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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub 11-Nov-2020

https://doi.org/10.5902/1984644428563 

Artigo Demanda Contínua

Trabalho docente e saúde das professoras da educação infantil

Work and health of early childhood education teachers

Maria de Fátima Duarte Martins*  Universidade Federal de Pelotas

Tania Maria Araujo**  Universidade Estadual de Feira de Santana

*Professora Adjunta da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. duartemartinsneia@gmail.com

**Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, Bahia, Brasil. araujotania@hotmail.com


RESUMO

Neste artigo investigou-se a relação entre o processo de trabalho docente e a saúde das professoras de educação infantil de uma cidade de porte médio no Rio Grande do Sul. Um estudo com abordagem quali-quantitativa foi realizado, incluindo 196 docentes. Resultados da etapa qualitativa serão aqui apresentados. Foram conduzidas entrevistas semiestruturadas para investigar as práticas educacionais utilizadas pelas professoras em seu cotidiano de trabalho. Para analisar as entrevistas utilizou-se o modelo de Análise de Conteúdo de Bardin. A partir dos eixos que conduziram as entrevistas e da análise do material obtido, foram identificadas sete categorias: Ação de Gestão Vocacional, Discurso moralizante, Intensificação, Identidade, Generificação e Medicamentação. Os resultados evidenciaram que as docentes desenvolviam o seu trabalho em condições precárias, com baixos salários, exigências burocráticas, condições físicas desfavoráveis. Estes fatores podem estar associados ao uso de medicamentos e ao adoecimento. Como a educação infantil é uma modalidade de trabalho relativamente nova, estudos que deem visibilidade a esse grupo são necessários com o intuito de melhorar as condições laborais das docentes e evitar problemas em sua saúde.

Palavras-chave: Trabalho docente; Saúde; Educação infantil

ABSTRACT

The article presents partial results of a quantitative and qualitative study that investigated the relationship between the teaching work process and the health of all the preschool teachers of a medium-sized city in Rio Grande do Sul. In all, 196 teachers participated in the study. In this article, we present the results of the qualitative phase that, through a semi-structured interview, investigated the educational practices used by the teachers in their daily work. Based on the information that came from the interviews, seven categories were identified, namely: Vocational Management Action, Moralizing Discourse, Intensification, Identity, Gender Categorization and Medication Intake. To analyze the interviews we used the Bardin Content Analysis model. The results showed that teachers are developing their work in precarious conditions, low salaries, with bureaucratic requirements, adverse physical conditions and these factors may be leading to medicine intake and illnesses. As a relatively new type of work, studies that give visibility to this group are necessary in order to improve the teacher’s working conditions and avoid problems with their health.

Keywords: Teaching work; Health; Early childhood education

Introdução

Pesquisas dedicadas a investigar a repercussão do trabalho docente na saúde dos professores têm aumentado nos últimos anos evidenciando preocupante quadro de adoecimento entre docentes (ARAÚJO E CARVALHO, 2009, p.445). Esse artigo tem como objetivo analisar e discutir resultados de uma pesquisa sobre características do trabalho e saúde das professoras da Educação infantil de uma cidade de porte médio no Rio grande do Sul.

O reconhecimento da profissão de professora de crianças pequenas no Brasil é um fato relativamente recente. Em 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) regulamentou a Educação infantil, definindo-a como primeira etapa da Educação Básica indicando, como sua finalidade, o desenvolvimento integral da criança de zero a seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, de forma a complementar a ação da família e da comunidade. A nova lei exigiu formação pedagógica específica, o que gerou conflitos pelo fato de que muitas professoras não possuíam este nível de instrução. Entretanto, a norma deveria ser cumprida, e as Faculdades de Pedagogia assumiram a formação das professoras. O Conselho Nacional de Educação (CNE), aprovou a Resolução nº1, de 15/05/2006 que criou o Curso de Licenciatura em Pedagogia atribuindo a este a formação de professores para a educação infantil, anos iniciais, anos iniciais do ensino fundamental bem como para o ensino normal, onde fosse necessário e para a educação de jovens e adultos, além da formação de gestores.

Para melhor contextualização deste estudo, uma breve descrição da história do processo de constituição da educação infantil no município investigado é necessária. Na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, local deste estudo, a Lei 9394/96 estabeleceu que as creches municipais deveriam sofrer alterações para a sua adequação às novas exigências previstas; entre elas a integração desse nível educacional ao sistema de ensino até o ano de 1999 (Venzke, 2006, p.158). Esperava-se que a transição ocorresse de forma tranquila. Porém, a empresa prestadora de serviços, responsável pela contratação dos/as funcionários/as das Creches Municipais apresentava situação financeira precária, acarretando sua falência e, por determinação judicial, foi extinta em 1999. Assim, os/as funcionários/as perderam o vínculo empregatício, sendo transferida para a Secretaria Municipal de Educação (SME) a responsabilidade de administrar as referidas creches. Em 30 de agosto de 1999, a Secretaria Municipal de Educação anunciou aos integrantes dessa Secretaria a situação das Creches Municipais e, a partir de 31 de agosto, essas instituições passaram a ser administradas pela SME. Portanto, a SME assumiu as creches nesse momento de crise, para evitar que essas fossem fechadas, o que causaria grandes transtornos para as famílias e crianças que utilizavam esse serviço.

No dia de 8 de setembro de 1999 o Decreto nº 4003, do Prefeito Municipal, criou as Escolas Municipais de Educação infantil, substituindo as Creches Municipais, até então, existentes.

As Escolas Municipais de Educação infantil (EMEIS) emergiram das antigas creches, trazendo em seu bojo, características de organização e funcionamento desse modelo. As creches, de caráter fortemente assistencialista, sofreram poucas adaptações na nova proposta. Conforme Venzke (2006, p.160), o principal critério adotado para a ocupação dos cargos, foi o da escolaridade e, em segundo lugar, as experiências anteriores. Para servente era exigida escolarização até 4ª série do Ensino Fundamental. As merendeiras precisavam ter o 1º grau completo e algum curso de culinária ou experiência comprovada em serviço de cozinha comercial ou industrial. Para o cargo de monitor ou auxiliar, a exigência era a conclusão do 2º grau. As professoras precisavam comprovar a conclusão do Curso de Magistério ou Pedagogia e as administradoras das creches, que passaram a ser diretoras, possuir o Curso de Pedagogia.

As maestras das crianças experimentaram rápidas mudanças em seu fazer profissional. O trabalho educativo tornou-se cada vez mais afeito a exigências burocráticas e rotineiras. Outro aspecto novo, presente no trabalho dessas mulheres, foi a constante luta pela conquista de seu espaço extra doméstico, refutando a ideia predominante de que, para educação de criança pequena, seria necessário apenas ser mulher. Entretanto, apesar da luta pelo reconhecimento profissional, a visão dominante para esse nível educacional era de uma atividade associada a ideia de qualidades próprias da mulher e mãe, distante da ideia de qualificação profissional para exercer uma atividade laboral (ARAÚJO et al., 2006, p.1120).

Como nesse nível de ensino predominam as mulheres (no município do estudo,99% eram mulheres), fatores relacionados às questões de gênero, ao mundo feminino, devem ser destacados, como central nessa discussão. Dentre esses fatores, a falta de demarcação clara entre as atividades de mulher, mãe e professora devem ser focalizadas. Isto, por sua vez, gera desprestígio social uma vez que, não raro, as atividades profissionais de professora são remetidas à figura da babá, às atividades de cuidado e não de educação. Importantes conflitos emergem dessa ausência de clareza quanto ao papel desempenhado. (VIEIRA, L.F et al., 2013; GARCIA, M.M.et al, 2009; VIEIRA, J.S., 2010; VIEIRA, J.S. et. al., 2016; CORTEZ, P.A. et.al., 2017). Em conjunto, esses problemas podem contribuir para o processo de adoecimento dessas professoras.

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa com docentes da Educação infantil - A produção do mal-estar docente nas escolas municipais de educação infantil de Pelotas. Desafios importantes precisam ser enfrentados e relacionam-se à questões no espaço da escola, e à questões externas à formação inicial e continuada de professores, pois todas interferem na qualidade da educação básica brasileira. Este estudo dá continuidade a investigação sobre o processo de trabalho e a relação com a saúde das professoras desenvolvidos em outras iniciativas (VIEIRA et al., 2010; BALINHAS et al., 2013), cujos resultados demonstraram ser as professoras de educação infantil as que mais se afastaram do trabalho por motivo de doença no município pesquisado. Tal fato aponta para a necessidade de estudos que contemplem esse grupo de professoras, o qual, na rede pública de Pelotas, apresenta-se como um campo privilegiado para investigar questões sobre trabalho e repercussão na saúde.

Ser professora de educação infantil

Como já descrito, as escolas de educação infantil na cidade de Pelotas, substituíram as antigas creches municipais com o intuito de melhorar o ensino e o cuidado com as crianças pequenas. Surgidas por meio de decreto municipal e influenciadas, até hoje, por decisões e ações políticas, as funções das professoras têm sofrido alterações ao longo do tempo, numa tentativa de definição das especificidades desse lugar. Inicialmente não era exigido nível de escolaridade superior para o cargo. A partir da mudança de creche para escola de educação infantil, a formação qualificada foi exigida e justificada pela complexidade e especificidade no cuidado e na educação das crianças pequenas.

A educação infantil implica o cuidado e o ensino de crianças de zero a três anos (correspondendo a creches) e de quatro a cinco anos (pré-escola). Segundo Oliveira (2008, p.54), é na educação infantil que a maioria de nossas crianças terá o seu primeiro contato com uma educação formal, que pretende complementar a educação recebida na família e na sociedade. Portanto, para ser professora da educação infantil é preciso conhecimento para lidar com as vicissitudes dessa faixa etária.

A Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009 fixou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação infantil a serem observadas na organização de propostas pedagógicas. Estas Diretrizes articulam-se às Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e reúnem princípios, fundamentos e procedimentos definidos pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, para orientar as políticas públicas e a elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e curriculares da Educação infantil. Além das exigências dessas diretrizes, devem também ser observadas a legislação estadual e municipal atinentes ao assunto, bem como as normas do respectivo sistema. Embora passível de críticas, considera-se que as Diretrizes trouxeram avanços, na medida em que a Educação infantil, passou a fazer parte do sistema de ensino e a receber recursos financeiros necessários para a criação e manutenção das escolas.

Ser professor (a) de crianças pequenas requer uma formação multidisciplinar, alicerçada em um curso de Licenciatura em Pedagogia que lhe ofereça as ferramentas necessárias para viver no universo infantil. Para a qualidade da educação infantil, se exige profissionais especialmente qualificados, rompendo-se com a ideia de que para atuar nessa área basta gostar de criança, ser mulher, paciente, criativa e ter bom senso. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil em seu volume 1, página 41 propõe que o trabalho direto com crianças pequenas exige que o professor tenha uma competência polivalente. Ser polivalente significa que ao professor cabe trabalhar com conteúdo de naturezas diversas que abrangem desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos específicos provenientes das diversas áreas do conhecimento. Este caráter polivalente demanda, por sua vez, uma formação bastante ampla do profissional. Para DALILA (2009, pág. 355), à medida que se tornam mais complexas as demandas às quais as escolas devem responder, também se complexificam as atividades dos docentes. Estes se encontram, muitas vezes, diante de situações para as quais não se sentem preparados, e isso pode levar ao estresse, ao adoecimento e ao desejo de abandonar o magistério.

Como etapa relativamente nova da Educação Básica e, portanto, em movimento de adequação às exigências das Resoluções e Diretrizes, é um desafio trazer para discussão questões sobre ser professora de crianças de zero a cinco anos de idade, uma vez que a sua formação, suas condições de saúde, seu processo de trabalho, interferem na qualidade da educação dessas crianças, e na saúde da docente.

Método

Este estudo buscou analisar a relação entre o trabalho de professora nas escolas de educação infantil e o adoecimento dessas docentes. Trata-se de uma pesquisa censitária com todas as professoras de Escolas Municipais de Educação Infantil. O estudo foi realizado em uma cidade de médio porte do Rio Grande do Sul e utilizou métodos de abordagem qualitativa e quantitativa. Foram estudadas 24 escolas da rede municipal que totalizava 209 professoras. Destas, 196 maestras foram estudadas (taxa de resposta de 93,8%).

Na etapa quantitativa utilizou-se o Job Content Questionnaire - JCQ (Questionário sobre Conteúdo do Trabalho) na sua versão validada no Brasil (ARAÚJO; KARASEK, 2008). A versão recomendada compreende 49 questões, abordando, além de controle sobre o próprio trabalho e demanda psicológica, apoio social proveniente da chefia e dos colegas de trabalho, demanda física e insegurança no emprego. Ao questionário, acrescentaram-se questões referentes ao perfil sociodemográfico da professora e duas questões sobre o uso de medicamentos. O uso do medicamento incluiu a questão “Atualmente está tomando alguma medicação [com opções de resposta dicotômica (sim/não); se sim, qual o medicamento?; 2) já tomou algum medicamento para dar aula?

Os dados funcionais (tempo de magistério, carga horária) foram fornecidos pela Secretaria de Administração. Os dados referentes ao número de licenças de saúde e as doenças mais frequentes foram cedidos pelo Serviço de Biometria Médica, órgão municipal encarregado da perícia médica e fornecimento de atestados para afastamento do trabalho.

Para a criação do banco de dados e análise das variáveis coletadas utilizou-se o programa Statistical Package for Social Science SPSS para Windows, versão 13.0.

Para complementar os dados obtidos pelo JCQ, com o intuito de conhecer mais detalhadamente o trabalho das professoras, foram realizadas entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram conduzidas junto às professoras em seu local de trabalho. Na etapa qualitativa, foram entrevistadas 15 professoras do grupo das 196 que responderam o questionário da etapa quantitativa. Para a seleção das professoras a serem entrevistadas, foram inicialmente selecionadas 15 escolas nas quais se constatou o maior número de licenças de saúde. Retornou-se a essas escolas e convidou-se uma professora de cada uma dessas escolas, que havia participado da etapa anterior da pesquisa, para participar da entrevista. A escolha da entrevistada ficou a cargo da diretora e das professoras. O dia e horário do encontro foram previamente agendados. As entrevistas foram realizadas na própria escola, e, com a autorização das professoras, foram gravadas. As entrevistas duraram aproximadamente de 30 a 40 minutos. Nessa etapa utilizou-se o modelo de entrevista semiestruturada (MANZINI, 2003). Para a condução das entrevistas foi elaborado um roteiro que incluía questões sobre as práticas educacionais utilizadas pelas professoras em seu cotidiano de trabalho, as rotinas da professora, o grau de exigência material e simbólica que elas demandavam, incluindo aí as relações sociais na escola e com as famílias das crianças; a construção identitária dessas profissionais, abordando a relação entre profissão, gênero e educação de crianças pequenas.

As entrevistas foram realizadas pelo grupo de professores e alunos da graduação em Licenciatura em Pedagogia e do Programa de pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. O roteiro das entrevistas foi elaborado pelo grupo e foram realizadas duas entrevistas piloto. As entrevistas foram gravadas e posteriormente decodificadas, escritas e analisadas. Os mesmos pesquisadores participaram de todo processo da pesquisa. Para analisar o conteúdo das entrevistas, empregou-se Análise de Conteúdo de Bardin. A análise de conteúdo permite ao pesquisador compreender a realidade do contexto e o ambiente vivenciado pelo entrevistado (Oliveira, 2003, p.16). Trata-se de um conjunto de técnicas que podem ser utilizadas para tratar os dados e analisar o conteúdo dos mesmos, ultrapassa os limites do uso de uma análise limitada unicamente ao conteúdo manifesto. O modelo de Bardin é o mais citado no Brasil em pesquisas que escolhem a análise de conteúdo como técnica de análise dos dados. Configura-se como um procedimento confiável para atingir as linhas mestras de um texto, permite enriquecer a leitura dos dados coletados.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e as recomendações da Resolução n196/96 e 466/12 foram criteriosamente seguidas. A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital MCT/CNPq/MEC/CAPES Nº 02/2010).

Resultados

A dimensão qualitativa do estudo problematizou a especificidade do trabalho das docentes, explorando o cotidiano laboral das professoras, assim como os sentidos e os significados que circulam em seus discursos sobre educação infantil e sua atuação nesse nível de escolaridade.

Como já descrito, a população do estudo incluiu 196 professoras, sendo 195 mulheres e um homem (que estavam em sala de aula exercendo a função docente). As mulheres representam 99% da população estudada. Desse grupo 56,6% estavam casadas, 32,7% solteiras e 6,6% eram separadas. A idade variou de 22 a 61 anos, sendo a média de 38 anos de idade. Considerando o nível de escolaridade, 102 professoras possuíam o segundo grau completo, 8 graduação completa e 8 professoras possuíam graduação incompleta. Dessas professoras, 30 possuíam especialização e 8 mestrado. O tempo médio na profissão era de nove anos. Todas as professoras trabalhavam 40 horas semanais. Todas eram concursadas, o regime de trabalho é estatutário e eram beneficiárias do Instituto de Previdência dos Servidores Públicos Municipais de Pelotas (PREVPEL).

A partir dos eixos que conduziram as entrevistas, identificaram-se sete categorias elencadas a partir da escuta das entrevistas. Foram elas: Ação de Gestão Vocacional, Discurso moralizante, Intensificação, Identidade, Generificação e Medicamentação. Assim, a discussão dos resultados foi feita com base nessas categorias. Primeiramente focalizou-se a ação da gestão, ou a falta de ação da gestão. Palavras como carências, salas de aula sem reboco e sem pintura, praças e pátios abandonados, móveis quebrados, recursos didáticos de baixa qualidade ou inexistentes, baixos salários e longas jornadas de trabalho circularam nas conversas com as professoras entrevistadas:

O ano passado, uma professora quis que a nossa sala fosse pintada e quem pintou fomos nós. Conseguimos o dinheiro doado, uma doação de um senhor que a gente ligou e pediu; e ele mandou cento e cinquenta reais, pelo moto táxi e a gente pintou a sala.

Ser professora de educação infantil, na conjuntura apresentada, implicava inventar materiais - a improvisação e a criatividade eram alguns dos expedientes usados para aliviar/atenuar tal situação. “Se eu não tiver uma coisa para trabalhar eu vou buscar outra: Se eu não tiver uma boa canetinha, para desenhar com as crianças, vou para a grama com as crianças”.

Para executar as tarefas de forma mais prazerosa, em lugares mais agradáveis e com recursos adequados, as professoras compravam, com recursos financeiros próprios, materiais para auxiliar os estudantes carentes, recolhiam doações para garantir o básico: canetinhas, tintas, colas, lápis, borrachas, etc. Nas palavras das professoras:

O material que eles [da SME - Secretaria Municipal de Educação] mandam não é suficiente e, além de tudo, normalmente, de péssima qualidade. A cola é uma água; vai usar um giz de cera, a criança nem pegou e já partiu. Acho que eles se juntam e fazem licitação e aquele que cobra menos é o que ganha a licitação e é um material sempre de péssima qualidade.

Os significados e sentidos que atravessam os discursos oficiais invadem as comunidades escolares e buscam tornar a falta de recursos financeiros somente um detalhe no cotidiano escolar (BALINHAS, et.al 2013). Mas essas tentativas se desfaziam quando a professora hesita em comentar sua renda:

Olha o salário eu não vou botar o real porque eu me sinto muito humilhada. Se eu soubesse que tu ias fazer essa pergunta [...]. Ah sobre o salário eu não vou mesmo falar.

Os dados, além de demonstrarem a falta de estrutura para o trabalho, também explicitaram a precarização das condições físicas nas quais se executava o trabalho e, mais uma vez, evidenciaram o caráter criativo do trabalho docente. As professoras usavam os materiais descartados por outros, tais como livros e revistas, e transformavam algo que foi descartado por outro em material didático. Caso contrário, as crianças não teriam ferramentas para suas experiências.

Eu pego uma caixa de sucata, dentro de um berçário; eu acredito que dali eu posso, eu mostro o mundo para as crianças, eu vou ensinar, eu posso ensinar letras, números; eu posso trabalhar. [...] o social eu posso trabalhar: a higiene, falar de emprego, de profissões.

A palavra vocação também foi enfatizada e usada como contrapeso/ compensação para a precariedade das condições de trabalho da professora, sua renda insuficiente e a não valorização profissional. Todavia, quando se tratava de outras profissões com maior reconhecimento social, a vocação não significa aceitar ou submeter-se a uma inadequada remuneração. Nessa linha de pensamento, explica outra professora:

Se eles não reverem esta parte da educação [...] A pessoa tem que ter vocação. Médico também é vocação [...] médico é bem remunerado. Advogado também é vocação, bem remunerado, porque é bem remunerado quando ganha uma causa. Por que professor tem que ser [somente] vocação?

A disposição para exercer suas tarefas e a convicção da obrigação de driblar os processos de desprezo com a educação também são produzidos culturalmente, estando relacionados a vocação. Quando é dado à professora a imagem de salvadora ou a figura de substitua da mãe, cria-se um alto grau de comprometimento que pode levar a intensificação do trabalho, principalmente quando a professora assume um protagonismo que não é só seu. De acordo a ARCE (2001, pag. 182), a todo momento tem-se reforçado a imagem da professora da educação infantil por intermédio da mulher “naturalmente” educadora nata, passiva, paciente, que sabe agir com bom senso, e guiada pelo coração, em detrimento da formação profissional.

Nas palavras da professora, o compromisso com a educação se estende às relações que seriam estritas à família. Nas entrevistas constataram-se que as relações com a família das crianças, da forma como estão acontecendo, é explicada por meio de um discurso moralizante: ensinar como sentar e usar o caderno, se portar com colegas, organizar materiais. Algumas mães e pais, quando chamados à escola, lamentavam e justificavam suas ausências na vida de seus filhos pelo trabalho, pela falta de tempo. Restou explícito que, na atualidade, alguns pais abriam mão da função de educar, de estabelecer limites e regras, transferindo decisões e soluções para as professoras. A recusa de alguns pais em assumir a responsabilidade pela educação das crianças e sua transferência às professoras aparece no discurso dos pais, como referido pelas professoras:

Eu não posso mais [...] eu não posso com a vida dele. Professor, vocês nem me liguem mais se ele fizer alguma coisa na sala de aula, vocês podem ligar direto para o conselho tutelar.

Esse discurso chega, frequentemente, às professoras. A vida familiar estudantil entra na escola sem pedir licença e pede posicionamentos e escolhas das professoras. Desse modo, o suposto/dito desmazelo ou afastamento da família implica mais cuidado, mais atenção, mais esforço dentro do espaço escolar (RESENDE, 2017).

Sobre sua identidade como professoras da educação das crianças pequenas, as professoras reconhecem que a inclusão da Educação infantil na Educação Básica com a LDB (Lei 9394/96) trouxe melhoria nas suas condições de trabalho e na situação ocupacional das professoras. No entanto, mesmo considerando esses efetivos ganhos da nova legislação, sabe-se também que, as políticas educacionais das últimas décadas acarretaram, de modo geral, a precarização das condições de trabalho para as professoras da educação básica pelo aumento dos encargos na escola (por exemplo, a participação na gestão dos recursos e na democratização da escola) e pela perda salarial (GARCIA e ANADON, 2009).

Longe dos muros escolares, as professoras enfrentavam outros desafios relacionados com a profissão e gênero. Frequentemente, os compromissos com a escola continuavam depois do expediente. Em casa corrigiam provas e faziam os planos de aula; além disso, efetuavam as tarefas domésticas e algumas ainda trabalhavam em outras atividades para melhorar a renda. Assim, variavam as atividades realizadas, investiam em outros serviços que complementavam os escassos recursos que a profissão oferecia.

Sem garantias, com estabilidade e assistência à saúde ameaçadas, submetidas cada vez mais a avaliações e condições de trabalho quase sempre desfavoráveis e precárias, a professora precisa ser empreendedora, criar condições de sobrevivência, de satisfação ou promessa de satisfação no seu ofício, precisavam driblar os problemas da vida escolar, precisavam produzir soluções dentro e fora da profissão. Mostrava-se neste movimento, um processo gradual de privatização das políticas sociais, ficando ao encargo dos indivíduos os mecanismos de segurança que garantirão sobrevivência, saúde, aposentadoria.

Pesquisas realizadas por BERTONCELI (2016) e MARTINS et al. (2016) apresentam resultados de estudos os quais destacam a baixa remuneração e a pauperização do trabalho como características marcantes do trabalho na educação infantil. Também destacam que a pauperização profissional significa pauperização da vida pessoal nas suas relações entre vida e trabalho, sobretudo, no que tange ao acesso a bens culturais. Os autores afirmam ainda que o Brasil está entre os países com pior renumeração docente, principalmente nos primeiros anos de escolarização. Dados estatísticos de pesquisa realizada pelo IBGE/PNAD, no ano de 2009, revelaram que a faixa dos menores pagamentos aos docentes estava na Educação infantil, devido também a fatores como formação.

As condições de trabalho precarizadas, estendem-se a outras dimensões da vida no trabalho, como no caso da previdência. Nas falas das professoras deste estudo, os planos de previdência dos servidores públicos, não atendiam às necessidades, como relata uma professora que precisou recorrer a esse serviço:

O Instituto de Previdência dos Servidores Públicos Municipais de Pelotas (PREVPEL) não me cobre nada. Estou indo pelo SUS mesmo, porque, assim, poderia fazer a cirurgia aqui em Pelotas. Pela PREVPEL seria a cirurgia o custo de R$ 13.000,00 [...] E aí, bom, fui particular, inviável, porque só a cirurgia e fora todos os custos de hospital mais internação, imagina só a cirurgia, aí eu fui para o SUS [...] Eu comentei para as minhas colegas, a gente está perdida na PREVPEL [...] fomos nos informar somos descontadas por matrícula - cada matricula tem um desconto. A nossa saúde está muito precária, não só a educação, [...] quando a gente convive por esses meios é que a gente vê, o que é a precariedade.

Também as longas jornadas de trabalho, as dificuldades de acesso à escola, o tempo gasto para o deslocamento e o horário reduzido para fazer as refeições tornam a vida das professoras uma correria que compromete a qualidade de vida e a saúde das docentes:

Tem, tem a ver com o meu trabalho, porque é um trabalho que te exige muito, muito compromisso. Tu não podes pegar uma outra atividade fora da escola. Porque assim, se tu pega as 7:30, tu trabalhas até as 11:30, aí tu retornas para a escola, faz o intervalo do almoço. Se tu ficar no horário das 17:30 tu nunca sais cinco e meia (horário legal) porque tu tens que rezar que alguém lembre de buscar o seu filho na escola. Então isso é muito cansativo. E tu sai daqui tu tens a tua casa, tens tua vida e a saúde tu vai empurrando, foi o que aconteceu comigo.

Por vezes, as dificuldades são colocadas por regras seguidas pela escola:

Tem uma questão que eu acho muito importante, que reivindico muito, vem merenda para as crianças, e as professoras não podem comer, tem colegas aqui, que às vezes não tem tempo de tomar café em casa [...] não pode comer a merenda das crianças. Só que às vezes vamos às reuniões da SME e servem as mesmas bolachas daqui, é tudo muito complicado [...] Acho que eu sou tão confiante no meu trabalho, eu sei que eu faço um bom trabalho, nem argumento, nem discuto muito. Agora, a questão salarial, eu discuto muito.

Os depoimentos mostraram a precariedade de recursos materiais e simbólicos de grande parte das crianças e jovens da escola. Esse mergulho cotidiano nessas outras vidas, não lhes permite cruzar os braços, mas arregaçar as mangas e fazer qualquer coisa ou muitas coisas. Nesse cuidado com os outros, muitas adoecem, olham pouco para as condições da sua profissão. É o que diz uma das professoras entrevistadas:

E aí quando entram na sala, absorvem toda a energia dos alunos, todos os problemas daqueles alunos, todas aquelas coisas ele (o professor) vai acumulando, como não tem um curso, uma terapia, não é proporcionada para que ele também, para procurar se livrar daquela angústia, se liberar aqueles anseios dele, então aquilo ali, acaba fazendo mal para o professor [...] a gente trabalha, tenta desenvolver um trabalho, onde eles sintam confiança, às vezes as coisas apertam, até ter um ouvido a mais para escutar, para sentar, para desabafar, a gente acaba fazendo isso assim com eles.

Os discursos que constituiam à docência eram marcados por um desejo de ajudar e de ser ajudadas. Apesar de não haver quem cuide dessas cuidadoras e educadoras, mesmo assim elas desejavam estar ao lado dos estudantes de uma forma quase religiosa e maternal. Isto também era fortalecido pelas políticas educacionais, pelas orientações midiáticas, pelas experiências familiares, pela construção da profissão docente. É evidente na fala das professoras uma crença quase que pastoral de sua função:

Eu acredito ainda no ser humano, eu acredito na educação. E acredito que a gente pode, por pouco que seja, a gente pode plantar uma sementinha e que aquilo ali vai dar bons frutos. O nosso objetivo na educação é lutar por uma coisa melhor, então a gente está sempre lutando por alguma coisa. Eu vejo assim. Sempre, sempre. E a vida se faz de luta, né?

Muitas professoras eram capturadas por formas de agir, sentir e pensar que as tornavam as únicas responsáveis pelo processo educativo, pelas condições de trabalho, pela ineficiência do sistema público, cabendo-lhes a tarefa de militar pela educação, uma conduta balizada pela autoexigência, pelo autoinvestimento na tarefa de educar. Jogavam sobre si todos os problemas e suas causas. Esse modo de ordenar e conceber o mundo do trabalho docente, centrado na autoexigência, pode produzir sofrimento intenso e ser uma porta de entrada para o adoecimento físico e mental. (VIEIRA, et al., 2016).

Essa postura parece ter relação com as representações que se movimentam atualmente na sociedade por meio de discursos midiáticos que apontam, repetidamente, serem as professoras as grandes responsáveis pelo fracasso do sistema escolar público e pelo insucesso dos alunos. Em pesquisa realizada com professoras da educação básica da rede municipal de uma cidade pequena do Rio Grande do Sul, Garcia et al. (2009, p.80) identificaram falas como: “Não é só chegar, despejar o teu conteúdo, dar a tua aula, ir embora e não ter vínculo nenhum com a escola. Eu pelo menos aqui... Bom, eu sempre fui assim. Trabalho agora 40 horas aqui na mesma escola. Então aqui é minha família também. Eu me preocupo tanto quanto lá em casa. Então, são mais atribuições? É, está. Mas por um lado eu acho que vale a pena”. Novamente aparece a vocação como um fator de orientação da escolha por uma profissão, marcado pela desqualificação que lhe atribui, muitas vezes, a mídia e os políticos que desconhecem seu trabalho.

As escolas que fizeram parte da pesquisa, em sua maioria, não dispunham de estrutura física adequadas para a realização de experiências educativas com as crianças - as salas eram frias no inverno e quentes no verão, algumas com pouca luminosidade, espaços pequenos com muitos móveis. Uma pesquisa realizada por CAMPOS et al. (2011, p.48) revelou aspectos importantes sobre a realidade vivida por crianças e adultos nas creches e pré-escolas brasileiras. Os dados obtidos apontam aspectos específicos do funcionamento das creches e pré-escolas que necessitam pré-condições de infraestrutura mais adequadas. Apesar das grandes diferenças regionais que caracterizam a realidade social do Brasil, o estudo de Martins et al. (2014, p. 287) encontrou dados semelhantes ao de Campos et al. (2011) Para estas autoras, há uma situação dinâmica, com importantes mudanças introduzidas na última década, mas ainda contraditória, apresentando desafios que parecem se desdobrar à medida que uma nova consciência sobre a importância da educação infantil se dissemina na sociedade.

Uso de medicamentos

A pesquisa também investigou aspectos relativos ao uso de medicamentos. Das 196 docentes, 61,2% indicaram o uso de algum medicamento para trabalhar, prevalecendo o consumo de analgésicos e de antidepressivos, indicando um processo de medicamentação, cada vez mais presente no processo de trabalho dessas professoras. Para VIEIRA et al. (2010 p.18), medicamentação é “a relação entre a adequação das professoras às situações conflituosas do seu ofício e as tentativas de atenuar os efeitos prejudiciais dessas condições sobre sua saúde”.

Nas entrevistas, quando perguntadas sobre se consideravam que havia alguma relação entre seu trabalho e as doenças que podiam ter, constatou-se que as professoras dispensavam licenças de saúde ou mesmo adiavam cirurgias para finalizar o ano letivo, fechar as notas; enfim, para cumprir as obrigações com colegas de trabalho e estudantes, como revelaram os dois depoimentos abaixo:

Sempre trabalhei doente mesmo. Porque às vezes tu estás assim com uma febre, com um mal-estar, alguma coisa e como a gente aqui trabalha numa jornada de dez horas, tu dependes do outro colega, então às vezes pra não deixar teu colega mal porque tu tens que sair, tu tomas um remedinho e vai indo né, se automedica. [...] Eu mesma, já teve vezes que cheguei em casa, assim meu Deus, de ter vontade de chorar. Bah! Cruz credo! O que é aquilo que eu estou vivendo? Ai meu Deus, eu preciso continuar. Respira fundo e vai em frente.

Bom eu tive tendinite [...] eu tenho tendinite e aí, eu tratei, tirei licença para tratar, fiz fisioterapia muito tempo e melhorei. Aí tu começas a trabalhar e corrigir. Trabalha muito com o braço, tive uma bursite. Aí acabei rompendo 50% do tendão. Estou, desde o ano passado, com laudo médico para operar e não me operei ainda. Eu não me animo a mexer, eu teria que me afastar e tem o tempo de recuperação, eu tenho medo de mexer com o tendão devido a isso aí.

As docentes demonstraram que suas expectativas eram destruídas pelas escassas respostas e pouca satisfação na execução das atividades educativas, assim como na transformação das condições de trabalho. Pode-se inferir que a frustração pela quais passavam essas mulheres, a desesperança e o desconforto como viviam seu cotidiano, eram certamente fatores de desconforto e adoecimento.

Os relatos denunciaram que, em seu processo de trabalho, experimentavam mudanças materiais e simbólicas que promoviam tanto uma hipertrofia de funções quanto o deslocamento das imagens sobre a educação e o ser docente. O sacrifício - como abandono de si e renúncia - marca as representações da profissão docente que circulavam na sociedade: trabalhar sem condições físicas e emocionais faz parte da doação diária e da luta que as professoras precisavam fazer para demonstrar sua vocação, seu valor e conquistar o reconhecimento da comunidade (MARTINS et al., 2014, p. 70).

Soma-se a isso um conjunto de discursos - governamentais, midiáticos e da própria sociedade - que tem promovido a redução do conceito de educação ao conceito de ensino (MACEDO, 2012, p.722). Tal redução atinge a cada docente em particular, espremidas por exigências de atividades técnicas e burocráticas definidas pelas políticas governamentais e vistas como medidas de avaliação da competência e da qualidade da educação. Isto tem produzido efeitos negativos sobre a saúde do professorado.

Da forma como foi relatado pelas professoras, o trabalho educativo pode ser associado a qualquer forma de enfermidade, como se fosse natural o adoecimento de seus agentes. Porém, o trabalho de cuidado não é um trabalho que naturalmente adoeça as pessoas; entretanto, quando não há autonomia, quando as professoras não têm controle sobre seu trabalho, há um excesso de atividades burocratizantes, uma elevada demanda psicológica, configuram-se situações de condições precárias que dificultam o cuidado com a saúde (ARAÚJO et al., 2006). Esses fatores podem levar ao adoecimento e ao uso de medicamentos, sendo indicadores de sofrimento que, por sua vez, denunciam a necessidade de medidas que possam proteger e promover a saúde dessas professoras.

Discussão

Ainda que não tenhamos abordado explicitamente o problema, é preciso levar em conta que, desde os anos de 1990, diferentes governos brasileiros vêm defendendo modelos de gestão empresarial sobre o processo de trabalho docente (KRWCZK,1999, p.115). Experimenta-se assim, no interior das escolas e no processo de trabalho docente, um modelo político esquizofrênico, com dupla mensagem; em nossa sociedade, “ser professor”, “educar” e “formar educadores”, tornam-se atividades nobres, à primeira vista, valorizadas socialmente, fundamentais para o futuro, porém quando as coisas não vão bem, costuma-se culpar os professores pelo fracasso da educação, o que tem aprofundado os graus de insegurança da categoria. Essas políticas estão intensificando o trabalho docente e afetando a imagem que o professor tem de si mesmo, além de incidir sobre sua saúde. Não são poucas as normatizações e os programas que passaram a exigir do professorado mais horas em sala de aula, ignorando as condições de trabalho existentes em nossas escolas. São as docentes e suas formas de trabalho sobre as quais se voltam as críticas e os objetivos das reformas governamentais, atribuindo a baixa qualidade do ensino à incompetência ou à falta de compromisso do magistério, ignorando a escassez de recursos, os baixos salários, o atraso tecnológico das escolas e a própria ausência de um sistema de educação.

Adicionalmente, como se observou com os relatos das professoras, o aumento das responsabilidades que são atribuídas à escola, a ausência dos pais na educação dos filhos são elementos que modificaram o trabalho docente. Ao mesmo tempo, esse aumento das responsabilidades não foi acompanhado pelo aumento da relevância social dada aos docentes ou à escola - facilmente observadas pela remuneração e pelas condições de trabalho oferecidas a essas profissionais. Desse modo, é marcante o desequilíbrio entre as exigências do trabalho e as formas de recompensas que o trabalho permite obter. Assim, a atividade docente mostra condições claramente desfavoráveis e que podem produzir sofrimento e adoecimento. Esses aspectos foram bem ilustrados no material empírico que este estudo apresentou.

Conclusão

A imersão no universo dessas professoras possibilitou conhecer seu cotidiano, conversar sobre os mecanismos que utilizavam para atenuar a complexidade das múltiplas experiências de ser professora de crianças pequenas. Permitiu conhecer também fatores do seu trabalho que auxiliaram na análise e compreensão do ser professora da Educação infantil.

Esgotamento, cansaço físico, ansiedade, estresse e desesperança são queixas que foram encontradas nos discursos dessas professoras. Essas palavras, de algum modo estão a indicar a desqualificação das condições materiais e simbólicas do trabalho educativo com crianças pequenas. É assim que podemos vislumbrar algumas das causas que podem estar produzindo adoecimento e, consequentemente, o uso exacerbado de medicamentos pelas professoras da educação infantil.

Embora as novas leis e as políticas dirigidas à Educação infantil tenham como objetivo melhorar o ensino e o cuidado com as crianças pequenas, o que se tem observado é uma sobrecarga de responsabilidade e de trabalho resultando na exigência pela qualidade do atendimento aos estudantes, a desvalorização profissional, um alto índice de rotatividade nas escolas, falta de demarcação clara entre as atividades de mulher, mãe e professora e o desprestígio por serem muitas vezes remetidas à figura de babá. No conjunto, esses fatores contribuem para o processo de adoecimento das professoras da Educação infantil.

As entrevistas aqui apresentadas dão pistas sobre a necessidade de analisar a relação entre o processo de trabalho da professora da Educação infantil e sua relação com o adoecimento. Evidenciou, também, a relevância dessa relação ser melhor compreendida, pois mesmo em situações difíceis de trabalho, são poucas as docentes que desejavam abandonar o magistério frases como “[...] o brilho dos seus olhos é muito lindo [...] gosto de conviver com crianças é o melhor que há [...] não posso me queixar, existe paixão no que faço”, explicitam esse pensamento. Percebe-se, nessas narrativas, o compromisso com o cuidado e a educação de crianças pequenas. Porém, mostram também que elas estavam sujeitas à acomodação e a momentos de desânimo causados pela desvalorização salarial e pelas condições precárias de trabalho, potencializando o adoecimento de muitas delas, tal como colocou a professora “[...] as professoras dizem que vão sair, vivem tomando antidepressivos. Eu vou para o ensino fundamental, isso aqui é para loucos. É isso que se escuta”.

Ser professora de educação infantil tem significativa importância no campo da educação, são potencialmente agentes da melhoria das condições de trabalho. Para os gestores da educação brasileira, a Educação infantil ainda é um desafio que o ensino público ainda enfrenta. São as pesquisas nessa área que darão visibilidade ao que essas professoras enfrentam no seu dia a dia e ajudarão a questionar os discursos políticos e mediáticos que simplificam o trabalho docente, desconsideram a sua complexidade e transferem para as professoras os problemas da educação brasileira. Explicitar as características desse trabalho, identificar suas dificuldades são desafios que se colocam para o enfrentamento de problemas como o uso de medicamentos, sofrimento e o adoecimento. O desafio de avaliar potenciais impactos do trabalho da educação infantil no processo saúde-doença e na qualidade de vida docente é condição importante para a melhoria da educação em nosso país.

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Recebido: 11 de Agosto de 2017; Aceito: 12 de Janeiro de 2018

Correspondência Universidade Federal de Pelotas - Departamento de Fundamentos da Educação - Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática. Rua Alberto Rosa Nº 154 - Centro. CEP: 96010-770. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

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