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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub Nov 11, 2020

https://doi.org/10.5902/1984644432833 

Artigo Demanda Contínua

Infância, passagens para um flâneur aprendiz

Childhood, passages for a learning flâneur

Eduardo Oliveira Sanches*  Universidade Estadual de Maringá
http://orcid.org/0000-0001-9810-5764

Divino José da Silva**  Universidade Estadual Paulista

*Universidade Estadual de Maringá (UEM). Av. Colombo, 5790 - Jd. Universitário CEP 87020-900. Maringá, Paraná, Brasil. eduardo.uem@hotmail.com

**Professor doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. divino@fct.unesp.br


RESUMO

Este estudo de natureza teórica tem por objetivo analisar as imagens benjaminianas do flâneur e da infância, aproximando-as, para refletir sobre a ideia de um flâneur aprendiz como uma figura que conserva viva em sua percepção do mundo uma sensibilidade que recusa o discurso linear, o que o leva para o caminho indireto na relação com os objetos cognoscíveis. Desses desvios emerge a aura das coisas, da qual pode-se ter a experiência possível com o moderno; a sensibilidade da criança como equivalente à de um flâneur; e uma compreensão sobre a cultura da criança, sendo constituída, em parte, dos restos da história, à margem da cultura adulta, em outra, pelos desvios originado pela ação da criança em seu protagonismo. O protagonismo da criança e o modo desviante como ela se aproxima das coisas do mundo a dotam das mesmas habilidades do flâneur, segundo as possibilidades da criança, os que nos leva a ideia do flâneur aprendiz. Em termos de método, o limiar formado pela aproximação e jogo de imagens entre essas duas figuras têm o potencial de ampliar a compreensão e a importância tanto da imagem do flâneur como da noção de infância na obra de Walter Benjamin.

Palavras-chave: Infância; Flâneur; Cultura da criança

ABSTRACT

This theoretical study aims to analyze the Beaminian images of flâneur and childhood, approaching them, to reflect on the idea of ​​an apprentice flâneur as a figure who keeps alive in his perception of the world a sensitivity that refuses linear discourse, Which leads him to the indirect path in relation to the knowable objects. From these deviations emerges the aura of things, from which one can have the possible experience with the modern; The sensitivity of the child as equivalent to that of a flâneur; And an understanding of the culture of the child, being constituted, in part, from the remains of history, on the margins of adult culture, in another, by the deviations originated by the child's action in its protagonism. The protagonism of the child and the deviant mode as it approaches the things of the world endow the same ability of the flâneur, according to the possibilities of the child, which brings us the idea of the apprentice flâneur. In terms of method, the threshold formed by the approximation and play of images between these two figures has the potential to amplify the understanding and importance of both the image of the flâneur and the notion of childhood in Walter Benjamin's work.

Keywords: Childhood; Flâneur; Culture of the child

Introdução

A noção de desvio na obra benjaminiana é algo fundamental (BARRENTO, 2012; 2013) e, em termos metodológicos, é a lógica que conduz este estudo. A interpretação sobre a noção de desvio será mediada por meio de três escritos de Benjamin: a primeira parte do texto “Origem do drama barroco alemão”, essencialmente os tópicos “Conceito de tratado” (BENJAMIN, 1984, p. 49-51) e “Conhecimento e verdade” (BENJAMIN, 1984, p. 51-52); o ensaio “Sobre alguns temas sobre Baudelaire” e o estudo intitulado “O flâneur”. No primeiro, buscamos o que concerne ao desvio como método e o que o caracteriza. Nos dois seguintes, vamos discutir, a partir da noção de desvio, o problema central deste estudo: entender como o desvio e a infância se encontram na obra benjaminiana, por meio da aproximaxão da imagem do flâneur a da infância, para elaborar então a ideia de um flâneur aprendiz. Esta é a figura que conserva viva em sua percepção do mundo uma sensibilidade que recusa ao um discurso linear, o que o leva para o caminho indireto na relação com os objetos cognosíveis. Neste sentido, serão também observados os escritos do autor sobre a temática da infância (BENJAMIN, 2012; 2013; 2015).

O desvio como método

Para Löwy (2013), Gagnebin (2013) e Rouanet (1984), Benjamin tem como característica de suas abordagens sobre a história romper de modo radical com a ideologia do progresso linear. Encontramos esta característica da visão crítica benjaminiana na análise social enraizada já nas primeiras linhas da obra “Origem do drama barroco alemão”, como questão introdutória para uma crítica do conhecimento. Nelas, o autor realiza uma diferenciação entre duas formas de pensar filosófico: o sistema e o tratado. O primeiro fundamenta-se em premissas pautadas pela matemática, ignorando as relações possíveis do discurso e da linguagem. Assim, “quanto mais claramente a matemática demonstra que a eliminação total do problema da representação reivindicada por qualquer sistema didático eficaz é o sinal do conhecimento genuíno, mais decisivamente ela renuncia àquela esfera da verdade visada pela linguagem” (BENJAMIN, 1984, p. 51). Neste caso, está no conceito a noção de verdade.

Duvidar desta ideia de verdade é justamente a questão que traz à tona o segundo momento do fazer filosófico, centrado no tratado. Benjamin reivindica o tratado como forma de expressão que carrega em si a possibilidade do encontro com a verdade, pois ele permite estabelecer o caminho, por meio da linguagem, para se atingi-la. No sistema, isto aparece como a priori no teorema que define o conceito. Assim, para o autor,

Método é caminho indireto, é desvio. A representação como desvio é, portanto, a característica metodológica do tratado. Sua renúncia à intenção, em seu movimento contínuo: nisso consiste a natureza básica do tratado. Incansável, o pensamento começa sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação (BENJAMIN, 1984, p. 50).

Com isso, ele estabelece como princípio a recusa a um discurso linear e toma o caminho indireto, aquele que observa, para e toma fôlego, sempre que necessário, recua e avança em relação ao objeto de análise. Tal como a imagem do mosaico busca nos fragmentos espalhados e isolados, bem como em suas lacunas, uma tentativa de representação, de aproximação e distanciamento do todo para se formar a figura do mosaico. Figura essa que serve como analogia do conhecimento, de tal modo que “o caminho da verdadeira investigação filosófica, para Benjamin, é a representação. Representação, por um desvio, do universal a ordem das ideias”, conforme Rouanet (1984, p. 13). Em tal abordagem do conhecimento, a verdade não está no conceito, carregado de a priori, e sim reside no Ser que, por meio da forma argumentativa da linguagem e do conjunto de representações, constitui um caminho de apresentação e compreensão dos fenômenos. “Se a filosofia quiser permanecer fiel à lei de sua forma, como representação da verdade e não como guia para o conhecimento, deve-se atribuir importância ao exercício dessa forma, e não à sua antecipação, como sistema” (BENJAMIN, 1984, p. 50).

Neste caso, Benjamin foi um seguidor e criador de pistas e atalhos, desvios. Seguiu por toda parte indícios na lida de captar e compreender o Mundo Moderno a partir dos cacos da história, e criou também tantos outros na incansável tarefa de tentar formar um mosaico sobre o contemporâneo como, por exemplo: a partir de personagens como a prostituta ou o flâneur no auge do século XIX (BENJAMIN, 1989); a interrogar outras, como são os casos da criança e da infância entre séculos XIX e o XX (BENJAMIN, 2002; 2013a); ou ainda, trazendo tensão à reflexão, ao construí-la em meio a pensamentos complexos como o Romantismo, o Barroco Alemão, o materialismo histórico dialético e de elementos do judaísmo (LÖWY, 2005). Todas essas são trilhas que fundamentam o olhar benjaminiano se não em toda, ao menos em parte significativa da obra do autor.

O flâneur, uma sensibilidade para o desvio

Emerge dessa conjuntura uma figura com a qual lidaremos mais de perto no correr deste estudo: o flâneur. Que contornos tem essa representação tão valorizada por Benjamin e pelos estudiosos de sua obra? A palavra flâneur, substantivo francês, significa andarilho, vadio. Benjamin, com base na poesia de Charles Baudelaire, transformou a imagem do flâneur em alegoria do sujeito, o qual cria certa experiência com o moderno, por meio da cidade, caminhando por ela em seus atalhos e desvios, conhecendo as ruas e bulevares em um momento limiar da história em que ainda era possível tal feito. "O flanêur é um burguês que leva uma vida sem objetivos definidos a não ser buscar, no complexo urbano, rusgas, vãos, becos por onde entrar em busca de algum espetáculo para os seus olhos sobre pernas" (MASSAGLI, 2008, p. 57).

Faz sentido pensar que essa figura e seu comportamento sugerem uma personificação do método benjaminiano. Em uma forma de desvio da norma, sem pressa, percorre a cidade em busca de seus atalhos e rastros, atento aos sinais e indícios da urbanidade moderna em pleno desenvolvimento. Ele é, em certo sentido, a recusa a um enquadramento e a linearidade, toma o caminho indireto, aquele que tem tempo para gastar e que observa, para e toma fôlego, sempre que necessário, recua e avança em relação aos caminhos da cidade. Barrento (2012, p. 48) definiu a atitude do flâneur como a do “último cavaleiro andante, ainda com tempo e disponibilidade de olhar, do velho mundo cuja morte se anuncia”. “Como um homem cuja morada é nas ruas, o flâneur guarda o conhecimento da habitação. Para experimentar a cidade desta forma como um espaço para viver” segundo afirma Steiner (2010, p. 141, tradução nossa)1.

Como Benjamin constitui essa figura limiar e desviante? No estudo intitulado “O flâneur”, encontramos índices para lidar com o mosaico que representa tal arquétipo para o filósofo. Ele é um ser cuja dinâmica e habitat, a rua, “conduz o flanador há um tempo desaparecido [...] este permanece sempre o tempo de uma infância” (BENJAMIN, 1989, p. 185). Em tal contexto, a cidade se converte em um par dialético e “abre-se para ele como paisagem e, como quarto” (BENJAMIN, 1989, p. 186). Benjamin alega existir uma dose de embriaguez no vagar do flâneur pelas ruas da cidade e que ele se nutre “daquilo que, sensorialmente, lhe atinge o olhar” bem como do “simples saber, ou seja, de dados mortos, como de algo experimentado e vivido” (BENJAMIN, 1989, p. 186). Afirma ainda o pensador que a experiência fundamental do flâneur está vinculada à banalização do espaço, pois “é sabido que, na flânerie, as distâncias dos países e dos tempos irrompem na paisagem e no momento” (BENJAMIN, 1989, p. 189) e cujo chão sagrado é a cidade da qual ruas se confundem com interiores. Nela, Benjamin afirma que o flâneur realiza o sonho humano do labirinto ao persegui-lo, em seu flânerie, pelas alamedas e praça, vias e avenidas. O autor evidencia ainda que o flâneur se sente profundamente atraído pelas construções “mal vistas, ordinárias” (BENJAMIN, 1989, p. 235) e que, no fundamento dessa flânerie, encontra-se uma profunda contradição, “a posição de que o produto da ociosidade é mais valioso (?) que o do trabalho [...]. Seu olho aberto, seu ouvido atento, procuram coisa diferente daquilo que a multidão vem ver” (BENJAMIN,1989, p. 233). Outra questão desse estudo que nos chama atenção, nas inúmeras páginas utilizadas por Benjamin para descrever a figura do flâneur, é a afirmação de que “a maior parte dos homens de gênio formam grandes flâneurs [...]. Muitas vezes, na hora em que o artista e o poeta parecem menos ocupados com sua obra é que eles estão mais profundamente imersos” (BENJAMIN,1989, p. 234).

Uma grande colcha de retalhos foi formada sobre essa figura ímpar analisada por Benjamin. Nela, encontramos inúmeras aproximações e similitudes entre a noção de experiência e a transformação sensorial e sensível, a qual o ser humano foi submetido a partir da modernidade. Condensam-se na imagem do flâneur as noções básicas que o aproximam da infância, como veremos adiante, tais como um profundo prazer sensorial e uma capacidade perceptiva muito particular e atenta às coisas esquivas.

O desvio é o seu método e sua anima busca, no fugaz e fugidio, outra temporalidade - ou como afirma Benjamin - o tempo de uma infância. Nos limiares das passagens parisienses, encontra a experiência do acontecimento e de uma forma de atenção específica para o mundo. Uma atenção flutuante comprometida com a abertura para as possibilidades de experimentação, que o acontecimento pode proporcionar a ele, enquanto cavaleiro andante. Uma espécie de novo bárbaro que começa com o pouco, a partir dos ruídos da multidão agitada e dos flashes dos letreiros e luminosos, e faz disso seu local brinquedo. Assim como para o flâneur, “a cidade moderna é, por excelência, o limiar, o palco, de todas as experiências que se oferecem ao olhar do transeunte-filósofo Walter Benjamin” (BARRENTO, 2012, p. 27).

Infância, passagens para o flâneur aprendiz

No limiar do labirinto social moderno caminham também as infâncias de Benjamin (SANCHES, 2017), uma alegórica que, feito o anjo da história, anuncia a modernidade a contra-pelo (BENJAMIN, 2013a), outra bastante real, que viveu como criança uma infância no contexto histórico da tumultuada Repúblic de Weimar (BENJAMIN, 2015). Em ambas a situações, a cidade se torna o local de referência de onde emergem os modelos que passaram a educar os sentidos do corpo, adestrando sua ação. Neste caso, é evidente a força enigmática e envolvente das descrições e das imagens, feitas pelo autor, das Varandas e Panoramas, do Tiergarten e de sua infância nas ruas de Berlim (BENJAMIN, 2013a; 2015). O espaço urbano surge como o labirinto das cidades, sendo incorporado por uma criança, como a alegoria de um "flâneur aprendiz" que forma, ainda na infância, a sensorialidade com as mesmas habilidades e similitudes da sensibilidade que o olhar do flâneur adulto desenvolve por meio do flânerie nas passagens de Paris. Aliás, ambos, no limiar dos séculos, vivenciando ao mesmo tempo, no limiar da vida burguesa: um, como uma espécie de vagabundo profissional resguardado pela condição de vida abastada; outro, na condição da infância, como seguridade social e herdeira da nova “aristocracia”. Ambos, a criança em Berlim e o flâneur de Paris, vivem no limiar da vida burguesa, em 1900, e estão inseridos em um processo, o qual Benjamin reivindica para a humanidade: um ambiente cultural propício ao humano para transformar as experiências comoventes em hábito, como a criança faz no brincar, como o flâneur fez ao escrever.

A ideia do flâneur, que transita pelas passagens em Paris, se vincula, de certo modo, à noção da criança vivendo a infância em Berlim, pois, temporalmente, a história os conecta, mesmo que a distância territorial os separe. Se o flâneur é o 'homem do lazer', o 'conhecedor das ruas', o 'explorador urbano', a criança é a imagem do ser que ainda se espanta e se encanta ao descobrir e brincar com o mundo, e, desse modo, ela se aproxima da figura de um ludo explorador da urbis. O chamado universo infantil se torna um local de destaque no pensamento benjaminiano para compreender a experiência do moderno2. O tema da infância, nesse sentido, conforme afirma VAZ (2010, p. 46), “alcança um significado metodológico, estrutural no seu pensamento. Seja pela rememoração […] ou ainda porque as atividades infantis podem estar mais facilmente alheias ao mundo da economia”, como a noção de ser errante, desviante, que carrega consigo o flâneur3.

Em Benjamin (2002), encontramos aspectos sobre a sinestesia nos escritos sobre a infância em importantes e ricas análises. Como exemplos,

ele cita as mudanças nas características da boneca que, em tempos de produção artesanal, eram menores que no momento da industrialização. Evidencia ainda a transformação na matéria prima que passa a ser principalmente o plástico, bem como as modificações na textura, na forma, na funcionalidade e na falta de originalidade das bonecas pelas características da produção em série (SANCHES, 2017, s/n).

Essas são marcas da modernidade projetadas sobre a vida da criança e que contribuíram para reorganizar a sensorialidade infantil na perspectiva industrial, tal qual as ruas da metrópole moderna o fizeram para o flâneur.

Nesse sentido, a transformação da infância e a colonização e a administração dos recursos de simbolização da vida, gradativamente, vão sendo transferidos para a esfera industrial e institucional. Tal confluência na perspectiva da modernização do mundo inaugurou processos que permitiram a fetichização4 e a reificação5 do universo infantil. Conforme afirma Benjamin (2002, p. 91-92), “quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais”. No contexto da obra do autor, tais recursos sociais, que induzem o valor de troca a permear o campo das representações simbólicas, são analisados no bojo da ideia que ele desenvolve acerca do termo fantasmagoria6. Benjamin desenvolve o conceito para demonstrar processos por meio dos quais a sociedade mercantil cria imagens de si, no entanto, ocultando as lembranças, os rastros do modo como elas são produzidas. Assim, os conteúdos imagéticos remetem à realidade, no entanto, estando longe de coincidirem com a imagem da realidade que pretende representar. Destarte,

Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho. Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado, realista no escritório, quer que o interieur sustente as suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita estender os seus cálculos comerciais às suas reflexões sociais. Reprime ambas ao confirmar o seu pequeno mundo privado. Disso se originam as fantasmagorias do "interior", da interioridade. Para o homem privado, o interior da residência representa o universo (BENJAMIN, 1991, p. 37).

Se por um lado, a infância passa a ter cada vez mais mercadorias especializadas, por outro, a dimensão de classes cria mecanismos, os quais, no âmbito privado do lar, equivalentes sociais da esfera pública e do mundo do trabalho, também sejam adaptados ao universo infantil, como é o caso da escrivaninha, como equivalente social da carteira escolar e/ou da mesa do escritório.

Sobre esse ponto de vista, se dá também uma mudança na formação cultural infantil que a identifica como o indivíduo criança7. Percebe-se que ela, em certo modo, passa a ter respeitadas e consideradas as necessidades e as peculiaridades da idade. Por outro lado, ela também simboliza um projeto de formação, tanto que, na indústria ou no lar, são criados espaços e representações próprias, programadas, organizadas e desenvolvidas para a criança, sob o foco do olhar adulto8.

Porém, tal como o flâneur, a criança como seu aprendiz, consegue desviar-se dessa lógica demarcada pela industrialização da vida, conforme afirma o autor.

Se, além disso, fizermos uma reflexão sobre a criança que brinca, poderemos falar então de uma relação antinômica. De um lado, o fato apresenta-se da seguinte forma: nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos - pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo da matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras. E ao imaginar para crianças bonecas de bétula ou de palha, um berço de vidro ou navios de estanho, os adultos estão na verdade interpretando, a seu modo, a sensibilidade infantil. Madeira, osso, tecido, argila, representam nesse microcosmo os materiais mais importantes, e todos eles já eram utilizados em tempos patriarcais, quando o brinquedo era ainda a peça do processo de produção que ligava pais e filhos (BENJAMIN, 2002, p. 92).

Se, para o flâneur, o ato de resistir está na postura dele perante o mundo que se abre nos labirintos da cidade, para a criança reside no modo como ela se impõe em seu império lúdico contra o mundo galvanizado das mercadorias. Constatamos

a importância que Benjamin dá ao sentido de polarizar a ação da criança que brinca no limiar da adaptação e da autonomia. Se por um lado ele propõe que a criança crie a partir dos restos que encontra aqui e acolá, por outro, demonstra o poder da pressão social em determinar situações que colonizam o imaginário infantil, tal qual a multidão para o flâneur. No entanto, quando a criança desvia daquilo que é tido como convencional - subindo no escorregador, quando a norma estabelece descer; descendo pelos atalhos, onde os dispositivos disciplinares mandam subir; ao resgatar do descarte toda forma de lixo, resto ou resíduos - ela transforma o mundo marginal e periférico em instrumentos de sua subjetivação. Nesse caso, no brincar e pelo brincar, a criança mescla modelos socialmente aprendidos com os sentidos imaginados por ela, produzindo formas de reinterpretar a realidade. A articulação entre mundo interno e externo, imaginário e realidade, desdobra-se em uma terceira via como atalho para que as vivências sensoriais da vida infantil se transubstanciem, aos poucos, em experiências formativas para a criança (SANCHES, 2017, s/n).

Em “Experiência e Pobreza”, Benjamin, de certo modo, delimita uma noção sobre a ideia de experiência que nos parece pertinente resgatar nesse momento. No sentido forte do termo, para ele, a experiência ganha significado se pensada enquanto a tradição compartilhada, a partir da noção de bem comum de um grupo ou coletivo. Nesse sentido, os membros mais velhos de uma comunidade seriam os porta-vozes de um conhecimento ancestral, cuja dinâmica de compartilhamento se situa na tradição oral. Por meio de parábolas, fábulas, provérbios e histórias de cunho geral, o ensinamento era transmitido do mais vivido para os mais jovens. Em tal contexto, podemos verificar que a qualidade da experiência valorizada pelo autor, mesmo vindo do adulto, caracteriza-se de modo diferente da do sujeito mascarado9. Enquanto nesse caso, parece-nos que ele afirma um adulto autoritário, por tolher a juventude, nesta segunda condição, na situação do narrador, o sujeito idoso é respeitado como uma autoridade que entende da vida e compartilha a experiência nela colecionada com as demais gerações, “de forma concisa, com autoridade da idade, nos provérbio; em termos mais prolixos e com maior loquacidade, nos contos; por vezes através de histórias de países distantes, à lareira, para filhos e netos” (BENJAMIN, 2013b, p. 85).

A narração em tal circunstância era um momento no qual as vidas, individual e coletiva, ganhavam sentido juntas, pois uma experiência vivida, individualmente, tinha a possibilidade de ser compartilhada, tornando-se gregária. “Sabia-se muito bem o que era a experiência: as pessoas mais velhas passavam-na sempre aos mais novos” (BENJAMIN, 2013b, p. 85). A relação intergeracional e a vida comunitária não tinham tantas lacunas como no contexto urbano industrial. Esse tipo de experiência, segundo afirma o filósofo, perdeu seu sentido originário com a modernização, o que levou Benjamin ao fatídico diagnóstico sobre o declínio da experiência no contemporâneo.

Nesse sentido, a relação entre adultos e crianças, conforme mencionado anteriormente, no que concerne ao brinquedo, afrouxa-se, na medida em que há uma alienação da produção dos utensílios do brincar que ligam, afetiva e culturalmente, pais e filhos. Ainda assim, Benjamin analisa a figura do narrador, como imagem que se vicula a tempos pré-capitalistas para evideniar uma forma peculiar das crianças em construir experiências formativas, o brincar.

No texto “Brinquedos e jogos”, ele estabelece uma correspondência entre o sentido da experiência ao narrar e o universo infantil, expresso do seguinte modo. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. Talvez resida aqui a mais profunda raiz do duplo sentido nos “jogos” alemães: repetir o mesmo seria o elemento verdadeiramente comum. A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência comovente em hábito (BENJAMIN, 2002, p. 101-102).

Ao nos reportarmos aos argumentos benjaminianos, constatamos que essa mudança na qualidade e característica da formação cultural transforma a própria noção e processo da formação da experiência social já na mais tenra idade. No caso da infância, reconfigurar-se sua dimensão sensível por meio da transformação da estética do brinquedo no mundo artesanal para a estética industrial10 e, da educação, antes realizada plenamente no âmbito privado, agora parcialmente estatizado.

A noção de experiência, aos poucos, portanto, vai sendo modelada numa tendência de 'empatia' à “imagem do cidadão útil, socialmente confiável e ciente de sua posição” (BENJAMIN, 2002, p. 122), conforme analisa o pensador no ensaio “Uma pedagogia comunista”. No entanto, essas mesmas pistas nos induzem a afirmar que há um contraponto, uma conduta infantil, que leva a criança a uma espécie de errância, a contrapelo desta história, e que a aproxima da representação do flâneur e nos permite evidenciar um potencial para um flâneur aprendiz: sua sensibilidade e sua forma de atenção para o mundo, pois, enquanto brinca e fantasia o momento em que parece menos ocupada com sua obra, é justamente o instante em que ela está mais profundamente imersa nela.

Considerações finais

A infância, neste contexto alegórico, como uma forma específica de sensibilidade e condição humana, retorna como centro da própria noção da experiência. Se na tradição estava claro o sentido e as condições de sua existência, encontramos, na infância moderna representada em Benjamin, sentidos para uma possibilidade de experiência com o moderno. Na infância como imagem da ausência de fala está também a imagem da ausência de um logos desenvolvido, portanto, um realce para outras formas de apreensão e compreensão do mundo. Dito de outra forma, há uma infância representada como modelo de recomeço para o adulto. A ausência de um logos pode ser lida, nesse contexto, como contraposição ao mundo burguês, como ausência da forma particularmente burguesa de se conhecer o mundo. Um recomeço ou uma nova experiência, consigo mesmo, para o ser falante. Digamos, a infância do homem pode ser um caminho para o "adulto mascarado", descrito por Benjamin (2002) como concorrente, inimigo, contrário aos "sonhos da juventude", se reinventar em um sentido revolucionário inclusive. Sem essa alma caricata, aberta a existência do diferente como algo constitutivo das experiências humanas, o conservadorismo tem espaço subjetivo e objetivo para forçar o estabelecimento e a adesão a impérios fascistas, como vimos, no mínimo, duas vezes no século XX durante as duas guerras mundiais.

Referências

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1Original - “As a man whose abode is the streets, the flâneur guards the knowledge of dwelling. To experience the city in this way as a space for living (Wohnraum)” (STEINER, 2010, p. 141).

2Compreendemos o universo infantil como uma zona limiar que incorpora a ideia moderna de infância, as contradições inerentes a ela, o protagonismo infantil, a ação da criança manifesta como transformação do mundo, a relação inter e intrageracionais.

3Segundo Massagli (2008, p. 56) "Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flanêur é o ser que vê o mundo de uma maneira particular, sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de mostrar, levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a exterioridade, na rua encontra o seu refúgio, desvincula-se da esfera privada, buscando sua identificação com a sociedade na qual convive. Ocorre, porém, que essa identificação resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna. Nas ruas das metrópoles, o flanêur constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das mercadorias e anulado pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como um embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o flanêur representou no século XIX".

4Segundo Bottomore (2001, p. 220-221), "Marx nos diz que, na sociedade capitalista, os objetos materiais possuem certas características que lhes são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem naturalmente. Essa síndrome, que impregna a produção capitalista, é por ele denominada fetichismo, e sua forma elementar é o fetichismo da MERCADORIA enquanto repositório ou portadora do VALOR. [...] Assim, as propriedades conferidas aos objetos do processo econômico, verdadeiras forças que sujeitam as pessoas ao domínio deste processo, são como que uma espécie de máscara para as relações sociais peculiares ao capitalismo. Isso dá lugar às ilusões quanto à origem natural dessas forças. Mas a máscara não é ilusão. As aparências que mistificam e deturpam a percepção espontânea da ordem capitalista são reais: são formas sociais objetivas, que, simultaneamente, são determinadas pelas relações subjacentes e as obscurecem. É assim que o capitalismo se apresenta: sob disfarce".

5Para Marx, a reificação "é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A reificação é um caso “especial” de ALIENAÇÃO, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista" (BOTTOMORE, 2001, p. 314).

6Em 'Paris, capital do século XIX' Benjamin (2006, p. 53) afirma: "Nossa pesquisa procura mostrar como, em consequência dessa representação coisificada da civilização, as formas de vida nova e as novas criações de base econômica e técnica, que devemos ao século XIX, entram no universo de uma fantasmagoria. Tais criações sofrem essa "iluminação" não somente de maneira teórica, por uma transposição ideológica, mas também na imediatez da presença sensível. Manifestam-se como fantasmagoria".

7Brougère (2010, p. 49), no artigo 'O papel do brinquedo na impregnação cultural da criança' afirma que a boneca evoluiu de uma "representação de adulto para a de um bebê no final do século passado", e nesse contexto, "O brinquedo simbolizava, aos olhos das crianças e, também, dos adultos, a imagem que valorizava a criança, nova construção cultural". Assim verificamos que há uma dialética nessa forma de representação. Se por um lado ela fortalece a imagem de um indivíduo criança, por outro ela demarca a condição histórica moderna e burguesa desta infância.

8A esse respeito, sugerimos a leitura da seguinte refência: BENJAMIN, Walter. A hora da criança: narrativas radiofônicas. Rio de Janeiro: Editora Nau. 2015.

9Sobre as considerações fitas por Benjamin a respeito do que ele chamo de 'adulto mascarado' verificar ensaio “Experiência” (BENJAMIN, 2002, p. 21-26).

10Aliás, o autor compreende o brinquedo não apenas no “sentido restrito do termo, mas também muita coisa que estaria no limiar deste campo” (BENJAMIN, 2002, p. 81), tais como: pedra, vareta, livro, carrinho, blocos de construção, garrafa, enfim, toda espécie de utensílio, resto ou sobra, os quais podem que podem ser transformados, objetiva ou simbolicamente, pela ação da criança.

Recebido: 30 de Maio de 2018; Aceito: 13 de Fevereiro de 2019

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