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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub 11-Nov-2020

https://doi.org/10.5902/1984644432784 

Artigo Demanda Contínua

Do Studium Generale à educação superior globalizada: uma reflexão acerca da missão universitária

From the Studium Generale to globalized higher education systems: a review of the mission of university

Caio Rudá de Oliveira* 

*Professor doutor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Teixeira de Freitas, Bahia, Brasil. caioruda.o@gmail.com


RESUMO

O que hoje conhecemos como Ensino Superior é o resultado de um processo histórico de institucionalização do conhecimento, que teve início por volta dos séculos XI a XIII, quando começam a surgir as primeiras corporações de professores e estudantes na Europa. Esses grupos, dos quais tradicionalmente são citados como pioneiros os de Bolonha e Paris, evoluíram ao longo dos últimos séculos da Idade Média até adquirirem a forma universitária com que persistem, salvaguardadas algumas reformulações, até os dias de hoje. O presente artigo busca apresentar as transformações por que passou a universidade até os dias atuais, com foco na evolução de sua missão. Realizou-se um resgate histórico acerca da constituição da universidade na era medieval, seu desenvolvimento e reviravoltas durante as Idades Moderna e Contemporânea, apoiando-se na visão de importantes pensadores da temática universitária. Busca expor, portanto, a superação do exclusivo ideal medieval de ensino, com o aporte da pesquisa, da extensão, oferta de serviços e abertura à comunidade, num movimento de convergências e contradições que conformam o espaço da educação superior numa era globalizada, evidenciando os principais pontos de discussão acerca desse processo.

Palavras-chave: Universidade; Missão; Globalização

ABSTRACT

Higher Education as we know it nowadays is the result of a historical process of institutionalization of knowledge that began around the 11th to 13th centuries, when the first corporations of teachers and students began to emerge in Europe. These groups, traditionally referred to as the pioneers of Bologna and Paris, have evolved over the last centuries of the Middle Ages until they have acquired the university form.

The paper presents the evolution of the university idea from medieval times to the present day, by focusing on the role it has been playing in its relation to societies. Relying on the view of important thinkers of the university theme, it seeks to expose the shift from an exclusively idea of teaching and training to the research, extension and services to society missions, within a process of convergences and contradictions that make up the field of higher education in a global age.

Keywords: University; Mission; Globalization

O que hoje conhecemos como Ensino Superior é o resultado de um processo histórico de institucionalização do conhecimento, que teve início por volta dos séculos XI a XIII, quando começam a surgir as primeiras corporações de professores e estudantes na Europa. Esses grupos, dos quais tradicionalmente são citados como pioneiros os de Bolonha e Paris, evoluíram ao longo dos últimos séculos da erea medieval até adquirirem a forma universitária com que persistem, salvaguardadas algumas reformulações, até os dias de hoje.

A universidade é, de acordo com Rashdall (1895), “uma instituição que deve não apenas sua forma e tradições primeiras, mas, num certo sentido, sua própria existência a uma combinação de circunstâncias acidentais; e sua origem pode ser entendida apenas por referência a essas circunstâncias” (p. 4-5). Tais circunstâncias incluem um momento sociopolítico de transição no mundo europeu em que o comércio se expande, e há um incremento populacional em cidades. A ideia de universidade é ela própria representativa da mudança da condição social, política e cultural da Idade Média. Do campo à cidade, das velhas relações feudais às novas relações citadinas, é possível afirmar que a produção e a reprodução sistematizada de conhecimento acompanharam essa transformação: abandona antigas escolas em mosteiros isolados, para se dar em novas instituições nos efervescentes e renovados espaços urbanos.

O objetivo do artigo é apresentar as transformações por que passou a universidade até os dias atuais, com foco na evolução de sua missão. Para tanto, iremos realizar um resgate histórico acerca da constituição da universidade na Idade Média (476-1453), seu desenvolvimento e reviravoltas durante a Idade Moderna (1453-1789) e Contemporânea (1789 até os dias atuais), apoiando-nos na visão de importantes pensadores da temática universitária. Expomos, portanto, a superação do exclusivo ideal medieval de ensino, com o aporte da pesquisa, da extensão, oferta de serviços e abertura à comunidade, num movimento de convergências e contradições que conformam o espaço da educação superior numa era globalizada, evidenciando os principais pontos de discussão acerca desse processo.

A universidade medieval: o ensino como base da missão

O trabalho historiográfico apresenta dificuldades, sobretudo no que diz respeito ao remonte preciso dos fatos, dada a inerente condição de acesso indireto aos fenômenos estudados (BLOCH, 2001). Alia-se a esta condição, o fato de que certos eventos são demasiadamente complexos para serem circunscritos a uma cronologia precisa. Muitos acontecimentos simplesmente não apresentam uma data clara; outros carecem de crônicas confiáveis ou sofrem com a falta de documentação. Analogamente, muitas instituições, “apenas cresceram, emergindo lenta e silenciosamente sem registro preciso” (HASKINS, 1923, p. 5). Entre elas está a universidade, produto da Baixa Idade Média.

Se não podemos precisar, por um lado, o surgimento das primeiras universidades, por outro, podemos estabelecer, sem sombra de dúvida, o período entre o século X e meados do século XII, como o período em que condições concretas para seu desenvolvimento estavam presentes.

Após o profundo revés político e cultural subsequente ao período Carolíngio e a pavorosa expectativa do fim do mundo no ano 1000, uma incomum era de prosperidade se estabeleceu1. A Idade Média agora começava a mostrar suas verdadeiras cores, com o desenvolvimento de um número de instituições e ideias, que nas esferas política, econômica, social e espiritual construíram um novo panorama para a existência humana (PEDERSEN, 1997, p. 92).

Do ponto de vista político, o mais importante fator foi a relativa estabilidade após as invasões e migrações iniciadas com a queda do Império Romano, que provocaram um rearranjo praticamente ininterrupto das fronteiras europeias entre os séculos V e XI. Esse período de paz, com o cessar dos massacres bárbaros, certamente favoreceu o desenvolvimento socioeconômico do continente (BACKMAN, 2003).

Associa-se a essa condição o fato de que o período compreendido entre os anos 1050 e 1300 conheceu um clima agradável, com temperaturas mais amenas. De acordo com Backman (2003), tais facilidades climáticas contribuíram para o aumento da produção agrícola europeia, elevando-a a um patamar além da mera subsistência, pela primeira vez desde o século IV. Desse modo, além de garantir a subsistência de uma população em crescimento, do ponto de vista econômico, a Europa passa a engajar-se na comercialização de excedentes, impulsionando o renascimento comercial que acontece paralelamente ao retorno da população às cidades (PEDERSEN, 1997).

No âmbito cultural, entre os fatores que se somam ao favorável contexto sociopolítico e econômico que desencadeou o surgimento das primeiras universidades está a redescoberta, entre os séculos XII e XIII, de uma série de obras que iriam revolucionar o conhecimento europeu, por meio do contato com o mundo árabe, especialmente na Península Ibérica, o qual havia preservado antigas obras da Antiguidade, como trabalhos filosóficos de Aristóteles, obras sobre matemáticas, geometria e astronomia de figuras como Euclides e Ptolomeu, também o conhecimento médico dos gregos antigos, a nova aritmética árabe e textos do Direito Romano (HASKINS, 1923; PEDERSEN, 1997).

Um período decisivo da história da universidade circunscreve-se em torno da segunda metade do século XII, à medida em que as escolas passam a se distanciar de seu passado de isolamento, provincialismo e individualismo. Antes apenas centros locais de estudos, geralmente encabeçados por um único mestre, agora as escolas catedrais se tornam centros destacados de ensino, atraindo estudantes de vários países e com dezenas de professores compondo o corpo docente (PEDERSEN, 1997).

Como evidencia Janotti (1992), a origem das universidades medievais está ligada ao renascimento intelectual e urbano da sociedade europeia, com o aumento da literatura acadêmica disponível, que resgatou e expandiu os horizontes epistêmicos, e a contínua circulação de estudantes e professores entre diversas regiões da Europa, impulsionados pelo resgate da cultura urbana, num claro movimento de mobilidade acadêmica internacional. Por trás de todo o movimento de internacionalização do conhecimento, estão, portanto, a estabilidade político-militar, a recuperação econômica, a crescente demanda da sociedade por pessoas qualificadas e a concentração populacional dos espaços urbanos.

Desses espaços urbanos, entre os séculos XII e XIII, dois deles se destacam pela qualidade do corpo docente que compunha as embrionárias instituições acadêmicas universitárias. As cidades de Bologna e Paris se sobressaem como importantes centros intelectuais, com cada vez mais estudantes aportando em suas escolas, vindos de todas as regiões da Europa. As escolas adquirem reputação internacional e em pouco tempo ganham a designação especial de studium generale, cujo sentido, para Pedersen (1997), é um tanto impreciso, na medida em que somente aos poucos ganha espaço no âmbito acadêmico, tornando difícil o resgate de seu sentido. Para Rashdall (1895), os studia generalia implicavam locais de ensino cujo currículo era composto pelas artes liberales e os estudos avançados de medicina, direito ou teologia; além disso, apresentavam corpo docente extenso e atraíam estudantes de todas as partes, não conformando uma instituição meramente local.

Com o crescente influxo de acadêmicos a Bologna e Paris, o studium generale começa a transformar-se numa espécie de grife, e logo diversas escolas vão adjudicar para si tal designação (JANOTTI, 1992). Apresentar-se como studium generale, no entanto, constituía um privilégio, geralmente concedido por autoridade política de alta patente, como reis e imperadores, ou pelo papa. Os studia generalia constituem as raízes das universidades medievais, e a emissão de bulas papais e cartas de autorização, necessárias à regulação do direito de ensino, vão ser posteriormente tomadas como datas de fundação das respectivas instituições. Ao fim e ao cabo, tais estudos gerais eram escolas que conferiam o jus ubique docendi, isto é, direito de ensinar em qualquer lugar (RAIT, 1918; RASHDALL, 1895). Na prática, correspondiam às escolas que conferiam graus, reconhecidos universalmente, nas artes liberais e nos estudos avançados, e que apresentavam intenso intercâmbio de estudantes e professores.

Nos primórdios, as instituições acadêmicas universitárias não possuíam bibliotecas, laboratórios ou museus, ou mesmo prédios próprios. Não havia sequer a noção de universidade conforme conhecemos atualmente. Pedersen (1997) evidencia que um estudante ou professor em Paris ou Bologna, ao final do século XII, não tinha o sentimento de pertença a uma instituição acadêmica. Essa noção de universidade é construída paulatinamente, ao longo dos séculos XII e XIV. O termo Universidade indicava tão-somente um grupo de pessoas, reunidos em torno de um mesmo objetivo. Segundo Haskins (1923), derivado do latim universitas, o termo não faz referência à universalidade do conhecimento, apenas denotando a totalidade de um grupo - no caso estudantes e/ou professores. O vocábulo universitas, contudo, referia-se a quaisquer grupos, fossem barbeiros, carpinteiros ou de acadêmicos. Somente com o passar dos séculos é que o termo foi ganhando maior particularidade ao denotar uma instituição acadêmica e aproximando-se do sentido de um studium generale. Entre os séculos XIV e XV, os studia generalia vão cristalizar o sentido de universidade (RAIT, 1918; RASHDALL, 1985).

No que se refere à forma institucional-organizacional, a universidade medieval constitui-se como uma escola estruturada como corporação de estudantes e/ou professores, com o direito de conceder graus acadêmicos. Como aponta Rashdall (1985), Paris e Bologna são as duas universidades arquetípicas: Paris conformando o modelo de universidade de mestres, e Bologna a universidade de estudantes. Aproximadamente ao mesmo tempo, elas surgem no renascimento intelectual do século XII. Na Itália, esse renascimento encontra sua expressão no Direito Romano, o qual iniciou-se em Bologna. Na França, molda-se a partir da especulação dialética e teológica.

Ao final do período medieval, cerca de 80 universidades já haviam sido fundadas em toda a Europa, desde o extremo oeste lusitano até Praga, na atual República Tcheca, e da Sicília até Uppsala, na Suécia. Algumas delas, tiveram vida curta, enquanto outras como as de Paris, Bologna, Oxford, Cambridge, Leipzig e Coimbra continuam até os dias de hoje (HASKINS, 1923). Para tanto, as universidades tiveram que ultrapassar uma imensa gama de ameaças. Num contexto de fronteiras abertas, o status de estrangeiro impunha um dilema jurídico sobre o arcabouço legal aos quais esses indivíduos estariam submetidos. Sendo comuns abusos econômicos contra o corpo acadêmico, alguns chegando a desencadear violentos conflitos físicos, as nascentes corporações acadêmicas passam a buscar segurança contra as frequentes querelas que se instalavam entre as comunidades urbanas e o heterogêneo corpo acadêmico. Paulatinamente, tais direitos foram conformando certos privilégios e autonomia, distinguindo a universidade de outras corporações (PEDRO, 2012; RAIT, 1918).

O desenvolvimento dessas instituições evidencia sua ligação intrínseca ao momento de transição histórica que representou a Baixa Idade Média. Longe de serem sociedades enclausuradas, distantes das questões mundanas e voltada apenas a questões teológicas e filosóficas, as universidades nascem atentas às demandas da sociedade medieval em seus últimos suspiros. São instituições vivas, ligadas aos desenvolvimentos sociais, econômicos e políticos da Europa. Como afirma Pedersen, foi o uso que a sociedade fez do ensino especializado que determinou o sucesso da universidade. Uma instituição que, por exemplo, “tivesse Grego como uma disciplina especial seria recebido com entusiasmo pelos scholars da Idade Média, mas não teria prosperado no século XX, simplesmente porque era irrelevante para as necessidades da sociedade” (PEDERSEN, 1997, p. 133-134).

Pelo contrário, os estudos medievais formavam professores, juristas, médicos e teólogos, fundamentais à composição da sociedade à época (CHARLE; VERGER, 1996). Não à toa, a estrutura organizacional da universidade medieval que vigora é justamente a composição encontrada em Paris, com hierarquização dos estudos propedêuticos, que compreendiam as artes liberais e os estudos superiores do direito - canônico e civil -, medicina e teologia. As artes liberais, divididas entre o trivium, abarcando os estudos de dialética (lógica), gramática e retórica, e o quadrivium, com as disciplinas de aritmética, música, geometria e astronomia (JANOTTI, 1992), compunham o currículo da primeira fase de estudos, geralmente cursada numa faculdade de artes. Ao passo que as artes liberais ofereciam os conhecimentos necessários a uma adequada educação geral, as faculdades superiores forneciam o treinamento nas disciplinas profissionais mais avançadas.

Desse modo, o ensino constituiu a primeira missão da universidade, sendo aplicado à formação de quadros profissionais necessários à sociedade europeia: os mestres das artes liberais, responsáveis pela educação geral dos indivíduos; teólogos e juristas canônicos para a burocracia eclesiástica, bem como juristas civis e médicos para a burocracia estatal e prestação de serviços à comunidade.

Ampliação da missão universitária: a constituição dos Estados modernos e institucionalização da pesquisa

A multiplicação das missões da universidade e o alargamento do ensino superior não aconteceram casualmente. Ao contrário, são resultado de um longo processo histórico, em que a sociedade convoca a universidade a desempenhar novos papeis. Após conquistar sua forma institucional básica, com predominância da tradição escolástica de ensino, a conferência dos graus acadêmicos com seus peculiares rituais, e se espalhar pela Europa, a universidade começa a enfrentar tempos de estagnação na Idade Moderna. Conforme Charle e Verger (1996), o conservadorismo e desinteresse das universidades pela produção de conhecimentos práticos, aplicáveis a questões empíricas, fomentaram o surgimento de academias e sociedades científicas. De acordo com Kerr (1963),

Ao final do século XVIII, as universidades europeias tinham se tornado há muito tempo em oligarquias, rígidas em substância, centros reacionários em suas sociedades - opostas, em grande parte, à Reforma Protestante, em desacordo ao espírito de criatividade do Renascimento, antagonistas à nova ciência. Havia algo de quase esplêndido em seu desdém pelos eventos contemporâneos. Elas permaneceram como castelos sem janelas, profundamente introvertidas (KERR, 1963, p. 10-11).

Sucedeu que o modelo escolástico, tradicionalista e voltado apenas para o ensino não mais correspondia às expectativas dos estados nacionais, numa Europa pós-renascimento e pós-reformas religiosas (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2012). O referencial medieval havia caído, pois a universidade já se adequara aos aspectos políticos, culturais, sociais e econômicos das regiões em que se instalara, e cada vez mais era convocada a assumir um papel preponderante na emergência dos estados-nação característicos da Idade Moderna. Desse modo, as universidades modernas passaram a servir ativa e eficientemente aos estados nacionais, conformando sua missão de nacionalização (SCOTT, 2006).

De acordo com Amaral e Magalhães (2000), às universidades coube, para além da preparação dos quadros superiores da burocracia estatal, garantir a socialização dos estudantes para assumir suas funções na sociedade, desempenhando papel essencial na formação de uma identidade política, através da preservação e desenvolvimento da cultura nacional. A função de nacionalização torna-se pujante na França e nos Estados Germânicos. Não à toa, no início do século XIX, aparecem dois novos modelos de universidade: franco-napoleônico e o germano-humboldtiano.

Na França, durante a Revolução, as universidades são identificadas com o antigo regime e suprimidas, somente retomadas mais tarde, porém numa posição rebaixada em relação às faculdades e escolas profissionais especializadas - grandes écoles -, que a substituíram após as reformas educacionais implementadas pós-revolução. Como mostra Rüegg (2004), tais instituições especializadas eram submetidas a uma disciplina quase militar, sendo estritamente organizadas e controladas por um despotismo esclarecido que regulava desde assuntos curriculares até hábitos pessoais, como o uso de barba. Graças à tabula rasa empreendida com a Revolução e a posterior reestruturação conduzida por Napoleão Bonaparte (1769-1821), tal modelo tinha como objetivos:

primeiro, assegurar ao estado pós-revolucionário e à sociedade os oficiais necessários para a estabilização política e social; segundo, certificar que sua educação fosse conduzida em harmonia com a nova ordem social e prevenir a emergência de novas classes profissionais; e terceiro, impor limites à liberdade intelectual caso esta provasse perigosa ao estado (CHARLE, 2004, p. 45).

A partir daí, o referencial profissionalista de ensino superior “introduz o conceito oficial de “licenciatura” (license) como diploma universitário licenciador ou legalmente habilitador ao exercício profissional” (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2012, p. 41). Embora as instituições de ensino superior tenham sido desde a Idade Média o sítio de formação profissional, é na transição entre os séculos XIX e XX que a relação se intensifica. Passa a haver, então, uma intensa conformidade entre diploma e exercício profissional na burocracia do Estado ou numa carreira liberal. De acordo com Santos e Almeida-Filho (2012), a crise da universidade pós-renascentista encontra duas soluções antagónicas num mesmo lapso de tempo. No contexto germânico, no início do século XIX, uma distinta orientação para a universidade será seguida. Wilhelm von Humboldt (1767-1835) institui, na Prússia, o primado da pesquisa científica, ao propor a integração pesquisa-ensino, colocando-os na posição de objetivos fundamentais e indissociáveis. Ao criar a Universidade de Berlim, von Humboldt estabelece um paradigma, antagônico à centralização francesa, em que “a maneira de estudo, o conteúdo do ensino e as relações da universidade com as autoridades eram caracterizadas pela ‘autonomia’” (RÜEGG, 2004, p. 5). A autonomia acadêmica, presente na retórica universitária atual, deriva dos conceitos de Lehrfreiheit e Lernfreiheit, que designavam, respectivamente, liberdade de ensino do professor e liberdade de aprender dos estudantes (COMAGER, 1963).

A relativa unidade do conhecimento, condensada na ideia de educação geral e liberal, começa a ser dividida entre as disciplinas científicas (JARAUSCH, 2004).

Os professores começaram a intercambiar suas ideias e seus trabalhos em jornais especializados, atender a conferências nacionais (até mesmo internacionais após o fim do século) e organizar sociedades a partir de disciplinas. Consequentemente, não era mais apenas a performance individual e status, mas também pertencimento a uma disciplina reconhecida que em primeira e última instância provia o professor de prestígio social. A especialização de disciplinas científicas, acompanhada pela modificação de sua posição na hierarquia acadêmica e social, caracteriza a universidade moderna (RÜEGG, 2004, p. 8).

Paris, que ao início do século XIX, era uma Meca para acadêmicos e cientistas de todo o mundo, vê a expansão das universidades para além da fronteira franco-germânica, as quais passaram atrair estudantes que outrora rumavam à capital francesa. Europeus, inclusive muitos franceses, e mesmo norte-americanos aportavam nas terras germânicas atraídos pela oportunidade de receber treinamento nos novos métodos científicos (RÜEGG, 2004). Logo, a noção de universidade nos demais países da Europa, nos Estados Unidos e no Japão vai ser importada do modelo germano-humboldtiano (RÜEGG, 2004, p. 6). A missão de pesquisa, finalmente, institucionaliza-se na universidade.

Curiosamente, é na própria Alemanha que o modelo humboldtiano passa a dar sinais de desgaste. Se, por um lado, a ideia de autonomia acadêmica é um de seus pilares, por outro, a estrutura de cátedras - compostas por um professor líder e seus assistentes, numa rígida hierarquia - inibe a cooperação científica. Além disso, a graduação em certas áreas parece não se beneficiar desse arranjo institucional (Scott, 2006). Se a Alemanha faz despontar a universidade de pesquisa, é nos Estados Unidos, no início do século XX, que a research university, “orientada, desde o nascedouro, para pesquisa e pós-graduação” (MORAES, 2012, p. 31), se consolida. O primeiro grande movimento nesse sentido é a implantação da Johns Hopkins University, em 1876, que abre um novo panorama da pesquisa no ensino superior (FLEXNE, 1930).

Seu primeiro reitor, Daniel Gilman (1831-1901), consegue compor uma seleta equipe de pesquisadores nacionais e estrangeiros para constituir um sólido programa de formação de doutorado, incentivando ainda a associações científico-acadêmicas e o lançamento de revistas. Poucos anos depois, cerca de 25% de seus acadêmicos figuravam como os cientistas mais bem respeitados dos Estados Unidos. Dado o sucesso da experiência, diversas outras instituições empenham-se em acompanhar os rumos da Jonhs Hopkins, a exemplo da jovem University of Chicago e da tradicional Yale University (MORAES, 2012).

Alargamento do ideal universitário e reflexões acerca da missão da educação superior: de John Newman a Boaventura de Sousa Santos

O momento em que a pesquisa começa a se institucionalizar na universidade, compreendido entre os anos 1800 e os iniciais dos 1900, é também o período em que diversos intelectuais passam a se debruçar na reflexão acerca da missão da universidade, resultado das intensas transformações econômicas, sociais e políticas que marcaram o século XIX. Além da contribuição de von Humboldt, despontam figuras como o cardeal inglês John Newman (1801-1890), educado em Oxford, que, em 1855, escreve The Ideia of a University. Em oposição à experiência alemã, mais pragmática, Newman advoga como foco da universidade o saber desinteressado e fomenta a noção de educação liberal, como “exercícios mentais, de

Na contramão, Abraham Flexner (1866-1959), educador norte-americano do início do século XX e entusiasta do modelo alemão, atribuía primazia à pesquisa pura e à formação em nível de pós-graduação, em oposição à graduação e à noção de extensão à comunidade (SCOTT, 2006). Mais conhecido por sua obra Medical education in the United States and Canada (FLEXNER, 1910), que revoluciona o ensino médico norte-americano, Flexner também escreve acerca das funções da universidade, após temporada na Inglaterra e Alemanha. Suas reflexões estão publicadas em Universities: American, English, German (FLEXNER, 1930), onde traça uma perspectiva comparada entre as tradições de ensino superior. Para ele, a conservação e reprodução do conhecimento sempre foram grandes funções da universidade, até então um empreendimento educacional privilegiado. Em face das demandas contemporâneas, contudo, ao ensino técnico e vocacional ou à democratização da educação “não deveria ser permitido distrair a universidade” (FLEXNER, 1930, p. 28). razão, de reflexão”, em oposição a uma educação comercial ou profissional (NEWMAN, 1873, p. 107).

Se não se pode dizer que Flexner era contrário à democratização do ensino, ao menos é possível afirmar que ele era claramente contra a democratização do ensino na universidade. Ao resgatar a cisão medieval entre faculdades superiores e inferiores, Flexner fecha as portas da universidade para estudos, à sua visão, majoritariamente vocacionais, como administração, jornalismo e biblioteconomia, reservando lugar de destaque para direito e medicina, profissões cujo “caráter essencial deriva da inteligência” e não do trabalho manual (FLEXNER, 1930, p. 8). Para essas modalidades de estudos de cunho mais pragmático e menos intelectual, deveria haver uma gama de outras instituições, adaptadas a suas funções e objetivos. Nesse sentido, Flexner deixa transparecer uma hierarquização entre as instituições de ensino superior, tendo a universidade uma especialidade maior em relação às outras.

Simultaneamente a Flexner, outro grande autor a tratar da missão da universidade foi José Ortega y Gasset (1883-1955), em sua obra Misión de la Universidad, datada de 1930. Nela o então filósofo espanhol identifica na universidade europeia de sua época uma missão voltada para o ensino tanto das “profissões intelectuais” quanto da investigação científica. Contrário a essa tendência, numa perspectiva praticamente anti-humboldtiana, especula Ortega y Gasset (1960) como seria unir atividades tão díspares, visto que para o autor “ser advogado, juiz, médico, farmacêutico ou professor de latim [...] são coisas muito diferentes de ser jurista, fisiólogo, bioquímico, filólogo etc.” (ORTEGA Y GASSET, 1960, p. 13-14).

Para Ortega y Gasset, a universidade do século XIX sucumbira à ciência, tornando o homem um “novo bárbaro, atrasado em relação a sua época, arcaico e primitivo em comparação com a terrível atualidade e momento de seus problemas” (ORTEGA Y GASSSET, p. 18). Os estudantes, segundo o autor, convertiam-se em técnicos competentes, cientificamente bem preparados, mas intelectualmente pobres. Ressentia-se do abandono do ensino da cultura, entendida como “sistema vital de ideias em cada tempo” (ORTEGA Y GASSET, 1960, p. 17), cedendo margem à investigação científica. “Por isso é inevitável criar de novo na Universidade o ensino da cultura ou sistema das ideias vivas que o tempo apresenta. Essa é a tarefa universitária radical. Esta tem que ser, antes de qualquer outra coisa, a Universidade” (ORTEGA Y GASSET, p. 19-20).

Aparentemente, Ortega y Gasset faz referência ao acentuado processo de profissionalização ocorrido durante o século XIX, a partir do qual certas vocações científicas passam a profissão, ou a embasar a atividade laboral de determinados grupos ocupacionais. Durante esse processo, começa a tornar-se clara a noção de que certo tipo de conhecimento formal diferenciava profissionais. Tal conhecimento, obtido por meio de educação especializada, torna-se credencial para profissionais, fundamentando expertise e estabelecendo profissões como classe ou categoria de ocupações especial (FREIDSON, 1988; JARAUSCH, 2004).

Embora a história da universidade mostre que sempre foi sua função a formação de quadros ocupacionais, tradicionalmente indivíduos vinculados às faculdades superiores de medicina, direito e teologia, é a partir do século XIX que esse papel vai se complexificar, na medida em que distintas ocupações, cada vez mais especializadas e organizadas, vão investir na profissionalização. Adquirir reconhecimento como profissão era importante, não apenas porque as associava com ofícios de prestígio - medicina, direito e teologia -, mas também porque a figura idealizada de dedicação e aprendizado desinteressados ofereciam legitimação política para a afirmação do grupo no mundo do trabalho (FREIDSON, 1988).

Com efeito, é no século XIX que as IES vão constituir-se como espaço de produção/reprodução dos conhecimentos aplicáveis às profissões, adquirindo papel de certificação e habilitação profissional. Embora essa tenha sido uma de suas principais missões desde o período medieval europeu, a fragmentação da unidade do conhecimento em distintas disciplinas, a organização das profissões em entidades de classe e uma nova divisão do trabalho nas sociedades capitalistas foram responsáveis por intensificar os elos entre educação superior e profissões a partir do século XIX (JARAUSCH, 2004).

Como destacado por Jarausch (2004), o processo de especialização e disciplinarização científicas foi de grande importância para o estabelecimento das profissões modernas. Reconhecendo, mas conferindo à atividade de investigação uma posição secundária em relação à preservação da cultura intelectual, Ortega y Gasset (1960) buscava enfatizar a necessidade de um treinamento profissional não meramente técnico, mas que observasse uma educação geral. Sem aspirar à exclusão da atividade investigativa do conjunto de valores universitários, entendia que tal atividade deveria compor a missão central, o ensino orientado por: transmissão da cultura; ensino das profissões; investigação científica e formação de novos cientistas. Revelando elitismo, ao entender que a universidade deve priorizar a formação das classes dirigentes de uma nação, sua proposta aproxima-se à de John Newman e distancia-se das propostas humboldtiana e flexneriana.

A realidade, no entanto, supera as conceitualizações. Após as Grandes Guerras Mundiais, a educação superior já se modificara radicalmente em relação às suas origens medievais. Preservando muitas características, como a função de ensino e formação profissional, o sistema de graus acadêmicos e a estrutura organizacional, a universidade se transforma. Engloba novas formas de governo, diversifica-se e decompõe-se em novas instituições, engaja-se em novos papeis e renova seu compromisso com a sociedade, o que a torna um paradoxal caso de conservadora revolução.

Frequentemente, os Estados Unidos são citados como uma peculiar e bem-sucedida experiência de educação superior, com sua diversidade institucional e de objetivos (MORAES, 2013; CLARK, 2008). Uma dessas peculiaridades é o desenvolvimento da Extensão como alargamento das fronteiras da universidade e oferta de serviços à sociedade. Embora tenha origens na Inglaterra, precisamente na University of Cambridge, em 1871 (MIRRA, 2009 citado por PAULA, 2013), é no contexto ianque que a Extensão ganhará destaque.

Com a Lei Morril, de 1862, (MORAES, 2013; ALTBACH, 2001) os estados norte-americanos são estimulados a conceder dotações e sustentar uma rede pública de instituições. O conceito de land-grant que se aplicava a essas instituições foi exemplificado pela chamada Wisconsin Idea, com o argumento de que as fronteiras da universidade coincidiam com as do estado, de modo que a universidade pública teria incumbência de servir a toda a população, com ensino e pesquisa focados na promoção da indústria e a agricultura locais (CURTI; CARSTENSEN, 1949 citados por ALTBACH, 2001). Tais instituições ofereciam, além do tradicional ensino de graduação, cursos de extensão, consultoria e uma gama de serviços. A extensão torna-se uma das principais características da universidade americana (KERR, 1991) e completa a tríade ensino-pesquisa-extensão, que passou a delinear a missão da era da educação superior nesse país.

No período pós-guerra, os Estados Unidos conheceram um crescimento muito acentuado no número de matrículas e instituições (GUMPORT; IANOZZI; SHAMAN; ZEMSKY, 1997). Ao propor aos veteranos de guerra incentivos estudantis e benefícios financeiros, a G.I. Bill de 1944, lei de reinserção dos combatentes, inaugura a era da educação superior de massa nos EUA. Cerca de metade dos 15 milhões dos veteranos teria participado do programa de incentivos do governo federal, fazendo crescer em muito o número de matrículas nas diversas IES americanas (COHEN; KRISKER, 2010). Aliado ao desenvolvimento econômico do período, acarretando aumento da classe média, o número de estudantes nos anos posteriores cresce vertiginosamente. Entre 1960 e 1980, o país parte de um total de 3,5 milhões de estudantes no ensino superior para 12 milhões, constituindo-se uma nação com um sistema de educação superior praticamente universalizado (KERR, 1991).

Data também desse mesmo momento histórico, a escalada dos community colleges, que absorvem parte desses estudantes, diversificando a composição institucional e de público do sistema de educação superior, que deixa de ser um espaço do homem da elite branca para ser composta por mulheres, negros e demais minorias étnicas, e estudantes não tradicionais (CLARK, 2008).

As constantes mudanças sociopolíticas exigem também da educação superior acompanhamento, incorporação e adaptação a tais mudanças. Em meados do século passado, Clark Kerr (1911-2003) desenvolve a ideia de multiversidade, ponto de vista que caracteriza a universidade como dotada de múltiplas missões em benefício da sociedade. Provavelmente por ter vivido e atuado diretamente como reitor da University of California - Berkeley, no período de universalização do ensino superior americano, já consolidado em suas bases de ensino, pesquisa e extensão, Kerr apresenta uma visão mais abrangente de universidade, em The Uses of the University:

A multiversidade é uma instituição inconsistente. Não é uma comunidade, mas muitas - a comunidade dos estudantes de graduação e de pós-graduação; a comunidade do humanista, do cientista social, e do cientista; a comunidade das escolas profissionais; do pessoal não-acadêmico; dos administradores. Seus limites são vagos - estende-se aos ex-alunos, legisladores, fazendeiros, homens de negócios, ligados a uma ou mais dessas comunidades internas. Como instituição, ela olha para o passado e futuro distantes, e frequentemente se vê às voltas com o presente. Serve à sociedade de maneira quase servil - uma sociedade que ela também critica, algumas vezes impiedosamente (KERR, 1963, p. 18-19).

Kerr argumenta em favor do que denomina uma “universidade plural numa sociedade plural” (KERR, 1991, p. 5). Para ele, as funções da universidade respondem ao tempo e lugar nos quais está inserida. Considerando-se pragmático, ele argumenta contrariamente ao idealismo de Flexner. Ao passo em que esses autores buscam a verdade única, conformando-se excludentes e perfeccionsitas, Kerr prefere adotar uma visão prática, inclusiva e adaptativa, em prol daquilo que melhor sirva às necessidades da sociedade.

Apoiado em tais discussões, recentemente, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, destaca-se como intelectual voltado para a relação entre universidade e sociedade. Leitor de Kerr, Boaventura faz uma constatação análoga a do pensador estadunidense ao declarar que a perenidade dos objetivos, canonizados por idealistas como Ortega y Gasset, Flexner e Jaspers, foi abalada na década de 1960, diante de pressões sociais com que a instituição universitária se deparou. Segundo Santos (1989, p. 12-13), “ao nível mais abstracto, a formulação dos objetivos manteve uma notável continuidade”, tendo permanecido na retórica universitária. Contudo, no que respeita à operacionalização desses objetivos, Boaventura aponta para transformações no cotidiano universitário. Revisitando a fórmula de Jaspers, constata a investigação, o ensino e a prestação de serviços como os três principais fins da universidade, e afirma que sobre essas clássicas funções incidem novas outras, promovendo um movimento de conflito e inflexão. Afirma:

Apesar de a inflexão ser, em si mesma, significativa e de se ter dado no sentido de atrofiamento da dimensão cultural da universidade e do privilegiamento do seu conteúdo utilitário, produtivista, foi sobretudo ao nível das políticas universitárias concretas que a unicidade dos fins abstractos explodiu numa multiplicidade de funções por vezes contraditórias entre si (SANTOS, 1989, p. 13).

A gestão das tensões que emergem desse processo, para o autor, vêm conduzindo a universidade a uma tríplice crise. Manifestada pela contradição entre conhecimentos exemplares e conhecimento funcionais, haveria uma crise de hegemonia. De um lado o cultivo de alta cultura, pensamento crítico-reflexivo e conhecimentos exemplares - científicos, humanísticos, ou artísticos - necessários à formação das elites; do outro a produção de padrões culturais médios e de conhecimentos instrumentais, úteis na formação de mão de obra qualificada. Isto posto, à medida que a universidade se torna incapaz de desempenhar, de modo pacífico, funções aparentemente contraditórias, a sociedade passa a se engajar na busca de meios alternativos para consecução de tais objetivos, situação expressa na diversa composição das IES na atualidade (MARGINSON, 2007). Ao deixar de ser o espaço por excelência do ensino superior e da investigação, a universidade perde sua hegemonia (SANTOS, 2004, 1994, 1989).

A crise de legitimidade manifesta-se pelo fato de ter deixado de ser uma instituição consensual, com a falência dos objetivos coletivamente assumidos. Expressa na contradição entre restrição de acesso a carreiras profissionais pelo credenciamento das competências e exigências sociais e políticas da democratização do acesso à universidade (SANTOS, 2004, 1994), bem como a capital cultural, simbólico e econômico por ela proporcionados, tal crise decorre da própria crise de hegemonia. Portanto,

No momento em que a procura da universidade deixou de ser apenas a procura da excelência e passou a ser também a procura de democracia e de igualdade, os limites da congruência entre os princípio da universidade e os princípios da democracia e da igualdade tornaram-se mais visíveis: como compatibilizar a democratização do acesso com critérios de selecção interna?; [...] como é possível [...] adaptar os padrões de educação às novas circunstâncias sem promover a mediocridade e descaracterizar a universidade? (SANTOS, 1989, p. 38).

Por fim, existe uma crise institucional na instituição universitária “na medida em que sua especificidade organizativa é posta em causa e se lhe pretende impor modelos organizativos noutras instituições tidas por mais eficientes” (SANTOS, 1989. p. 15). Está na base dessa crise a tensão entre tradicionais valores de autonomia acadêmica e crescente pressão pela submissão aos critérios corporativos (SANTOS, 2004), intensificados pelo capitalismo desestruturado regido pela lógica neoliberal.

Quinze anos após publicar o texto Da Universidade de Ideias à Ideia de Universidade (SANTOS, 1989), em que analisa a crise da universidade, o autor constata ter havido um monopólio de soluções institucionais, ocasionando descaracterização da universidade e acentuação de sua crise de hegemonia, bem como crescente segmentação do sistema universitário, desvalorização dos seus diplomas, condições atreladas à crise de legitimidade (SANTOS, 2009).

Santos (2009) vai além da constatação de que a universidade passa por acentuação de sua crise institucional, de hegemonia e de legitimidade, ao propor uma Universidade para o Século XXI. Sendo a universidade afetada também pela globalização e pelas forças neoliberais, deve agir, no sentido de uma globalização contra-hegemônica. Sua proposta indica não lutar contra o processo inexorável de transnacionalização de mercados, conhecimento e culturas, mas, inteligentemente, aproveitar-se dos elementos favoráveis que essa condição confere para o fortalecimento de uma identidade nacional, pois a universidade é peça fundamental da emancipação política, social e cultural de uma nação e dos povos que a compõem.

Na visão de Boaventura de Sousa Santos, a universidade contempla necessariamente formação graduada e pós-graduada, pesquisa e extensão, devendo ser encarada como bem público, financiada pela Estado e intimamente ligada ao projeto de país. Dada a conjuntura atual de transnacionalização da educação superior, em que o ensino se encontra maciçamente mercantilizado (SANTOS, 2009) torna-se função da universidade pública agir como instrumento de globalização contra-hegemônica, contrária ao desmantelo do Estado social empreendido pela lógica neoliberal, deixando em aberto a questão de se poderia um bem público ser produzido por uma entidade privada, e em quais condições isto seria possível.

Considerações finais

Uma missão pode ser entendida como aquilo que é esperado de uma instituição, ou seja, aquilo que ela transmite, possibilita ou promove para a sociedade (PEDRO, 2012). No caso das instituições de ensino superior, é preciso reconhecer a multiplicidade de missões que se estendem através do tempo e tipos de instituição.

Multifacetadas, frequentemente simultâneas e interligadas, na realidade, as missões podem, em certa medida, se revelar até mesmo contraditórias em sua própria natureza. A exemplo disso, tem-se a oposição entre educação liberal e treinamento técnico-vocacional, que ainda constitui um dos pilares da educação superior em muitas sociedades. Dinâmicas e fluidas, as missões “refletem o constante fluxo de renovação dos ideais filosóficos, das políticas educacionais e da cultura de determinadas sociedades ou instituições acadêmicas (SCOTT, 2006, p. 3).

Cumpre assinalar que a universidade, tendo sido a instituição de ensino superior por excelência durante boa parte de sua trajetória quase milenar, atualmente divide com uma diversidade de instituições - das faculdades especializadas aos institutos tecnológicos - a função primordial do ensino e da formação, seja ela profissional ou cidadã. Paradoxalmente à sua relevância, declarada por teóricos e intelectuais, hoje o ensino e mesmo a pesquisa não lhe pertencem com exclusividade. Sua hegemonia sustenta-se, quando muito, num plano retórico. De tal modo, coexistem dentro do mesmo conceito de educação superior, ou dentro da mesma instituição de educação superior, uma diversidade de razões de existência.

Em contraste com algumas décadas passadas, em que sistemas de educação superior eram reflexo do desenvolvimento histórico peculiar de cada país, atualmente as tradições educacionais têm sido minimizadas em relação ao desenvolvimento convergente da educação superior em distintos contextos nacionais (MARGINSON; VAN DER WENDE, 2007).

A educação superior vive, portanto, uma era global. Os recentes processos de globalização têm operado marcadas transformações nos sistemas educacionais nacionais. Nações, instituições e indivíduos, estão todos envolvidos num processo de transnacionalização do conhecimento, em sua produção e reprodução. A universidade, por sua vez, ora espaço de inovação ora de reacionarismo, sempre se apoiou em tensões postas pela sua relação com a sociedade. O momento atual reflete mais uma crise, à qual necessita encontrar, como sempre pareceu ter feito, mais uma saída.

Referências

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1Havia nos anos imediatamente anteriores à virada do milênio uma crença generalizada acerca do fim do mundo, derivada em especial de interpretações de textos bíblicos, em que o retorno de Jesus Cristo, marcada para esse período, representaria uma nova era. Conhecido como milenarismo, esse conjunto de interpretações, ensejou divergências e debates que ultrapassaram as fronteiras acadêmicas e teológicas, estendendo-se ao cotidiano medieval e ensejando previsões apocalípticas.

Recebido: 25 de Maio de 2018; Aceito: 07 de Agosto de 2018

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