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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub Nov 11, 2020

https://doi.org/10.5902/1984644435473 

Artigo Demanda Contínua

A escuta de amor na escrita da dor: narrativa autobiográfica como processo catártico

Listening of love in the writing of pain: autobiographical narrative as a catalytic process

Sandra Cristina Rodrigues Lopes*  Universidade Estadual de Goiás

*Mestranda em Educação, Linguagem e Tecnologia da Universidade Estadual de Goiás - UEG. PPG-IELT- Anápolis-GO. onlytwt@gmail.com


RESUMO

Este artigo apoia-se no diálogo entre as abordagens histórico-cultural e psicanalítica para desenvolver uma reflexão sobre a importância das narrativas autobiográficas como mecanismo de investigação da construção identitária do sujeito. A partir da consideração sobre como o sujeito se apropria da linguagem escrita, segundo a psicologia histórico-cultural e da análise da função catártica que a narrativa autobiográfica é capaz de produzir no indivíduo, são desvelados outros pontos fundamentais em relação à aprendizagem dos conteúdos essenciais para o desenvolvimento do sujeito e sua inserção crítica na sociedade. Para isso, observa a relação estabelecida entre a escrita como projeção do eu e os eventos traumáticos, histórias de vida íntimas desse sujeito, na medida que propõe uma análise sobre a narrativa autobiográfica como veículo de investigação das implicações desses problemas para a aprendizagem e desenvolvimento da linguagem; além de chamar a atenção para o aspecto da função catártica e sublimatória da autobiografia para externar os conflitos e reelaborá-los por meio da escrita.

Palavras-chave: Escrita e Identidade; Narrativa Autobiográfica; Narrativa Catártica; Sublimação

ABSTRACT

This article is based on the dialogue between the historical-cultural and psychoanalytic approaches to develop a reflection on the importance of autobiographical narratives as a mechanism of investigation of the identity construction of the subject. From the consideration of how the subject appropriates written language, according to historical-cultural psychology and the analysis of the cathartic function that the autobiographical narrative is able to produce in the individual, other fundamental points are revealed in relation to the learning of the essential contents for the development of the subject and its critical insertion in society. For this, he observes the relationship established between writing as a projection of the self and the traumatic events, intimate life histories of this subject, inasmuch as he proposes an analysis on autobiographical narrative as a vehicle for investigating the implications of these problems for the learning and development of language; in addition to drawing attention to the aspect of the cathartic and sublimatory function of autobiography to express conflicts and rework them through writing.

Keywords: Writing and Identity; Autobiographic Narrative; Catartic Narrative; Sublimation

Introdução

“O ato de escrever é concebido como um modo de alívio psíquico (...) a desprender-se o quanto antes e de maneira mais absoluta de sua criatura e exorcizando-a da única maneira em que lhe é possível realizar tal coisa: escrevendo-a”.

A reflexão em torno da eficácia da escrita como processo catártico constitui-se em um importante tema no século XXI, dada a discussão posta por diferentes áreas como a Psicologia, a Educação, a Sociologia, a Antropologia, entre outras, buscando-se compreender os usos da autobiografia para responder às demandas do eu subjetivo, uma vez que a construção narrativa de si revela a dialógica entre o ser e a representação do ser.

Segundo propõe Gomes (2004), houve, nas últimas décadas, uma intensa publicação de cunho biográfico e autobiográfico, denominada escrita de si, de modo que “cartas, diários íntimos e memórias ganharam um reconhecimento e uma visibilidade maior tanto no mercado editorial, quanto na academia”. (GOMES, 2004, p. 08). Assim, buscar compreender como as narrativas autobiográficas podem ser aplicadas como instrumento de representação e projeção de si é importante tarefa e útil ferramenta para socorrer as demandas subjetivas e intersubjetivas que o sujeito traz consigo, como sua trajetória de vida e a carga ou dimensão psicoafetiva que subjazem à construção identitária de cada ser humano. Sobretudo, repensar as possibilidades do ser e sobre os sentidos do processo autoformativo construído na convivência transcendente mediada na relação com o outro.

Por outro lado, Larrosa (1999) esclarece que, ao observar as escolas, atualmente, há uma solicitação intensa por parte dos docentes de que os alunos falem e escrevam a respeito de sua vida pessoal, trazendo à baila assuntos de foro íntimo como família e gostos pessoais. Nesse sentido, torna-se evidente o papel da escrita como importante dispositivo de produção da subjetividade interiorizada e intimizada, uma vez que os trabalhos escolares ganham uma roupagem voltada para a discussão e problematização a respeito das identidades do aluno e de seu universo subjetivo.

De fato, toda forma de escrita pressupõe uma representação. Contudo, há que se refletir até que ponto se trata de um movimento pulsional de sublimação. Para além disso, é válido questionar se o escrito autobiográfico tem caráter catártico e se há realmente uma subjetividade sendo externada, haja vista que nem toda produção de texto promove a catarse como descarga de emoções, sejam positivas ou negativas.

Recorre-se ao pensamento de Cortezár (cit. por Cruz, 2003, p. 88), como epígrafe para problematizar o aspecto catártico da escrita como veículo de construção identitária do sujeito. Trata-se de considerar a complexidade e importância do tema, chamando a atenção para o fato de que, ainda que a palavra (falada e escrita) não seja a única via para a comunicação, certamente é uma das mais usadas no contexto terapêutico, dentro ou fora do ambiente do consultório.

O ato da escrita é, de fato, um processo de conhecer melhor a si, porque as experiências íntimas são projetivas e subjetivas, permeando o terreno do aprendizado diário e possibilitando o reconhecer das projeções do eu subjetivo. Assim, as palavras configuram-se como o veículo de interpretação do pensamento. E atribuir palavras à experiência humana nada mais é que criar significado para essas experiências. Além disso, os problemas de aprendizagem e desenvolvimento da linguagem do aluno têm estreita relação com as representações traumáticas que estes trazem consigo. E nomeá-las perpassa pelo trabalho de decifrar e/ou interpretar esses eventos traumáticos, uma vez que o trauma psicológico está relacionado à ausência de significado semântico.

Com base nesta argumentação, o presente trabalho propõe uma reflexão em torno da eficácia metodológica da narrativa autobiográfica como instrumento de tradução das experiências, conflitos e vivências dolorosas internalizadas pelo sujeito, os quais buscam palavras para sintetizar esses eventos traumáticos, já que as representações narrativas podem possibilitar/atribuir significados às suas vivências pessoais e facilitar também que estas vivências sejam reelaboradas e superadas.

Para tanto, este artigo está dividido em três partes: na primeira, expõe o papel da linguagem e da escrita enquanto processos sociais e de construção identitária, por meio do qual o sujeito consegue delinear-se, pois escrever de si é um dispositivo onde a pessoa situa sua vida e suas memórias; na segunda parte, aborda-se a questão da escrita como atividade simbólica e de intersubjetividade, considerando a relevância da escrita para a construção da identidade e consequente apropriação e expansão do Eu, bem como de interação com o outro; e na terceira, discute-se as possiblidades de catarse e sublimação das dores, traumas e vivências negativas do indivíduo por meio da escrita, evidenciando a eficácia da escrita autobiográfica para a emancipação do Eu e provável estruturação das angústias internalizadas e, agora, reelaboradas por meio do discurso autobiográfico.

Linguagem e escrita: práticas sociais

A linguagem humana ou (realizações linguísticas) surgiu em função das demandas relativas aos processos de comunicação do sujeito e também dos sistemas sociais a que esse sujeito pertencia. Nesse sentido, compreende-se que a linguagem é um processo sócio-interacional, construído graças aos ciclos interacionais que o indivíduo vai criando no transcorrer de sua vida. Em outras palavras, a linguagem pode ser entendida como a produção, o desenvolvimento, a leitura e a compreensão não só da língua, mas de todos os aspectos e comportamentos humanos como a música, a dança, a literatura, entre outros símbolos sociais, onde o sujeito é designado como agente e transformador de suas próprias práticas e papeis sociais, porque na medida em que escreve ou lê, ao mesmo tempo em que esse sujeito busca impressões do outro, possibilita aos outros o desvelar de si mesmo, uma vez que ao produzir escrita e favorecer a leitura, utilizando-se da língua, cria mecanismos para se fazer entender, conforme destacam Silva & Costa (2015) ao afirmar que

O leitor, como sujeito histórico e social que é, constrói a língua e é influenciado por ela também, nesta dimensão: uma língua que se realiza por gêneros textuais que se alteram no decorrer dos tempos, mas que guarda entre si muitas semelhanças. Ler, desse modo, é estabelecer um diálogo entre autor, texto e mundo, numa intensa trama discursiva. (SILVA; COSTA, 2012, p. 62).

A linguagem se caracteriza, portanto, como um fenômeno social e cultural, segundo propôs Matêncio (2007, p. 55) “a língua e as demais formas de manifestação da linguagem são instrumentos, forjados, historicamente, nas interações sociais”. Nessa dinâmica, o sujeito vai humanizando suas relações com o universo circundante e a si mesmo impulsionado pela linguagem.

Investigações acerca das práticas sociais e discursivas do ser humano produzem considerações significativas, sobretudo ligadas ao aspecto da linguagem (falada e escrita) como prática social mediadora da experiência do relacionamento entre seres humanos. Para Geraldi (1991, p. 6) “os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como “produto” deste mesmo processo”. Neste sentido, evidencia-se o caráter complexo e primordial dos processos linguísticos, em virtude de seu papel preponderante na conquista e desenvolvimento da atividade humana. Bakhtin (1961) explana o seguinte:

O homem não possui território interior soberano, ele está inteiramente e sempre numa fronteira; olhando o interior de si, ele olha nos olhos do outro ou através deles. Não posso dispensá-los, não posso tornar-me eu mesmo sem ele; devo encontrar-me nele, encontrando-o em mim. (BAKHTIN, 1961, p. 287).

Assim, a partir dessas premissas entende-se, que a linguagem não deve ser compreendida como mero sistema formal ou como simples código linguístico normativo da língua de um determinado povo. A linguagem é, então, percebida como uma atividade dinâmica sensível à ação de elementos de ordem externa como a cultura, a interação, a cognição e à própria história. Vygotsky (1989) por sua vez, destaca que o uso de um sistema de signos, como a linguagem, é um importante mediador nas experiências de interação entre as crianças e o seu meio ambiente, transformando a forma social e o nível de seu desenvolvimento cultural.

Já segundo Matêncio (2007) há uma integração da ordem simbólica com o real por meio da ação da linguagem, o que concebe a realidade como um processo edificado e coordenado através de signos e funções psíquicas superiores. Nesse sentido, evidencia-se uma importante reflexão a respeito dos modos de funcionamento sociais, às formas de produção e organização da cultura e da própria forma de agir, sentir e ser e compreender o ser humano, pois no universo linguístico e também psicológico, o recurso mediador é o signo, conforme complementa Vigotsky (1996, p. 70), “o signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho”. Dessa forma, só é possível ao sujeito compreender o intercâmbio social, isto é, a mediação homem-meio ambiente e também o próprio ser humano por meio da função primordial da fala, que é a comunicação.

De acordo com Vygotsky (2009), é por meio da linguagem que se processa o desenvolvimento das estruturas psicológicas superiores (consciência) do sujeito. Os conteúdos historicamente determinados e culturalmente organizados são interiorizados por meio da linguagem, porque esses conteúdos da experiência histórica do homem, mesmo consolidados nas criações materiais, são refletidos nas formas verbais de comunicação entre as pessoas sobre esses conteúdos. Assim, a natureza social do ser humano torna-se também sua natureza psicológica.

Tanto Vygotsky, quanto Bakhtin, afirmam que a consciência é formada socialmente, através das relações construídas entre os sujeitos e pela mediação dos signos linguísticos. Entretanto, enquanto que para Bakhtin (1929, p. 35) “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais” e que a situação social é quem determinará o modelo ou a forma de enunciação, para o entender de Vygotsky (2008, p. 198) “as palavras, como elemento da fala, são correlativas da consciência, são as unidades básicas da consciência humana”.

Abordagem histórico-cultural se propõe a compreender as formas superiores de comportamento ou função psicológica superior a partir das ligações reais entre os estímulos externos e as respostas internas, isto é, busca compreender como se dão as relações entre o uso dos instrumentos e os signos nas atividades psicológicas para o desenvolvimento do comportamento superior ou de uma função psicológica superior como a atenção, a percepção, a linguagem e a escrita, conforme Pino (2005), articula “há um caráter cultural no psiquismo, veículo de uma natureza simbólica”, por meio do qual emergem as práticas sociais de apropriação da cultura, onde o próprio sujeito realiza o processo de humanização da espécie humana. Este autor esclarece que

Compreender que o desenvolvimento é essencialmente cultural não significa desmerecer a realidade biológica do indivíduo, pois, apesar de pertencerem a ordens diferentes, as realidades biológicas e as realidades culturais se interpenetram na constituição histórica do homem (PINO, 2005, p.18).

Desse modo, para que o sujeito chegue ao processo social da escrita, perpassa primeiro pelo processo de internalização, que consiste em uma série de transformações, uma espécie de reconstrução interna de uma operação ocorrida externamente, mediada na relação com os outros.

Para Vigotsky (2000) a aquisição da linguagem, como função psicológica superior, nada mais é que uma expressão da diferenciação e humanização do ser humano. É o ponto fundamental das interações e também do comportamento cultural do sujeito, por meio do qual é possível ao homem atribuir significados ao mundo e transitar pelo meio histórico e social da humanidade.

Nesse sentido, entende-se que a palavra (escrita e falada) é o meio mais genuíno de interação social, além de ser o mecanismo de compreensão da dialética entre pensamento e linguagem e, consequentemente, da constituição da consciência e da subjetividade humana. Como resultado desse processo, a palavra assume, então, um importante lugar nas pesquisas que visam uma melhor compreensão das relações subjetivas e intersubjetivas do sujeito socialmente engajado, uma vez que possibilita o entendimento das questões transcendentes que o indivíduo carrega consigo, internalizadas ou mediadas na relação, e que podem ser traduzidas por meio da escrita.

A linguagem como atividade simbólica, identitária e de intersubjetividade

O ser humano se constitui humano na medida em que convive com os outros. Dessa forma, por meio do princípio dialógico, fundamenta-se a alteridade e se estabelece a intersubjetividade. Isto se deve ao fato de que “o pensamento nasce no pensamento do outro”. (BAKHTIN, 1979, p. 329). Considerar o aspecto dialógico é, portanto, respeitar a diferença, posto que é a palavra do outro que revela o mundo exterior. Acerca disso Bakhtin (1929) revela:

Nessa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros. Elas introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (...) Em todo o enunciado, contanto que o examinemos com apuro, (...) descobriremos as palavras do outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade (BAKHTIN, 1979, p. 314/318).

Logo, a identidade é um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro, pois o elo de ligação é a linguagem, já que “através da palavra, defino-me em relação ao outro (...) A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor“ (BAKHTIN, 1929, p. 113).

Nessa direção, e partindo de fundamentos psicanalíticos freudianos e lacanianos, que asseveram uma concepção em que o sujeito é marcado pela alteridade, onde Freud, em “O Mal-estar na Cultura” (1930), atribui, ao convívio entre as pessoas, parte significativa do mal-estar que é constitutivo aos humanos e Lacan (1998a) em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, demarca uma alteridade com contornos ainda mais complexos, desdobrando-a em diferentes perspectivas, a saber: um Outro diferente, mas assimilável; um Outro diferente e estrangeiro; um Outro diferente e inominável; pode-se perceber uma estrutura coadjuvante na língua (falada ou escrita), onde o eu revela também a existência do Outro; porque o eu psicanalítico, então, nada mais é do que uma figura ficcional construída a partir do Outro, o Outro da cultura e, por isso mesmo, configurando-se uma construção intersubjetiva, como Lacan (1998b) elabora em “O estádio do espelho como formador da função do eu”.

Diferente do eu cogito cartesiano, arquitetado por um eu que pensa, existe e sabe, no eu psicanalítico reside a essência do eu do desconhecimento, o eu do imaginário, um eu indagador sempre em busca de saber. Assim, no interior do campo psicanalítico delimitado por Lacan, o eu se constrói a partir do outro, sobretudo a partir da imagem que lhe é devolvida pelo semelhante, marcada pelo desconhecimento e pela alienação constitutivos desse próprio eu. Nesse sentido, o pensamento lacaniano sustenta a tese de uma constituição do sujeito a partir de um outro, por meio do qual o eu é motivado a conhecer o mundo. Em diferentes artigos Totem e tabu (1912), O futuro de uma ilusão (1968) e O mal-estar na cultura (1930), Freud também expõe sua visão evolutiva tanto do indivíduo como da cultura, considerando o desenvolvimento do homem numa interação com o meio social. Então, é estabelecida nessa relação a questão da alteridade, onde Lacan (1981) introduz o outro, como semelhante, e o outro como determinação inconsciente, haja vista o psiquismo ter uma presença fundamental na constituição do ser humano. Chemama (1995), por sua vez, assinala que

Na relação intersubjetiva, é sempre introduzida alguma coisa fictícia, que é a projeção imaginária de um sobre a tela simples em que o outro se transforma. É esse o registro do eu, com aquilo que comporta de desconhecimento, de alienação, de amor e de agressividade, na relação dual (CHEMAMA, 1995, p.104).

Postas tais premissas, entende-se que o eu é uma instância constituída a partir do outro, com quem preserva uma constante relação de amor e ódio, e mantendo-se imaginariamente alienado e em estado permanente de desconhecimento e indagação evidenciando a ambiguidade que intervém na formação do eu e nas relações, conforme explica Lacan (1981, p.110) “todo o equilíbrio puramente imaginário com o outro está sempre condenado por uma instabilidade fundamental”.

Dessa forma, embora sejam evidentes as dificuldades características à metodologia qualitativa de pesquisa, as experiências simbólicas, identitárias e intersubjetivas do sujeito, quando tomadas como dados, expressam além do convencional, configurando um importante instrumento no estudo das demandas indivíduo-sociedade e indivíduo-indivíduo, pois os processos de subjetivação percebidos a partir da perspectiva de um sujeito com pluralidade identificatória e conflitiva não abarcam apenas o dualismo individual-coletivo recorrente nas pesquisas sociais.

A psicanálise desponta, então, como elemento questionador dos pilares que sustentam a maioria das análises do individual e do social, pressupondo, apenas, a relação desses dois vieses. Pensar em sujeito (eu) psicanalítico é refleti-lo a partir dos impasses entre pulsão e cultura; é romper com a vigência absoluta do modelo cartesiano de investigar o psíquico e suas relações com o social, já que o sujeito é entendido, na psicanálise, como produção simbólica carregada de complexidade, marcada pela incompletude, pelo desamparo e nunca podendo ser amparado em sua totalidade (LACAN, 1998c).

Os estudos psicanalíticos buscam, dessarte, transpor os congelamentos identitários com os quais as Ciências Humanas tentam definir o sujeito e o social, partindo da possibilidade de conhecimento que não é operado só pela consciência ou pela razão, já que privilegia a intuição, o afeto, o mito, o insight e a arte, porque se baseiam no princípio da singularidade, captando a realidade intersubjetiva que se impõe pela implicação entre sujeito e objeto e pela consideração do saber alheio às exigências do crivo racional. Neste aspecto, a história de vida do sujeito é trazida à existência por meio da linguagem, pois ela é a força matriz que carrega e impulsiona o conhecimento prévio do sujeito a se construir sóciohistórico e interativamente.

A abordagem psicanalítica, então, emerge como contributo para os estudos do desenvolvimento e das relações de intersubjetividade do sujeito, visto que abarca tanto a teoria do desenvolvimento humano, bem como o conhecimento do funcionamento do aparelho psíquico, de acordo com Freud (1968) no texto O eu e o isso, onde este autor define as instâncias psíquicas que desenvolvem o psiquismo a partir do contato deste psiquismo com o mundo externo e com os outros sujeitos; sugerindo que no processo de construção psíquica, o contato com o mundo externo e com os outros é fundamental e determinante.

Tyson & Tyson (1993) atestam que, embora hajam diferentes visões psicanalíticas, todas elas transitam progressivamente na construção de um conhecimento acerca desse desenvolvimento, com a particular vantagem de serem abrangentes e globais, permitindo compreender, articuladamente, os diferentes fatos e aspectos relacionais e estruturais implicados na construção da personalidade e no comportamento em geral.

A escrita autobiográfica como veículo de catarse e sublimação: projeções do eu

É notável a capacidade que o ser humano tem de contar histórias. E em cada história contada, quer seja do presente ou relativa ao passado, o sujeito faz-se conhecer, transparecendo suas experiências de vida, as experiências culturais e sociais abarcadoras dos contextos onde tais histórias se processaram e, consequentemente, as interpretações, leituras e impressões dessas janelas transcendentes do universo subjetivo do ser, do eu individual. Para além disso, reside o fato de que o ato da escrita traz em si um universo de possibilidades, seja de expurgar os conflitos internalizados seja de trabalhar as demandas psíquicas traumáticas ou, ainda, de apenas sublimar as dores da alma.

Assim sendo, seja como metodologia de investigação ou modalidade escrita, as histórias de vida possuem uma natureza própria que as fazem únicas e singulares. Portanto, um estudo desse cunho urge por compreender o sujeito possuinte dessas histórias como ser único e igualmente singular, onde suas vivências sejam compreendidas a partir de duas estruturas basilares: o Eu e a memória autobiográfica. E tais estruturas não podem ser vistas como estruturas autônomas, mas como estruturas ligadas entre si, constituindo-se mutuamente (BRUNNER, 2003; MCADAMS, 2003). Silva & Costa (2012) explicitam tal aspecto:

A escrita comunga poder e saber e estabelece uma relação entre tempos históricos. Por ela, o passado pode ser desvelado e o presente, ressignificado. Desse modo, a escrita, desde o seu advento, é um lugar de memória e de história. E, se a materialidade em que a escrita se ampara resulta de transformações sociais, assim como essas transformações acarretam mudanças nessa materialidade, tais transformações não se efetivam como ruptura, mas como continuidade, ou seja, como modos de intervir e de estar conectado com o mundo próprio de cada época. (SILVA; COSTA, 2012, p. 57)

O sujeito, constituindo-se como autor, pode percorrer caminhos insólitos, transitando em uma díade narrativa: ora dominando a linguagem e os pressupostos inerentes ao ato da escrita, ora perfazendo um curso dialógico, onde sua identidade escapa ao controle racional, mergulhando e se diluindo no conteúdo construído por intermédio do discurso. Assumida a segunda posição, a escrita da história do sujeito é entrecortada pela interminável história de sua escrita, uma vez que o sujeito carrega consigo a capacidade de reconstrução identitária a partir da escrita e leitura das questões subjetivas que o afligem. Consequentemente, à medida que, na escrita de si, o sujeito se apresenta, também revê sua identidade e busca a reconstrução racional de sua história, porque, identificado o lugar do sujeito autor de si e escritor de seu universo subjetivo, tem-se na escrita autobiográfica uma força de colisão para buscar responder aos enigmas humanos.

A partir dessas inferências, conforme Foucault (1976), falar ou escrever de si é um dispositivo crucial e uma necessidade cultural, pois a autobiografia é uma memória e/ou forma de memória episódica que inclui o conjunto de memórias que tem importante significado para o sistema do eu, formando a história de vida de uma pessoa. Pesquisadores como Damásio (2000); Harley & Reese (1999); Tessler & Nelson, (1994) destacam o papel desempenhado pelo meio social e pelo meio cultural na construção da memória autobiográfica, dando ênfase à família como primeiro estamento social e de maior importância na construção dessas memórias.

Por outro lado, Janet Varney Gunn (1982) descreve uma “poética da experiência” como uma aventura, pela qual, o sujeito moderno utiliza-se da autobiografia para se dizer e criar as condições de sua experiência. Soma-se a tal pressuposto o pensamento lacaniano de que a verdade está em uma linha ficcional, onde o sujeito escritor de si, faz do ato da escrita a condição necessária para reorientar sua história, já que a linguagem possui caráter material e transformador. Segundo Lacan:

A fala, com efeito, é um dom da linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é um corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podendo engravidar a história, identificar-se com o objeto do penis_neid, representar a torrente de urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento (LACAN, 1998, p. 302).

A linguagem (falada e escrita) é, portanto, entendida como resultado de atos simbólicos socialmente construídos e o efeito que as imagens subjetivas descarregam nos leitores, produtores e receptores de linguagem, afetam não só o outro, mas aquele que emitiu os signos (DUARTE, 2004, p. 45).

De fato, o desenvolvimento da consciência linguística e social do sujeito moderno abrem campo para o contexto dialógico, na medida em que não há limites para a produção de sentidos, conforme destaca Benveniste (1976) que “uma linguagem sem expressão da pessoa é inconcebível” (p. 287). Pessoa e subjetividade, então, são apresentadas como umidade e propriedade de um ser particular que transcende a realidade concreta, já que “os significados das palavras são formações dinâmicas, e não estáticas” (VYGOTSKY, 1989, p. 107). Assim sendo, a narrativa autobiográfica carrega em si a existência de um indivíduo sujeito da criação, origem legítima da produção do discurso.

É interessante observar o espaço da narrativa sobretudo, a autobiográfica, como espaço de criação onde envolve uma psicologia do personagem e uma psicologia do autor permeadas pela inspiração íntima subjacente à consciência indivíduo-autor (DUARTE, 1980, p. 43). Assim, a autobiografia não dissipa o eu em múltiplos “outros”. Ao contrário, por meio do escrito autobiográfico o sujeito reafirma a sua unidade/identidade. Para Lévi-Strauss (1949), sobre o pano de fundo da modernidade, é razoável afirmar que o discurso autobiográfico, análogo ao psicanalítico, constitui também a “procura do tempo perdido” (p. 236). Desta forma, a escrita autobiográfica pode (e deve) ser entendida como elemento catártico, onde o sujeito realiza projeções do eu, haja vista uma história narrada que segue em direção a uma solução final, traz consigo a possiblidade de uma espécie de alívio, na medida que contradições e projeções subjetivas do eu podem ser reelaboradas segundo declara Costa (1995) ao afirmar:

Memórias e autobiografias são substitutos dos espelhos. Se estes, metálicos e implacáveis, assinalam o desgaste dos traços, o torpor dos olhos, a redondez do ventre, fechando-nos contra a maldade dos espelhos e procuramos nos rever no que fomos, como se o percurso da antiga paisagem nos capacitasse a nos explicar ante nós mesmos (COSTA, 1995, p. 244).

Carvalho (2001) pontua que a escrita constitui papel tanto de contenção quanto de excesso, na medida em que enquanto contenção, a escrita trabalha as angústias e conteúdos reais que necessitam ser elaborados. Já como excesso, o ato da escrita veicula a dor, a repetição e mobilização das pulsões destrutivas. Para além disso, a autora enfatiza que “se o júbilo, o lúdico e o prazeroso fazem parte do escrever, contudo não estão ausentes dele o perigo e a angústia. Remédio para uns, veneno para outros” (CARVALHO, 2006, p. 21). É, portanto, nessa direção de um sujeito constitutivo de ser-a-vir e de um ser-para, que o eu se constrói como tendo-sido, pois ao narrarem suas histórias, os sujeitos inauguram um movimento que os leva adiante deles mesmos, em um intervalo que separa suas projeções das experiências de vida concretas, por meio das quais pode-se criar um horizonte de possibilidades para si.

Dessa forma, é a compreensão de si, naquilo que se pode vir a ser, onde inicia os sentidos do processo de releitura do passado, “como se o sentido da narrativa (...) não chegasse a determinar-se enquanto as suas buscas não fossem explicitadas” (JOSSO, 2010, p. 09)), o passado, possibilita compreender o presente. Em conjunção com a função catártica da autobiografia, a escrita autobiográfica tem, também, um caráter paradigmático, pois o autor desvela exemplos de vida basilares para uma reflexão acerca de questões éticas e morais, isto é, questões universais relativas à vida, ao tempo e ao próprio ser. Não obstante, Carvalho (2001; 2006; 2010); Freud (1996); Lacan (1998a) dialogam sobre a função catártica da narrativa autobiográfica para a contenção do sofrimento e consequente sublimação dos traumas e demandas subjetivas do eu.

Por conseguinte, a escrita oferece ao sujeito uma melhoria de sua condição, na medida que possibilita um abrandamento do sofrimento, já que em momentos de crise as sublimações seriam um meio particularmente eficaz para o sujeito lidar com as suas demandas pulsionais, uma vez que promove novos sentidos para a sua vida. Mellor (2005) postula acerca disto

As sublimações supõem a ideia de um trabalho psíquico ou de um processo que requer modificações tópicas, dinâmicas e econômicas, não sendo suficiente apenas a modificação do narcisismo do eu em relação às exigências de um ideal do eu elevado, uma vez que a emergência do processo sublimatório está relacionada ao investimento de um tempo futuro e ao esforço de aí realizar algo (MELLOR, 2005, p. 93-94).

A sublimação pode ser entendida, então, como uma saída pulsional dotada de um caráter emancipatório do eu, na medida em que se aproxima do que lhe é mais primitivo, ou seja, do que é próprio da pulsão. De modo semelhante, a catarse visa eliminar as perturbações psíquicas, as excitações nervosas, as tensões e as angústia por intermédio da provocação de uma rememorização da cena e de fatos ligados àquelas demandas conflitantes, comunicando uma emoção reprimida a fim de facilitar a superação do trauma. Segundo Freud (1968, p. 36) “a catarse alivia as perturbações psíquicas, despertadas por diversas emoções e sensações que antes estavam reprimidas”. Assim, tanto a catarse quanto a sublimação, na literatura psicanalítica, cumprem importante papel de mecanismo ou modo de defesa contra as pulsões, pois cada sujeito, além de seu caráter singular, diferencia-se pelas formas expressivas de suas representações e projeções, por meio da linguagem falada ou escrita (FREUD, 1968).

Dentre as diversas linguagens humanas, pode-se entender que a escrita, além de ser uma função cultural complexa, que permeia todas as relações sociais, é dotada de um caráter catártico e sublimatório, já que propicia o jogo das relações pessoais e interpessoais do sujeito, comunicando o seu universo subjetivo e intersubjetivo por meio da comunicação e expressão das ideias e sentimentos tanto do eu quanto na relação com o outro. Isto é, a linguagem contribui como importante instrumento de auxílio à retomada do universo psíquico do ser, por meio da (re)memorização, na medida em que promove o desenvolvimento psíquico, social e cultural da pessoa.

Entretanto, há que se compreender como se dá o processo de escrita de si, pois trata-se de um esforço transcendente. Benveniste (1976) há muito tempo já chamava a atenção para a dimensão subjetiva na linguagem. A dimensão subjetiva na escrita não está presente somente por haver um sujeito que escreve, mas na própria constituição da linguagem há a dimensão de um sujeito em falta, pois a linguagem é uma relação de presença/ausência, na medida em que a linguagem elucida algo que está ausente. Souza (2006), define o ato da escrita autobiográfica como:

Tomar a escrita de si como um caminho para o conhecimento, numa perspectiva hermenêutica, não se reduz a uma tarefa técnica ou mecânica. O pensar em si, falar de si e escrever sobre si emergem em um contexto intelectual de valorização da subjetividade e das experiências privadas. Neste sentido, o conceito de “si mesmo” é, como todo conceito, uma proposta organizada de determinado princípio de racionalidade (SOUZA, 2006 p. 68).

Cabe, assim, explicitar a eficácia da abordagem autobiográfica entendida pelo viés histórico-cultural como importante instrumento metodológico, haja vista que, “através dessa abordagem o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes” (SOUZA, 2006, p. 69), e pelos pressupostos psicanalíticos que expõem o caráter catártico da escrita, já que na apreciação tanto da leitura quando da própria escrita há um processo de identificação do leitor/escritor com o texto, possibilitando-lhe o aparecimento de emoções e possível fruição de afetos até então contidos: alívio e inocência da alma, tratamento do intelecto e estímulo a ações enobrecedoras, uma vez que o escrito autobiográfico, funcionando como processo catártico, seria a operação capaz de trazer à consciência memórias recalcadas no inconsciente, libertando a pessoa de sintomas psiconeuróticos associados a esse bloqueio (ALMEIDA, 2006; FREUD, 1968; LACAN, 1998a; ROUDINESCO, 2008).

Diante das questões apresentadas pelos autores, entende-se que há campo profícuo no contexto das narrativas autobiográficas para as tessituras ou diferentes formas de se conceber o sujeito. Não obstante, no campo educacional brasileiro as pesquisas autobiográficas vêm se consolidando como perspectiva de pesquisa, uma vez que “remetem sempre para a complexidade e a totalidade de cada experiência narrada, seja através da pertinência e recorrência dos episódios ou das suas particularidades da vida em suas diferentes formas de manifestação ou de expressão” (SOUZA, 2006, p. 45). Este autor destaca que,

Ao utilizar princípios deontológicos, da hermenêutica e da fenomenologia, a análise linguística e textual das narrativas (auto)biográficas pode ser construída a partir do texto em sua totalidade, como utilizada pela História Oral, ou centrada na análise temática ou descritiva, por considerar unidades de significação e excertos que representem ou revelem regularidades ou irregularidades narradas pelos sujeitos, seja individual ou coletivamente. (SOUZA, 2006, p. 45).

Portanto, cabe ressaltar as múltiplas formas de se analisar as narrativas de si, porque o sujeito, ao escrever suas histórias, descrever acontecimentos vividos, elucidar angústias e medos e rememorar fatos importantes está sempre envolto em uma tarefa complexa de subjetivação. Daí, tentar entender seus escritos sempre fundamentado em um só pressuposto científico torna o ato analítico num processo frágil e, por vezes, inacabado e ineficaz dada a complexidade do universo psíquico subjacente ao eu da pessoa. Nesse sentido, “a escrita de si, enquanto poesis do eu, em escritos autobiográficos, não apenas reconta trajetórias, mas reconstrói a si mesmo”. (LIMA; VIANA; LIMA, 2015, p. 61)

Pensar a narrativa autobiográfica como veículo catártico contemplativo das angústias recalcadas é, por assim dizer, uma metodologia construída a partir de critérios de análise articulada com as múltiplas leituras do texto produzido pelo sujeito, capturando-se as vertentes que este sujeito deixa transparecer na narrativa. De acordo com Freud (1986), o sujeito pode rememorar as suas angústias e tratá-las por intermédio da virtude curativa da escrita, porque

As palavras são instrumento essencial do tratamento psíquico. Um leigo achará certamente que é difícil compreender como as perturbações patológicas do corpo e da alma podem ser eliminadas por meio de simples palavras, (faladas, lidas ou ouvidas). Terá a impressão de que lhe pedem para acreditar em magia. E, aliás, não andará muito longe da verdade, porque as palavras que utilizamos na nossa linguagem de todos os dias não são mais do que magia disfarçada (FREUD, 1986, p. 147).

Se por um lado, o papel da escrita autobiográfica pode ser compreendida, segundo Souza (2016), como um processo de rememorar, através do qual o sujeito traz à tona algo que o constrange e lança sobre esse evento um novo olhar, mais acurado e analítico, buscando uma melhor compreensão do fato e, consequentemente, de si mesmo, para Lima et al. (2015, p. 61) “cada nova escrita gera nova visão de mundo e de vida. O trabalho do escritor é, portanto, uma reescrita do passado e de sua própria subjetividade”. Outro aspecto implícito ao ato da escrita autobiográfica diz respeito à capacidade catártica que ela pode assumir, pois no tocante ao campo simbólico das estrelinhas, o sujeito tem a possibilidade de se encontrar a partir de seu próprio discurso, uma vez que, para os pressupostos psicanalíticos, a cura se processa no primado do simbólico, em que se reconciliam o universal das linguagens e o particular da palavra.

Para Levi-Strauss (1973), “o inconsciente é o léxico individual onde cada um de nós acumula o vocabulário de sua história pessoal” e, para Freud, (1986) “é o inconsciente que escreve o desejo do sujeito”. Isto quer dizer que, ao propor analisar o discurso catártico da escrita, esses autores tecem um diálogo sobre o poder da linguagem (falada e escrita) de liberar para o plano do consciente, conteúdos recalcados e agora rememorados de forma que emoções, sentimentos e tensões reprimidos e sintomáticos sejam traduzidos permitindo ao sujeito compreender a relação existente entre certo acontecimento psíquico, a forma de lidar com ele e os afetos que os envolve, numa intersubjetividade progressiva e constante.

Isto posto, resta apontar o aspecto sublimatório presente na narrativa autobiográfica. Lima, Viana e Lima (2015) pontuam:

Há, portanto, na produção literária um trabalho de se debruçar sobre as palavras, mas também um trabalho psíquico que, aproveitando-se do primeiro, dá vazão às pulsões parciais que se satisfazem de forma sublimada. [...] Assim como o sintoma, a produção literária implica realização de desejos e caminhos para a descarga pulsional (LIMA; VIANA; LIMA, 2015, p. 66).

Cada sujeito tem um modo particular de lidar com as suas angústias pressupondo, com isso, diferentes formas do eu subjetivo alcançar alívio para os conflitos gerados internamente ou originados nas relações com o outro. Dentre esses modos particulares de enfretamento das demandas intrínsecas e extrínsecas ao universo do eu, destaca-se o mecanismo de defesa egóica, denominado sublimação, por meio do qual determinados impulsos inconscientes são integrados à personalidade do sujeito, desencadeando nele atitudes com valor social positivo, favorecendo-lhe um ajuste social o mais saudável possível. A Arte, como um todo, possui caráter sublimatório. Tal e qual, a escrita também presta-se a essa função, conforme ressaltam Lima, Viana e Lima (2015) “A palavra, enquanto ponte para o belo, se se mostra como recurso salutar perante o desamparo e consequentemente mal-estar. A importância diante de tal situação reconduz a libido a encontrar novos investimentos via sublimação” (p. 62).

Portanto, o papel da escrita autobiográfica, seja como prática social de construção identitária, seja como processo de relação intersubjetiva ou funcionando como veículo catártico ou mecanismo de sublimação, impõe atenção e assinala na direção de mais estudos e pesquisas, dada a sua relevância para socorrer o sujeito na busca por uma melhor compreensão de si mesmo e de suas demandas psicossociais, subjetivas, intersubjetivas e de interação.

Considerações Finais

É certo que as contribuições teóricas da perspectiva histórico-cultural dialogam com a abordagem psicanalítica acerca da importância dos processos interacionais do sujeito, bem como de suas redes de relacionamentos para a formação identitária e desenvolvimento da linguagem do homem, uma vez que ambas concebem a cultura e os processos culturais como fatores preponderantes e constituintes da antogênese, refutando teorias reducionistas, que determinam o psicológico simplesmente ao biológico.

Por um lado, a corrente histórico-cultural elucida que as funções psicológicas superiores, embora apresentem uma base biológica, pois emanam da atividade cerebral, estruturam-se a partir das relações sociais mediadas pela linguagem. Por outro lado, coadunam os pressupostos psicanalíticos freudianos definidores das instâncias psíquicas que desenvolvem no psiquismo a partir do contato do psiquismo com o mundo externo e com os outros sujeitos; sugerindo que no processo de construção psíquica o contato com o mundo externo e com os outros é fundamental e determinante, além de trazer os estudos lacanianos focados na linguagem, em especial nos questionamentos sobre a função da fala como essência e experiência e como reprodutora de um simbolismo e de um imaginário presente e implícito na relação do sujeito consigo mesmo e com o outro.

Assim, a linguagem é tida, para ambas abordagens, como o instrumento por meio do qual o homem reorganiza, substancialmente, os processos de percepção do mundo exterior e cria novas leis dessa percepção, pois os instrumentos e signos pertencentes ao campo da linguagem possibilitam a atividade explicativa da ontogênese histórica e social, na medida em que, funcionando como elementos mediadores, possibilitam ao homem transformações radicais no comportamento com o mundo circundante (DUARTE, 2004; LURIA, 1991; PINO, 2005; VIGOTSKY, 2009).

Isso significa dizer que a linguagem é uma representação da realidade e revela os modos de organizar, sentir e pensar de uma sociedade, pois é construída a partir da necessidade de comunicação e representação dentro de um determinado tempo histórico. Nesse contexto, depreende-se que a apropriação da palavra constitui a base de estruturação do funcionamento mental superior, como imaginação, memória, emoção, percepção e a escrita. Nesse sentido e de acordo com os pressupostos histórico-cultural e psicanalítico, a escrita é responsável pelo surgimento de uma estrutura específica de comportamento, promotora de processos psicológicos arraigados à cultura.

Destarte, há na escrita, para essas correntes científicas, novas formas possíveis de o homem controlar suas próprias ações e seu pensamento. Isto é, de seu universo psíquico poder ser explorado pela escrita de si, uma vez que o escritor é o sujeito que suporta o real e o externaliza por meio do ato sublimatório e catártico da escrita.

De fato, a linguagem (falada ou escrita) é o veículo por meio do qual o sujeito circunscreve tanto seu universo subjetivo quanto intersubjetivo, pois é por meio da linguagem, com ela e a partir dela que se vislumbra a essência da infinitude, realiza as (im)possibilidades do ser, captura o incognoscível, constrói a liberdade de criar e se recriar e exterioriza seus desejos aparentes ou transcendentes.

Em um sentido mais amplo, a escrita, sobretudo a escrita de si-autobiográfica, evidencia a importância da subjetividade e intersubjetividade na compreensão do universo psíquico do sujeito, bem como, pressupõe um caminho que promove um encontro desse sujeito consigo mesmo, em um movimento de análise e reflexão acerca de sua trajetória, construção e reconstrução de vida.

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Recebido: 05 de Novembro de 2018; Aceito: 15 de Maio de 2019; Publicado: 18 de Junho de 2019

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