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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.18  Rio de Janeiro jan./dez 2022  Epub 30-Nov-2022

https://doi.org/10.12957/childphilo.2022.67621 

DOSSIÊ: estudos da infância: movimentos, limiares e fronteiras

tchinguilile: infâncias da ganda. crianças “de lá”1

tchinguilile: childhoods of ganda. children “from there

tchinguilile: infancias de ganda. niños y niñas “de allí”

adelaide rezende souzaI 
http://orcid.org/0000-0002-8805-7081

1Iuniversidade federal do rio de janeiro, rio de janeiro, brasil - E-mial: bethrezende2005@hotmail.com


resumo

Em diferentes lugares do mundo, pesquisadores vêm fortalecendo outra perspectiva de estudar infâncias a partir de um olhar que evidencie as crianças consideradas “periféricas” - distantes do modelo ideal associado aos países da Europa e Estados Unidos. Com a intenção de conhecer as crianças africanas de Angola e por acreditar que a preservação das línguas se mostra importante para manter conhecimentos e tradições das sociedades, esse texto conta sobre um estudo preliminar realizado em um local rico culturalmente e com fortes tradições, apesar de marcado por processos de negação e desvalorização. Segundo Ndombele e Timbane (2020), grande parte das crianças angolanas aprende português aos sete anos, quando ingressa na escola, especialmente nas zonas rurais. Este fato dificulta o processo de alfabetização na língua portuguesa e ainda potencializa o risco de desaparecimento de algumas línguas nativas já que muitas escolas alfabetizam as crianças somente na língua portuguesa. Ao visitarmos uma escola da Ganda, zona rural de Benguela, encontramos um grupo de crianças que, através de suas brincadeiras, mantêm viva a língua umbundu e, com isso, a identidade e cultura de seus antepassados. Assim foi criado, junto com os professores, um jogo de associação de sílabas a partir da música cantada na brincadeira. O jogo teve duas modalidades - na língua umbundu e na língua portuguesa - caracterizadas por ser um instrumento pedagógico bilingue. No momento inicial de oferecimento do jogo para testagem junto as crianças, foi identificado que, ao cantar a cantiga da brincadeira e discutirem sozinhas as possíveis soluções, conseguiram fazer associações corretas das silabas em umbundu, apesar da insegurança inicial dos adultos em relação ao desafio. E, em seguida, fizeram a tradução para a língua portuguesa. Assim, foi criado um recurso junto com os professores que, além de valorizar a língua originária da população, permitiu a utilização de um conhecimento das crianças para a criação de um recurso didático. Além disso, foi possível abranger o conceito de infância e ser criança no mundo atual, descontruindo a ideia de um modelo único e ideal. Falamos de crianças, que trazem hábitos de casa e que nem sempre comungam com o que há no cotidiano escolar. Vale ressaltar que a maioria das escolas no ocidente segue um modelo euro/ocidental, pautado na separação etária das classes estudantis como requisito principal para a garantia da aprendizagem, desvalorizando outras trocas, que ajudam as crianças a aprender.

palavras-chave: criança; umbundu; brincadeira; ganda; angola.

abstract

Recently, an increasing number of researchers in different parts of the world have been studying childhood from a point of view that highlights children who are considered “peripheral” - far from the ideal model associated with Western countries. We began with the intention of getting to know African children in Angola, informed by the belief that the preservation of languages is important in maintaining social knowledge and traditions. This text describes a preliminary study carried out in a culturally rich location with strong traditions, but which is also marked by processes of cultural denial and devaluation. According to Ndombele and Timbane (2020), most Angolan children learn Portuguese at age seven, when they start school, especially in rural areas. This fact hinders the literacy learning process, and presents the risk of the disappearance of some native languages. Many schools teach children only in Portuguese. When visiting a school in Ganda, a rural area of Benguela, we found a group of children who, primarily through the games they played, keep the Umbundu language alive, and with that the identity and culture of their ancestors. Building on this, these children and their teachers created a syllable association game based on the music sung as they played. The game had two modalities - in the Umbundu language and in the Portuguese language - and functioned as a bilingual pedagogical tool. In the initial moment of offering the game for testing with the children, it was discovered that by singing the song of the game and discussing the possible solutions by themselves, they were able to make correct associations of the syllables in Umbundu, which they then translated into Portuguese. Thus, a resource was created together with the teachers, which, in addition to valuing the native language of the population, allowed the use of children's knowledge to create a didactic resource. In addition, it was possible to encounter the concept of childhood in the current world, deconstructing the idea of a single and ideal model, especially in light of those children who bring habits from home that do not always harmonize with the school routine, and often clash with Euro/Western model, which is based on age separation of classes as a requirement to guarantee learning, and tend to devalue other exchanges that help children learn.

keywords: child; umbundu; play; ganda; angola

resumen

En diferentes partes del mundo, investigadores e investigadora vienen fortaleciendo otra perspectiva para estudiar las infancias desde una perspectiva que destaca a niños y niñas considerados "periféricos" - alejados del modelo ideal asociado a los países de Europa y Estados Unidos. Con la intención de conocer a los niños y niñas africanos de Angola y con la convicción de que la preservación de las lenguas es importante para mantener los conocimientos y las tradiciones de las sociedades, este texto relata un estudio preliminar realizado en un lugar culturalmente rico y con fuertes tradiciones, pero también marcado por procesos de negación y desvalorización. Según Ndombele y Timbane (2020), gran parte de los niños y niñas angoleños aprenden el portugués a los siete años, cuando ingresan a la escuela, especialmente en las zonas rurales. Este hecho dificulta el proceso de alfabetización en portugués e incluso potencia el riesgo de que desaparezcan algunas lenguas nativas, ya que muchas escuelas enseñan a los niños sólo en portugués. Al visitar una escuela en Ganda, zona rural de Benguela, encontramos un grupo de niños y niñas que, a través de sus juegos, mantienen viva la lengua umbundu, y con ello la identidad y la cultura de sus antepasados. Así fue creado, junto con los profesores, un juego de asociación de sílabas a partir de la música que se canta en el juego. El juego tenía dos modalidades - en la lengua umbundu y en la lengua portuguesa - caracterizándose por ser una herramienta pedagógica bilingüe. En el momento inicial de ofrecer el juego para probarlo con las niñas y niños, se identificó que al cantar la canción del juego y discutir las posibles soluciones por ellos mismos, fueron capaces de hacer asociaciones correctas de las sílabas en umbundu, a pesar de la inseguridad inicial de los adultos en relación al desafío. Y en seguido hicieron la traducción a la lengua portuguesa. De esta manera, se creó un recurso junto con los profesores, recurso que, además de valorar la lengua originaria de la población, permitió utilizar los conocimientos de niños y niñas para crear un recurso didáctico. Además, fue posible abarcar el concepto de infancia y de ser niño en el mundo actual, deconstruyendo la idea de un modelo único e ideal. Hablamos de niños y niñas que traen hábitos desde casa que no siempre coinciden con los de la vida cotidiana en la escuela. Cabe resaltar que la mayoría de las escuelas en Occidente se basa en un modelo euro/occidental, basado en la separación de los alumnos según sus edades como requisito principal para garantizar el aprendizaje, desvalorizando otros intercambios que ayudan a los niños a aprender.

palabras clave: niño/a; umbundu; juego; ganda; angola.

tchinguilile: infâncias da ganda. crianças “de lá”

os estudos da infância a partir do sul global

Em diferentes lugares do mundo, grupos de pesquisadores vêm se fortalecendo no sentido de pensar uma outra perspectiva de estudar e pesquisar infâncias, a partir de um olhar sobre as crianças consideradas “periféricas”, distantes do modelo ideal, constituído somente a partir dos países da Europa e Estados Unidos, países do Norte Global.

na realidade, as mudanças e as tensões sociopolíticas e culturais presentes nos países referenciados como sendo Norte Global também apontam para uma suposição problemática de que crianças e infância são homogêneas e universais nesses contextos. Estamos sendo instados a interrogar as hegemonias ideológicas, filosóficas, epistemológicas, ontológicas, teóricas e metodológicas e os posicionamentos acadêmicos arraigados sobre crianças e infância (Rama, p. 14, 2021).

Vale ressaltar que a lógica predominante de infância única e modelo ideal de criança não é recente. Existe um passado que explica como a civilização moderna assistiu várias transformações de suas estruturas de poder e saber, durante a história. E que os conhecimentos, leis e as políticas mudaram muito, desde os primórdios da humanidade, de maneira ainda mais acelerada após a revolução industrial nos séculos XVIII e XIX (Castro, 2021). A partir dos séculos citados, teorias do desenvolvimento infantil preconizaram um caminho universal para as crianças seguirem na aquisição de aprendizagens acumulativas, formatadas por uma única linha de crescimento, com bases em aspectos somente biológicos. Consequentemente, técnicas e instrumentos serviram às práticas autoritárias de segregação, monitoramento, controle dos corpos e, até mesmo, dos nossos desejos. Neste sentido, construiu-se uma nova forma de colonizar (“neocolonização”), criando perspectivas teóricas, que consolidaram um único jeito de estar no mundo, com base em um padrão ideal, diretamente relacionado a um modelo de consumo sob o qual os que não têm acesso são desvalorizados, atrasados e considerados pouco ou não civilizados. Dessa forma, cabe perguntarmos: como determinados discursos são aceitos como verdadeiros e outros não? Como eles são criados? Quais os seus impactos e alcances nos processos subjetivos, individuais e coletivos? Quais as consequências para as diferentes nações?

Ideias de controle dos corpos, purificação da população, supremacia de um determinado grupo sob outro não surgiram neste século, mas foram amplamente aceitas com base no poder exercido por governos e estruturas administrativas. Por meio do discurso do Estado, tais práticas tornaram-se aceitáveis, mesmo visando a rejeição, expulsão e aniquilação de determinados grupos (Foucault, 2009).

Para Foucault, o discurso é o instrumento de poder, que determina condutas e valida políticas. No entanto, como analisado pelo mesmo, é preciso cautela ao lidar com tal instrumento, já que determinado discurso possibilita práticas cruéis e políticas que reforçam estereótipos, segregações, inimizades e extermínios. Nesta direção, Achille Mbembe (2018) chama atenção para o conceito de “necropolítica”, que justifica matar as pessoas de um determinado grupo como um mecanismo de segurança, fortalecendo a seleção e extermínio de alguns, a partir de uma política de morte. O autor afirma que quem morre são grupos, geralmente selecionados com base no racismo.

No atual século XXI, segundo a indiana Sharmla Rama (2021), existem compromissos acadêmicos mais robustos sobre descolonização e africanização em áreas como sistemas de conhecimento indígenas, gênero e feminismo, currículo e migração. Isso tem resultado em estudos sobre a realidade vivida, experiências e oportunidades de conhecer crianças e suas infâncias. “Esses estudos desafiam suposições normalizadas, de modo que crianças e infância devem ser contextualizadas no âmbito da família, da escola e da relação entre família (casa) e escola, ou até religião ou cultura” (Rama, 2021, p.14).

Rabello de Castro, presidente do Comitê Internacional de Sociologia da Infância, afirma que os estudos da infância do sul global buscam desmistificar as estruturas eurocêntricas de conhecimento, de ser e poder, a serviço da dominação e colonização. E chama à atenção sobre o significado do pensamento crítico descolonial, questionar a ideia da modernidade em si, como um evento cultural e político singular, que coloca a Europa no centro da história e da civilização universal, do passado e do futuro.

O desenvolvimentismo é uma teoria sobre o sujeito humano na qual tornar-se humano diz respeito à gradual conquista de certas qualidades, tais como: a racionalidade instrumental e discursiva, a autonomia, a independência psicológica e o controle intencional de emoções, e os afetos. Supõe-se que isso envolva um processo escalonado de maturação que evolui ao longo do ciclo de vida humana do nascimento até a vida adulta (Castro, 2021, p. 43).

No entanto, nossos estudos da infância levam-nos a interrogar sobre outras possibilidades de se teorizar a infância e, consequentemente, de retirá-la da “linearidade unívoca do desenvolvimento”, expressão usada pela referida autora. Foi nesta direção que fomos buscar outros sentidos para ser criança e viver no mundo atual.

Esse estudo nos conta sobre uma investigação preliminar realizada no continente africano em uma escola na Ganda, zona rural de Benguela. Trata-se de um contexto rico culturalmente e com fortes tradições, mas também marcado por processos de negação e desvalorização dos modos de ser do povo. Neste território, motivados pelo reconhecimento da necessidade da preservação das línguas para que não se percam conhecimentos e tradições das diferentes sociedades, buscamos saber a respeito das brincadeiras cantadas em umbumdu, língua tradicional de Angola, falada entre os Ovibundu, povo da etnia banta, que constituem 37% da população do país.

angola e o uso das línguas

Angola é um país multilíngue, onde coabitam línguas de várias origens: africanas, europeias e asiáticas. Segundo a Constituição da República de Angola (Art.19), “ a língua oficial da República de Angola é o português” e “o Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional” (Angola, 2010, p. 9).

Ndombele e Timbane (2020) criticam este artigo por evidenciar e privilegiar o português como a única língua oficial, colocando as demais línguas africanas (que são majoritária) como as menos privilegiadas. Afirmam que “ deveria provir do Estado a preservação de línguas por meio de adoção de política contundente para o uso real, no ensino, expansão e proteção desse patrimônio imaterial da humanidade” (Ndombele; Timbane, 2020, p. 290). Afinal, a preservação das línguas se mostra importante para que não se percam séculos de conhecimento e tradições originários da África. Segundo Tchimbonto (2015), para quem quiser conhecer a África, é necessário conhecer suas línguas, pois a palavra explica o agir do homem e da sociedade.

Ndombele e Timbane (2020) afirmam que grande parte das crianças angolanas aprende português aos sete anos, quando ingressa na escola, especialmente nas zonas rurais. “ Os alunos chegam à escola falando pelo menos uma língua africana, o que torna difícil a compreensão e assimilação dos conteúdos ministrados em língua portuguesa e atendendo e considerando os manuais elaborados” (Ndombele; Timbane, 2020, p. 294).

Dessa forma, os autores afirmam que este fato levanta vários problemas, entre os quais está a questão das metodologias de ensino. Como exemplo de dificuldades, citam problemas com a realização de provas orais, exposição de ideias, opiniões ao público, apresentação de trabalhos escolares na sala de aula, mas também dificuldades na escrita e fragilidades na redação de textos. Sendo este um problema que precisa ser investigado para a construção de possíveis caminhos, que indiquem soluções.

Em relação a língua umbundu, língua sob a qual estamos desenvolvendo este estudo, pertence ao principal grupo étnico os Ovimbundos, que se concentram no centro-sul de Angola. Um terço da população angolana pertence a este grupo étnico. “ podemos verificar que o umbundu se estende, precisamente, em três áreas principais, que constituem as três províncias do Huambo, Bié e Benguela” (Costa, 2015, pp.13-14).

Do ponto de vista social, “ os Ovimbundo sempre foram um povo homogêneo, que vivia em aldeias extensas, mas com uma grande capacidade de mobilidade. Esta característica está na base da sua dispersão por várias localidades” (Pinto; Silva, 2022, p. 5). Desse modo, os autores ressaltam que a integração dos Ovimbundo gerou uma certa "umbundização" cultural e linguística de alguns povos vizinhos, que antes possuíam características distintas. Este fato permitiu a expansão da língua. No entanto, por não haver ações políticas concretas, representadas nas instituições oficiais, as novas gerações vêm tendo acesso mais reduzido a língua, pondo em risco real a sua existência, possibilitando até a sua extinção.

Quanto a língua portuguesa, depois de vários séculos de convivência linguística entre o português e as línguas nacionais, segundo Costa, (2015, p. 58):

hoje, o português em Angola transformou-se numa “língua nova”, com sotaque próprio, diferente do de Portugal e do Brasil; recorre constantemente a unidades lexicais e a expressões do Kimbundu e de outras Línguas angolanas, sobretudo quando quer expressar factos ou realidades socioculturais que o português não possui e, às vezes, em determinados tipos de discursos, quando quer produzir efeitos estilísticos, dando ênfase a determinada expressão.

Podemos perceber que a língua portuguesa em Angola possui nuances que permitem considerá-la com variações e singularidades próprias, construídas pelos falantes a partir de sua cultura e território. Portanto, estudar formas de garantir a (co) existência das línguas se justifica não apenas pela preservação da identidade dos povos originários angolanos, mas também permite afirmar a sua não apropriação passiva da língua portuguesa. E reconhece a criação de um jeito de falar a partir das características socioculturais específicas dos falantes angolanos.

Desse modo, propomos a convivência entre as línguas portuguesa e umbundu na escola, no sentido de não haver a dominância de uma em relação à outra, mas a coexistência. A proposta é que “ a língua umbundu deve sair do contexto familiar para a esfera pública, desempenhando um papel não só na escola, enquanto língua de ensino, mas na própria administração pública” (Pinto; Silva, 2022, p.15).

Vale também destacar que, em 1996, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, em Barcelona, e que há em seu texto a consideração de que a maioria das línguas ameaçadas do mundo pertence às comunidades não soberanas. E que dois dos principais fatores que impedem o desenvolvimento dessas línguas, acelerando o processo de substituição linguística, são a ausência de autogoverno e a política de Estados, que impõem a sua estrutura político-administrativa e a sua língua. Segundo Pinto e Silva (2022, p. 16): “Na sua introdução é salvaguardado um direito fundamental dos povos, aquele que diz respeito à conservação da sua língua enquanto patrimônio imaterial da comunidade a que pertence”. E foi seguindo essa direção que este estudo se encaminhou, pois segundo Friedman (1996), as brincadeiras tradicionais também são consideradas patrimônio imaterial da humanidade e fazem parte de uma cultura que atravessou fronteiras de idiomas e territórios. Portanto, ao estudar as brincadeiras cantadas em umbundu estamos investigando um patrimônio cultural e imaterial da humanidade por dois vieses: o da língua e o da ludicidade.

as brincadeiras tradicionais

Friedman, ao destacar as brincadeiras tradicionais como patrimônio imaterial da humanidade, afirma que “ o ser humano faz, refaz, inova, recupera, retoma o antigo e a tradição, inova novamente, incorpora o velho no novo e transforma um como poder do outro (Friedman, 1996, p. 40).

As brincadeiras tradicionais marcam a produção da cultura infantil, cultura essa que provêm do mundo adulto e de um rico acervo de jogos e brincadeiras, que, durante séculos, foram repassados de uma geração a outra. Sempre ganhando novidades, advindas das produções inovadoras das crianças, que geralmente estão associadas as especificidades de seus territórios, juntamente com o período histórico em que vivem. A partir disso destacamos que:

O lúdico vai além das gerações entre as crianças, perpassando jovens e adultos, por meio das canções, histórias, jogos, brinquedos e narrativas que são veículos de tradições, transgressões, inovações do universo de qualquer sociedade e que refletem representações do saber histórico e cultural da comunidade (Santos, 2016, p. 72).

Winnicott (1975) ao utilizar a palavra cultura, a associa à tradição herdada e pertencente ao fundo comum da humanidade. Dessa forma, o autor destaca que: o lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial, existente entre o indivíduo e o meio ambiente. Assim como o brincar também se localiza. Logo, a experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente pela brincadeira. Assim afirma Winnicott (1975, p. 147): “ para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento”.

No entanto, quando associamos este patrimônio cultural ao tempo e o espaço disponibilizado ao brincar na escola, percebemos que ainda é um campo mais discutido do que compreendido e vivenciado. Existem algumas amarras trazidas do passado, especialmente da história do corpo na educação, que, aos poucos, vêm sendo desatadas, mas que, ainda assim, deixam vestígios (Pereira; Bonfin, 2009). Não há como negar que um dos embaraços escolares, que interferem no lugar da brincadeira, do riso e humor na escola, é a maneira como é estabelecido e valorizado o uso do tempo. E esse tem sido um dos obstáculos que interfere inclusive na convivência dos integrantes da comunidade escolar. Não tem sido fácil passar do tempo institucional quando existe uma demanda de enquadrar todos os alunos a um mesmo ritmo para a constatação de que existe, simultaneamente, um tempo que é social, contado na escola em relação ao tempo do aluno real.

Segundo Ferreira e Arco-Verde (2001, p. 14), essa questão gera uma nova ordem, que: “ não é o ordenamento aprendido e apreendido pela maioria dos educadores, no entanto, há um espaço na escola para que se possa modificar hábitos arraigados, rever tempos e práticas em uma nova organização temporal”. Além do que, segundo Aquino e Martins (2007, p. 481), o fator temporal passa por metamorfoses significativas: “ iniciadas no momento em que o homem resolve medir o tempo cotidiano e quantificar o tempo social na sociedade industrial, chegando à comercialização do próprio tempo, que se torna uma mercadoria e passa a ter valor econômico”.

Associado a isso, Lemos (2007, p. 85) ressalta que, com o nascimento da sociedade industrial, os adultos foram concebidos como trabalhadores, devendo produzir mercadorias, sendo, desta forma, afastados da atividade lúdica. “ A brincadeira tornou-se uma prática restrita às crianças. Opera-se uma separação entre a criança e o adulto, entre a família e a comunidade e entre as classes sociais”. Seguindo essa direção, um aspecto importante a ser considerado sobre os possíveis obstáculos para restrição do tempo do brincar no ambiente escolar é a construção da ideia de espaços distintos e não atados entre adultos e crianças. Dessa forma, a escola, como instituição pertencente a engrenagem social, está comprometida com esse modelo que separa a vida adulta da infância e, consequentemente, o brincar da atividade produtiva como o trabalho. Porém, entendemos que a escola como instituição responsável pelo acesso ao conteúdo formal, organizado e valorizado, não pode se eximir da valorização das identidades ancestrais, registros e reescrita da história cultural dos povos.

Diante do exposto, queremos investigar quais os efeitos de associar brincadeiras tradicionais ao ensino e fortalecimento das línguas locais. Existe a possibilidade de oferecer às professoras e professores da Ganda um caminho que mantenha acesa a cultura e identidade do território? É possível construir uma metodologia criativa, com sentido e significados simbólicos para os adultos e para as crianças, através de jogos que partam das letras das brincadeiras cantadas das crianças?

a contextualização do lugar

ganda - zona rural de benguela

Em geral, as áreas rurais não são consideradas como locais que representam “desenvolvimento e progresso”, associadas ao atraso e a pobreza, não são valorizadas como lugares que exprimam culturas, meios e instrumentos, que sirvam de modelo a ser utilizado em outros locais. Portanto, a região da Ganda, como uma zona rural, não deixa de ser diferente. Situado à leste da província de Benguela, à distância de 210 km da capital da província, tendo uma superfície de 4.817 km², constitui-se como um município de uma das povoações do Caminho‐de‐Ferro de Benguela, cujo desenvolvimento se prendeu diretamente com a construção da infraestrutura da estação de trem. Dessa forma, o município é atravessado por importante via ferroviária, o Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB), que liga Benguela ao Luau, na fronteira até a república da Zâmbia

Em relação à educação em Angola, Nicolau (2021) afirma que, durante o início do período colonial, os angolanos não tinham direitos de estudar e eram proibidos de falar as suas línguas locais. Atualmente, “ ainda existem fortes assimetrias no seu acesso, em que 22% das crianças, em idade escolar, estão fora do sistema educativo, tanto nas áreas urbanas e rurais” (Nicolau, 2021, p.05). O autor afirma ainda que “ a pobreza está avaliada em 58,8% da população rural, contra 18,5% da população urbana” (Nicolau, 2021, p. 06). Em 2018, Afonso Sapalo, na época diretor municipal de educação, afirmou que na Ganda existiam 111 escolas, 99 das quais provisórias e 113 mil alunos frequentavam aquele ano letivo, do ensino primário ao II ciclo. Portanto, estamos falando de uma realidade na qual as condições educacionais são marcadas por muita precariedade, necessitando de ações, estudos e pesquisas que apoiem metodologias inovadoras e políticas significativas.

Além disso, Castro (2018) considera que as teorias sobre a infância recebidas implicitamente nos países do sul, e largamente utilizadas neste contexto, quase nunca foram elaboradas e construídas a partir das demandas e dos problemas aí encontrados e com a contribuição efetiva de seus pesquisadores. Dessa forma, apontamos a necessidade de um olhar sobre práticas culturais de formações sociais locais, existentes em lugares em que normalmente há as marcas de grupos étnicos considerados minoritários.

a proposta

etapas preliminares

Para a realização dessa pesquisa foi estabelecido um acordo de parceria entre o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) e de sua coordenação científica, através da orientação da professora Lucia Rabello de Castro, envolvendo o Instituto de Psicologia, pelo Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PPGP), pertencentes a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela (ISJPB), através do Gabinete de Formação Contínua.

Desse modo, foi possível que uma pesquisadora brasileira pudesse visitar algumas escolas da região da Ganda, previamente selecionadas pela secretaria de educação desse município. Além de contar com o apoio e suporte financeiro do Instituto Jean Piaget, a pesquisa também contou com a disponibilização de uma professora do Instituto para o acompanhamento e participação no trabalho. Também foi designado um funcionário do setor de educação do município da Ganda para participar e mediar os encontros. Essas duas pessoas participaram de todo o processo da pesquisa e foram essenciais para a sua construção.

brincar, cantar e alfabetizar - valorizando a cultura ancestral

Figura 1: área externa da escola 

Figura 2: crianças da escola 

Ao chegar a Ganda e após estabelecido os contatos iniciais com os representantes locais fomos visitar a escola selecionada por eles para a realização do trabalho. Por meio da visita preliminar, acompanhamos o momento de recreação das crianças, através de brincadeiras cantadas, e identificamos o único momento em que se escutava a língua umbundu. Apesar de nos ter sido informado que em casa algumas crianças se comunicavam com seus parentes somente nessa língua. Em seguida, nos reunimos com os professores e a equipe da escola para apresentar a proposta e ouvir suas opiniões, contribuições e seus consentimentos. Era fundamental contar com o envolvimento do coletivo para a viabilidade do que pretendíamos fazer.

A proposta teve a intenção de investigar em uma escola pública do município a possibilidade de criar um espaço de pesquisa e criação de instrumentos pedagógicos junto com os professores. A meta inicial foi criar um jogo de associação de sílabas, que fortalecesse o processo de alfabetizar crianças na língua portuguesa e umbundu, averiguando a viabilidade de assegurar a identidade, a cultura e a história do território.

procedimentos e métodos

grupo investigado e materiais utilizados

A investigação foi realizada com crianças da segunda e terceira classe (como são intituladas as séries iniciais na Ganda) e seus professores, durante os meses de março e abril de 2022. A escolha das turmas foi feita pela equipe escolar e baseada na informação em que se tratava de crianças que estavam recém alfabetizadas. Desse modo, pôde-se fazer a testagem do material. Usamos cartolinas coloridas, garrafas pets entre outros materiais para a confecção do jogo de associação de sílabas, retiradas da cantiga da brincadeira.

procedimentos

Assim, após acompanharmos as brincadeiras das crianças com a participação das professoras e professores, a escolhida foi “Tchinguilile”. Sua descrição e tradução significam:

Cantiga de roda

Língua Umbumdo Língua Portuguesa (tradução)
Tchinguilile, tchinguilile
Otchama, otchama tchalile omalã vangue
Ove a …….
(nome de alguma criança que está brincando)
tumalã posi apa
Nda walale Ndasala likalihanga,
HE! HE! (coro)
Ndasala likalihanga,
HE! HE! (coro) (Nesse momento a
criança que é a “mama” é quem chama criança por criança)
Tchinguilile, tchinguilile (sem tradução)
O grande animal devorou os meus filhos
o..........(nome de alguma criança que está brincando)
senta-se aqui no chão se dormiste bem
Fiquei sozinho e O.......... (nome de alguma criança que está brincando)
levanta e venha sentar aqui, serei sua mama.

Figura 3: A brincadeira: Tchinguilile 

Desse modo, contando com a tradução da letra da brincadeira em português -feita pelo representante do setor de educação que nos acompanhava -, nos reunimos durante uma segunda visita, em uma sala designada para a produção do jogo que foi construído com a participação dos professores. Este momento foi marcado por muitos desafios:

1) Diferentes línguas - dificuldade de compreensão das línguas já que, mesmo falando a língua portuguesa, era difícil para os professores angolanos compreenderem a fala de uma brasileira. Isso também acontecia reciprocamente;

2) Inversão da lógica - proposta de construir um material didático que tinha como base uma brincadeira infantil, fazendo com que, de certo modo, as crianças passassem a participar de seu aprendizado de uma maneira diferente do habitual;

3) Reaproveitamento do “lixo” - estimular o uso de materiais reaproveitáveis para produzir um recurso didático. Imaginar em conjunto formas de aproveitar o material existente;

4) Insegurança na resposta das crianças - dúvida se as crianças seriam capazes de fazer as associações corretas nos dois idiomas, fato que exigia o reconhecimento das sequências silábicas nas duas línguas.

método de investigação

Trata-se de um estudo qualitativo por meio de uma pesquisação, a qual ao mesmo tempo que se investiga se propõe uma ação que promove reflexão. Segundo Jardim (2003, p. 56), esse método vai ao encontro dos estudos do brincar como campo de subjetividade, pois “(…) não é contabilizado, nem pedagogizado e foge do caráter de capitalização”. Assim, utilizamos como instrumentos: a observação participante e grupos de discussão, registros escritos, fotográficos e gravações de vídeo. Tudo foi combinado previamente com os sujeitos e contou com seus assentimentos.

Figura 4 construindo juntos 

Figura 5: crianças e adultos que participaram do jogo 

resultados e análises

Como resultados, podemos assinalar quatro aspectos principais: 1) a produção de um jogo em duas línguas - umbuntu e portuguesa; 2) a aproximação com os professores e professoras de uma pesquisadora estrangeira; 3) o valor e a relação da brincadeira com uma das línguas nativa como patrimônio cultural da humanidade; e 4) identificar outros modos de ser criança e infâncias na atualidade.

Em relação ao primeiro ponto, foram produzidos dois jogos que representavam a cantiga da brincadeira, com a participação ativa dos professores e professoras: o primeiro na cor azul, em umbundu, e o segundo na cor amarela, em língua portuguesa. Este último foi a tradução da brincadeira, uma vez que, originariamente, só existia em umbundu. Este aspecto permitiu reconhecer uma forte relação com os costumes do povo rural da Ganda. Quando a cantiga foi traduzida para a língua portuguesa, a letra da música trouxe marcas que nos permitem compreender maneiras de se relacionar pouco comuns em outros contextos. Segundo Pinto e Silva (2022, p. 05), “ os Ovimbundu são um povo que, até à fixação dos portugueses em Benguela, vivia da agricultura de subsistência, da caça e de alguma criação de gado bovino e de outros animais”. Dessa maneira, neste trecho da música “O grande animal devorou os meus filhos” conseguimos perceber o risco proeminente no passado de algum animal selvagem devorar as crianças por estarem em um local com este tipo de animal, coabitando em áreas próximas com os moradores.

Além disso, é perceptível o espirito comunitário de cuidados, valorizado por esses povos, no trecho em que a criança, que representa a “mama”, chama criança por criança para perto de si e diz: “ fiquei sozinho, venha sentar aqui o (nome da criança)”, indicando que daquele momento em diante ela iria cuidar dela como filho, já que os dela tinham sido devorados. Dessa forma, a música demarca que há uma maneira de maternagem pouco comum de se encontrar nos centros urbanos, a qual os filhos de outras mulheres podem ser considerados também filhos de outras. Isto indica que na Ganda, como em outros locais pouco estudados, há a variabilidade de formas familiares existentes no mundo, como preconiza os estudos do sul, ajudando a desconstruir o modelo idealizado de família nuclear como único a ser seguido.

Outro aspecto é que, à medida que o processo de construir o material didático acontecia, parecia que as pessoas ficavam mais confortáveis com a presença de uma pesquisadora estrangeira, que trazia uma ideia nova para o cotidiano escolar. Desse modo, o distanciamento das línguas portuguesas e suas especificidades foi se dissolvendo quando conversas paralelas aconteciam, e o fazer junto ia acontecendo. Ao tecer ideias que deixavam todos mais próximos, sentados ao redor de uma mesa, muita coisa era aproveitada para enriquecer o produto que estava sendo construído a muitas mãos. Vale ressaltar que, muitas professoras e professores costumam caminhar por longas extensões de áreas na estrada de suas casas até a escola. Dessa maneira, já chegam cansadas e, muitas vezes, desmotivadas. As conversas realizadas, após a experiência as professoras e professores que participaram da atividade, afirmavam que a vivência trouxe ânimo ao grupo que, mesmo não compreendendo inicialmente a proposta, não se eximiu de participar e procurar entendê-la, pois achou que poderia representar algo novo e que pudesse acrescentar nas suas práticas.

Após a produção do jogo e a possibilidade de ver a ideia materializada, a equipe docente parecia dividir dois fortes sentimentos: satisfação e dúvida, já que, mesmo felizes por terem conseguido o produto, havia o risco de as crianças não compreenderem a proposta e não resolverem o desafio apresentado. No entanto, após um tempo, as crianças não só conseguiram fazer rapidamente a associação exigida em umbundu, como na sequência fizeram a tradução da música para a língua portuguesa. Esse momento foi mais desafiador, exigindo pensar em uma outra língua. Neste caso, as crianças entre pares conseguiram sozinhas, sem a mediação dos adultos, resolver o problema. Fizeram trocas substanciais, pelas quais, as que sabiam mais ajudavam as outras, mostrando para os adultos que nem sempre é necessário seus controles e interferências.

Figura 6: Resolvendo o jogo coletivamente 

Figura 7: Resolvendo o jogo coletivamente 

Após a resolução do jogo, por iniciativa dos professores e professoras, junto com as crianças, eles expuseram os jogos das duas línguas no quadro para que todas as outras crianças pudessem ver. Em seguida, disseram ao grupo que resolveu que eles deveriam ler as sílabas cantando a música às outras crianças para que escutassem e pudessem aprender. A menina maior do grupo foi escolhida para receber a varinha do professor e apontar para as sílabas do jogo à medida que cantavam a música. No final de tudo, todos brincaram da forma tradicional da brincadeira: o grupo, os professores, as professoras, a pesquisadora e seus auxiliares. Foi um forte momento de alegria coletiva.

O valor e a relação da brincadeira com uma das línguas nativas, como patrimônio cultural da humanidade, foi outro aspecto que merece destaque, pois foi através da brincadeira tradicional “Tchinguilile” que os adultos puderam entrar em contato com suas próprias infâncias, com suas memórias afetivas e brincar com as crianças. Inclusive, foi identificado nas conversas após a produção dos jogos que a letra da música da brincadeira em umbundu era um pouco diferente daquela que cantavam quando crianças, evidenciando que de uma geração para outra ocorrem mudanças nas brincadeiras, a partir das mesmas estruturas, como afirma Brougère (2002, 1998).

Nossa investigação revelou que, ao misturarmos as diferentes idades, as crianças conseguiram trocar e solucionar o jogo já que fora da escola possuem um amplo espaço e tempo de trocas, através de um grande período de convivência. Fora isso, a título de exemplo, podemos citar os nomes das crianças. Todas elas, ao serem perguntadas sobre seus nomes, antes de responder perguntavam: “o de casa ou o da rua?”. Em Angola, o nome de casa é o apelido, enquanto que o da rua é o que está no registro do nascimento e é o usado na escola. Este aspecto também fala da importância e especificidade da família e das relações íntimas, que são construídas no ambiente doméstico e que são específicos de lá, evidenciando formas próprias da relação e produção dessa infância.

considerações finais

O brasileiro Paulo Freire desenvolveu um trabalho pedagógico que vislumbra a Educação como um ato libertador, através do qual as pessoas seriam agentes que operam e transformam o mundo. Indica que a falta de capacidade de aprender de alguns grupos sociais, ou no atraso tecnológico, possui sua origem em situações históricas de exploração e opressão das pessoas, impostos por um regime de dominação. Seria então a educação um ato de busca permanente, o qual o próprio homem é o sujeito que opera e transforma o mundo, através de uma clara compreensão do mesmo, que só será possível com a consciência da realidade concreta.

No contexto da Ganda, a escola é o único espaço no qual as crianças têm atividades educacionais formais, não existindo alternativas institucionais extras para o recebimento de aulas de artes ou complementares, como existe em alguns lugares do Brasil. Isso não significa que nas trocas que ocorrem nos campos com suas famílias e entre pares não estejam aprendendo e construindo experiências significativas. O contexto familiar parece ser um elemento fundamental, que representa a transmissão de valores essenciais na constituição das crianças, podendo ser estendido para a vizinhança, muitas vezes, considerada como parente.

Nessa experiência, além da relevância das crianças aprenderem em dois idiomas, em uma das línguas nativas - umbundu e a língua portuguesa, destacamos a importância de que esse aprendizado possa favorecer o conhecimento das características da cultura de seu povo originário, compreendendo a sua história mais de perto. E assim poder se identificar como um povo angolano da Zona Rural, que tenha amor pela terra por meio da identificação e reconhecimento de características de seu território. Nesse sentido, podemos considerar que este projeto de forma mais ampla apresenta fins - identitários, políticos e culturais.

Nossa hipótese inicial é que a experiência preliminar na Ganda nos mostra que, ao fortalecer a cultura local, é possível que as crianças se sintam mais motivadas a frequentarem a escola, percebendo esse espaço como um lugar que acolhe e reconhece suas brincadeiras e suas práticas cotidianas. Sobretudo, quando isso permite estabelecer relações entre essas práticas e o aprendizado dos conteúdos formais. A participação das crianças implica na constituição de um espaço de troca, de diálogo, em que possa ocorrer os enfrentamentos das diferenças e as negociações na construção de algo em comum. Perez e Silva (2021, p. 128) destacam que as crianças por terem, muitas vezes, uma perspectiva diferente dos adultos “ podem revelar aspectos que são ignorados ou pouco valorizados pelos mais velhos, contribuindo para a construção da sociedade a partir de outro lugar geracional”. Elas sinalizam a possibilidade de estabelecer negociações intergeracionais de forma que suas vozes possam ser ouvidas nas tomadas de decisão.

Ter oportunizado momentos de trocas lúdicas entre professores, professoras e crianças foi o marco inicial de uma pesquisa que precisa de maior investigação. Mesmo considerando a ancestralidade que une os povos brasileiros e africanos, essa realidade é bastante nova e trouxe muitos questionamentos à pesquisadora brasileira, que implicam na continuidade desse processo. Ser uma pesquisadora branca e estrangeira, em si, trouxe e traz impactos relevantes à investigação. A título de exemplo, em um determinado momento, ao tentar se aproximar de uma criança e colocá-la ao colo, foi possível perceber as fortes e ligeiras batidas do seu coração, aspecto que fez com que a pesquisadora buscasse outra maneira de abordar o grupo infantil, deixando que as crianças, aos poucos, se aproximassem, a partir de suas curiosidades. Ao invés de provocar um contato físico mais rápido.

É importante destacar que incentivo ao estudo e o investimento em pesquisas são as principais armas para combater-se, gradativamente, o preconceito enraizado na cultura de determinados povos. Quanto maior a distância entre a realidade de quem pesquisa em relação a quem está sendo pesquisado mais complexa é a análise e deduções que se pode tirar. Para que visões alternativas de futuro possam ser construídas, Castro (2021) ressalta a importância da pesquisa mais afinada, com as demandas sociais e culturais locais, pois “ há uma responsabilidade e uma tarefa para os pesquisadores do Sul que devem arcar com os vários custos subjetivos, epistemológicos e políticos de discordar, e buscar maneiras mais relevantes de produzir conhecimento científico sobre seus países (Castro, 2021, p.73).

É importante refletir nas maneiras de intervir e pesquisar dentro das escolas africanas, sobretudo porque, mesmo com a intenção de contribuir com uma prática que possa ajudar na luta pelo reconhecimento e continuidade da cultura e das línguas que existem na África, quem vem de fora pode fortalecer atitudes de dominação que desvalorize os povos locais e suas práticas cotidianas, confundindo com processos de controle externo através de um olhar hegemônico do que significa educar. É possível dizer que o contato inicial com as crianças e o grupo de professores e professoras de uma escola da Ganda nos convoca a novas reflexões sobre a visão do que significa educar e as relações com a cultura tradicional, ampliando as possibilidades de se pensar esse processo.

Finalmente, como mais um ponto a ser ressaltado nesse trabalho está a importância de identificar outros modos de ser criança e infâncias na atualidade. Falamos de crianças que trazem hábitos de casa e que nem sempre se comungam com o que há no cotidiano e currículo da escola. Vale lembrar que, a maioria das escolas do mundo ocidental segue um modelo euro/ocidental, pautado na separação etária das classes estudantis, como fator determinante da aprendizagem. As trocas observadas entre as crianças da Ganda, através da língua umbundu, e dos costumes coletivos vividos cotidianamente com suas famílias e vizinhança trouxeram aspectos que não estão arraigados ao padrão escolar e podem nos ajudar a compreender riquezas da cultura ancestral africana.

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Recebido: 30 de Maio de 2022; Aceito: 18 de Agosto de 2022

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