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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub Nov 11, 2020

https://doi.org/10.5902/1984644431374 

Artigo Demanda Contínua

Trabalho docente em classes multisseriadas: diferentes modos de entender a diferença na escola

Teaching work in multi-grade classes: different ways of understanding difference in school

Trabajo docente en clases multiserias: diferentes modos de entender la diferencia en la escuela

Fabrício Oliveira da Silva* 

Charles Maycon de Almeida Mota** 

Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios*** 

*Professor doutor na Universidade do Estado da Bahia, Irecê, Bahia, Brasil. faolis@ig.com.br

**Professor doutorando na Educação Básica de Várzea do Poço, Várzea do Poço, Bahia, charlesmaycon22@hotmail.com

***Professora doutora na Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. faolis@uol.com.br


RESUMO

Este artigo apresenta discussões e resultados de uma pesquisa que teve por objetivo compreender como os professores das escolas multisseriadas concebem as diferenças e como lidam com estas em sala de aula. Utilizamos no decorrer do estudo como direcionamento metodológico, a pesquisa qualitativa fundamentada na abordagem (auto)biográfica. Desse modo, tomou as narrativas como um dispositivo de investigação, por entender que as narrativas de formação-profissão, trazem consigo elementos sobrecarregados de subjetividades e, que por isso, favorecem produções de sentidos e significados sobre/da formação. Para tanto, lançamos mão das oficinas formativas, inspiradas nos ateliês biográficos, com sete professores que atuam em classes multisseriadas de escolas rurais, no município de Várzea do Poço, interior da Bahia-Brasil. Pudemos perceber com esta pesquisa que as diferenças vão sendo demarcadas, especificamente pelo fator social em que seus alunos se encontram e pelas dificuldades de aprendizagem que alguns apresentam, desencadeando a percepção de que a diferença ainda se encontra associada à ausência de elementos normalizador dos sujeitos. Assim, o estudo evidenciou que as diferenças são tomadas como algo segregador dos sujeitos, em que a solução é homogeneizar os sujeitos, numa perspectiva de não reconhecimento das diferenças nas dimensões culturais e sociais.

Palavras-chave: Diferenças; Profissão docente; Docência em classes multisseriadas

ABSTRACT

This article presents discussions and results of a research that aimed to understand how the teachers of the multi-series schools conceive the differences and how they deal with them in the classroom. In the course of the study, we used qualitative research based on the (auto) biographical approach. In this way, I take the narratives as a device of investigation, because I understand that the narratives of formation-profession bring with them elements overloaded with subjectivities and, therefore, favor productions of meanings about the formation. To this end, we have used the formative workshops, inspired by the biographical workshops, with seven teachers who work in multigrade classes of rural schools, in the county of Várzea do Poço, in the interior of Bahia-Brazil. We can perceive with this research that the differences are being demarcated specifically by the social factor in which their students are and by the learning difficulties that some of them present, triggering the perception that the difference is still associated with the absence of normalizing elements of the subjects. Thus, the study evidenced that the differences are taken as something segregating the subjects, in which the solution is to homogenize the subjects, in a perspective of not recognizing the differences in the cultural and social dimensions.

Keywords: Differences; Teaching profession; Teaching in multigrade classes

RESUMO

Este artículo presenta discusiones y resultados de una investigación que tuvo por objetivo comprender cómo los profesores de las escuelas multiserias diseñan las diferencias y cómo lidian con éstas en el aula. Utilizamos en el curso del estudio como direccionamiento metodológico, la investigación cualitativa fundamentada en el abordaje (auto) biográfico. De ese modo, tomó las narrativas como un dispositivo de investigación, por entender que las narrativas de formación-profesión, traen consigo elementos sobrecargados de subjetividades y, que por eso, favorecen producciones de sentidos y significados sobre / de la formación. Para ello, lanzamos mano de los talleres formativos, inspirados en los talleres biográficos, con siete profesores que actúan en clases multiserarias de escuelas rurales, en el municipio de Várzea do Poço, interior de Bahía-Brasil. Se puede percibir con esta investigación que las diferencias van siendo demarcadas, específicamente por el factor social en que sus alumnos se encuentran y por las dificultades de aprendizaje que algunos presentan, desencadenando la percepción de que la diferencia todavía se encuentra asociada a la ausencia de elementos normalizador de los sujetos. Así, el estudio evidenció que las diferencias se toman como algo segregador de los sujetos, en que la solución es homogeneizar a los sujetos, en una perspectiva de no reconocimiento de las diferencias en las dimensiones culturales y sociales.

Palavras-chave: Diferencias; Profesión docente; Docencia en clases multiserias

Introdução

Pensar sobre os campos que são inerentes às diferenças em escolas multisseriadas, requer certo posicionamento frente aos debates contemporâneos sobre as identidades, as quais são concebidas a partir das interações que os sujeitos estabelecem com seus pares, bem como com a realidade em que estão inseridos, marcando e demarcando o seu lugar no mundo.

Partindo dessa perspectiva, não podemos separar identidade de diferença, já que, para nos identificarmos, é preciso nos diferenciar de outrem. Nesse processo, acabamos por buscar elementos, de cunho material e/ou imaterial, responsáveis pelas relações que se fazem presentes na simbologia que se constrói através das redes tecidas, entre o eu, o outro e a realidade em que estes estão inseridos.

Nessa realidade, em que as relações políticas, econômicas e socioculturais, se estabelecem em uma referência espacial, através da mobilização de sentidos, a ideia de espacialidade pode se referir a um espaço em que as relações demarcam posicionamentos característicos de um contexto situacional em que os sujeitos estão inseridos. Assim, entendemos o espaço como sendo o lugar em que acontecem as diversas interações que envolvem o eu e o outro em uma dada realidade, sobretudo na educacional.

Sabemos que os embates de toda ordem têm sido recorrentes no campo educacional, sobretudo, no início desse milênio, pois trazem à tona uma série de questionamentos e problemáticas a respeito da diversidade, principalmente nos espaços onde estão situadas as escolas multisseriadas. Neste sentido, estes se colocam como indicativos de reflexões sobre os diversos aspectos, os quais têm uma relação direta e indireta com o trabalho docente. Este fato tem impulsionado o redimensionamento das concepções sobre a função social da escola, no que se referem aos fatores históricos, políticos, econômicos e socioculturais. O fazer docente, pautado nos princípios de uma formação baseada em um formato curricular que busca atender a um padrão ideológico dominante que, por muito tempo, considerou o conhecimento científico como único e homogêneo, tem se tornado incapaz de trazer para o centro das discussões no interior da escola, as questões das diferenças e dos saberes e fazeres locais.

As escolas rurais em suas especificidades apresentam-se como um espaço, como um território da diferença1 por estar permeado das mais variadas culturas representadas pelos diferentes modos de ser/pensar/viver próprios de cada sujeito que frequenta as escolas multisseriadas. Desse modo, a docência em contextos rurais, muitas vezes, desconsidera esses diferentes modos de ser/pensar/viver por não dá visibilidade à realidade local e aos saberes inerentes aos espaços rurais como forma impulsionadora de ensino e aprendizagens.

Ao tratarmos das classes multisseriadas como lócus de preocupação e, por conseguinte, de estudo, estamos dando centralidade a um fazer docente pautado em concepções outras que estão fundamentadas numa heterogeneidade dos sujeitos que a constituem, focalizadas em suas histórias de vida, seus ritmos e dos sentidos atribuídos ao contexto de vidas. Logo, pensar a profissão docente a partir dessas condições nos remete tomar a diferença como elemento fundante para o trabalho docente nestas escolas. Considerando essa lógica argumentativa, este trabalho procurou compreender como os professores das escolas multisseriadas concebem as diferenças e como lidam com as mesmas na sala de aula, a partir de suas narrativas de formação e atuação na profissão docente.

A pesquisa foi realizada em escolas rurais do município de Várzea do Poço, interior da Bahia, com a colaboração de um grupo de professores de escola rural, que, tomando como elemento central seus percursos de formação-profissão, compartilharam seus saberes e fazeres docentes, refletindo, revendo e discutindo o contexto das diferenças em sala de aula.

É importante mencionar que as narrativas (auto)biográficas se apresentaram neste estudo como um dispositivo de formação por evidenciar o fazer docente numa vertente de valorização dos sujeitos das comunidades rurais e as condições de vida destes. Do mesmo modo, permite analisar como os professores fazem a docência acontecer nestes espaços, buscando compreender uma multidimensionalidade que contempla seus jeitos de ser/pensar/fazer. Esse movimento narrativo os direciona à projeção de si, (re)orientando-os a um (re)posicionamento que toma como mote as perspectivas de futuro que pensam para si, e que no movimento da formação são (re)pensadas, (re)avaliadas, (re)consideradas, como elementos fundantes de suas existências e do fazer docente.

No decorrer do texto traçamos um diálogo com teóricos para fazer emergir as variadas produções de sentidos construídas nas narrativas de formação. Assim, organizamos o artigo em três momentos, a saber: no primeiro, abordamos noções sobre identidade e diferença com o objetivo de compreendermos as concepções dos docentes a partir de suas experiências no trabalho com as diferenças na escolas multisseriadas. O segundo nos possibilitou refletir acerca das diferenças na educação para (re)pensar as relações produzidas pelos sujeitos que frequentam as escolas com classes multisseriadas numa perspectiva da horizontalidade. No terceiro discutimos a respeito das condições e oportunidades que temos para tomar as diferenças que emergem nos espaços das classes multisseriadas como mote para a construção de projetos educacionais que deem centralidade para as questões da diversidade cultural, considerando a proposta fundamentada no interculturalismo.

Essa ordenação nos permitiu perceber como a docência nas escolas multisseriadas é constituída pelos olhares/fazeres daqueles que estão no chão da escola, vivendo o contexto relacional que a multissérie lhes proporcionam.

Identidade e diferença: sentidos outros do fazer docente em escolas multisseriadas

A partir dos estudos sobre identidade (BAUMAN, 2009; HALL, 2003; BHABHA, 2013), as relações humanas passaram a ser percebidas em outro prisma, o que nos ajudou a superar a condição daqueles que acreditavam numa identidade fixa, una e desprovida de todos os elementos da subjetividade de um sujeito que apresenta suas diferenças como elementos que o individualizam, mas que também o constituem como um ser plural.

Nesse caso, identidade e diferença vêm ressurgindo de um emaranhado constante, demandado pelas mudanças e incertezas de um contexto permeado por situações que Bauman (2009) nomeou de “vida líquida”, para referir-se ao modo como as coisas mudam numa velocidade inconstante, trazendo para a sociedade as condições mutáveis de um tempo desprovido de elementos que ofereçam a consolidação que, anteriormente, esta sociedade necessitaria para solidificar-se.

Isso nos remete à uma nova maneira de pensar as relações que estabelecemos com o outro, em que são necessárias as descentralizações, dando abertura para uma compreensão multifacetada e multirreferencial da sociedade, o que favorece a compreensão de que tudo está inconcluso, inacabado e passível de (re)construções e redimensionamentos.

Hall (2003) apresenta outro entendimento a respeito da identidade na pós-modernidade, pois segundo esse autor, há historicamente três concepções básicas de identidade: a identidade do sujeito do iluminismo - fundada num sujeito humano, formado por uma centralidade constituída unicamente em seu interior - que se torna uma visão individualista; a identidade que se apresenta como identidade do sujeito sociológico, pela qual não se conservava mais a visão de centralidade, pois se passou a compreender que as relações externas ao sujeito seriam a base para a construção da identidade. Neste enfoque Hall (2003, p. 11-12) enfatiza que:

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.

Ademais, tem-se a terceira concepção de identidade, a parir do entendimento da existência de um sujeito pós-moderno evidenciado como o resultado das interações feitas entre esse interior e o exterior, em que a sua identidade se revela com um sentido de mobilidade e flexibilidade, estando sempre em um processo aberto e passível de reformulações.

Retomar esse processo sobre as três concepções de identidade possibilita o entendimento de que a dinâmica social perpassa por diversos aspectos que direcionam nossas relações com o outro, bem como com a nossa visão de mundo, sendo necessário nos atentarmos para as exigências da atualidade, no que se refere ao entendimento de nossa condição como sujeitos imersos nas mais variadas inter-relações.

As mudanças de paradigma na contemporaneidade têm exigido novas posturas, novos pensares e, consequentemente, novos fazeres, que devem estar em consonância com uma posição que nos permita assumir diferentes identidades, pois, como diz Silva (2011, p. 32), “[...] podemos viver, em nossas vidas pessoais, tensões entre nossas diferentes identidades quando aquilo que é exigido por uma identidade interfere com as exigências de outra”.

Isso confere flexibilidade à compreensão da complexidade nas relações que estabelecemos com o outro, de modo a superar polaridades e binarismos, em que, para enaltecer um, é preciso inferiorizar o outro. Para apresentar essa ideia de binarismo, Bhabha (2013, p. 126) discorre sobre a produtividade do conceito foucaultiano de poder e conhecimento, dizendo que “Pouvoir/Savoir coloca sujeitos em uma relação de poder e conhecimento que não é parte de uma relação simétrica ou dialética - eu/outro, senhor/escravo - que pode então ser subvertida pela inversão”. Nesse aspecto, são alimentados os sentimentos que emergem dessas relações que envolvem os sujeitos, a partir de uma comparação nada justa, em que se valoriza uma desproporcionalidade nessas relações.

Considerando as reflexões sobre identidade tecidas pelos autores mencionados, fica evidente que, quando um sistema de ideologia dominante busca o seu fortalecimento, mesmo percebendo que poderá ser enfraquecido e substituído por novos sistemas, provoca-se a inversão dos princípios sociais de uma comunidade com a imposição de identidades que estejam pautadas em forças negativas, causando o enfraquecimento daqueles que se encontram numa situação de vulnerabilidade, não só de cunho social, mas também, cultural. Complementando tal perspectiva Bauman (2005, p. 44) reitera que:

Na maior parte do tempo, o prazer de selecionar uma identidade estimulante é corrompido pelo medo. Afinal, sabemos que se os nossos esforços fracassarem por escassez de recursos ou falta de determinação, uma outra identidade, intrusa e indesejada, pode ser cravada sobre aquela que nós mesmos escolhemos e construímos.

A compreensão de identidade forjada por Bauman (2005) nos leva a pensar sobre o processo de construção de subjetividades, pois como posto/assinalado, dito, esta se dá através de nossas inter-relações na coletividade, contudo, sem desconsiderar o processo de individuação do qual vivemos. Desse modo, cabe mencionar que a subjetividade, tal como a identidade, pode ser também condicionada por interesses e intencionalidades coadunadas com determinada ideologia. Assim, ao comungar dos elementos que estão atrelados ao processo de construção das subjetividades, podemos processá-los, de modo que estes permaneçam como foram concebidos, como também podemos desenvolver meios de recriá-los e redimensioná-los.

É contundente a ênfase de que os sujeitos trazem para seus grupos, através de um processo de autoconhecimento e autoafirmação, superando a condição de subjugados, por não se enquadrarem nos moldes de uma sociedade que, durante muito tempo, ainda permanece sustentando uma ideia estereotipada, favorecendo com tal postura a ocupação dos subjugados de um não-lugar (BHABHA, 2013), um território negado pela lei, mas dominado por um imaginário de liberdade, alimentado por sonhos, anseios e devires.

Deve estar em jogo, quando apresentamos a força que um grupo tem, a capacidade de reinvenção da realidade, como forma de criação de um processo de retroalimentação de todos os elementos inerentes à produção da subjetivação, à diferença que nos constitui como um ser da individuação e as identificações necessárias à produção de identidades sociais. Tais vertentes são complementares e se encontram numa relação que acontece de maneira transversal. Nesse sentido, são fortalecidos não só os aspectos referentes ao que nos coletiviza, mas também os aspectos do sujeito em si.

Não podemos esquecer que as transformações, de cunho social, político e cultural, que aconteceram nas últimas décadas, podem ser caracterizadas como dispositivos para novos posicionamentos, redescobertas do potencial de reinvenção da realidade, como forma de enfrentamento às classes dominantes que durante muito tempo, esfacelaram indivíduos e grupos que foram capazes de demonstrar uma posição contrária à “ordem” estabelecida pela nação.

Nesta perspectiva, vinculamos como impulsos para essas transformações, os pressupostos que possibilitaram reflexões e, consequentemente, muita luta para que os sujeitos pudessem se reconhecer como parte de um mundo e, em vista disso, mobilizassem esforços para transformar esse mundo. Nesse movimento, despertamos para a autoafirmação e o reconhecimento de que estamos vivenciando um momento que Bauman (2005) referência como incerto e transitório, no qual as identidades sociais não podem(riam) mais ser compreendidas como elementos sólidos, mencionando, então, o termo “liquidez” para retratar uma sociedade em crise, caótica e desestabilizada pelas pressões micropolíticas.

Isso tudo desembocou no abandono de alguns princípios e na ressignificação de outros, que pudessem condizer com esse momento de incertezas e transitoriedade, surgindo, atrelada a esses processos, a instabilidade das identidades sociais. Neste contexto, Bauman (2005, p. 31) entende que a identidade, ao “perder as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso”.

Contudo, a necessidade de nos revitalizar e ancorar as nossas referências em grupos que nos permitam compartilhar nossos posicionamentos, adquirindo meios que possam contribuir com o processo de construção e reconstrução de nossas identidades, nos possibilitou lidar com a dinâmica das mudanças que interferem intimamente na vida social, cultural e econômica dos sujeitos sociais na contemporaneidade.

As diferentes formas de organizações sociais dão sustentação aos princípios que orientam a construção e reconstrução das identidades sociais, as quais perpassam pela “celebração da singularidade cultural de um determinado grupo, bem como pela análise de sua opressão específica” (SILVA, 2011, p. 35). Assim, fica evidente que as melhores condições ligadas aos processos de singularização cultural e de identificação social requerem que os sujeitos sejam permeados por uma consciência que considere suas condições de estar e permanecer atuando no mundo de uma forma geral, e, de modo particular, em suas comunidades e nos grupos os quais estão inseridos.

As condições de existência desses grupos sociais constituídos por identificações, diferenças e subjetividades, vêm buscando formas, maneiras, estratégias de resistir e sobreviver, na perspectiva de encontrar sentidos moventes que estejam ligados aos modos de reinvenção da realidade e de organização social para o enfrentamento desse tipo de estrutura, e, portanto, de tornar visível o invisível, neste caso, ou seja, as diferenças.

No bojo desses contributos, nota-se um momento de efervescência e de embate nas discussões sobre valores, princípios e significados dos modos de vida dos sujeitos sociais. É válido salientar que tais perspectivas “exigem formas de pensamento dialético que não recusem ou neguem a outridade (alteridade) que constitui o domínio simbólico das identificações psíquicas e sociais” (BHABHA, 2013, p. 279).

É cabível mencionar a complacência nas relações entre o eu e o outro, numa trama que requer um se colocar diante/para/com o outro, de modo que aconteça um processo de ressignificações, a partir de um encontro de culturas, pelo qual possam ser produzidas novas estruturas que abarquem aqueles que foram, e ainda são, relegados a um não-lugar.

Partindo de todas as premissas levantadas e discutidas aqui, cabe mencionar algumas angústias e inquietações a respeito daqueles que se encontram no âmbito da escola e que, estão ou foram excluídos, compondo um “entrelugar”, mas que tentam mobilizar mecanismos que lhes estão disponíveis, como fator de sobrevivência a um ambiente, muitas vezes, inóspito, ou seja, com padrões impostos por uma concepção de educação e escola que não concebe as diferenças como elemento estruturante para um outro pensar e fazer a docência.

No cotidiano da sala de aula, algumas situações evidenciam as marcas da diferença que cada sujeito traz consigo, pois, quando não são invisibilizadas, são tratadas com indiferença e preconceito. Em tais momentos, é responsabilidade do professor intervir, de modo a conferir a situações como estas outras possibilidades de respeito às diferenças e de convívio com a diversidade, como podemos depreender na narrativa de Ester2.

[...] quando o menino fala fino na sala, eles dizem: Você tá como uma “bichinha”. [...] Vou me referindo às partes do corpo deles, então é um jeito diferente de ser, que você vai respeitar, quando precisa [...] falar sério, eu falo, porque eu acho assim, eu vou pra toda essa diferença e eles continuam, é uma “bichinha”, é uma “bichinha” que fala fino, eu digo pra eles, falar é um jeito dele e respeitar é uma ação sua, e você precisa respeitar, eu vou com todo esse jeito por trás, quando dá e quando não dá, eu sento e começo a falar sério, imponho minhas condições. Você não vai falar isso com seu colega, seu colega precisa de respeito. Como você também precisa de respeito, todo mundo precisa de respeito pelo que é. Aqui não tem todo mundo igual e não tem ninguém diferente, porque, pelos seus atos, você é diferente, mas pelo seu corpo você é igual a ele, tudo que ele tem você tem, a não ser que seja um homem que tem um órgão genital diferente da mulher. E aí vou mostrar pra ele também a diferença que eles têm que é só aquela ali e o resto tudo eles têm igual. (Ester, Entrevista narrativa, 2016).

Compreendemos que as intervenções que cada professor faz em sala de aula, diante de situações que revelam as marcas da diferença e da identidade dos alunos, estão condicionadas por suas concepções de identidade e diferença, bem como pelo modo como pensam as relações entre estes alunos em contextos de diversidade. Com isso, vimos descortinar a necessidade que temos como professores da Educação Básica, de discutir e consolidar momentos formativos que garantam a (re)construção de concepções, em um trabalho que evidencie as diferenças na sala de aula, como elementos constituintes de nossas identidades e não como algo que nos inferiorize ou cause a nossa exclusão.

As questões sobre as identidades trazidas e produzidas pelos indivíduos, que se encontram imersos nos muitos diferentes grupos que compõem a comunidade escolar, sempre estiveram em segundo plano, isso quando não eram camufladas através das tentativas de subvertê-las. É nesse contexto que começamos a perceber que, enquanto professores, precisamos nos atentar para os aspectos intrínsecos às diferenças, pois estes são fatores preponderantes para a construção da autonomia e a busca da liberdade dos diferentes grupos que compõe a escola.

Acreditamos que, se nos atentarmos aos aspectos intrínsecos às questões da diferença em sala de aula, isso exigirá de nós, como professores, a capacidade de visualizar, para além das condições sociais e econômicas dos indivíduos, uma proposta fundamentada na interculturalidade, por compreendermos que seus princípios se constroem a partir das interações culturais entre os sujeitos e de acordo com o modo de vida deles. Conforme as narrativas de Edson e Clóvis, as diferenças que aparecem em sala de aula têm um maior enfoque nas condições sociais e econômicas.

[...] o professor que está na sala de aula se depara com essas diferenças. A gente encontra filho de pais que não têm aquele acompanhamento como deveria ter com os filhos, principalmente na sala de aula, a gente também encontra filhos que vêm para a escola que não têm assim uma boa alimentação em casa. (Edson, Entrevista narrativa, 2016)

[...] a gente percebe que tem crianças que vêm sem ter feito uma alimentação adequada e a gente tenta manusear isso de uma forma diferente, [...] às vezes algum pode chegar atrasado porque a mamãe demorou de passar o café pra ele, muitas vezes a gente percebe que não tinha café em casa, [...]. (Clóvis, Entrevista narrativa, 2016)

Já na narrativa de Marta, encontram-se outros elementos inerentes às questões da diferença, mas que abrangem aspectos, além da condição social e econômica.

Na sala de aula, todos os dias [...] aparece dificuldade, aparece aquele aluno que não tomou café que tem dificuldade de aprendizagem por isso, aparece aquele aluno que em casa o pai brigou. Tem aquele que tem deficiência que quando tem um trabalho de grupo não quer ficar juntos. Tem aquele que tem dificuldade de aprendizagem. São diversos fatores que aparecem na sala de aula e, como professora, tenho que ter aquele discernimento de entender cada dificuldade de cada um e procurar trabalhar em cima daquela dificuldade de cada um pra que todos saiam ganhando. (Marta, Entrevista narrativa, 2016).

Os professores de escolas multisseriadas compreendem as diferenças, de maneiras diversas, dividindo opiniões que expressam suas concepções sobre esta questão. Sendo assim, é possível entender que, em alguns momentos, estes docentes enfatizam a diferença, na vertente da falta ou ausência de elementos intrínsecos à condição social e econômica que seus alunos vivem, atrelando a tais condições as dificuldades de aprendizagem que surgem no contexto da sala de aula. Estas concepções vão sendo construídas, sorrateiramente, a partir de comparações entre os próprios alunos, em que são tomados como referência alguns padrões estabelecidos por um modelo de sociedade fundado no ideal branco, heterossexual, machista, patriarcal e elitista.

Cabe ressaltar que, mesmo relacionando as diferenças às condições socioeconômicas dos alunos, estes professores compreendem que a sala de aula está permeada por uma diversidade de fatores que exigem deles posicionamentos de respeito e acolhimento, buscando entender as situações de vida de seus alunos e suas possíveis dificuldades para estabelecer um trabalho que tome isso como um pressuposto para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Com esse enfoque, cabe mencionarmos que a diferença requer formas de compreensão de sentidos mais profundos, nas quais sejam evitadas as comparações esdrúxulas e binárias. Essa atitude não é vista como algo inevitável, mas, sim, como um elemento preponderante da construção da identidade, em que os indivíduos possam se apoiar uns nos outros, através desses elementos inerentes às diferenças que integram cada um deles.

A diferença como um campo que faz ressurgir as identificações, enfatiza um movimento que se dá num ir-e-vir constante, o que possibilita a compreensão de que a identidade é performativa,3 e se desloca no sentido que nos coloca na condição do vir-a-ser (SILVA, 2011). Logo, fica evidente que é a partir dos elementos da diferença que os sujeitos constroem suas identidades e estabelecem suas relações com os outros, pelas quais cada um se torna responsável pelo ato que evoca nessa demanda do ir-e-vir, busca aproximar-se da condição do vir-a-ser.

Assumir a diferença como uma baliza desse processo de construção das identidades é oferecer-lhe o seu verdadeiro sentido, uma vez que é a grande responsável pelos acordos e desacordos nas relações estabelecidas entre os indivíduos, dando-lhes mecanismos para que possam interagir com seus conflitos e embates, reestruturando um novo pensamento. Isso é possível a partir das tessituras que se formam no encontro das linguagens, dos posicionamentos e atitudes, pois “[...] somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais” (SILVA, 2011, p. 76).

Identidade e diferença poderão trazer um sentido unívoco e interdependente, em que uma complementa a outra, pois, para “identificar-se com”, é preciso “diferenciar-se de”. Aparentemente, podemos fazer uma rasa interpretação dessa sentença e não conotar os sentidos que dela emergem. Mas, se buscarmos certa exploração do seu significado, iremos notar a sobrecarga de sua semântica como desencadeadora de um processo que se estabelece e se reestabelece no lumiar das inter-relações.

Pensar sobre as políticas de sentido, no campo da educação, se faz, então, urgente, já que este é composto de múltiplas culturas e se encontra num contexto que não mais permite a padronização, muito menos o silenciamento e a invisibilidade dos sujeitos que, durante muito tempo, foram considerados “estranhos”, por não se enquadrarem nos padrões normatizados que a escola sempre disseminou, vetando o acesso de sua cultura. Quando não vetava, os relegava a condições inferiorizadas.

Esse movimento sempre deu margem a estigmas e estereótipos, colocando a escola no mesmo patamar de uma instituição excludente e perversa, pois tudo que o compunha se encontrava formatado para atender a outra lógica social que não tinha a pretensão de valorizar as subjetividades. Sabemos que a realidade educacional ainda não é muito distinta do que foi relatado anteriormente, mas já conseguimos vislumbrar outras perspectivas e novos direcionamentos, que se inspiram nas concepções de identidade e diferença como vertentes complementares entre si.

Logicamente, “reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudança de conteúdos e símbolos culturais; [pois] uma substituição dentro da mesma moldura temporal de representação nunca é adequada” (BHABHA, 2013, p. 276). Considerando este enfoque, devemos ter a clareza de que esses novos olhares e intenções requerem uma revisão profunda na organização social, entre as quais a escola, para que sejam oportunizadas reformulações de sentido que possibilitem uma releitura da realidade social, pela qual a temporalidade e a espacialidade denotem outras significâncias.

A partir dessas perspectivas, as dimensões sociais e culturais deverão ser visualizadas por um prisma que poderá caracterizá-las, não somente como contemplação da realidade, propondo apenas uma revisão de posturas e perfis, mas também por uma séria e profunda reconstituição da realidade social. Neste sentido, os professores de escolas multisseriadas participantes da pesquisa entendem que as dimensões sociais e culturais são fatores preponderantes para o desenvolvimento de práticas docentes que deem centralidade à realidade social de seus alunos, como uma maneira de reconsiderar as formas de vida destes sujeitos em seus contextos.

Diferenças na Educação: (re)pensar as relações na perspectiva da horizontalidade

Os debates educacionais têm se intensificado, cada vez mais, fazendo com que pensemos a educação em outras perspectivas, que estejam atreladas ao momento social vivido, como uma forma de redirecionarmos ações que possam ampliar os horizontes da educação.

A educação tem se apresentado em um cenário da diversidade, em que várias culturas se encontram e se inter-relacionam, num contexto de tensão e negociação, na maioria das vezes, mais de tensão do que de negociação, fazendo ressurgir atitudes de preconceito e estereotipia. Tais atitudes têm sido reforçadas pela estrutura curricular existente, que traz como base as ideologias dos grupos hegemônicos, propondo dispositivos de apaziguamento que desembocam nas políticas de uma suposta democracia, ainda sobrecarregada de intencionalidades que mais reforçam o contexto de desigualdade do que promovem a equidade, desconsiderando as diferenças e as subjetividades.

As diferenças no âmbito da educação não têm um lugar demarcado, seja no currículo oficial ou nas ações e posicionamentos que se revelam através dos fazeres pedagógicos que se dão no dia a dia da escola. Com isso, vivenciamos uma condição de estranhamento do outro, pois são desencadeadas maneiras que nos conduzem a um pensamento individualista e egocêntrico, que se revela nas relações estabelecidas nesse espaço, em que mais vale o eu do que o outro, gerando uma situação de conflitos e exclusão, já que essa maneira de ser e agir se encontra fundamentada nas proposições de um ideal branco, heterossexual e machista.

Nas narrativas de Rafaela, encontram-se presentes, nas atitudes dos alunos, os resquícios de um pensamento fundado na sobreposição desses ideais disseminados na sociedade, que reforçam o preconceito e causam a exclusão.

A gente foi para o campo, vestiu as meninas de short, mandou vir de meia pra poder ficar de chuteira, jogamos bola, nos divertimos bastante, quando cheguei aqui a gente foi discutir sobre isso. Tá vendo que a menina pode jogar bola. Deixou de ser menina? Não. Então, porque menina não pode jogar bola? [...] teve menina que jogou melhor que menino, teve menino que jogou melhor que menina. Então, o futebol foi muito bom pra trabalhar com eles a questão de gênero, [...] as meninas disseram que na casa delas o pai não varria uma casa, não lavava uma louça, porque o pai falou que quem faz isso é mulher, que o papel do homem não é esse, que o papel do homem é ir pra roça trabalhar [...] (Rafaela, Entrevista narrativa, 2016)

De acordo com o excerto da narrativa de Rafaela, além de perceber a força e a frequência com que os padrões sociais responsáveis pelas diversas maneiras de exclusão, invisibilidades e tentativas de mascarar as diferenças imperam, percebemos que a professora já vem inserindo, em suas práticas na sala de aula, discussões que favorecem outra direção, como forma de complementar as lacunas que o currículo oficial apresenta e que acabam por esvaziar os sentidos das diferenças. A professora concebe as diferenças como um elemento importante que deve ser tratado na escola.

Nos discursos que empoderam a instituição escolar como responsável pela formação baseada nos pilares sociais e políticos da sociedade, encontram-se as ideologias dominantes, entranhadas nesse currículo oficial como forma de disseminar práticas de silenciamento, tornando a escola um aparelho homogeneizador. Diante desses pressupostos, qual o lugar daqueles que a escola não consegue enquadrar neste currículo oficial? Rios (2011, p. 155) defende que “todas as diferenças (de)marcadas são tornadas invisíveis na tentativa de normalizar esses sujeitos”. Então, cabe aqui enfatizar que a busca de autonomia torna-se possível através de compromissos éticos e políticos adquiridos na (forma)ação do docente, como transgressão dessas práticas que tentam normalizar os sujeitos.

Com vistas à garantia de um espaço escolar que complemente as propostas do currículo oficial, para dar o lugar merecido, e que é de direito de todo e qualquer sujeito que esteja inserido na escola, faz-se necessário desenvolver com frequência propostas que se coadunem às demandas da diversidade contemporânea, subvertendo a lógica que se apresenta no currículo oficial.

É necessário, portanto, repensar a nossa estrutura educacional vigente, para não continuarmos perpetuando um ideário cultural único e padronizado de currículo. Para isso, é importante compreender a diferença como um elemento que nos mobiliza para a construção de nossas identidades. Para Bhabha (2013, p. 261):

O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização - a representação que não retornará como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em estratégias políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas serve para perturbar o cálculo de poder e saber, produzindo outros espaços de significação subalterna.

Evidencia-se que a diferença segue uma lógica da subversão, requerendo uma negociação e não um enfrentamento, pois os grupos também são formados pelas diferenças que os sujeitos trazem, possibilitando a produção da subjetividade que os fortalece para o enfrentamento das situações de inferiorização.

As diferenças na educação têm provocado conflitos, impactando o formato das propostas educacionais que não condizem mais com a realidade atual, e, consequentemente, gerando uma série de novas questões, a serem discutidas e repensadas. Busca-se, assim, uma direção que favoreça a construção de um projeto educacional que dê centralidade às questões relacionadas à interculturalidade, como uma forma de valorização das diversas culturas que permeiam os espaços escolares, fundando uma prática que lance mão de mecanismos que compreendam que os sujeitos envolvidos nesses contextos têm uma vida e uma história que poderá ser o ponto de partida para a produção de novos saberes e, por sua vez, de construção de novas práticas educativas.

É importante considerar que a relação de alteridade é uma vertente que possibilita outra dimensão, no contexto das diferenças na educação, pois é na inter-relação com o outro que são incorporados os princípios de respeito e reciprocidade, e, nesse caso, recolocam a diferença num lugar merecido. Lugar este que é o da valorização do saber-ser-fazer de cada um, nesse processo educativo.

As discussões sobre as diferenças têm perpassado pelos mais variados campos da educação, onde se pode notar as grandes dificuldades existentes no processo de compreensão de uma manifestação natural de todo e qualquer sujeito, podendo atribuir tais dificuldades a um histórico de negação das diferenças através da tentativa de normalizar/enquadrar os sujeitos, numa perspectiva de tornar homogênea suas caracterizações e ações sociais, como se todos devessem ser iguais e enquadrados em padrões sociais preconizados pela classe dominante.

É necessário reconhecer que existe interesse nos docentes em desenvolver propostas pedagógicas escolares que garantam a valorização da diversidade, porém isso tem se concentrado nos discursos e em algumas ações pontuais. Aqueles que têm se atrevido a implementar meios de valorização do diferente, em suas práticas em sala de aula, respeitando e compreendendo o estudante como um sujeito cognoscitivo, social e cultural, vêm percebendo que as dificuldades de aprendizagem devem ser encaradas de acordo com a multiplicidade de causas que envolve este sujeito. Nesta lógica, envolve também a cultura em que está inserido, o seu nível de desenvolvimento cognitivo, a relação entre o pensar e o agir desse sujeito, bem como o vínculo que ele estabelece com os momentos de aprendizagem.

A narrativa de Pedro (2016) evidencia sua forma de trabalho, ao considerar os diferentes níveis cognitivos existentes em sua sala de aula, e a importância de valorizar cada sujeito e a forma como cada um aprende.

[...] a gente percebe os meninos que estão avançados e os que estão assim com dificuldade de aprendizagem, [...]. Eu dou uma atividade para todos, com o mesmo assunto, aí na hora a gente vai fazer a atividade individual de acordo com a série, [...]. Aquele que não produz frase produz palavras e aí vai formando de acordo com sua aprendizagem, a gente trabalha [...] a ortografia, [...] alguns que já estão mais adiantados eu mandei produzir um textinho, outros escolheram aquelas palavras e produziram frases sobre aquelas palavras e outros a gente mandou circular somente as letras V e F que tinham nas palavras. Então, esta dificuldade, se você souber como trabalhar em sala de aula, com o mesmo assunto e com atividade diferente [...] eles avançam um pouco. (Pedro, Entrevista narrativa, 2016)

As vertentes inerentes às diferenças, presentes nos contextos da educação, e que emergem das mais variadas formas, oferecem condições para a construção de relações que, estabelecidas a partir do encontro de culturas, fazem com que possamos vislumbrar um panorama de possibilidades para a valorização da alteridade. Indo neste sentido, a lacuna existente entre o “eu” e o “outro” pode deixar de existir segundo o modo verticalizado de visualização de um para com o outro, passando a considerar uma relação de horizontalidade que permita uma visão de respeito e corresponsabilidade, o que implica uma simultânea negociação a respeito das conotações de estranhamento que são próprias do encontro das diferenças.

Considerando esses aspectos, percebemos a necessidade de redimensionamento das propostas educacionais para que contemplem perspectivas fundamentadas nas questões da diferença e da subjetividade, e que se colocam como um grande desafio contemporâneo. Para isto, é necessária uma concentração de esforços (nas possibilidades) centrada em uma produção coletiva que envolva docentes e discentes na mesma direção.

(Re)pensando os sentidos da diferença em escolas multisseriadas

O enfoque dominante de padrões normativos educacionais tem sido visto como excludente, especialmente por parte daqueles que durante muito tempo, sofreram com as imposições contidas nas estruturas políticas dominantes (BHABHA, 2013), sendo compelidos a sobreviver em condições de vida indignas, por trazerem explícitos os posicionamentos e os comportamentos do estranho (BAUMAN, 2005). Assim, mesmo notando a transitoriedade e a flexibilidade presentes nos sentidos das vivências, na atualidade, a escola, como um espaço de acolhimento das diversas maneiras de ser e viver, não tem demonstrado um posicionamento condizente com essa dinâmica.

Alguns pontos orientadores desta reflexão devem, então, ter em vista a compreensão de como a escola, na contemporaneidade, tem abordado o interculturalismo, e se as práticas docentes têm oferecido elementos que criem condições de valorização das identidades e diferenças dos estudantes, como uma tentativa de mobilizar elementos que possam ir de encontro às amarras que ainda permeiam os espaços escolares.

O material de apoio disponibilizado pelos órgãos nacionais, responsáveis pela educação, diz apresentar orientações para o trabalho com os temas transversais. Isso pode ser evidenciado no que preconiza a LDBEN (BRASIL, 1996), mas podemos notar que tais temas são tratados de maneira estanque, revelando dicotomias e abordando os termos que reforçam velhos antagonismos. Assim, pode-se mencionar o termo tolerância, que se apresenta no Art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (BRASIL, 1948), como respeito às diferenças, mas, ao analisarmos as políticas de sentido e a semântica da palavra, compreendemos que este termo desencadeia a intenção de suportar as diferenças e não de conviver e respeitar os diferentes, com vistas a garantir políticas públicas que possam oferecer condições de equidade. Além disso, o termo preserva, semântica e politicamente, as hierarquias relacionadas ao que é hegemônico, apresentando a diversidade como algo abrangente, mas totalmente esvaziada de sentido, pois é notável que a maior parte das propostas de políticas públicas, no campo da cultura, vai ao sentido inverso das relações intrínsecas de identidade e diferença, na tentativa de fabricar a identidade e empobrecer o significado da diferença.

A compartimentalização que se faz para pensar a identidade e a diferença pode ser uma maneira de enfraquecer o verdadeiro sentido presente no âmbito de sua inter-relação. Por isso, são necessários esforços para nos contrapormos às intencionalidades das políticas que se utilizam de conceitos abrangentes, mas que são tomados em um caráter simplista e impreciso. Assim, quando utilizados de forma indiscriminada, isso “pode restringir-se ao simples elogio às diferenças, pluralidades e diversidades, tornando-se uma armadilha conceitual e uma estratégia política de esvaziamento e/ou apaziguamento das diferenças e das desigualdades” (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 17).

Cabe então compreender as políticas de sentido que estão envolvidas nas concepções de uma proposta fundada em um pensamento inspirado no interculturalismo, bem como sua contribuição ao campo educacional, uma vez que a sociedade se modifica de maneira dinâmica, exigindo um novo posicionamento convergente com os valores adotados no momento. O termo interculturalismo faz menção ao encontro das variadas culturas que permeiam uma sociedade, sendo uma sentença validada em diversas discussões e o aprofundamento que tem se dado em torno desse conceito e, notoriamente, tem provocado um repensar a respeito de um fazer docente que possa considerar a sala de aula como um espaço privilegiado para o desabrochar dessas variadas culturas.

O interculturalismo pode ser tomado especificamente como uma forma de conceber a relação entre as culturas que permeiam um mesmo espaço, e que, por conseguinte, em meio a tais relações, se fazem presentes embates e choques que surgem dos conflitos aí gerados. Diante desse aspecto, podemos ressaltar que, uma educação fundada nas concepções do interculturalismo deve lançar mão de um pensar que se oriente por uma postura de inclusão.

Partindo de tal premissa, fica nítido que um pensamento baseado no interculturalismo deverá contribuir para um fazer docente que valorize a diferença na diferença, com fundamentos para o questionamento das verdades únicas e instituídas a partir de fundamentalismos e estruturas dominantes, oferecendo, desta forma, bases para que a escola possa lidar com os conflitos e embates que emergem no encontro das culturas, superando visões essencialistas e discursos estanques sobre a diversidade cultural, a identidade e a diferença. Tal perspectiva é percebida nas narrativas de Marta.

A sala de aula é formada por pessoas com diferenças. Cada pessoa tem suas diferenças, ninguém é igual, e na realidade, na sala de aula, a gente tem que acolher cada um do jeito que é. Cada um tem sua condição financeira, cada um tem a maneira de aprender diferente e o professor tem que estar preparado para saber lidar com essas diferenças, saber respeitar as formas de aprendizado de cada um, a cultura de cada um, o modo de vida de cada um, a condição financeira de cada um, a sala de aula tem que ter todo esse preparo e, como professora tenho todo esse cuidado de tá sempre respeitando e procurando cuidar de cada um do jeito que é. (Marta, Entrevista narrativa, 2016)

De acordo com o exposto, percebemos que as diferenças vão compondo as salas de aula das escolas multisseriadas, a partir de um encontro de culturas, sendo evidenciado por Marta, como algo que requer preparação e entendimento, para saber lidar com todas estas questões inerentes às diferenças. Assim, compreendemos que a intersecção das diferenças é a marca presente no seio do grupo que compõe esta sala de aula, exigindo da professora um saber, que ressurge de sua experiência de vida-formação para lidar com as diferenças que permeiam este grupo, como também para mediar e intermediar as inter-relações que acontecem entre os sujeitos.

As propostas contidas em um projeto educacional, em consonância com as realidades dos sujeitos que compõem a instituição escolar, colocam claramente que uma formação pautada nas relações das variadas culturas para a convivência intercultural requer não somente abordar outras culturas, ou outros pontos de vista e posições, de distintas realidades, mas tratar inclusive dos conflitos que aparecem quando são confrontadas essas diferentes posições. Assim, reconhecendo como os direitos dos outros e os seus próprios direitos foram compreendidos historicamente e como poderão ser compreendidos a partir das relações entre culturas, estimula-se, uma postura crítica e transformadora (READY, 2008).

Uma educação intercultural propõe-se, então, a considerar as diferenças e as subjetividades dos sujeitos que compõem os grupos sociais, por isso, é importante nos apropriarmos de políticas públicas afirmativas, como garantia de acesso a um direito que, por muito tempo, foi negado às minorias políticas. Torna-se evidente, pois, que as propostas educacionais que perduram em nosso país não valorizam a unidade na diversidade, muito menos a diversidade da unidade, desconsiderando o paradigma da complexidade (MORIN, 2000), e reforçando o pensamento disjuntivo. Com isso, distanciam-se das possibilidades de desenvolver ações de real interlocução entre as culturas, segundo os princípios e os fundamentos do pensamento conjuntivo. Rodrigues e Abramowicz (2013, p. 22) ressaltam que:

Uma educação voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógicas e curriculares de uma educação voltada à valorização da identidade múltipla no âmbito da educação formal.

Tal incorporação ainda continua sendo um dos nossos grandes desafios na educação, requerendo a mobilização dos variados elementos que possam validar um fazer pedagógico pautado na valorização das identidades. Assim, neste âmbito, torna-se urgente o enfrentamento dos estigmas e preconceitos a respeito dos diferentes modos de vida das comunidades desprivilegiadas.

É bem verdade que os enfrentamentos das estruturas hegemônicas são necessários e poderão diminuir os impactos das forças de uma lógica cultural excludente, pois, em paralelo a esse movimento, as microestruturas vão ganhando imunidade a tais aspectos e reestabelecendo, nas suturas existentes nas estruturas sociais, a afirmação de uma coletividade disposta a buscar dignidade e valorização.

Considerações finais

Com o desenvolvimento desse estudo, pudemos nos aprofundar, de maneira significativa, nas questões a respeito da identidade e da diferença para compreender os outros sentidos da docência nas escolas multisseriadas, utilizando as narrativas (auto)biográficas como pressupostos de formação docente fundamentado nas propostas da pesquisa-formação. Com isto, percebemos as potencialidades que as trajetórias de formação-profissão têm para o redimensionamento de um fazer docente nas escolas rurais, com vistas à valorização local e à devida atribuição do lugar da diferença nestes espaços.

Podemos enfatizar que no desenvolvimento da pesquisa-formação, se colocava, como evidência constante, a ausência de conhecimento e de compreensão do sentido da identidade e da diferença, por parte dos professores-colaboradores da pesquisa, por não terem, ao longo da profissão, momentos específicos destinados a discussões e/ou formações que tratassem desta temática, de maneira aprofundada. Assim, quando se discutiam temas relacionados à diversidade, tinha-se como base o material de orientação didática, que sempre permeou os espaços educacionais e que, por sua vez, esvaziava os verdadeiros sentidos da diferença.

A diferença aparece na pesquisa com variados sentidos, ora como característica própria de cada sujeito, ora como um elemento que precisa ser mascarado, a partir das tentativas de homogeneizar os alunos. As diferenças vão sendo demarcadas, a partir das narrativas dos professores da roça, especificamente pelo fator social em que seus alunos se encontram e pelas dificuldades de aprendizagem que alguns apresentam, desencadeando a percepção de que a diferença ainda se encontra associada à ausência de algum elemento normalizador dos sujeitos.

Cabe ressaltar que as diferenças em sala de aula são concebidas, pelos professores das escolas multisseriadas, pela ótica de uma existência de resquícios de um pensamento que atrela à diferença o caráter de algo que precisa melhorar ou se adequar aos padrões normatizados pela sociedade. Essa perspectiva favorece ao posicionamento didático-metodológico do professor aproximar-se de algum modelo, pelo esmaecimento, para que não vá de encontro aos padrões estabelecidos através da ideologia dos grupos dominantes, que ocorre pela disseminação de um discurso que coloca a diferença como um elemento que precisa ser sobreposto pela mesmidade. E neste mesmo contexto pelo tratamento da identidade como uma fabricação, minimizando os sentidos das diferenças na construção das identidades.

Isso nos remete a pensar que os espaços escolares se encontram permeados por forças padronizadoras, que impõem a ideologia que favorece os sentidos de esvaziamento do real significado da diferença. Mesmo com estes ranços ideológicos, ainda existem no interior das escolas, professores desenvolvendo práticas docentes que valorizam a maneira de ser de alunos e alunas e buscam, a seu modo, intermediar os processos de conflito, tensões e negociações inerentes ao encontro das culturas na escola. Neste sentido, fica evidente que o trabalho em sala de aula, com as diferenças depende muito da formação que o professor tem, das concepções que ele traz a respeito da diferença, de como este enxerga a vida e como a vida o toca.

Assim, compreendemos, ao longo das discussões, que a profissão docente nas escolas multisseriadas vai ganhando outros sentidos desencadeados através dos movimentos relacionados ao ser e ao fazer docente nestes espaços, onde a experiência passa a ser um dos elementos principais da produção da docência nas escolas rurais, pois evidencia outras perspectivas também responsáveis pela construção-desconstrução-reconstrução das identidades e subjetividades intrínsecas ao processo de inter-relação, como pré-requisitos de um fazer docente fundamentado nos princípios da reciprocidade e da coexistência entre os sujeitos que vivem nestes espaços.

Referências

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1A ideia de território aqui parte da premissa de que é uma produção que “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’” (HAESBAERT, 2004, p.95-96).

2Mesmo em se tratando de uma pesquisa que se ancora no método (auto)biográfico, os nomes dos colaboradores são fictícios em atendimento ao que preconiza o Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos - CEP, no que tange a obrigatoriedade de manter o sigilo da identidade dos colaboradores.

3É interessante que vejamos aqui a semântica da palavra “performativa” - adjetivo, feminino de performativo, cujo significado para a linguística é um ato simultâneo do locutor e da ação que evoca.

Recebido: 01 de Março de 2018; Aceito: 20 de Novembro de 2018

Correspondência Fabrício Oliveira da Silva - Universidade Federal da Bahia, BA-052, KM 353, Estrada do Feijão, Irecê, CEP: 44900-000. Salvador, Bahia, Brasil.

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