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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub 11-Nov-2020

https://doi.org/10.5902/1984644426249 

Artigo Demanda Contínua

A tríade educação, escola e religião na constituição de sujeitos jovens e infantis

The trip education, school and religion in the constitution of young and child subjects

La tríada educación, escuela y religión en la constitución de sujetos jóvenes e infantiles

Daniela Medeiros de Azevedo Prates* 

*Professora doutora no Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSUL), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. danielaprates@charqueadas.ifsul.edu.br


RESUMO

O estudo assume como escopo de análise a problematização sobre o papel da tríade educação, escola e religião na articulação do projeto moderno de constituição de novos sujeitos. Tal empreendimento ancora-se aos referenciais dos Estudos Culturais em Educação e suas possíveis aproximações às discussões foucaultianas sobre governamento. A partir do levantamento bibliográfico sobre a temática, infere que a crescente racionalização dos modos de governar tomando como instrumento a educação produz condições para separação das noções de infância e juventude, sobretudo a partir da paulatina separação de classes presentes na escola moderna. A busca de constituição dos sujeitos também passava pelo fórum religioso, o qual lançou mão de uma série de estratégias para este fim, e que excetuando especificidades, também estava articulado às concepções que se formavam junto ao Estado Moderno.

Palavras-chave: Infância; Juventude; Educação

ABSTRACT

The study assumes as a scope of analysis the problematization on the role of the triad education, school and religion in the articulation of the modern project of constitution of new subjects. It is based on the interlocution of the references of Cultural Studies of Education and its possible approaches to Foucaultian Studies on government. From the bibliographical survey on the subject it infers that the crescent racionalization of the ways of governing that see the education as an instrument contributes for the separating the notions of childhood and youth, especially from the gradual separation of classes present in the modern school. The search for constitution of the subjects also passed through the religious forum, which used a series of strategies for this purpose, and that except for specificities, was also articulated to the conceptions that were formed with the Modern State.

Keywords: Childhood; Youth; Education

RESUMO

El estudio asume como ámbito de análisis la problematización sobre el papel de la tríada educación, escuela y religión en la articulación del proyecto moderno de constitución de nuevos sujetos. Tal emprendimiento ancla a los referenciales de los Estudios Culturales en Educación y sus posibles aproximaciones a las discusiones foucaultianas sobre gobernanza. A partir del levantamiento bibliográfico sobre la temática, infiere que la creciente racionalización de los modos de gobernar tomando como instrumento la educación produce condiciones para separar las nociones de infancia y juventud, sobre todo a partir de la paulatina separación de clases presentes en la escuela moderna. La búsqueda de constitución de los sujetos también pasaba por el foro religioso, el cual lanzó mano de una serie de estrategias para este fin, y que exceptuando especificidades, también estaba articulado a las concepciones que se formaban junto al Estado Moderno.

Palavras-chave: Infancia; Juventud; Educación

Introdução

O presente estudo tem como objetivo problematizar o modo como se constituem sujeitos na Modernidade, particularmente tratando da emergência das noções de infância e juventude, através da tríade educação, escola e religião. Para tanto, o estudo fundamenta-se na análise bibliográfica sobre a temática, partindo de importantes discussões como de Ariès (2011), Varela e Alvarez-Uria (1992) e Feixa (1999;2004) os quais permitem reconhecer a emergência das noções de infância e juventude. Nessa direção, problematiza o papel das instituições modernas, especialmente religiosas e escolares na constituição desses sujeitos através da educação, da condução das condutas, como se referem os estudos inspirados nas teorizações de Foucault, como Bujes (2001), Azevedo (2008), Prates (2014) e Hattge (2014), permitindo-nos tramar alguns dos fios desta rede complexa. O que de forma alguma pretende construir edificações que sustentem um fundamento originário do tema, ao contrário, estaremos delineando entre diferentes possibilidades, dispersões de acontecimentos e modos de pensar um possível ponto de apoio em que, em determinado momento, toma corpo as noções de infância e juventude. Neste sentido, produzindo determinadas maneiras de dizer, pensar e agir sobre estes sujeitos (FOUCAULT, 2008a; VEIGA-NETO, 2003).

A partir dos referenciais propostos, argumentamos que as definições acerca da infância e juventude eram ambíguas até recentemente. Sua emergência esteve imbricada a uma série condições, relacionadas a acontecimentos e mudanças nos modos de pensar, permitindo sua paulatina separação do mundo adulto, o que apresenta como nó comum a instauração de uma nova ordem na Modernidade.

Tratava-se de um projeto civilizatório que tinha como pauta operar no distanciamento entre homem e natureza, tema comum nas diferentes áreas de conhecimento que passam a se constituir imbricadas aos ideais iluministas de racionalidade e progresso para a construção de uma nova sociedade. A educação, embora não fosse uma invenção da Era da Razão, foi indispensável na tentativa de regulamentar uma nova ordem que se constituía, possibilitando que os indivíduos se apropriassem e praticassem a “arte da vida social racional”. Isso significava tornar a formação do ser humano uma responsabilidade administrada pelo Estado, uma forma de condução que não se restringia mais as comunidades e a família. Aproximando-nos ao conceito foucaultiano de governamento, podemos compreender como um modo de condução das condutas que assume duas vias: o conhecimento e condução do conjunto de indivíduos da população, voltando-se no controle e administração às instituições e comunidades; e a condução de cada um, voltando-se a relação consigo mesmo e com os demais (FOUCAULT, 1989; VEIGA-NETO, 2005).

O governo, ou governamento como propõe Veiga-Neto (2005) 1, envolve uma tentativa de dirigir a conduta humana como algo passível de ser transformada a partir de determinados fins e racionalidades. Trata-se de conduzir a conduta à auto-regulação, buscando tornar o sujeito responsável pelos seus próprios atos, implicando que cada indivíduo e a coletividade tenham discernimento sobre o que constitui uma conduta apropriada, através de um exercício permanente entre quem dirige e aqueles que são dirigidos, seja no âmbito religioso, da família, da escola, do Estado, afinal como nos permite compreender os estudos foucaultianos, as instituições sociais governam, como explicita Ramos do Ó (2009).

Ao analisar a emergência da noção de infância na Modernidade, Bujes (2001) argumenta que os projetos civilizatório e educacional estiveram articulados na tentativa de estabelecer novas pautas de condutas que distanciassem o homem da ideia de um suposto estado de selvageria. Moralistas reformadores, ideólogos sociais - diferentes instâncias passaram a produzir discursos sobre a infância, associando-se a significativas mudanças nas formas de educar os sujeitos infantis, inclusive com sua institucionalização e a paulatina separação da noção ambígua em que se pensou a infância durante o período medieval. Concomitantemente, se produziu novos aparatos para o seu controle e regulação, através de uma série de saberes que tomam como objeto diferentes grupos da população, entre os quais o sujeito infantil, articulado às ações do Estado, tornando-o conhecido em suas minucias, calculado e produtivo. A este processo esteve presente o suporte institucional: família, escola, aparatos religiosos, médicos, jurídicos - diferentes âmbitos procuraram produzir modos de pensar e conduzir a conduta destes sujeitos, desde a mais tenra idade, cuidando-os e os educando. Portanto, possibilitando constituir a noção de uma infância que deve ser preservada, separada dos adultos e, concomitantemente, sendo responsável por sua invenção.

Naradowski (2011) argumenta que, para que se sustente esta relação de assimetria entre os mais jovens e os adultos, não mais pelo entendimento de que fosse algo natural, foi fundamental a legitimação do lugar de saber, de lei, de experiência do adulto. Conforme descreve a partir da concepção de Kant, como aquele capaz de conduzir os mais jovens a um estado de autonomia, já que não possuiriam esta capacidade de discernimento operativo, epistêmico e moral para responsabilizarem-se por sua formação. Nesse sentido, torna-se pauta das discussões o que ensinar e como educar esses sujeitos, levando-se em consideração os ideais de sociedade que se formavam e o conjunto de estratégias em que se lança mão para conduzir os sujeitos aos fins desejados.

Assim, a preocupação extensiva com crianças e jovens na sociedade, permitindo distingui-los entre gerações e ainda possibilitando produzir uma série de saberes e investimentos sobre estes sujeitos, ocorre somente na Modernidade, particularmente a partir de determinadas condições. Até então, as distinções eram restritivas, direcionadas as funções sociais, conforme as classes de pertencimento e relacionadas às concepções de cada época (PRATES, 2014).

Educar é preciso: o papel das instituições religiosas e escolares na constituição de sujeitos jovens e infantis

Ariès (2011), ao analisar a história social da infância, argumenta que crianças e jovens eram muitas vezes indissociáveis numa noção ambígua de infância que abrangia o período de dependência até a vida adulta durante a Idade Média. O período amplo e de limites imprecisos começa a se diferenciar no século XVIII com a separação da primeira infância e adolescência, conforme as concepções da época e sendo restrito a determinados grupos sociais.

Embora houvesse concepções acerca das idades da vida durante os séculos XIV ao XVIII relacionadas aos ciclos da vida ou a organização social, a duração da infância provinha da indiferença aos fenômenos propriamente biológicos, numa época em que imperava a forte relação de dependência ao próprio sistema feudal. Assim, as palavras ligadas à infância eram comumente empregadas para caracterizar a condição de submissão dos homens nas funções sociais, como laicos, auxiliares e soldados. No século XVII, tornou-se mais frequente o uso de vocábulos para designar a infância, mas somente entre famílias nobres, porém não remetia a necessidade de separar crianças de jovens. Mesmo que já estivesse se formando o sentimento de infância que viria a inspirar a educação no século XX, através da preocupação de eclesiásticos, homens da lei e moralistas no ensino da disciplina e costumes da época (ARIÈS, 2011), crianças e jovens ainda vivenciavam limites imprecisos.

Varela e Alvarez-Uria (1992) consideram que moralistas e religiosos do Renascimento criaram táticas para conservar sua autoridade e influência abaladas pelo Estado Absolutista Monárquico e pelas dissidências no seu próprio seio. Destacam o desenvolvimento de variadas práticas educativas que tinham os jovens como objeto de moralização e apropriação da fé num momento em que a Europa se dividia entre católicos e protestantes. Os reformadores católicos desenvolveram práticas educativas que reformaram o próprio clero a fim de regular a vida e os costumes. Os moralistas elaboraram programas educativos destinados à instrução dos jovens que tomavam a educação como elemento chave para a tentativa de naturalização de uma sociedade de classes e estamentos, criando a concepção de diferentes infâncias, conforme o pertencimento social. Os protestantes, por sua vez, defendiam que se iniciasse desde cedo a aprendizagem da fé e dos bons costumes.

Sucintamente cumpre salientar que o protestantismo constituiu-se em um movimento liderado por Martinho Lutero, ex-padre dissidente da Igreja Católica, o qual assumiu como um de seus principais pilares o acesso à Palavra sem as intermediações da Igreja em sua interpretação. Conforme Hattge (2014), isso incidiu na crítica a forma como a Igreja Católica colocava-se como intermediária na relação do fiel com Deus, inclusive na confissão e na absolvição de pecados, realizando cobranças abusivas de valores como forma de garantir ao fiel o acesso a morada no céu.

Dussel e Caruso (2003 apudHATTGE, 2014), afirmam que foi posto em questão a tarefa de “governar as almas”, permitindo tornar as pessoas ainda mais crentes mediante o acesso à Palavra sem intermediações, concomitantemente, fazendo com que conheçam e aceitem a interpretação específica da Bíblia em sua profissão de fé.

Para tanto, foi indispensável a tradução da Bíblia do Latim para a Língua Alemã, concomitantemente desenvolveu-se uma série de estratégias voltadas à alfabetização, já que a maior parte da população não sabia ler.

As famílias foram instrumento desse modo de condução que articulou os interesses da Igreja Luterana e do Estado. O que se desdobrou na imposição de exames paroquiais direcionados à educação familiar, considerada responsável pela alfabetização dos filhos, e de ensinamentos que incluíam desde o catecismo e os salmos até definições sobre sistema social, relações patriarcais e hierárquicas. Tudo isso estava contido no “Hustavla”, um pequeno suplemento do catecismo produzido por Lutero, levando a Suécia a índices elevados de alfabetização na segunda metade do século XIX, cuja população já era basicamente leitora nos meados do século XVIII (AZEVEDO, 2008).

A esse respeito, é importante ressaltar que Lutero abandonou a exigência da leitura individual e universal da Bíblia, passando a enfatizar a prédica e o catecismo, sendo, portanto, tarefa dos pastores o controle e compreensão dos textos sagrados, já que a livre interpretação do texto-fonte poderia se mostrar subversiva. Nessa direção, instaurou-se uma nítida separação entre as políticas escolares dos Estados luteranos, que visavam à formação das elites pastorais e administrativas, e a educação religiosa do povo a qual se baseava no ensinamento oral e na memorização. Foi somente no final do século XVII, com a Segunda Reforma iniciada com o Pietismo, que o acesso individual à Bíblia trouxe o domínio da leitura como exigência, o que passou a ser regulamentado pela escola elementar (AZEVEDO, 2008).

Desde a Reforma Protestante do século XVI, a educação foi uma área estratégica de atuação que assumiu propósitos religiosos, alfabetizadores e de educação elementar. Nesse sentido, buscava atingir tanto as camadas altas da sociedade - através dos grandes colégios -, como auxiliar no proselitismo e manutenção do culto nas camadas populares - através das escolas paroquiais que funcionavam em salas da igreja ou em prédios ligados ao templo.

Diversos são os exemplos dessa trajetória, podemos citar por sua forte expressão até hoje em diversas denominações a Escola Dominical, inicialmente criada por Robert Raikes em 1780 no contexto da industrialização na Inglaterra. Influenciado pelo pastor e reformador inglês John Wesley, atuante no século XVIII entre presos e pobres, Raikes criou a Escola Dominical. Tratava-se de um espaço de estudos voltados à educação cristã o qual assumiu preocupações emergentes com a educação de crianças e jovens que vivenciavam longas jornadas de trabalho durante a semana, um dos fatores que os impedia da inserção nas escolas. Dessa forma, o espaço de estudos bíblicos passou a capturar o tempo livre do domingo, único dia em que não trabalhavam, para inserção nos preceitos religiosos (AZEVEDO, 2008).

Hattge (2014) argumenta que foi uma preocupação marcante do protestantismo desenvolver de forma maciça a escola elementar, fundamentando-se no ensino das Línguas, História, Música e Matemática. Ao mesmo tempo, tendo como finalidade propiciar a construção de uma “obediência consciente” como forma de afirmação de uma nova religiosidade. Conforme a autora, isso trouxe como desafios o necessário investimento e manutenção das escolas e adesão da população. O que remetia a necessidade de produzir junto às famílias o reconhecimento da escola como espaço de confiança para educação dos seus filhos, sobretudo quando isso viria a limitar horas de trabalho dedicadas no auxílio do sustento a família (HATTGE, 2014).

A Igreja Católica, por sua vez, percebeu que não bastava pregar e ouvir confissões (Gauthier, 2010 apudHATTGE, 2014). No final do século XVI, os católicos enfatizaram a necessidade de criar instrumentos mais efetivos na dominação das almas, dessa forma, fundando escolas, como exemplo a formação da comunidade dos jesuítas.

Hattge (2014) explica que o sistema de ensino adotado pelos jesuítas era organizado e regulamentado por um texto, um manual, conhecido como Ratio Studiorum, o qual fundamentava procedimentos e formas de organização da sala de aula, dessa forma, permitindo um olhar a todos e cada um, através de um processo de individualização.

Nesse contexto em que se percebe essa estreita relação entre a Religião e a Pedagogia, na instituição das bases da escola moderna e sustentando os primeiros movimentos de busca pela massificação do ensino escolar, porém de forma individualizante, como podemos perceber através da organização da sala de aula jesuíta, vejo operando o que Foucault chamou de poder pastoral, que, “com a Reforma, depois a Contrarreforma, põe em questão a maneira como se quer ser espiritualmente dirigido, na terra, rumo à salvação pessoal” (FOUCAULT, 2008b, p. 119). Passamos, nesse momento, de um governo soberano, preocupado com o território e com a proteção às fronteiras, a um governo pastoral, que se exerce sobre “um rebanho” (HATTGE, 2014, p. 43).

Os jesuítas, influenciados pelas teorias pedagógicas dos humanistas, substituíram os métodos de intimidação por intervenções mais sutis e individualizadoras. O aluno passou por um processo de aprisionamento, vigilância e separação, seguindo comportamentos e princípios correspondentes à relação de tutelamento ao mestre, autoridade moral. Conforme Varela e Alvarez-Uria (1992), a partir do governo dos jovens, desenvolveram-se práticas que possibilitaram consolidar saberes de caráter pedagógico, relacionados à manutenção da ordem e da disciplina, estabelecendo níveis de conteúdo e inventando métodos de ensino.

Instaurou-se um modo específico de educação que rompeu com as práticas habituais de formação da nobreza e de aprendizagem dos ofícios das classes populares, que até então se desenvolviam através dos laços com a comunidade. Os colégios passaram a ser separados do poder político e seus colegiais foram separados das suas comunidades, sendo individualizados, afastando-se do controle, do acesso ao saber e a seus instrumentos que passaram a ser domínio do professor (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992).

Assim, os colégios dos jesuítas, dos doutrinários ou dos oratorianos presentes nos século XV ao XVII substituíram as comunidades e conduziram a sala de aula da escola medieval à noção de instituição. A partir do século XV os estudantes passaram a ser divididos em grupos dirigidos por um mesmo mestre e num mesmo local; no decorrer do século, passou a ser designado um mestre para cada grupo específico, porém ainda no mesmo local. O processo de separação dos grupos por mestres e, finalmente, por classes em espaços distintos foi oriundo da necessidade de adaptar o ensino do mestre ao nível do aluno; uma distinção que dava mais atenção ao grau de instrução do que a idade, mas que de certa forma criava separações etárias (ARIÈS, 2011).

Conforme Ariès (2011), o processo de separação por classes, relacionado à adaptação do ensino foi fundamental para a emergência do sentimento de infância e juventude, indiferente na formação dos pedagogos medievais, conservadores e humanistas. Foram os reformadores escolásticos do século XV e, sobretudo, os jesuítas, oratorianos e jansenistas do século XVII que passaram a diferenciar seus métodos dos métodos medievais de simultaneidade ou repetição, presente na pedagogia humanista, e a se preocupar com o método adequado ao conhecimento da particularidade infantil.

Apesar da persistência da indiferença à noção de idade, a partir do século XV e, sobretudo, nos séculos XVI e XVII, o colégio passou a dedicar-se à formação de jovens. Inspirando-se nos modelos jesuítas e na literatura pedagógica de Port-Royal, passou a utilizar a disciplina oriunda do modelo eclesiástico ou religioso como instrumento de aperfeiçoamento moral e espiritual como valor intrínseco da edificação e ascese, adaptada a um sistema de vigilância nos colégios.

Embora o colégio possibilitasse prolongar a noção de infância, no século XVII, poucos tinham acesso aos estudos já que a duração dos ciclos escolares estava relacionada às classes de pertencimento e ao permanecimento de uma infância curta, a qual era rompida pela precocidade do ingresso no exército, trabalho e casamento.

A partir do final do século XVIII, a escolaridade passou a preocupar-se com o ciclo integral de crianças e jovens, que tinham em média quatro a cinco anos no mínimo de estudos. No entanto, essa prolongação da infância durante o ciclo escolar permanecia restrita às condições sociais, abrangendo as famílias de burgueses, juristas e eclesiásticos.

Conforme Ariès (2011), as classes de idade se organizaram em torno das instituições. Assim, a adolescência passa a ser distinguida a partir do final do século XVIII e, sobretudo, entre os séculos XIX e XX, através da conscrição do serviço militar. Da mesma forma, a infância longa passa a ser constituída paulatinamente entre os séculos XVI e XVIII através da noção escolar.

Varela e Alvarez-Uria (1992) argumentam que a escola obrigatória, assim como a concepção da família conjugal, surgiu como instrumento de intervenção de um conjunto de especialistas para educar as classes populares de acordo com a ordem social burguesa, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX e início do século XX. Até então, o trabalho infantil inviabilizou que se expandisse a escolarização.

Quando surge essa realidade social que temos chamado de juventude na sociedade ocidental? Quando se generaliza um período da vida compreendido entre a dependência infantil e a autonomia adulta? Quando se difundem as condições sociais e as imagens culturais que hoje associamos a juventude? (FEIXA, 1999, p. 34-35).

A partir de tais indagações, Feixa (1999) argumenta que a Revolução Industrial teve forte relação com o surgimento da noção de juventude. Nessa direção, evoca a metáfora de Musgrove sobre a invenção da máquina de vapor por Watt em 1765, que ocorreu concomitantemente a invenção da juventude em 1762 com a publicação de Emílio de Rousseau, culminando na correlação de que “[...] o jovem foi inventado ao mesmo tempo que a máquina a vapor” (MUSGROV apud FEIXA, 1999, p. 35). Corroboramos com Feixa (1999) ao considerar a forte influência do filósofo nas posteriores teorias pedagógicas e psicológicas, especialmente ao reconhecer a infância e a adolescência como estados naturais da vida e relacionando esta passagem ao mito do bom selvagem, origem da civilização. Assim, a adolescência seria um segundo nascimento, uma metamorfose interior que despertaria o sentido social, a consciência, embora se tratasse de um período marcado inevitavelmente por suas crises, resultando na necessidade de segregação do mundo dos adultos e de assistência constante para sua educação.

No entanto, como argumenta Feixa (1999), não podemos identificar o nascimento da juventude em um momento ou acontecimento preciso, nem mesmo restringi-lo a influência de um pensador. Consideramos importante ressaltar que as arguições do filósofo imbricam-se aos modos de pensar presentes no período, fortemente marcado pelo projeto civilizatório e cujo objetivo central seria a construção de uma nova sociedade, distinta dos velhos hábitos da aristocracia feudal, através da noção de civilização. Portanto, trata-se de uma construção que remete às reconfigurações que vinham se produzindo desde a emergência da Modernidade, permitindo mudanças nos modos de pensar e significativas transformações nas diversas instituições, conforme discutimos anteriormente (PRATES, 2014).

Feixa (1999) também remete às arguições de Ariès para compreender as principais alterações nesse período, podendo resumir nossa discussão aos seguintes pontos:

O primeiro ponto diz respeito à crise do modelo de aprendizagem que se dava em meio à vida adulta e, muitas vezes, fora de casa, passando para um crescente sentimento de responsabilidade dos pais em relação à educação dos filhos.

O segundo ponto refere-se ao deslocamento dos modelos de ensino da escola medieval aos sistemas de instrução modernos dos colégios e internatos, até a separação de classes presentes na escola moderna, que acabou por resultar na separação por idades.

Como terceiro ponto, remete à conscrição obrigatória, presente desde a Revolução Francesa, cuja produção de um corte geracional articulado ao distanciamento dos jovens de suas comunidades de origem, criou condições para que surgisse pela primeira vez o que denomina de consciência geracional - o que podemos definir como um mundo propriamente juvenil, compartilhando modos de ser, linguagens, costumes, que visibilizamos de forma mais acentuada após a Segunda Guerra.

No quarto ponto, Feixa (1999) destaca as profundas alterações no mundo do trabalho, sobretudo a partir da Segunda Revolução Industrial, quando a maior produtividade reduziu a mão-de-obra, inclusive de menores, fortemente presente no contexto inicial da industrialização. Com isso, incrementou-se a necessidade de preparação técnica para o desenvolvimento das tarefas, produzindo a necessidade de maior formação para o trabalho. Progressivamente, vemos se produzir um período de tolerância até o ingresso ao mundo do trabalho que se articula à requisição de formação, possibilitando o crescente acesso à escola secundária, ainda que em condições socialmente distintas. Conforme Feixa (1999), neste período, surgiram as primeiras associações juvenis modernas dedicadas ao tempo livre, ao lazer, ponto fundamental ao tratarmos da noção de juventude.

A partir de então proliferaram teorias sociológicas sobre a suposta instabilidade e vulnerabilidade dos mais jovens, o que serviu para justificar a necessidade de sua separação do mundo adulto e sua proteção, surgindo então legislações, saberes, serviços, programas e políticas específicos seja para a infância, seja para a juventude, resguardadas suas especificidades.

Considerações finais

A interlocução entre os estudos propostos permite inferir que diferentes instâncias estiveram articuladas ao projeto moderno de construir novos parâmetros a sociedade que se distinguissem dos modos de pensar presentes no contexto medieval. A educação foi indispensável para a constituição de uma nova ordem que se instaurava e para produção de novos sujeitos. Conforme nos possibilita compreender os estudos foucaultianos, a educação foi estratégica nos modos de governamento, de condução das condutas, a partir de determinados fins e racionalidades, seja para condução de todos e cada um através do governo da população e/ou de cada um sobre si mesmo. Nessa direção, é imprescindível referir a importância do âmbito religioso como primeiro movimento de educação das massas, quer seja pelo movimento reformista e suas propostas de alfabetização e evangelização, quer seja pelas táticas de intervenção presentes na Contra-Reforma, através da escolarização especialmente dos estratos médios da população.

As instituições passaram a articular um novo modelo de educação, responsável pelo controle do tempo, do espaço, da atividade. Concomitante, a separação de classes de alunos relacionada à adaptação do ensino pautou-se pela preocupação educacional da particularidade dos sujeitos, assim as classes acabaram por criar distinções entre as ambíguas noções de infância e juventude, levando a posterior separação dos sujeitos por idade.

A crescente racionalização dos modos de governar tendo como objeto a população foi fundamental para que se passasse a produzir saberes e práticas específicas para conduzir diferentes sujeitos. Nesse sentido, possibilitando que a formação do ser humano se tornasse uma responsabilidade administrada pelo Estado, uma forma de condução que não se restringia as comunidades e a família.

Embora a escola obrigatória fosse um instrumento para educar as massas a uma nova ordem, as próprias condições presentes no período de industrialização impossibilitaram seu crescimento, já que a rotina das fábricas abrangia o trabalho de crianças e jovens. Diferentemente, os grupos socialmente favorecidos ofereciam um tempo de espera entre a infância e a vida adulta, voltando-se a educação dos sujeitos jovens. Aos demais, somente no final do século XIX e, sobretudo durante o século XX, no contexto pós-guerra, irrompem condições para se produzir este período de tolerância social. Embora seja fundamental ressaltar que distintas condições e experiências perpassem o cotidiano de crianças e jovens, o que nos desafia a pensar diferentes infâncias e juventudes, especialmente na Contemporaneidade.

Referências

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1Veiga-Neto (2005) utiliza como tradução para melhor fluência do enunciado governement o conceito de “governamento”, utilizado enquanto ação que visa administrar a conduta alheia ou mesmo a conduta de si, e diferenciando-se de Governo relacionado ao poder executivo, à instituição do Estado que toma para si a ação de governar. O termo governar no Renascimento abrangia, além da gestão política, o ato de dirigir a conduta das pessoas, das comunidades e de si e, apenas na Modernidade, quando as ações de governar foram sendo governamentalizadas, racionalizadas e centralizadas pelo Estado, o conceito governar foi sendo restringido às instituições do Estado, surgindo a Ciência Política.

Recebido: 21 de Março de 2018; Aceito: 11 de Junho de 2018

Correspondência Daniela Medeiros de Azevedo Prates - Instituto Federal Sul-rio-grandense. R. Gonçalves Chaves, 3218, Centro. CEP: 96015-560. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

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