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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.19  Rio de Janeiro ene./dic. 2023  Epub 30-Sep-2023

https://doi.org/10.12957/childphilo.2023.76362 

Artigos

O governo da infância: para uma ontologia histórica do desenvolvimento infantil e a delimitação de modos de ser criança

The government of childhood: towards a historical ontology of child development and the delimitation of ways of being a child

El gobierno de la infancia: hacia una ontología histórica del desarrollo infantil y la delimitación de los modos de ser niño

Iescola superior de educação do instituto politécnico de lisboa, lisboa, portugal - CIE - ISPA, IU || CIED - ESELx, e-mail: tiagoa@eselx.ipl.pt


resumo

O objetivo deste texto é questionar, no contexto sócio-histórico da modernidade europeia, o modo como se forjou no interior do “novo sentimento de infância” uma vida por etapas que outorga às pessoas de pouca idade a urgência de uma existência em permanente desenvolvimento. Problematizar a “ideia” de desenvolvimento, mais concretamente de desenvolvimento infantil e as suas implicações na produção de modos de ser criança, permite avançar pistas sobre como é que a narrativa desenvolvimentista se tornou hegemónica e inquestionável nos contextos educativos a si destinados. Para tanto, recorre-se à ontologia histórica como ferramenta metodológica com o intuito de encetar um diálogo com educadores e psicólogos dos séculos XVIII, XIX e XX, procurando estabelecer um entendimento sobre como a ideia de desenvolvimento infantil surge associada à necessidade de hierarquização e normalização da população infantil. Discute-se como os agenciamentos históricos, que vinculam a infância (enquanto tempo cronológico) a uma certa ideia de desenvolvimento, estão intimamente ligados a projetos políticos. Este exercício não é possível sem reconhecer o olhar eurocêntrico e adultocêntrico que se tem assumido na forma como habitualmente olhamos para este tema e, nesse sentido, expressa-se a importância de se considerar a multiplicidade de outros modos de ser criança, à semelhança do que epistemologias não eurocêntricas nos têm dado a conhecer.

palavras-chave: desenvolvimento infantil; ontologia histórica; infância; educação de infância

palabras clave: desarrollo infantil; ontología histórica; infancia; educación infantil

abstract

In the socio-historical context of European modernity, this text aims to question how a life in stages has been forged within a “new sense of childhood” that imposes on young people the urgency of an existence in permanent development. Problematizing the idea of development, specifically child development and its implications for the production of ways of being a child, provides clues as to how the developmental narrative became hegemonic and unquestioned in the educational contexts for which it was intended. To this end, historical ontology is used as a methodological tool for initiating a dialogue with educators and psychologists from the 18th, 19th and 20th centuries, a dialogue that seeks to establish an understanding of how the idea of child development arose in association with the need to hierarchize and normalize the child population. We explore how the historical assemblages that link childhood understood as a period of chronological time to a certain idea of development are closely linked to political projects. This exercise is not possible without recognizing the Eurocentric and adult-centric viewpoint that has been assumed in the way we typically look at this subject, and given this, we express the importance of considering the multiplicity of other ways of being a child based on what non-Eurocentric epistemologies have shown us.

keywords: child development; historical ontology; childhood; early childhood education

resumen

El objetivo de este texto es cuestionar, en el contexto socio-histórico de la modernidad europea, el modo en que se forjó dentro del “nuevo sentimiento de infancia” una vida por etapas que otorga a las personas de poca edad la urgencia de una existencia en permanente desarrollo. Problematizar la “idea” de desarrollo, más concretamente de desarrollo infantil y sus implicaciones en la producción de formas de ser niño, proporciona pistas sobre cómo es que la narrativa del desarrollo se convirtió en hegemónica e incuestionable en los contextos educativos para los que fue concebida. Para ello, se utiliza la ontología histórica como herramienta metodológica para entablar un diálogo con educadores y psicólogos de los siglos XVIII, XIX y XX, buscando establecer una comprensión de cómo la idea de desarrollo infantil surge asociada con la necesidad de jerarquizar y normalizar a la población infantil. Se discute cómo los agenciamientos históricos, que vinculan la infancia (como tiempo cronológico) a una determinada idea de desarrollo, están estrechamente ligados a proyectos políticos. Este ejercicio no es posible sin reconocer la mirada eurocéntrica y adultocéntrica que se ha asumido en la forma en que habitualmente miramos este tema y, en este sentido, se expresa la importancia de considerar la multiplicidad de otros modos de ser niño, como nos han mostrado las epistemologías no eurocéntricas.

o governo da infância: para uma ontologia histórica do desenvolvimento infantil e a delimitação de modos de ser criança

introdução

O objetivo deste texto é questionar, no contexto sócio-histórico da modernidade europeia, o modo como se forjou no interior do “novo sentimento de infância” uma vida por etapas que outorga às pessoas de pouca idade a urgência de uma existência em permanente desenvolvimento. Problematizar a “ideia” de desenvolvimento, mais concretamente de desenvolvimento infantil e as suas implicações na produção de modos de ser criança, permite avançar pistas sobre como é que a narrativa desenvolvimentista se tornou hegemónica e inquestionável nos contextos educativos destinados a pessoas de pouca idade. Em concreto, interessa-me pensar os agenciamentos históricos que vinculam a infância (enquanto tempo cronológico) a uma certa ideia de desenvolvimento, entendida como progresso e evolução. Este exercício não é possível sem reconhecer o olhar eurocêntrico e adultocêntrico que se tem assumido na forma como habitualmente olhamos para este tema (Burman, 2016; Smith, 2014). O mesmo é dizer que o modo como fomos constituídos informa uma certa conceção de criança e de infância que delimita as possibilidades de considerarmos outros modos de relação com as crianças, para além daqueles que impõe modos “certos” de estar-a-ser-criança (Almeida & Boto, 2022).

Não é novidade mobilizar o trabalho de Michel Foucault para questionar a relação entre crianças, desenvolvimento e educação, mas gostaria de olhar para esta tríade a partir do que ele denominou ontologia crítica (Foucault, 1984a/2017a) e, mais tarde, do que Ian Hacking propôs como ontologia histórica (2009). No trabalho de ambos encontramos uma tentativa de diagnóstico sobre a constituição histórica da subjetividade humana e como essa diagnose nos permite um diálogo com a atualidade. Nesse sentido, a ontologia histórica tem um objetivo duplo: por um lado, analisar e compreender o modo como nos constituímos sujeitos; e, por outro lado, diagnosticar o presente problematizando e questionando o que nós somos na atualidade. Foucault (1984b/2017b), no seu texto “O que é o Iluminismo?”, refere-se à ontologia histórica de nós mesmos como um meio através do qual podemos experienciar uma ética filosófica que poderia ser caracterizada como: a) uma crítica permanente de nosso ser histórico (p. 1390); b) uma forma de reflexão que diz respeito apenas ao modo de relação reflexiva com o presente (1391); c) uma crítica do que nós dizemos, pensamos e fazemos (p. 1393).

Cet êthos philosophique peut se caractériser comme une attitude limite. Il ne s’agit pas d’un comportement de rejet. On doit échapper à l’alternative du dehors et du dedans ; il faut être aux frontières. La critique, c’est bien l’analyse des limites et la réflexion sur elles. […] la question critique, aujourd’hui, doit être retournée en question positive : dans ce qui nous est donné comme universel, nécessaire, obligatoire, quelle est la part de ce qui est singulier, contingent et dû à des contraintes arbitraires. Il s’agit en somme de transformer la critique exercée dans la forme de la limitation nécessaire en une critique pratique dans la forme du franchissement possible (Foucault, 1984b/2017b, p. 1393).

Assim, a crítica torna-se genealógica na sua finalidade - porque analisa a emergência e proveniência de “conjuntos práticos” - e arqueológica no seu método - porque trata os discursos que articulam o que dizemos e fazemos como eventos históricos (Foucault, 1984b/2017b, p. 1394). Para o autor de História da Loucura, os “conjuntos práticos” dizem respeito a três grandes domínios: a) o das relações de domínio sobre as coisas; b) o das relações de ação com os outros; c) o das relações consigo mesmo (1984b/2017b, p. 1395). Acrescenta-se que estes domínios devem ser questionados a partir de três eixos cuja especificidade e complexidade devem ser analisadas: o eixo do saber, o eixo do poder e o eixo da ética. Por outras palavras, a ontologia histórica de nós mesmos tem a ver com um número indefinido de investigações que podemos multiplicar e especificar o quanto quisermos; mas todas responderão à seguinte sistematização: como nos constituímos como sujeitos do nosso conhecimento; como nos constituímos como sujeitos que exercem, ou sofrem relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais das nossas ações.

L’ontologie critique de nous-mêmes, il faut la considérer non certes comme une théorie, une doctrine, ni même un corps permanent de savoir que s’accumule ; il faut la concevoir comme une attitude, un êthos, une vie philosophique où la critique de ce que nous sommes est à la fois analyse historique des limites qui nous sont posées et épreuve de leur franchissement possible. Cette attitude philosophique doit se traduire dans un travail d’enquêtes diverses ; celles-ci ont leur cohérence méthodologique dans l’étude à la fois archéologique et généalogique de pratique envisagées simultanément comme type technologique de rationalité et jeux stratégiques des libertés ; elles ont leur cohérence théorique dans la définition des formes historiquement singulières dans lesquelles ont été problématisées les généralités de notre rapport aux choses, aux autres, et à nous-mêmes. Elles on cohérence pratique dans le soin apporté à mettre la réflexion historico-critique à l’épreuve des pratiques concrètes (Foucault, 1984b/2017b, pp. 1396-97).

Mantendo os três eixos cardeais - poder, saber, ética -, a proposta de Hacking é mais circunscrita do que a de Foucault. De certo modo, ele procura estudar como é que as entidades passam a ser coisas, classificações, ideias, tipos de pessoas, povos, instituições etc. Para Hacking (2009), a “sua” ontologia histórica diz respeito a objetos, ou aos seus efeitos, que não existem em qualquer forma reconhecível até que sejam alvos de estudos científicos (p. 23). No fundo, Hacking traça o problema do “passar a existir” como histórico e, ao pensar sobre como nos constituímos a nós mesmos, estava interessado em diagnosticar e compreender modos possíveis de ser pessoa. A diagnose é realizada “pelo rastreamento e circunscrição dos dispositivos, ou dos ‘jogos de verdade’, que fazem ser”. Trata-se, portanto, de questionar os “limites”, aqui entendidos como formas de pensar e agir, que constituem o pano de fundo que enquadra o nosso comportamento (Foucault, 1984a/2017a). Ora, uma crítica dos limites seria então uma análise de como nos constituímos como sujeitos que pensam e agem de forma particular a fim de abrir novos espaços de pensamento e ação. Nesse sentido, as problematizações ancoradas na ontologia crítica podem ser organizadas a partir de três questões inter-relacionadas: a) como somos constituídos como sujeitos do nosso próprio conhecimento? b) Como somos constituídos como sujeitos que exercem, ou se submetem a relações de poder? c) Como somos constituídos como sujeitos morais das nossas próprias ações? (Foucault, 1984a/2017a, p. 1395)

A partir destes três eixos ontológicos podemos considerar o problema do desenvolvimento infantil e a sua relação com a delimitação de modos de ser pessoa como algo possível de analisar sob este prisma. Especificamente, questionar como a ideia de desenvolvimento figura na constituição de “eus” infantis e de modos de ser criança normalizados. Porém, importa compreender o projeto de ontologia histórica não como um “gesto de rejeição”, refutando tudo, mas antes como uma crítica às práticas discursivas no sentido de pensar possíveis transformações. Temos, assim, que o objetivo da ontologia crítica é examinar ideias e princípios que organizam as nossas formas habituais de pensar e agir de modo a pensar e agir de forma diferente.

Então, o objetivo deste ensaio é duplo: i) problematizar o conceito de desenvolvimento e sob que condições é incorporado pelo discurso e pela prática no modo como produz um modelo de desenvolvimento infantil que determina modos de ser e, ainda, ii) questionar como se produz o “sujeito psicológico” nos últimos 200 anos a partir da infância. Embora parta do ponto de vista metodológico dos escritos histórico-filosóficos, procurarei, também, questionar como o mesmo dispositivo opera a partir da área disciplinar da psicologia. Nesse sentido, trata-se de um exercício que desafia as nossas assunções sobre o que sabemos e como agimos relativamente às pessoas de pouca idade e ao modo como a ideia de desenvolvimento infantil informa os limites dessa relação ética. Problematizar os limites do saber que damos como garantido no modo como pensamos, agimos e nos relacionamos com sujeitos/as de pouca idade é uma oportunidade de assumir uma atitude “crítica permanente”, de fazer uma crítica ontológica de nós mesmos. No caso em apreço, o mesmo é dizer que, ao ousar utilizar o termo arqueologia no título deste ensaio, estou a tentar dizer que me interessa o nexo estabelecido entre saber-poder (não entre o saber e o poder enquanto totalidades, mas sim entre um saber que define princípios gerais reconhecidos como verdade e/ou científicos, e um poder que exerce um incitamento específico de práticas dirigidas à infância de acordo com o primeiro). Trata-se de problematizar um nexo de saber-poder que nos permita pensar o sistema da educação da infância a partir da ideia de desenvolvimento infantil. Trata-se, então, de uma tentativa de olhar para a aceitabilidade histórica da ideia de desenvolvimento no próprio momento em que é observável enquanto saber e poder que governa a vida das crianças e delimita os seus modos de ser possíveis. Este seria o nível da arqueologia que aqui se pretende problematizar.

inventando pessoas, ou modos de ser…

O problema de como nos constituímos no que somos tem sido amplamente estudado desde os trabalhos pioneiros de Michel Foucault. Muito ancorados nos seus contributos, autores como Ian Hacking (2009) e Arnold Davidson (2019) realizaram diversas pesquisas sobre como classificar pessoas cria, ou elimina, possibilidades de ser. Nessa linha de pensamento, Hacking (1995, 1998) escreveu diversos textos sobre como a estatística do desvio e a necessidade de analisar e categorizar os comportamentos da população de um determinado período e contexto sócio-histórico contribuíram para “inventar pessoas”. O autor (1998) não esconde a influência que o trabalho de Foucault teve no modo como foi construindo os seus argumentos relativamente à “invenção de pessoas”. Em concreto, destaca a preponderância dos estudos em que o filósofo francês se dedicou a analisar a “constituição de sujeitos” a partir do século XIX, preocupado em descobrir como é que estes são gradualmente instituídos através de uma multiplicidade de organismos, forças, energias, materiais, desejos e pensamentos. Para Hacking (1996), a “invenção de tipo de pessoas” surge, a partir do século XIX, fortemente ancorada no que denominou de metaconceito “normal”. Ao considerar-se o adjetivo “normal” como metaconceito, assume-se que ele só tem significado em conjugação com um nome numa frase: por exemplo, uma criança normal. O autor (1996) refere que a ideia de normalidade acabou por assumir-se como um “modo de pensamento” de direito próprio (p. 61). Com isto, Hacking procura expressar que pensar sobre o que é normal, ou não, e preocuparmo-nos com a anormalidade (por oposição à primeira) tornou-se uma característica endémica tanto da cultura popular, como da cultura científica. A questão adensa-se uma vez que, para além de se classificar tipos de pessoas, hierarquizam-se e distribuem-se as características dentro dessa classificação tendo como referência a noção de “normal”, entretanto construída e validada cientificamente. Nesse sentido, importa que questionemos como a ideia de normalidade se tornou, para além de um modo de pensamento, uma forma de conhecimento que conceptualiza modos de ser pessoas e, também, os seus comportamentos. Parte da ideologia da normalidade sustenta-se na premissa de que é neutra, objetiva e uma forma de avaliar o que uma coisa é. Até pode ser, mas simultaneamente é um poderoso instrumento que afirma o que uma coisa deve ser e, ao fazê-lo, introduz um conjunto de práticas e discursos que operam sem cessar nesse sentido e nessa direção (p. 71).

Tal como a Hacking (2009), interessa-me questionar até que ponto a invenção de pessoas está intimamente ligada ao ato de controlar e, no caso das crianças em concreto, até que ponto a sua invenção é recente no contexto europeu. O autor de Ontologia Histórica (2009) afirma que a franca proliferação de rótulos que engendraram mais tipos de pessoas começou no século XIX associada a uma linguagem médico-forense-política que se consolidou mediante um sólido eixo de saber-poder. Porém, o que é instigante na proposta de Hacking é a sua alegação de um nominalismo dinâmico no modo como se inventam pessoas. O mesmo é dizer que um tipo de pessoa passa a existir no preciso momento em que está a ser inventada. Para esta ideia muito contribui que a “ação humana, de um modo geral”, se faça deliberadamente depender das “possibilidades de descrição” (p. 125) que emergem ao longo da história. Ora, se novos modos de descrição passam a existir, novas possibilidades de ação passam a existir em consequência.

Assim, a ideia de inventar pessoas é enriquecida; ela se aplica não aos desafortunados eleitos, mas todos nós. Não é apenas a invenção de pessoas de um tipo que não existia antes: não são apenas a pessoa dividida e o garçon inventados, mas cada um de nós é inventado. Somos não apenas o que somos como também o que poderíamos ter sido, e as possibilidades do que poderíamos ter sido são transformadas (Hacking, 2009, p. 127).

Desta forma, Hacking remete-nos para a possibilidade de a invenção de pessoas estar relacionada com duas formas possíveis de discurso de “verdade”. Uma que é orientada para o futuro e outra que é orientada para o passado. Ora, ao tomarmos o sujeito criança como o elemento da nossa análise, pode perspetivar-se que o discurso de verdade orientado para o futuro se relaciona com o por vir enquanto possibilidade desejável, enquanto o discurso de verdade, orientado para o passado, descreve a existência prévia mediante uma estatística de normalidade. Um e outro são processos de rotulação que, num certo sentido, entrincheiram a infância num permanente “situar-se entre”, num limbo orientado para o que cada criança deve tornar-se; seja por comparação com o passado dos seus “semelhantes normais”, seja pelo futuro que os adultos lhes antecipam como útil. O argumento que se desenvolve, em seguida, é precisamente como uma certa ideia de criança “normal” se constituiu a partir da consolidação do campo disciplinar do desenvolvimento infantil.

a ideia de desenvolvimento infantil e a criança moderna como tipo de pessoa: entre a normalidade e o desvio

É difícil relacionarmo-nos com pessoas de pouca idade sem que a necessidade de se desenvolverem, mesmo que não seja sempre muito claro o quê e como, esteja de algum modo presente. Trata-se de uma prática discursiva enraizada no interior das sociedades europeias desde o século XIX (Smith, 2014; Lee, 2013). Neste caso, o recurso à ontologia histórica possibilita analisar como é que a ideia de desenvolvimento infantil se naturalizou, enquanto contribuiu para inventar tipos de pessoas e, desse modo, consubstanciar-se num eixo saber-poder que inventa e delimita modos de ser criança. Questionar o desenvolvimento infantil não é o mesmo que negar as rápidas e sucessivas mudanças que ocorrem nos primeiros anos de vida, mas antes, como uma visão científica de desenvolvimento, produzida maioritariamente na Europa e na América do Norte, ancorada na estatística, na medicina e na psicologia, se tornou uma prática discursiva que se impôs (e impõe) no governo da conduta e cognição desde o nascimento. Para este processo de consolidação e validação dos discursos produzidos em redor do desenvolvimento infantil muito contribuiu a educação de infância que se assumiu como um dos veículos de produção de subjetividades infantis, podendo inclusive ser entendida como um rito de iniciação (Almeida & Boto, 2022; Almeida & Boto, 2023) ao por vir adulto.

Vários trabalhos têm estudado como a ideia de desenvolvimento infantil está fortemente vinculada às práticas em educação de infância (Henriques et al., 2003), destacando o modo como as pessoas sempre estiveram, desde a emergência e proveniência da ciência do desenvolvimento, conscientes de que as crianças crescem, ou se “desenvolvem” a diferentes ritmos. Já antes, autores considerados clássicos, como Platão, Hobbes, Locke ou Rousseau, destacaram a especificidade da infância, atribuindo às crianças um conjunto de características e de necessidades educativas para se tornarem bons cidadãos. No entanto, os indivíduos em geral e as crianças em particular ainda não eram objetos de conhecimento científico nos respetivos períodos em que estes autores escreveram as suas obras. A ideia de que existe um ritmo de desenvolvimento que pode ser comparado entre indivíduos ainda não se tinha estabelecido. Uma vez adquirida essa medida, o desenvolvimento, como norma, pôde ser implantado na gestão detalhada dos indivíduos (Rose, 1998) e, em concreto, na condução da vida das crianças desde o seu nascimento. As técnicas e tecnologias para tal conhecimento não seriam inventadas antes de meados do século XIX (Wong, 2007), onde se estabeleceu definitivamente um nexo entre práticas educativas, desenvolvimento e aprendizagem. Importa, por isso, que discutamos como é que a ideia de desenvolvimento se tornou um princípio organizador central na forma como pensamos e interagimos com as crianças. Além disso, é essencial examinar como esse pensamento desenvolvimentista pode, por um lado, inventar tipos de pessoas e, por outro, colocar limitações sobre quem os indivíduos podem tornar-se fora de uma ideia de “normalidade” aceita como referência. A emergência desse paradigma e o seu impacto nas crianças e na organização das práticas dos seus prestadores de cuidados será o foco da discussão que se segue.

Um dos eixos de análise relevantes para enquadrar a consubstanciação da ciência do desenvolvimento a partir do século XIX é situá-lo no interior do “novo sentimento de infância” proposto por Philippe Ariés. Embora atualmente se critique o anacronismo de algumas das análises de Ariés (Archard, 1993), o trabalho do historiador francês foi essencial para compreender que as sociedades do antigo regime não tinham o nosso conceito de infância e de criança. Mais do que negar a existência de uma noção de infância, o seu trabalho permite problematizar em que medida a infância e a ideia de criança são uma construção histórica. Como vimos anteriormente, esta dimensão ontológico-histórica está presente no modo como se fabricam conceitos e consolidam práticas discursivas. A este propósito, Vallera e Almeida (2021), procuraram problematizar a construção histórica da infância a partir do conceito agenciamento (Deleuze & Guattari, 2007). Nesse sentido, consideraram a hipótese de um agenciamento-criança constituir uma permanente tensão entre forças, uma dobra (Vallera & Almeida, 2021; Almeida & Boto, 2022). Por um lado, um agenciamento histórico; por outro, um agenciamento enquanto possibilidade. O primeiro territorializa e delimita a criança como um sujeito que tende a ser produzido no interior de um discurso de verdade sobre o que ela pode e o que ela não pode ser; o segundo, entendido enquanto desterritorialização, enquanto pura potência e novidade, enquanto devir, indeterminado (Vallera & Almeida, 2021), dando espaço para, tal como Kohan (2013) sugere, ao novo e aos novos, ao desconhecido e ao imprevisto.

Retomando o problema do agenciamento histórico, tanto Vallera e Almeida (2021) quanto Almeida e Boto (2022) conceptualizam-no em três movimentos que se expressam na atribuição de uma natureza, um método e um ideal (Almeida & Boto, 2022). Em ambas as pesquisas (Vallera & Almeida, 2021; Almeida & Boto, 2022) foram considerados os discursos filosóficos e pedagógicos de Rousseau, Pestalozzi e Froebel que marcadamente contribuíram para a construção histórica de uma ideia de natureza da criança e enunciação de um conjunto de práticas para a condução da sua conduta e do seu corpo (método) em direção a um ideal de ser humano. Ora, dando continuidade ao argumento deste ensaio, o que se procura expressar ao convocar estes três movimentos é que a “ideia” de criança moderna surge associada a uma construção história e a técnicas de subjetivação (métodos e materiais) que procuram produzir “modos de ser criança” (por exemplo, “criança autónoma,criança ativa,criança livre,criança autogovernada”) totalmente subordinados a determinados ideais de existência: criar o nobre, produzir o bom cristão, engendrar o sujeito útil ao Estado, entre outros. Estes três movimentos sugerem um gesto que captura e determina a alma infantil através da educação da infância, instaurando um regime discursivo que define e circunscreve modos de ser (Almeida, 2019).

Porém, os contributos destes três autores foram realizados a partir de observações isoladas, traduzindo-se em escritos baseados nas suas intuições e pontos de vista particulares. Ao contrário de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, Adolphe Quétélêt, um astrónomo e estatístico belga que viveu entre 1796 e 1874, sugeriu, à semelhança das leis da astronomia, que também o desenvolvimento humano deveria ser alvo de uma observação sistemática que permitisse estabelecer, em média, que características uma pessoa deveria ter em diferentes pontos, ou fases do seu desenvolvimento. Para ele, esta figura do “homem médio” deveria ser considerada um modelo a seguir por um determinado grupo, num determinado tempo sócio-histórico específico. No fundo, as características do homem médio deveriam servir de padrão para o que é normal e saudável numa determinada população. O que Quétélêt introduz com os seus valores médios, como normas, não são meras construções aritméticas. Os seus valores afetam a vida das pessoas: normal conota a saúde, e anormal sugere desvio. As pessoas são motivadas, portanto, a moldarem-se de acordo com tais normas (Wong, 2007). Tomado este ponto de vista, o mesmo é dizer que quando pensamos em desenvolvimento infantil, facilmente compreendemos que as motivações para o exercício de certas práticas sejam a confluência para a produção de uma certa ideia de criança normal, ou saudável. Disso mesmo nos dá conta Hacking (1996, p. 62), para quem a Revolução Francesa, ao dar-nos as écoles normales, estabeleceu os padrões para uma educação bem regulamentada de cidadãos revolucionários. Estabeleceram-se, assim, as normas de ensino, o que deveria ser feito e o que deveria ser requerido. Ou seja, o normal seria aqui constituir o “padrão” através do processo educativo.

Este olhar antropométrico foi diligentemente transposto para o estudo das crianças e para a medição das suas características físicas e mentais. Medidas, valores normais e normas passaram a figurar no modo como se estabelece um padrão de "normalidade" em diferentes idades.. Os trabalhos sobre a medição da capacidade intelectual proliferaram rapidamente na medida em que os “valores normais” obtidos permitiram às instituições educativas adequar e justificar as suas tecnologias de governo no sentido de desenvolver, produzir e moldar as crianças nos cidadãos do futuro. Este interesse foi particularmente elevado relativamente aos testes de inteligência na medida em que esses eram, à época, o quesito considerado específico e distintivo entre humanos e animais. Isto é, a inteligência era considerada o que era natural e específico do humano e, por isso, desejável desenvolver ao longo da vida (Wong, 2004). Hoje, para além da inteligência, somos levados a considerar todo um conjunto alargado de competências e habilidades, igualmente testadas, no sentido de avaliar o grau de adequação do desenvolvimento e da aprendizagem das crianças ao padrão de normalidade de uma determinada sociedade.

O recurso à estatística como forma de produzir valores médios, atribuindo a esses resultados o sentido de “normalidade”, foram definindo um conjunto de comportamentos e aquisições “normais” para cada uma das idades. Esses indicadores, produzidos a partir da emergente psicologia da criança, passaram a informar e orientar as práticas educativas (Henriques et al. 2003). Tomemos como exemplo a obra Adolescence de Stanley Hall (1904). Esta obra foi de certa forma pioneira na sistematização de métricas que enquadram e definem etapas específicas no desenvolvimento infantil, tendo se tornado um exemplar paradigmático no modo com a norma se consubstanciou reguladora e estruturante na invenção de tipos de pessoas. Neste caso em concreto, na invenção do adolescente enquanto tipo de pessoa, com características e formas de estar consideradas “normais” e “adequadas” (Popkewitz, 2018).

Traçando uma genealogia deste modo positivista de considerar o desenvolvimento humano, encontramos, a partir do início do século XX, a emergência de uma sistematização de dados que definem e enquadram comportamentos espectáveis para as mais diversas idades. São introduzidos vários instrumentos que ultrapassam os questionários propostos por Hall, dando conta de formas cada vez mais sofisticadas de recolha de informação. Vejamos o trabalho de Binet e Simon (1916), que introduz os conceitos de “idiotice”, idade mental e de idade cronológica para avaliar e comparar a inteligência entre sujeitos, diagnosticando-os.

If the physician gives a child the diagnosis of profound idiocy or of imbecility, it is not because the child does not walk, nor talk, has no control over secretions, is microcephalic, has the ears badly formed, or the palate keeled. The child is judged to be an idiot because he is affected in his intellectual development. This is so strikingly true that if we suppose a case presented to us where speech, locomotion, prehension were all nil, but which gave evidence of an intact intelligence, no one would consider that patient an idiot. It results from these observations that the directing principle of the preceding classifications does not seem to us correct. The view is lost that here it is a question of inferior states of intelligence, and that it is only by taking into account this inferiority that a classification can be established. In other words a classification of idiocy is a clinical classification to be made by means of psychology (p. 22).

A atribuição de um papel relevante à psicologia para o diagnóstico e avaliação da normalidade, ou idiotice, é um dos eixos fundadores do carácter normalizador que ela adquiriu. Esta lógica de sistematização, estabelecida a partir de uma descrição pormenorizada do comportamento e de uma regularização de valores médios ancorados na estatística, fez escola e rapidamente se tornou o modo “científico” de encarar e sistematizar o desenvolvimento infantil. Outro exemplo deste processo de sistematização é o trabalho desenvolvido pelo psicólogo Arnold Gesell (1928), que acrescenta como justificação para o estudo da infância a sua relação com o adulto por vir.

Although we cannot say to what extent the infant stamps and makes the man, we may safely believe that the more fundamental life characteristics of the early ontogenetic stages will also be found in the late stages. The infant grows, the child grows, and also the youth and the adult. There must be some essential continuity in this growth. The growth characteristics of the infant must therefore pre- figure in some ascertainable manner the growth characteristics of maturer years and even behavior traits of those years (p. 20).

O que parece claro nesta formulação do psicólogo americano é a relevância de enquadrar o desenvolvimento da criança como um entre caminhos. Por um lado, ainda não é um adulto e, por outro, tudo o que acontece neste período pode estar relacionado com o adulto que vier a tornar-se. No fundo, é como se o discurso psicológico tivesse assumido o lugar de mediador no processo de adultização da criança. Trata-se de um marcador do ponto de situação do desenvolvimento e um indicador do caminho a percorrer. Mas mesmo antes, muito antes de a criança ser bombardeada com um conjunto de tarefas e rotinas que visam o seu desenvolvimento, foram estabelecidos indicadores para a marcação do feto como um ser em desenvolvimento. Atualmente, pais, educadores, prestadores de cuidados de saúde e burocratas tomam como certo que é da natureza das crianças que elas “se desenvolvem”, isto é, o seu crescimento é governado por normas de desenvolvimento, numa espécie de psicologização das suas vidas: tudo o que as crianças fazem, ouvem, veem, experimentam, contribui, de algum modo, para seu desenvolvimento e aprendizagem. Tais práticas e atitudes enraizaram o conceito de desenvolvimento na nossa cultura. Permanece, porém, a questão: como ir para além dos limites da normalização e do futuro outorgado nas práticas educativas dirigidas às crianças pequenas?

Lembrando os três tipos de questões examinadas pela ontologia crítica - “como somos constituídos como sujeitos do nosso próprio conhecimento? Como somos constituídos sujeitos que exercem ou se submetem a relações de poder? Como somos constituídos sujeitos amorais das nossas próprias ações”? (Foucault, 1984, p. 1395) -, o que aqui se procura expressar é que as pessoas de pouca idade se tornaram objetos de conhecimento e como isso afetou a sua vida e as relações de poder com os seus cuidadores. Relações de poder poucas vezes problematizadas e orientadas para circunscrever presente e futuro das crianças ao seu cuidado. Daqui resulta, no contexto desta análise, que tais relações são informadas pelo pensamento desenvolvimentista, aproximando a agenda das organizações socioeducativas à ideia de uma produção em massa, em que o contexto educativo e o que lá se passa, tal como uma “estufa”, deve proporcionar as condições “perfeitas” para o que se antecipa ser o “produto desejado” - um adulto conforme e alinhado às necessidades do presente. Com isto, procura-se expressar que as organizações socioeducativas destinadas às pessoas de pouca idade incorporaram nas suas práticas os discursos científicos que delimitam e desenham os percursos possíveis e prováveis que uma criança deve trilhar para atingir uma visão de potencial humano estabelecida e definida no interior das sociedades neoliberais. A própria noção de potencial humano, amplamente aceita e considerada nos discursos educacionais, remete-nos para uma noção de futuro, para uma visão do que a pessoa de pouca idade ainda não é, mas pode, sob as condições certas, vir a tornar-se (Rose, 1998).

Daí que os modelos pedagógicos, o que se propõe enquanto prática, resultem, muitas vezes de forma não consciente pelos/as profissionais, de uma visão adultocêntrica que serve a um modelo de sociedade antecipado como desejável. A relação entre crianças e educadores/as é informada pelo conhecimento que temos sobre o desenvolvimento infantil, os seus propósitos e a sua cientificidade. E esse conhecimento também moldou e molda a forma como pensamos sobre as nossas responsabilidades ao cuidar das crianças. Trata-se, portanto, de um projeto político produzido no interior da modernidade europeia. Por isso, uma das perguntas que podemos fazer é: até que ponto temos presente o modo como os discursos produzidos no interior de uma suposta cientificidade camuflam e outorgam modos de ser criança que servem a um projeto político?

uma tentativa de diálogo com a contemporaneidade

Se tomarmos a invenção de pessoas, na perspetiva da ontologia histórica, podemos problematizar como este saber disciplinar se tornou um princípio geral de organização nas sociedades europeias, permitindo uma contingência histórica com a contemporaneidade. O que parece perpetuar é, de certa forma, a sua matriz de definir, a partir de uma racionalidade reconhecida como científica, um modo e uma forma de ser criança normal. Seja uma criança ativa, curiosa, autorregulada, autónoma, participativa, social, curiosa, criativa ou saudável, o saber contribui para produzir um conjunto de narrativas que definem como deve uma criança ser. Narrativas produzidas agora por instituições, organizações supranacionais como a OCDE e o Banco Mundial. Importa, por isso, questionar as práticas discursivas que outorgam às pessoas de pouca idade uma existência como capital e potencial humano.

Estudos sobre o papel da criança, dos educadores e sobre a relação pedagógica (Arndt et al., 2021; Davies, 2010; Friedmann, 2020) evidenciam o problema da visão paternalista e da menorização das crianças que atribui ao adulto o poder de analisar e interpretar o desenvolvimento delas, produzindo discursos e práticas de homogeneização que não consideram a multiplicidade e outros modos de ser à semelhança do que outras epistemologias sobre a infância nos têm dado a conhecer (Noguera & Barreto, 2018; Souza & Carvalho, 2021).

A investigação histórica sobre o desenvolvimento infantil evidencia que esta ideia não pode ser oferecida de forma limpa: ou se aceita o desenvolvimento ou se rejeita. Mas, ao apreender o funcionamento dos efeitos da normalização do conhecimento sobre o desenvolvimento infantil nos indivíduos, passamos a possuir uma base de conhecimentos mais rica para problematizar as práticas educativas destinadas às pessoas de pouca idade. Ao escolhermos o conhecimento sobre o desenvolvimento infantil, talvez em conjunto com outros modelos de como as crianças crescem, estamos a fazer perdurar os efeitos normalizadores de tal conhecimento. Não obstante, as transformações nas sociedades de controle contemporâneas têm implicações profundas nas questões relacionadas à normalidade e ao desenvolvimento infantil. O “saber disciplinar” proposto por Foucault, vinculado a instituições disciplinares e padrões normativos, está sendo desafiado pelas dinâmicas mais fluidas e personalizadas de controle nas sociedades contemporâneas, seja através da “digitalização” da vida, seja através de uma maior consciência da interseccionalidade que importa reconhecer no modo como o “saber disciplinar” é produzido e afeta as dinâmicas do eixo saber-poder. Isso configura-se um desafio suplementar, já que requer que a nossa atenção não se centre exclusivamente no modo como as estruturas tradicionais, como é disso exemplo a escola, exercem esse efeito de normalização, mas como e a partir de onde são produzidas relações éticas que vinculam uma certa ideia de normalidade e desvio.

Nesse sentido, o que procurei expressar é que o mecanismo que opera é sempre o mesmo, o de produzir tipos de pessoas com “modos de ser” totalmente normalizados e integrados nas demandas de um futuro que antecipamos como possível ou provável. O mecanismo opera no sentido de nos governar a todos desde o princípio universal da individualidade humana, da individualidade de cada um (Rose, 1998). Sobre isto, Rose (1998) expressa que as práticas éticas de conduta nas sociedades contemporâneas vão no sentido de um “aconselhamento prático, como os do modo em que cada um se deve preocupar-se consigo mesmo, fazer de si mesmo objeto de atenção e solicitude, conduzir-se de várias formas na existência do dia-a-dia” (p. 30). Ora, o mesmo é dizer que somos governados e subjetivados em categorias, que não assumimos como impostas, a partir das ideias e taxonomias que circulam e que nos constituem integralmente. Ideais e taxonomias que não estão mais sob a égide exclusiva das estruturas tradicionais de poder, mas difusas e diluídas por um largo espectro de lugares e relações. Nos dias de hoje, somos impelidos a considerar “normal” a produção de sujeitos criativos, autónomos, críticos, empreendedores, flexíveis, digitais, mas também obedientes, sociais, democráticos e participativos. No fundo, este saber produzido e veiculado em redor da infância está ao serviço do “como” governar nesta ou naquela direção, produzindo a “ciência” que legitima e concretiza a produção de indivíduos totalmente governados a partir das máximas de liberdade e autonomia que são sempre balizadas e enquadradas em relações de poder com os vários governadores da alma. Assumimos a liberdade e a autonomia de escolher entre “modos de ser” que, na verdade, nos são impostos, mais do que propostos.

O que parece claro é que continua a operar o mecanismo que nos trouxe até aqui. É necessário avaliar e monitorizar a infância para “produzir” melhores adultos, mesmo que a partir de si mesmos. E por melhores entenda-se adultos mais próximos do que se imagina ser necessário para o tempo por vir. O mesmo é dizer que tal gesto implica que sejamos capazes de problematizarmos as práticas discursivas nas quais fomos constituídos e subjetivados, o que na letra de Foucault e Deleuze constituiu uma possibilidade de pensar outros modos de existência, como um ato de resistência, que cria e abre outros modos de nos relacionarmos e de estabelecermos relações eticamente situadas com as pessoas de pouca idade, dando espaço, tal como Kohan (2013) sugere, ao novo e aos novos, ao desconhecido e ao imprevisto.

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Recebido: 22 de Maio de 2023; Aceito: 11 de Setembro de 2023

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