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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.20  Rio de Janeiro jan./dez 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.12957/childphilo.2024.79258 

Artigos

infâncias, juventudes e sexualidades na escola em tempos de neoconservadorismo e pós-fascismo

childhoods, sexualities and the school in times of neoconservatism and post-fascism

infancias, jóvenes e sexualidades en la escuela en tiempos de neoconservadurismo y posfascismo

Iuniversidade federal de são paulo (unesp), s. paulo, brasil - E-mail: tassioacosta@gmail.com

IIuniversidade estadual de campinas (unicamp), s. paulo, brasil - E-mail: gallo@unicamp.br


resumo

Este trabalho busca analisar os desdobramentos da relação entre infâncias, juventudes e sexualidades que se apresentam nas escolas em tempos de cerceamentos e perseguições presentes na última década à escola. Falar de infância é discorrer sobre corpos e, justamente por isso, é indissociável da sexualidade. As relações interpessoais que ocorrem nos espaços escolares são imprescindíveis para socializações com vidas outras. No entanto, após a censura da temática de gênero e sexualidades nos planos educacionais recentes, bem como na Base Nacional Comum Curricular, e frente às sistemáticas perseguições aos professores interessados em sua discussão, nosso intuito é indagar o lugar do corpo e da sexualidade na escola, sobretudo em tempos de neoconservadorismo e pós-fascismo. Enquanto definição, entendemos por neoconservadorismo os novos agenciamentos que a matiz conservadora se utilizou para a sua consolidação na população brasileira; e, por pós-fascismo, as novas esferas de sociabilidades a partir de pragmatismos à identificação de valores comum na sociedade na promoção do pânico moral. Para sustentarmos nossa análise, utilizaremos três cenas escolares de educação para a sexualidade, entendidas aqui como práticas de resistências. Estas, muito embora recentemente vistas na sociedade como responsáveis pela destruição da família tradicional brasileira (de base heteronormativa), são valorizadas para a promoção de infâncias seguras.

palavras-chave: infâncias; sexualidades; neoconservadorismo; pós-fascismo

abstract

This paper seeks to analyze various developments in the relationship between childhoods, youth and sexualities that have appeared in public schools in the era of restriction and persecution that has characterized sex education over the course of the last decade in Brazil. To speak about childhood is to speak about bodies and as such, to speak about sexuality, and the interpersonal relationships that occur in school spaces, which are primary, essential sites of sex and gender socialization. As such, in the face of the censorship imposed on these themes in recent educational plans and policies, as well as in the National Common Curricular Base, and in the face of the systematic persecution of teachers interested in exploring these issues, our intention in this paper is to investigate the place of the body and sexuality in school settings, especially in times of neoconservatism and post-fascism. By the former, we understand those new agencies that promote and propagandize a set of reactionary values among the Brazilian population; by the latter, we mean those spheres of sociability and collective action and reaction that function in an atmosphere of moral panic, and promote an ideology saturated by both implicit and explicit violence and repression. To support our analysis, we explore three school settings whose practice of sexuality education acts to resist neoconservative and post-fascist norms. These three cases, vilified as they are in the right wing mainstream as being responsible for the destruction of the traditional heteronormative Brazilian family, should, we argue, be valued as educational practices that promote safe childhoods and positive social reconstruction.

keywords: childhoods; sexualities; neoconservatism; post-fascism

resumen

El presente trabajo busca analizar los desarrollos en la relación entre infancias, jóvenes y sexualidades que aparecen en las escuelas en tiempos de restricciones y persecuciones presentes en la última década en la escuela. Hablar de infancia es hablar de cuerpos y, precisamente por eso, es inseparable de la sexualidad. Las relaciones interpersonales que se dan en los espacios escolares son fundamentales para la socialización con otras vidas. Sin embargo, luego de la censura del tema de género y sexualidades en los recientes planes educativos, así como en la Base Curricular Común Nacional, y ante la persecución sistemática de docentes interesados ​​en su discusión, nuestra intención es investigar el lugar de la Cuerpo y sexualidad en la escuela, especialmente en tiempos de neoconservadurismo y posfascismo. En cuanto a las definiciones, entendemos por neoconservadurismo los nuevos agenciamientos de los que el tono conservador se sirvió para consolidarse en la población brasileña y, por posfascismo, las nuevas esferas de sociabilidad basadas en el pragmatismo y en la identificación de valores comunes en la sociedad para promover el pánico moral. Para sustentar nuestro análisis, utilizaremos tres escenas escolares de educación sexual, entendidas aquí como prácticas de resistencia. Éstas, aunque recientemente vistas en la sociedad como responsables de la destrucción de la familia tradicional brasileña (basada en la heteronormatividad), son valoradas por promover infancias seguras.

palabras clave: infancias; sexualidades; neoconservadurismo; posfascismo

infâncias, juventudes e sexualidades na escola em tempos de neoconservadorismo e pós-fascismo

indicações iniciais

Este artigo parte da problematização referente à construção dos discursos sobre infâncias e sexualidades na sociedade moderna e das formas em que estes discursos se apresentam nos dispositivos familiares, educacionais e sociais em tempos que tais temáticas se tornaram proibidas nas escolas e que professores são perseguidos quando as abordam.

Desde 2014, quando do recuo do governo de Dilma Rousseff à implementação do Programa Escola Sem Homofobia, cunhado de Kit Gay pela bancada conservadora do Congresso Nacional, à supressão da temática de gênero e sexualidades dos Planos Educacionais e da Base Nacional Comum Curricular, no governo Temer, em 2016, até a perseguição aos professores e pesquisadores, no governo Bolsonaro, entre 2018 e 2022, o Brasil tem vivenciado inúmeros retrocessos nas políticas educacionais.

Colocar a criança na centralidade do discurso da sexualidade é uma forma de produzir corpos dóceis, capazes de corresponder aos anseios sociais, uma vez que “o sexo se inscreve no futuro” (Foucault, 2012, p. 12) e fazer uso da heteronormatividade é uma forma de silenciar os dissonantes a ela. A medicina evoluiu significativamente a partir do momento em que começou a se dedicar a esquadrinhar a população em suas métricas e padrões, em suas “técnicas polimorfas do poder” (Foucault, 2012, p. 18), evidenciando indivíduos e corpos.

A sua manutenção discursiva coaduna para a existência de técnicas sistemáticas e precisas de controle social, construção e produção de comportamentos, estruturando uma “ciência da sexualidade”. A explosão discursiva a este respeito possibilitou um maior aprofundamento na questão social a partir do século XVIII, conforme pontuado por Michel Foucault, cuja presença ainda vemos de forma bastante elaborada quando se trata dessa questão.

Moruzzi e Abramowicz (2023) destacam que “sobre o corpo da criança interpela-se variados dispositivos de saber e poder; […] que reverberam saberes em relação às crianças que impedem que as escutemos” (p. 80). Este esquadrinhamento do corpo populacional, bastante trabalhado nas obras de Foucault (2008a, 2008b, 2010, 2014), gera discursos de verdade sobre as infâncias.

Em uma dissertação de mestrado sobre os atravessamentos familiares, escolares e sociais presentes nas vivências de transexuais e travestis de Sorocaba (Acosta, 2016), pode-se perceber como a escola produz e silencia os corpos abjetos, ora colocando-os em evidência discursiva para que sirvam de exemplos a não serem seguidos, ora silenciando-os e invisibilizando-os.

Para Miskolci (2013),

a problemática queer não é exatamente a da homossexualidade, mas a da abjeção. Esse termo, “abjeção”, se refere ao espaço a que a coletividade costuma relegar aqueles e aquelas que considera uma ameaça ao seu bom funcionamento, à ordem social e política (p. 24).

Este jogo de poder entre o silenciamento e a invisibilização é de crucial importância para que a abjeção se faça presente na sociedade e impacte a vida daqueles que com ela vivem. Assim, reiteram-se comportamentos saudáveis e aceitos socialmente, ao passo que aqueles silenciados e invisibilizados se tornam exemplos de comportamentos que não devem ser seguidos.

A abjeção, portanto, está dentro da dinâmica do currículo oculto (Silva, 2020) na produção dos corpos que têm direitos às vivências sadias e daqueles que são obrigados a lidar com a normalização do estado à violência de gênero, por orientação sexual ou identidade de gênero. Entende-se aqui que a escola, enquanto uma instituição do estado, também é produtora das misoginias e LGBTQIAP+fobias quando se silencia perante as violências que ocorrem intramuros ou em seu entorno. Sejam elas ditas ou não-ditas, explícitas ou implícitas, a escola também ensina a abjeção quando se silencia frente às práticas de violência.

Rosemberg (1976) já chamava à atenção para os problemas existentes na sociedade brasileira, sobretudo o adultocentrismo imposto às crianças e a dificuldade que elas têm em experienciar, na escola, as fases da vida. Em especial porque será na escola que muitas dessas crianças conviverão com preconceitos e discriminações diversas.

Historicamente, a escola se dedicou a uma pedagogia da sexualidade. Durante décadas, havia a distinção de sala de aula para meninos e para meninas, fabricando sujeitos diferentes com saberes diferentes para atividades diferentes. Quando, na França do final do século XIX, o educador anarquista Paul Robin ousou colocar meninos e meninas estudando juntos, visto ser necessário combater a exploração da mulher pelo homem, isso foi considerado escandaloso, custando-lhe a demissão do cargo de Diretor do Orfanato Prévost1. Lentamente, ao longo do século XX, foi consolidada a prática das escolas mistas, nas quais meninos e meninas estudam juntos. Isso, no entanto, volta a ser problematizado contemporaneamente, por diferentes vieses, pelo neoconservadorismo.

Entendemos que “a sexualidade está no espaço escolar porque faz parte dos sujeitos o tempo todo. Ninguém se despe da sexualidade ou a deixa em casa como um acessório do qual pode se despojar” (Miskolci, 2010, p. 78) e, justamente por isso, não há condições de garantir um mecanismo profícuo para o seu silenciamento e invisibilização dentro do espaço escolar.

Couto Junior (2017), ao analisar as marcas da abjeção em um grupo de jovens LGBT+, identificou que a matriz heterossexual precisa ser contestada, visto que ela é “responsável pela regulação das condutas sociais, pois se apenas o discurso dessa valorização recai sobre as pessoas ‘diferentes’ é porque aqueles ditos como ‘normais’ já são valorizados” (p. 69) e, portanto, mantém-se a heteronormatividade inabalável.

Para melhor pensarmos sobre a noção de sexualidade e em como ela produz masculinidades e feminilidades, uma vez que compreendemos os gêneros produtos e produtores de identidades, forjando-as num intenso devir, devemos indagar a escola perante a sua participação nesse processo. Por serem identidades, acreditamos que sejam fluidas e se construam e desconstruam constantemente. No entanto, vale lembrar que o homem é “a medida, o padrão, a referência de todo discurso legitimado” (Louro, 2014, p. 37) e, consequentemente, o discurso presente tanto na sociedade como na escola parte dele como referencial.

Entre a descoberta da infância (Ariès, 2018), sua invenção (Schérer, 1974) e sua inserção nos documentos oficiais das políticas públicas brasileiras após a ditadura civil-militar (Gallo, 2012), um problema de primeira ordem se apresenta em nossa sociedade: com a recente interdição da temática da sexualidade na escola, tanto na Educação Infantil como nos Ensinos Fundamental I e II e Médio, a partir de práticas persecutórias, até quando a escola será cerceada de seu dever em discutir a questão? A pergunta se faz urgente por entendermos que estes cerceamentos e censuras coadunam para a manutenção de violências diversas contra as infâncias.

quando a sexualidade esbarra na escola

A escola operará em diversas frentes para normatizar alunos ou alunas que apresentem, ou não, a inteligibilidade sexual esperada. Se, mesmo através destes dispositivos, ela não obtiver o resultado desejado, buscará silenciar seus corpos para, então, estigmatizá-los - uma forma “mais sutil e talvez a mais cruel de invisibilizar a criança: trata-se da forma como educadores adotam o silêncio diante da emergência de uma sexualidade diferente” (Miskolci, 2010, p. 80).

Ao mesmo tempo, e de forma bastante antagônica, mas não surpreendente, a escola - sob a égide do neoconservadorismo e posta sob suspeita nos últimos anos - se ausenta de sua responsabilidade em discutir a questão da sexualidade dentro de seus muros e em sua matriz curricular, uma vez que o currículo oculto se faz extremamente presente nesta pedagogização dos corpos infantis. Interdita-se aquilo posto em evidência, em enunciação (ver Acosta; Gallo, 2020).

É de grande importância reconhecer que a escola tem um papel preponderante na formação das subjetividades de seus alunos e, portanto, faz-se necessária a discussão das questões de gênero e sexualidades em sua matriz curricular. Por mais que a questão seja compreendida como um tema sensível ou perigoso, consolida-se a democracia quando o direito ao amplo debate educacional é garantido e os espaços de ensino-aprendizagens respeitados.

Justamente por isso, ONGs nacionais e internacionais, pesquisadores, professores e segmentos da sociedade civil organizada apoiavam a implementação do Escola sem Homofobia. Entretanto, aqueles que defendiam sua efetivação eram associados, por setores conservadores do Congresso Nacional, a pedófilos ou acusados de destruir a família tradicional brasileira, ou seja, a família de matriz heterossexual (Lionço, 2017).

Com a forte articulação política deste segmento e seus domínios nas redes sociais, a partir de postagens virais e práticas de escárnio público, forjou-se na sociedade a crença de que havia um verdadeiro plano político por detrás da prática docente para desvirtuar crianças e jovens. O caso mais emblemático foi o da difamação à Profa. Dra. Tatiana Lionço, quando de sua participação, em maio de 2012, no IX Seminário LGBT no Congresso Nacional - Respeito à Diversidade se Aprende na Infância: Sexualidade, Papéis de Gênero e Educação na Infância e na Adolescência. Tendo sua fala editada em minutagens diferentes, estes mesmos setores conservadores associaram-na à pedofilia e acusaram-na de ter interesse em iniciar as crianças às vivências de suas sexualidades e à homossexualidade.

Dado o pânico moral (Acosta, 2023) e seu poder de viralização, políticos conhecidos por baixo clero, ou seja, sem grande poder de influência ou aprovação de projetos de lei, identificaram na temática a possibilidade de impulsionarem suas candidaturas. Cita-se, como exemplo, a notoriedade que o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro ganhou ao se associar à “luta pela defesa das crianças que a esquerda visava destruir com a discussão sobre orientação sexual nas escolas” - a temática foi a sua principal bandeira eleitoral para a eleição de 2018, na qual saiu vitorioso contra o candidato Fernando Haddad.

Com a discussão sobre o Escola sem Homofobia já contaminada pela opinião pública, a ex-presidenta Dilma Rousseff, em nome da governabilidade e manutenção da base do Congresso, declarou, publicamente, que não autorizaria esse tipo de política. Suprimiu-se da escolarização de crianças e jovens as discussões sobre orientações sexuais e identidades de gênero fora da matriz heterossexual.

Em 2016 houve o Golpe Parlamentar contra a presidenta eleita democraticamente, assumindo, interinamente, o seu vice-presidente, com abrupta mudança no ideário de governo. As políticas educacionais que visavam a inclusão da temática da sexualidade nos currículos oficiais, por exemplo, foram tiradas de pauta. Percebe-se que o mesmo problema vivenciado à ocasião do Programa Escola sem Homofobia foi identificado com a supressão da temática dos Planos Educacionais e da Base Nacional Comum Curricular.

Concomitante, ocorriam as eleições municipais e a bandeira de muitos candidatos conservadores era a do controle aos conteúdos escolares a partir da supressão da temática de gênero e sexualidades do currículo escolar. Fortaleceu-se o Programa Escola Sem Partido, o qual dizia defender as infâncias e combater os professores que supostamente impunham uma “ideologia de gênero” às crianças (Acosta; Gallo, 2020).

Ao desvirtuarem os estudos de gênero e sexualidades, nomeando-o de ideologia de gênero, e associarem professores a pedófilos ou interessados em destruírem a família tradicional brasileira, o pânico moral se ramificou em toda a sociedade e cada vez mais colocava a escola sob suspeita. Entende-se, assim, que este silenciamento é uma forma de o currículo oculto se fazer presente na pedagogização dos corpos infantis a partir da matriz heterossexual.

Quanto à noção de currículo oculto, partimos de acepções de Tomaz Tadeu da Silva pois, para ele, “o que se prende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às estruturas e às pautas de funcionamento” (Silva, 2020, p. 78) da escola, uma vez que ela é uma instituição marcada na sociedade e consequentemente produz comportamentos docilizados.

Assim sendo, “entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo” (Silva, 2020, p. 79) e se perpetua por meio das “relações entre professores e alunos, entre as administrações e os alunos, entre alunos e alunos” (p. 79), reiterando uns comportamentos e estigmatizando outros. Essa fabricação de corpos dentro da escola opera de forma sutil, e quase imperceptível, na chave da subjetividade e da constante vigilância panóptica.

Vale destacar que “a instituição escolar revela que sua neutralidade em termos sexuais nunca passou de cumplicidade com a forma de sexualidade hegemônica e prescrita como única” (Miskolci, 2010, p. 81), a da matriz heterossexual e compulsória, tida como normal e correta a ser seguida e ensinada.

A supressão da temática das sexualidades nas escolas, associando-a a temas perigosos (Silva; Lionço, 2019) e colocando as infâncias em risco, é radicalmente antidemocrática e tem o efeito exatamente oposto ao que estes setores conservadores afirmam. Entendemos, portanto, que quanto menos se falar sobre as sexualidades infantis nas escolas, menos acesso elas terão ao que é consentimento e ao que é violência, de modo que mais em riscos suas vidas estarão.

Debater as sexualidades infantis nas escolas é ensinar às crianças que os seus corpos são privados e, portanto, terceiros - sejam eles conhecidos ou desconhecidos - não têm o direito de olhá-los, tocá-los e assediá-los. Quanto mais se cerceia a escola de cumprir sua obrigatoriedade legal, disposta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e se censura professores de debaterem tais temáticas, mais as infâncias estarão em risco e, por conseguinte, a cultura do machismo, do assédio, da sexualização infantil e da violência de gênero se perpetuarão na sociedade brasileira. Logo, entendemos que a melhor ferramenta de combate à violência é a Educação em Direitos Humanos.

pedagogias assépticas

Conforme vimos, desde 2014 discursos neoconservadores e pós-fascistas (Acosta; Gallo, 2020; Acosta, 2023) vêm ocupando o imaginário social ao colocar a escola sob suspeita. Logo, não nos surpreende a dificuldade que a população tem em discutir abertamente sobre a sexualidade infantojuvenil e quão danoso este silenciamento é para crianças e adolescentes, vitimados ou não por crimes como o assédio e a pedofilia.

Estando o Brasil cada vez mais atrelado à política religiosa, sobretudo de base cristã com forte viés conservador, interditando diversos debates em sala de aula, percebe-se que, pouco a pouco, a temática da sexualidade infantil tem sido censurada nos recentes documentos educacionais oficiais. Quando a escola se nega a debater tais questões em sala de aula - ou é proibida de debatê-las -, indiretamente se torna partícipe das diversas violências presentes na sociedade, especialmente por também se reverberar dentro de seus muros escolares.

A prevenção do cometimento de crime contra crianças e adolescentes não deve ocorrer exclusivamente com o encarceramento, mas, sobretudo, a partir de intervenções educacionais nas instituições familiares, nos espaços de ensino-aprendizagens, com mudanças culturais, e na valorização da liberdade de cátedra para que tanto o professor se sinta seguro na abordagem dos temas sensíveis e quanto a criança se sinta protegida na escola.

Para melhor identificarmos a prática discursiva adotada por setores conservadores do Congresso Nacional, dois conceitos nos são de grande importância: neoconservadorismo e pós-fascismo.

De antemão, destacamos que tanto o neoconservadorismo como o pós-fascismo não são uma realidade exclusiva da política nacional brasileira, visto que esta guinada à extrema direita está coerente com o movimento internacional de recrudescimento do ultranacionalismo, em que se valoriza um determinado tipo de família, de religião e de população.

O discurso em defesa da família, aqui entendido como familismo, deu-se a partir do séc. XVIII quando a medicina passa a ter interesse na criança (Donzelot, 1980, p. 27), com o aumento do poder de polícia no controle populacional (p. 28), com as estratégias de familialização no séc. XIX das camadas populares (p. 39) e com a institucionalização da família burguesa no séc. XX (p. 98). Ainda sobre o familismo, Donzelot destaca que

No campo político-militar, no institucional, no sanitário e social, ele cristaliza uma série de implicações que, por seus recortes mais ou menos nítidos, provocarão uma confrontação geral entre duas grandes estratégias. Uma é nacionalista e familialista e vincula a opção técnica do populacionismo aos temas políticos do paternalismo pétainisía. A outra, socialista e individualista, encontra no neo-malthusianismo o meio de uma organização coletivista (1980, p. 136).

Percebe-se assim que essa entrada do estado no governo das vidas e das famílias foi crucial para a propagação do neoconservadorismo no século XXI, visto que o populismo de direita se tornou a mola propulsora para propagandear o pânico moral na sociedade ao afirmar a existência de práticas atentatórias à família tradicional.

A idealização da família de matriz heterossexual fundada em valores religiosos traz uma concepção de moralidade e de civilidade únicas para o desejo de nação em formação. Não obstante, para que esta nação seja consolidada, há de se invisibilizar e marginalizar o antagônico, o dissidente e o abjeto - algo presente nas perseguições empreendidas por setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional.

No Brasil, mais especificamente, o neoconservadorismo se fortaleceu sobremaneira com a desconfiança às escolas e com a “criminalização” da profissão professor. O Programa Escola sem Partido, entendido aqui como grande responsável pelas campanhas persecutórias e censoras aos profissionais da educação, quando incentivou alunos a gravarem e denunciarem educadores que debatessem os temas sensíveis ou perigosos, teve papel preponderante nesta consolidação.

Quanto ao segundo conceito, de pós-fascismo, entende-se que ele “pertence a um regime particular de historicidade - começo do século XXI - o que explica seu conteúdo ideológico errático, instável e contraditório, no qual se misturam filosofias políticas antinômicas” (Traverso, 2019, p. 15). A nível mundial, para que o pós-fascismo se entranhe na sociedade, ele não precisa ter a mesma moldura ou ideias em comum. Necessita-se de pragmatismo suficiente para identificar quais valores ultraconservadores existem naquela determinada sociedade para se moldar a eles e, assim, encrustar-se na população para o fortalecimento da ideologia pós-fascista. Via de regra, cria-se um inimigo oculto, semeia-se o medo perante o outro e, por meio da própria democracia representativa, elege-se representantes desse ideário.

No que se refere ao cenário nacional brasileiro, o pós-fascismo encontrou múltiplas formas de se fazer presente em nossa sociedade, fosse por meio da perseguição aos grupos tidos como progressistas, da produção e propagação de Fake News que alardeavam o pânico moral ou fosse pela obsessão a determinados temas das políticas públicas nacionais, sobretudo educacionais. O seu objetivo principal era o de impor o medo na sociedade e o combate ao inimigo oculto, daí a importância do pânico moral em sua efetivação, conforme destacado por Acosta (2023).

Assim, com a interdição destas temáticas, apenas com a eleição de algum político de viés conservador as crianças estariam em segurança e as escolas voltariam a ser o que eram antes. Essa discursividade messiânica, bastante presente em governos populistas, é semelhante com as falas realizadas por Sílvio Berlusconi, na Itália, Donald Trump, nos Estados Unidos, Marine Le Pen, na França, Geert Wilders, na Holanda, e por Jair Bolsonaro, no Brasil.

Traverso (2019) evidencia que cada país usa de suas próprias características para a produção de algum medo em comum na propagação de seu ideário, via de regra, ancorados na xenofobia, no problema dos refugiados, no desemprego ou na necessidade de “refundação” do país para que as crianças são sejam vitimadas por professores descompromissados com a educação moral e cívica.

Esta multiplicidade discursiva ocorre justamente porque o pós-fascismo se dedica ao encontro de questões capazes de produzir o medo e a hipersensibilidade na sociedade local e, assim, projetar, a nível nacional, um medo em comum. Nesse sentido, podemos perceber que foi justamente a temática da sexualidade infantil utilizada na propagação do pânico moral no Brasil por candidatos neoconservadores.

A própria manipulação da fala da Profa. Dra. Tatiana Lionço sobre a questão da sexualidade infantil, no IX Seminário LGBT no Congresso Nacional, pode ser lida como um significativo ponto de inflexão para a consolidação das práticas pós-fascistas no Brasil.

Sendo assim, a produção de pedagogias assépticas tornou-se quase uma política de estado e professores passaram a ser perseguidos e expostos em praça pública ou, mais precisamente, nas redes sociais. Associavam-nos a doutrinadores esquerdistas, pedófilos ou interessados em destruir a família tradicional brasileira na última década, que se infiltravam nas escolas para manipular crianças e jovens.

Como consequência, entendemos que esta política do medo tem como objetivo principal evitar que professores abordem os temas sensíveis nas escolas. Como consequência, a agenda neoconservadora e pós-fascista se faz duramente presente nos espaços escolares - assim como na sociedade em geral.

resistências na pedagogia da sexualidade

O corpo é constantemente capturado na escola por meio da pedagogia da sexualidade e, justamente por isso, reconhecemos que “a escola é um espaço importante da sociabilidade de crianças e adolescentes, e limar a instância dos desejos e afetividades desse espaço é uma forma de exclusão” (Vencato, 2014, p. 30), que pode favorecer a “coisificação”, a objetificação e, em última instância, a violação de crianças e adolescentes, pois “o mesmo silêncio que exclui também deixa a porta aberta para as discriminações e violências diversas” (Vencato, 2014, p. 30). A escola precisa assumir a responsabilidade e colocar em debate a sua pedagogia da sexualidade. Não a que silencia e invisibiliza, tal qual imposta nos Planos Municipais, Estaduais e Nacionais da Educação e na Base Nacional Comum Curricular, ou a que persegue os professores interessados em discutir o problema na escola, mas sim a prática de educação horizontal, plural e libertária em vista da proteção às infâncias.

Quando a escola passa a ser o alvo de setores neoconservadores e pós-fascistas da sociedade, os professores preferem aautoproteção e optam pelo silêncio na discussão dos problemas destacados. Ora, será, então, a partir desse currículo oculto do não dizer que muitas das violências serão perpetradas pela sociedade e invisibilizadas na escola.

Logo, torna-se imperativo que as discussões dos temas sensíveis retomem ao currículo escolar para que os adolescentes e crianças vitimadas por seus algozes encontrem nos profissionais da educação e nos espaços escolares o lugar ideal para práticas de denúncia.

Por mais contraditório que possa ser para nós, autores anarquistas, defender a instituição escolar tornou-se de fundamental importância para pensarmos em resistências possíveis com intuito de promover emancipações estudantis. Defendê-la do aparato estatal, do cerceamento ao trabalho professoral e das políticas microfascistas que se entranharam no currículo escolar é o que temos de mais urgente para o presentismo (Hartog, 2014), para então, após tal defesa, empreender a escola ao interesse público e não estatal, empresarial ou de qualquer outra ordem para além das práticas de liberdade.

Para tanto, há de se valorizar a importância das Conferências Educacionais a fim de promover documentos oficiais pautados no debate científico, nas necessidades das instituições escolares com intuito de promover infâncias seguras e, além disso, que as atividades professorais - assim como a segurança de suas vidas - sejam salvaguardadas e garantidas, sobretudo em um contexto como o do Brasil contemporâneo, em que a escola vem sendo cada vez mais posta sob suspeita, e o professor, cada vez mais considerado como “inimigo da nação”.

No que se refere à educação para a sexualidade, destacaremos três cenas educacionais que coadunam para o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes e que vão na contramão da censura imposta nos documentos oficiais educacionais, entendidas aqui como práticas de resistência.

cena 1: semáforo do toque

Utilizado pelas professoras da Create Educacional, atuantes na rede pública de ensino de Santa Catarina, as suas práticas de ensino, nomeadas de Semáforo do Toque, consistem em um jogo em que a criança é marcada com cores diferentes em suas cabeças, troncos e membros para se trabalhar a noção de consentimento e de seguranças.

Em sua metodologia, as professoras inseriram cores distintas ao longo de todo o corpo das crianças indicando quais áreas podem ser tocadas (em verde), quais são aquelas que as crianças devem ter atenção para entender qual o motivo e intencionalidades dos toques (em amarelo) e quais as áreas que não pode haver qualquer tipo de toque (em vermelho).

Na cabeça, por exemplo, enquanto a região do cabelo e das bochechas é marcada com verde, de permissão, a boca está com a cor vermelha, de proibição. Denotando, assim, a diferenciação entre carinho e afeição para com assédio e sexualização.

Já no tronco, os ombros, braços e costas estão marcados com a cor amarela, de atenção, e a região do seio feminino está marcada com a cor vermelha, de proibição. Já a região das genitálias também está marcada com a cor vermelha.

Os membros, tanto superiores como inferiores, e o umbigo das crianças estão marcados com a cor amarela para que elas possam distinguir qual o intuito dos toques por vir. Ou seja, se são cosquinhas de uma brincadeira sadia, por exemplo, ou se há outra intencionalidade na ação.

Em entrevista para uma emissora local, após viralização do vídeo nas redes sociais, a professora Shirlei Silva destacou que a prática de ensino consiste em orientação temática, contação de história, visualização de um vídeo sobre a problemática, participação do jogo do semáforo e, ao final da aula, a encenação de alguns alunos onde as pessoas podem tocar ou não.

Shirlei destaca que os três pilares do projeto são “prevenção em primeiro lugar, que são as orientações que a gente passa, a proteção para que o estudante consiga aprender a se proteger e a denunciação”. A professora frisa que “a educação sexual serve para isso, para prevenir, proteger e para que o aluno saiba denunciar todos os tipos de violência, não só o abuso e a exploração sexual infantojuvenil”.

Outra característica interessante no material utilizado no projeto é o marcador da interseccionalidade. Ao utilizarem o desenho de uma criança branca e outro desenho de uma criança preta, consegue-se promover o sentimento de pertencimento para muitas das crianças presentes na turma. Para Hirata, “a interseccionalidade é vista como uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas, e portanto como um instrumento de luta política” (2014, p. 69) pois, quando os marcadores das diferenças se enunciam, formas de tratamentos diferenciados são acionados na sociedade.

cena 2: educação em tela

Já em tempos em que a educação em tela se tornou uma realidade mundial, sobretudo por conta do cenário pandêmico e do necessário distanciamento social, as mídias sociais podem se aliar à educação sexual - ou a locais de disseminação de conteúdos violentos contendo cenas de abuso sexual.

Ao que nos interessa - o bom uso das redes sociais para a educação sexual -, destacamos um vídeo disponível no canal Criar e Crescer, onde a especialista Carol Lopes explica de forma extremamente didática sobre a importância da proteção, consentimento e segurança. Em uma conversa franca com a câmera, com fala pausada, Carol explica os corpos infantis, a importância da prevenção e a necessidade de os responsáveis das crianças trabalharem a escuta, ou seja, ouvirem o que a criança tem a dizer sem colocá-la em dúvida.

O ato da escuta é de grande importância, tanto no que se refere a acreditar naquilo dito pela criança como também na construção de uma relação sem segredos e sem mentiras, dialógica e acolhedora. Com a escuta, constrói-se vínculos de troca entre pais e filhos e promove-se exercícios de confiança entre ambos, aproximando-os para o enfrentamento de algum problema em questão.

A noção entre público e privado começa a ocorrer quando a criança muda o entendimento sobre o seu próprio corpo, pois passa a entendê-lo de uma simples materialidade para algo que pode se desdobrar além dele mesmo. Logo, respeitar a individualidade e o direito à intimidade infantil é uma das formas de coibir violências contra ela. O respeito é a chave-mestra para a proteção.

Em seu vídeo, Carol destaca que a criança acostumada a ser punida em casa tende a manter mais segredos de possíveis violências que venha vivenciar, uma vez que logo associará a violência à culpa e ao castigo. Nesse sentido, um dos comentários deixados por pessoas que assistiram a seu vídeo destaca exatamente esse problema. Nele, a mulher diz que foi abusada aos 13 anos e, ao contar para sua mãe sobre a violência, escutou que “a culpa era dela e, a partir de agora, deveria tomar cuidado para não engravidar”.

Para além de todo o processo educacional presente ao longo do vídeo, chamou-nos à atenção a quantidade de comentários de crianças afirmando que procuraram a temática na internet pela interdição do assunto em suas casas e com suas famílias. Nele, há crianças com idades a partir dos 7 anos que deixaram comentários agradecendo e parabenizando as explicações realizadas no vídeo, assim como pessoas maiores de idade, com filhos ou não, que também compartilham suas impressões com a fala exposta.

Em contrapartida, destacam-se comentários de cunho religioso ou permeados de machismo e misoginia, criticando a divulgação da temática para crianças e adolescentes, inclusive culpando a própria educação sexual pela suposta introdução de crianças e jovens à vida sexual ativa.

Essa contraposição de argumentos e críticas comprova o que construímos ao longo deste trabalho. As formas como o neoconservadorismo e pós-fascismo foram se consolidando na sociedade brasileira, a partir do pânico moral da sexualidade (Acosta, 2023), buscam, prioritariamente, a interdição do assunto nos espaços educacionais (Acosta; Gallo, 2020), sejam eles nas escolas, nas famílias ou em outros locais de ensino-aprendizagens como, por exemplo, no teatro.

cena 3: a importância das artes

A própria utilização das artes, em geral, para a educação sexual também pode ter um saldo positivo na conscientização, empoderamento e denúncia da violência sexual. Exemplo semelhante ocorreu em Rodeio, município de Santa Catarina, quando uma aluna de 11 anos assistiu a uma peça de teatro sobre violência sexual em sua escola e se sentiu encorajada em denunciar à diretora que sofria abusos de um homem de 46 anos, amigo de sua família.

Quanto a importância do teatro como instrumento de aprendizagem, Mendes e Gallo (2020) afirmam que

a atividade teatral pedagógica perpassa, portanto, o campo da formação do sujeito enquanto produtor de sua própria linguagem. A partir desse sujeito auto constituído e em relação constante com o seu todo, o teatro também pode ser pensado como instrumento de aprendizado de outros campos do saber. Como linguagem, o teatro pode e é usado também como comunicação educativa (p. 39).

Já no que se refere a proximidade entre a vítima e o assediador/estuprador, dados disponibilizados pelo Disque 100 mostram que “mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas. Em mais de 70% dos registros, a violência foi cometida na casa do abusador ou da vítima”. Seja pelo vínculo de confiança que o agressor tem com a família ou pelo conhecimento da rotina daquela casa, ele encontra maiores facilidades em perpetrar violências contra crianças e adolescentes. Somado a isso, há a relação de forças desiguais entre ambos.

Acosta (2023) destaca que, para além do exposto, a cultura machista e a histórica sexualização infantil presentes em nosso país coadunam para que a vítima tenda a ser a culpada pela violência sofrida. Como exemplo, o autor analisa a quantidade de programas televisivos presentes nos anos 1990 em que bailarinas e apresentadoras eram infantilizadas com seus figurinos sexualizados e o quanto a cultura machista e misógina chegavam aos televisores domiciliares, fossem em programas noturnos ou nos almoços dominicais, normalizando comportamentos e subjetivando entendimentos.

Vale ressaltar que as artes foram duramente perseguidas ao longo da última década. Fosse na proibição a menores de idade na exposição História da sexualidade, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP); na criminalização de uma mãe que levou sua filha para assistir a uma performance artística, no Museu de Arte Moderna; ou no cancelamento da mostra Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, pelo Banco Santander, diversos foram os momentos em que as artes estiveram sob holofote dos neoconservadores e pós-fascistas, na mesma medida em que os artistas e produtores de cultura foram perseguidos.

Se “na política, a velha equação entre poder e sexualidade ainda parece triunfar tanto sobre os princípios quanto sobre a estética” (Spargo, 2017, p. 10), não podemos deixar de lado a premissa de que a escola é uma instituição social e, consequentemente, permeada pelos arranjos políticos presentes na sociedade. Mais precisamente, a escola é uma instituição política e um importante local para a educação sexual de crianças e jovens.

considerações finais

Essa imbricação entre infância tutelada e sexualidade vigiada foi de grande importância para a construção do nosso entendimento sobre noção da sexualidade pois, para Foucault (2012, p. 10), “se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo menos nos do lucro”. Outro entendimento que valeu destaque foi produzido pela antropóloga Maria Filomena Gregori (2008) sobre violência e gênero ou, mais precisamente, “essa relação tensa entre prazer e perigo de limites da sexualidade” (p. 576, grifo da autora). Estes limites, segundo ela, “indicam, de fato, um processo social bastante complexo relativo à ampliação ou restrição de normatividades sexuais, em particular, sobre a criação de âmbitos de maior tolerância e os novos limites que vão sendo impostos” (p. 576). Em outras palavras, a forma como a sociedade produz as noções de normalidade e anormalidade, de consentimento e/ou de crime sobre as sexualidades está localizada em seu contexto histórico.

A importância do desenvolvimento de projetos para educação sexual de crianças e adolescentes se dá porque, de acordo com dados disponíveis pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, nos primeiros cinco meses de 2022, “crianças e adolescentes foram 79% das vítimas em denúncias de estupro registradas no Disque 100”. Logo, a prevenção é substancial para que crianças e jovens possam identificar a possibilidade do abuso antes mesmo de seu cometimento, seja por meio do olhar, da fala ou do toque.

Nesse sentido, defendemos veementemente a prática da educação sexual na escola e o retorno da temática à matriz curricular pois, a nosso ver, a educação sexual nas escolas é prioritária na defesa das infâncias e na promoção de vivências de si em segurança.

Ora, reconhecendo na escola um importante lócus para a desconstrução da matriz heterossexual e para a construção de relações de segurança às infâncias, torna-se necessário acionarmos práticas de resistências pautadas pela perspectiva dos Direitos Humanos. Não obstante, Kohan (2017) nos lembra da importância de extrair “toda a potência que esse espaço tempo é capaz de propiciar” (p. 600), enquanto um projeto mais amplo para a retomada das práticas de experimentações.

Por fim, enquanto registro, nesta última década, crianças e adolescentes tiveram dificuldades de acesso às temáticas dos Direitos Humanos em suas escolas em virtude das perseguições aos professores interessados em debater a temática. Consequentemente, reconhece-se que a escola deverá empreender, de forma urgente e com grande esmero, a retomada destas questões para o fortalecimento da democracia e da proteção às infâncias. Sobretudo porque a perseguição à prática docente, daqueles que ousam debater os problemas sociais na perspectiva dos Direitos Humanos, continua operante no estado brasileiro em 2023.

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Recebido: 29 de Setembro de 2023; Aceito: 26 de Outubro de 2023

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