afirmativa:

Hoje percebo novamente o movimento das crianças indo até um espaço vago, uma passagem fechada que fica num canto do espaço externo que permeia as salas do módulo da Educação Infantil. Parece que elas usam esse pequeno espaço como refúgio para se esconder, para ficar mais isoladas do restante do grupo, para construir uma brincadeira, compartilhar segredos e combinados, enfim, um espaço invisível ou inutilizado pelos adultos para elas torna-se pleno de sentido e possibilidades. (Diário de campo, grupo do castelo, dia 17/08/2010).

No pátio externo, depois do almoço: percebo que aproximadamente nove meninos estão brincando de futebol com uma bolinha pequena de plástico. Brincam pelo pátio externo todo desnivelado como se ali fosse um campo de futebol. Em uma extremidade do pátio, usam uma rampa construída no próprio cimento do chão como gol e, na outra, uma escada. Porém, como percebem que, pelo desnível do terreno, a bola tende a rolar para baixo, o que torna difícil chutar a gol na rampa que está na extremidade alta, eles instituem que todos façam gol na escada que fica na extremidade baixa. Assim, jogam futebol subindo e descendo escadas como se ali fosse o Maracanã. (Diário de campo, grupo da favela, dia 05/08/2010).

No caminho para o laboratório de informática, passamos por um corredor vazio e escuro. Uma criança começa a bater na parede do corredor e várias outras também vão com ela. Nessa exploração do som provocado pelos batimentos na parede, Lola diz: “_ Isso parece um caminho mágico!” (Diário de campo, grupo do castelo, dia 23/09/2010).

O diálogo com os estudos da Geografia da Infância permite-nos afirmar que a relação espacial, para as crianças, parece ser marcada por uma vivência do espaço como lugar-território (Lopes, 2009).

Por lugar compreende-se o espaço que passa a ser dotado de sentido e valor quando do estabelecimento de relações humanas e afetivas com ele. Assim, o vão lateral, por exemplo, para os adultos que não estabelecem relação afetiva com esse local é apenas espaço, já para as crianças é lugar de encontro, de brincadeira, de esconderijo, de proteção, etc. Assim como o espaço do corredor para as crianças vira um lugar mágico, um hall desnivelado pode virar o Maracanã dos meninos apaixonados por futebol.

Esses exemplos trazidos nos eventos acima - o vão da lateral do pátio, o corredor escuro e o hall desnivelado - são espaços desabitados pelos adultos, com os quais estabelecem uma relação literal como a convencionada socialmente: espaços de passagem. Fundamentando-se em várias pesquisas3 que indicam a apropriação que as crianças fazem de espaços tidos como não-lugares (cantos escuros, entremeios, depósitos, orifícios abertos dentro ou embaixo de móveis, espaços vazios em níveis mais altos, etc...), Lopes (2009) conclui que, para as crianças, todo espaço pode se converter em lugar, na medida em que seu sentido não obedece tanto às lógicas utilitárias e convencionais como o é para os adultos.

Já por território compreende-se os lugares no espaço em que há relação e divisão de poder. Assim, é comum perceber as crianças delimitando e lutando por seus territórios, quando impedem que outros (crianças ou adultos) entrem na brincadeira e ocupem o espaço de que se apropriaram para brincar.

Na hora do lanche, no espaço da sala: Maili, Gabi, Lili e Estrela estão sentadas no chão em frente a um banco lanchando, usando o apoio do banco como mesa. Estão de frente para a janela e uma parede. Posiciono-me em frente delas (e da parede e da janela) para registrar. De repente, Estrela comenta: “- Epa, de quem é essa perna?” Lili complementa dirigindo-se a mim: “_ Dá licença, que a gente está vendo filme e você está na nossa frente”. (Era filme imaginário). E Lili continua: “_ E sai do cinema porque aqui adulto não entra, é só de criança”. Imediatamente, saio do cinema. (Diário de campo, grupo do castelo, dia 07/12/09).

Se na lógica adulta estávamos vendo ali um espaço organizado para lanchar, para as crianças, o espaço transformou-se em lugar quando elas atribuíram-lhe um sentido comum de partilha e possibilidade de brincadeira. A dimensão simbólica, tão radicalizada nas crianças, permite-lhes ir sempre além do significado literal do espaço e, assim, transformam-no em lugares sempre possíveis de chegar e viver. Além disso, esse lugar construído pelas crianças contém uma dimensão territorial que indica o poder sobre aquele espaço-lugar construído por elas e que, nesse caso, funciona como um recurso que protege e dá as condições (físicas e interativas) para a perpetuação da brincadeira. Afinal, como seria possível assistir ao filme com alguém “plantada” no meio da tela do cinema?

A afirmativa “[...] aqui adulto não entra, é só de criança” revela ainda que as crianças também constroem e delimitam, por meio da vivência do espaço como lugar-território, o que Lopes (2009) designa como territórios de infância. Se os territórios de infância são construídos e delimitados, por um lado, pela própria modernidade como normativa que separa as gerações e torna possível a ideia moderna de infância - temos aí a escola, a creche e os parques infantis como principais territórios e paisagens de infância - por outro, as próprias crianças tratam de demarcar seu pertencimento pela ocupação territorial.

Assim, pela relação que elas constroem com o espaço podemos perceber um processo muito claro de reprodução interpretativa (Corsaro, 2011), quando, ao mesmo tempo em que reproduzem os usos convencionais, também os transformam e os modificam; ao mesmo tempo em que ocupam os territórios de infância a elas destinados, também constroem os seus territórios no interior dos grupos de pares, pelos quais formam-se subjetivamente.

Se a relação das crianças com o espaço é reveladora da alteridade da infância, podemos dizer que essa mesma alteridade também é percebida na relação com o tempo.

Estudos da infância, em diálogo com a filosofia, indicam que a relação com o tempo, para as crianças, tem sido construída por meio de duas dimensões, as quais se inter-relacionam: a primeira se refere ao modo não linear de construção do tempo; uma experiência de tempo recursivo, uma possiblidade de repetir as experiências com sentido de fazer de novo. A segunda relaciona-se ao modo de percepção e de uso do tempo, este percebido pela entrega das crianças ao tempo da experiência presente e pelo descompasso que isso cria em relação ao tempo da escola, de modo geral, marcado pela ordenação cronológica, busca da previsibilidade e objetivação da vida.

Para as crianças, de acordo com Benjamin (1984), a experiência do presente e da recursividade das ações, a tendência à repetição, permite o saborear de novo e sempre, também, de uma nova maneira, as situações compartilhadas. Para o referido autor, a lei da repetição é a alma do jogo; ou seja, nada alegra mais a criança do que o “mais uma vez”. Assim, estão intimamente relacionados o tempo da fruição e o brincar como ressignificação das experiências partilhadas.

Nessa perspectiva, identifica-se um modo comum das crianças viverem o tempo de forma sempre renovada, em que passado, presente e futuro se fundem numa ação significada pela sua eterna novidade. Assim, Sarmento (2004) também designa a mania comum das crianças de quererem fazer sempre “a mesma coisa” por repetidas vezes - ouvir a mesma história, ver o mesmo filme, jogar o mesmo jogo, brincar da mesma brincadeira - como reiteração. Segundo o autor, a reiteração é um pilar constitutivo das culturas infantis que diz muito sobre uma forma genuína das crianças estabelecerem sua relação com o tempo.

Apoiado em Benjamin (1984), Sarmento (2004) diz que a experiência da reiteração para as crianças, operada pelo fazer de novo, não é a mesma que seria para os adultos. Se, para estes, fazer de novo significa aprimorar experiências primárias pela chance de uma segunda vez, para as crianças fazer de novo é recriar toda a situação, fazer tudo de novo.

Esta relação temporal enquanto reiteração tem sido percebida, nos estudos sobre as culturas infantis, pelas rotinas e regras de ação construídas e estabelecidas pelas crianças, principalmente, em suas organizações para brincar. Em nossa pesquisa, pudemos observar várias brincadeiras que se repetiam e não se acabavam logo após os participantes do grupo de pares as terem dominado, ao contrário, se (re)atualizavam pela manutenção e inovação da experiência com elas.

Assim, brincar com as “mesmas” brincadeiras, com base nos “mesmos” temas e princípios, nos “mesmos” espaços ou territórios-lugares, nas “mesmas” regras, rituais, critérios, artefatos, etc, é uma experiência que, se por um lado garante a rotina necessária que fornece a previsibilidade dos acontecimentos que consolidam a cultura de pares (Ferreira, 2002), por outro, essa cultura é sempre (re)atualizada e reinventada pela experiência inovadora que brota da possibilidade das crianças fazerem de novo.

O tempo como experiência é o tempo que se preenche de sentido no desfrute do presente, da experiência vivida, sentida e compartilhada. Na contramão do tempo cronológico e linear, a perspectiva grega do tempo aiônico traz a ideia da intensidade do tempo na vida humana, uma temporalidade não sucessiva ou numerável, o tempo da duração. Essa visada do tempo aproxima-se do modo de ser criança, um tempo-infância. Coloca-se mais uma vez a infância para além de uma fase quantificável da vida humana, mas marcada por uma lógica intensiva do movimento (Kohan, 2007).

De acordo com Kohan (2007), tendo em vista o trabalho de Deleuze & Guatarri (1997), há dois modos complementares de considerar a temporalidade: de um lado, a História; de outro lado, o devir. A História é a sucessão de efeitos da experiência, numa dimensão cronológica, de continuidade. Trata-se da perspectiva das maiorias. O devir diz respeito às linhas de fuga, às minorias, aos acontecimentos. Para o autor, “uma experiência, um devir, interrompem a História, a revolucionam, criam uma nova história, um novo início” (Kohan, 2007, p. 92).

É possível perceber ressonâncias entre a perspectiva benjaminiana da infância como contrapelo à cultura dominante e a perspectiva deleuziana que indica um devir-criança, minoritário, promotor de acontecimento e experiência que contribuem no desvio em relação à Histório oficial. Em ambos os casos, a alteridade da infância provoca outros modos de relação entre adultos-crianças, para além de uma perspectiva colonizadora, tutelar, opressiva.

As crianças, menos aprisionadas ao tempo chronos - o tempo do relógio, do capital, da pressa, da produtividade, da História oficial, que afasta os adultos da experiência de viver o tempo como presente - revelam, de seu lugar minoritário, outras possibilidades de relação com o tempo e incitam os adultos que queiram aprender com elas a repensar para onde querem ir com tanta pressa e automatismo.

A cultura do tempo chronos - que é a cultura do capital - ocupa e regula também os tempos da escola. É essa lógica que faz com que as professoras se preocupem tanto em preencher o tempo das crianças com os ditos “trabalhinhos”, baseados na ideia de conhecimento como repetição sem sentido, ou com uma rotina fixa e dirigida. Não por acaso, a brincadeira, não tendo finalidade utilitarista e não se submetendo a essa lógica temporal medida pelo relógio cronológico - uma vez que é o tempo da experiência que define seus nexos entre passado, presente e futuro - ainda é vista, em muitas escolas, como atividade de menos valor e vivenciada nas brechas de tempo que restam depois que as atividades “mais nobres” já foram garantidas.

Em nossas observações na pesquisa, vimos que, na falta de tempo e espaço para brincar, as crianças constroem essa possibilidade, brincando nos tempos “vazios”, fora da dimensão oficial do tempo-rotina, tempos considerados pelos adultos como de espera por alguma experiência que só teria sentido e se revelaria no futuro. Assim, os tempos de espera - espera para comer, para fazer a higiene, para aguardar o encaminhamento ou ter participação em alguma atividade, para ter acesso a algum material, para se acalmar, para poder brincar - eram frequentemente preenchidos pelas crianças com a experiência da interação, do movimento, da brincadeira, ou como tempo para ficar quieto, para contemplar o lugar e o outro, olhar pela janela e viajar no tempo e no espaço...

Portanto, ao contrário do que na lógica adulta, as crianças foram revelando que, para elas, não existe tempo vazio; que o tempo presente não está em função do tempo futuro, mas que seu sentido se define pelo que ele nos presenteia no instante em que existe.

Na mesma direção do que indicaram as crianças, Vasconcellos (2009) também defende que a escola valorize a ociosidade amorosa presente nas crianças. Essa ociosidade, segundo a autora, é a mais autêntica expressão de humanização, na medida em que permite a experiência da contemplação, da fruição, do simplesmente ser e sentir o presente, do saber administrar o à toa e o inútil, de respeitar as coisas desimportantes, de sermos, como as crianças e o poeta, apanhadores de desperdícios... (Barros, 2010).

Assim, propõe a valorização das rotas de fuga que as crianças encontram nas instituições de educação infantil para se contraporem ao tempo institucional e cronológico. Para a autora, nas suas resistências, subversões e vagarezas, é o tempo da experiência vivida e sentida que elas estão a operar.

[...] Não é um tempo de ação. É um tempo de atenção. Mas não a atenção focada do pensamento - ou da racionalidade. E sim uma atenção difusa, aberta, à espera ou à espreita não se sabe bem de quê. É uma atenção ao que está fora, mas também ao que está dentro. É uma atenção que cria uma linha de continuidade entre o que está fora e o que está dentro. E, nesse sentido, contemplar é contemplar-se. (Vasconcellos, 2009, p. 90)

considerações finais

Neste trabalho, a força desafiadora, transgressora e criadora das expressões das crianças é percebida como experiência alteritária da infância, que se constitui nas relações entre adultos e crianças.

Inter-ações, sentidos peculiares construídos pelas crianças no brincar e na apropriação do tempo e do espaço na escola constituem subjetivamente crianças e adultos. A brincadeira aparece como desvio do instituído, reiteração das experiências significativas e força propulsora de alegria; os espaços são experimentados como lugares de vida e construção de sentidos nas relações interativas e o tempo é vivido como intensidade, duração, acontecimento.

É interessante notar como a dimensão do tempo-intensidade articula-se com a brincadeira como reiteração, ressignificação das experiências sociais do mundo social no qual participam as crianças. No brincar, o tempo extrapola a ordem sequencial da rotina escolar. O brincar invade os modos de ser das crianças em todo ou qualquer tempo, ainda que na perspectiva dos adultos e da instituição seja “tempo de dormir”, “tempo de comer”, dentre outros tempos da cronologia rotineira.

Na pesquisa que compôs esse trabalho, a Infância como acontecimeto tem lugar na relação entre a pesquisadora adulta e as crianças, desenhando também modos outros de ser adulto na relação, abrindo portas para a compreensão do brincar como experiência inventiva e as interações com espaços e tempos como modos singulares de apropriação do cotidiano por parte das crianças. A relação com as crianças mostra-se como convite ao deslocamento; convite ao silêncio e contenção em relação a uma postura adulta que teima em propor, planejar diretivamente espaços e tempos institucionais.

Assim, na contramão da ideia normativa da Infância, da concepção moderna da criança como em falta em relação ao adulto, coloca-se a infância e a vida concreta das crianças expostas na pesquisa como possibilidade expressiva, testemunhas de seu tempo e cultura, mas críticas em relação aos sentidos instituídos, o que se revela no corpo, nas trocas sociais, na linguagem.

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Recebido: 31 de Maio de 2022; Aceito: 03 de Agosto de 2022

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