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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.44  Santa Maria  2019  Epub 11-Nov-2020

https://doi.org/10.5902/1984644429466 

Artigo Demanda Contínua

O método biografemático: escritura nova em educação

The biographematic method: new scripture in education

*Professor doutor na Universidade Federal do Pampa. São Borja, Rio Grande do Sul, Brasil. gabriel.sausen.feil@gmail.com


RESUMO

Este artigo propõe um método que tange o modo como escrevemos sobre os autores da área educacional. Tal método se intitula “Método Biografemático” por se constituir a partir da noção de biografema, apresentada por Roland Barthes em Sade Fourier, Loyola (2005a), A câmara clara (1984) e Preparação do romance (2005c). O artigo se justifica por pensar em novas formas de expressar a escrita em Educação. A sua conclusão se expressa na articulação, no plano teórico, entre a noção de biografema e o que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992) chamam de personagem conceitual, figura estética e tipo psicossocial. Conforme o artigo argumenta, quando uma escritura se apropria de uma figura estética ou de um personagem conceitual ou de um tipo psicossocial, necessariamente, não se apropria do autor enquanto Sujeito, o que é condição para a tarefa de encontrar (inventar) traços biografemáticos.

Palavras-chave: Método; Biografema; Escritura

ABSTRACT

This article proposes a method that deals with the way we write about the authors of the educational area. This method is entitled “Biographematic Method” to be constituted from the notion of biographeme, presented by Roland Barthes in Sade, Fourier, Loyola (2005a), Camera Lucida (1984) and The Preparation of the Novel (2005c). The article is justified by thinking of new ways of expressing writing in Education. Its conclusion is expressed in the articulation, on the theoretical plane, between the notion of biographeme and what Gilles Deleuze and Félix Guattari (1992) call conceptual personae, aesthetic figure and psychosocial type. As the article argues, when a writting appropriates an aesthetic figure or a conceptual personae or a psychosocial type, it necessarily doesn't appropriate the author as a Subject, which is a condition for the task of finding (inventing) biographematical traits.

Keywords: Method; Biographeme; Scripture

Introdução

Propomos, neste artigo, um método direcionado à nova escritura produzida em Educação; mais especificamente, um método que tange o modo como escrevemos sobre os autores dessa área. Intitulamo-lo “Método Biografemático1” por se constituir a partir da noção de biografema, de Roland Barthes (2005a). Para mostrá-lo, apresentamos a sua consistência conceitual e argumentativa, chamando a atenção para o fato de que a sua graça está no reinventar o modo como escrevemos sobre os autores da Educação; e entendemos o personagem conceitual, a figura estética e o tipo psicossocial (DELEUZE; GUATTARI, 1992) como formas de operacionalizar o Método. Não produzimos biografemas neste artigo; aqui, limitamo-nos a apresentar as suas condições metodológicas.

Escritura nova em Educação

Segundo uma tipologia grosseira, uma escritura pode ser um poema, um romance, um artigo, uma monografia, uma dissertação, uma tese, um currículo; mas a prática da escritura mostra que, partindo desses gêneros, mas incorporando um elemento novo, os gêneros desfiguram-se. É ao lutar com as formas codificadas (acadêmicas ou não) que os gêneros se perdem e atingem o inédito. Então, as práticas constitutivas deste artigo lidam com essas formas reconhecidas pela tipologia tradicional, porém, não sem desejarem escrever uma Forma Terceira, uma Forma Outra (CORAZZA, 2007, p. 08).

É pensando em possibilitar essa Forma Outra que propomos um método, o Método Biografemático. Diante disso, fica claro que a produção de escritura nova em Educação não está aqui relacionada a uma mudança de conteúdos, ou mesmo a uma mudança de estilo de escrita; a escritura nova passa por uma mudança metodológica, que diz respeito ao modo como nos apropriamos de um autor e escrevemos sobre ele e/ou sua obra. Comumente, apropriamo-nos de um autor escrevendo sobre ele (sua história de vida), sobre o que ele quis dizer (seus argumentos teóricos), sobre o que ele quis negar (seus inimigos). Em suma, tradicionalmente, apropriamo-nos de um autor escrevendo sobre, e aí permanecemos submetidos à escrita transitiva. É que não temos conseguido nos desviar dos significados contidos nas obras e nas histórias de vidas dos autores. Isso faz com que sempre nos apropriemos deles do mesmo modo; as variações se devendo apenas às particularidades de cada linha de pesquisa. Em outras palavras, interpretamos um mesmo autor de diversas maneiras, porém, não nos permitimos reinventá-lo. O Método Biografemático tende a produzir nova escritura reinventando um autor e/ou sua obra, a partir de detalhes até então irrelevantes.

A relevância disso que estamos a propor tange os seguintes aspectos: o Método Biografemático auxilia na criação de novas sensibilidades e novas maneiras de pensar, pesquisar, ler e escrever em Educação; a apresentação desse método no contexto educacional traz a temática do biografema para as discussões de uma área que, tradicionalmente, não releva esse tema, pois, apesar de histórias de vidas já serem extremamente usadas como fontes de pesquisas, o biografema não é aqui entendido como fonte informativa, mas como produção textual. Trata-se de conceber a escritura, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés (2007, p. 50-51), como “ensino escritural”: um “ensino artístico” na medida em que implica o ensino de uma postura e não de um know-how; na medida em que não envolve a transmissão de um saber e sim a exibição de uma postura que tende a produzir ao invés de sistematizar. O que permanece não é “o que foi dito”, mas sim a tendência em querer produzir uma nova escritura.

O foco na escritura (não tanto nos conteúdos), portanto, é outra contribuição deste artigo. Torna-se importante, então, dedicarmos algumas linhas à noção de escritura. Trata-se de uma noção criada por Barthes (2005a) para diferenciar aquele texto que se basta por si mesmo daquele que somente tem valor se forem levados em consideração os seus conteúdos. Usamos o termo “escritura” para designar aquele texto que vale pelo texto, mesmo, evidente, que hajam conteúdos ali envolvidos. Por outro lado, quando o texto somente vale pelo “o que” ele diz, não é escritura.

Procedimento de apropriação dos objetos de estudo

Uma proposta de método implica um modo de nos apropriarmos de um objeto. No caso do Método Biografemático, o ponto de partida está na escolha de uma Forma2; quanto mais consagrada, tradicional e reconhecida, melhor, pois a positividade desse método se encontra no criar modos de extrair dos objetos algo ainda não percebido para, a partir disso, efetuar reinvenções ou, em outro termo, transgressões3.

Os objetos selecionados, portanto, não constituem o algo a ser combatido. Funcionam fornecendo elementos ainda não colocados em variação; mais especificamente, fornecendo traços biografemáticos. É por conta dessa concepção de procedimento de apropriação de um objeto que, no Método Biografemático, não nos focamos nas explicações das ideias de autores (ou não nisso), mas buscamos produzir com elas.

Em suma, este artigo traz a orientação para não agir confrontando conteúdos, trazendo argumentos que tenham a intenção de se sobrepor ou substituir aos/os anteriores. Trata-se de colocar em crise4 aqueles objetos que já existem, fazendo isso a partir do Sutil5, a partir de detalhes vazios de significação prévia. Nesse sentido, o Método Biografemático tem como peculiaridade (1) o modo de se apropriar de um objeto (perceber, numa Forma, um pormenor ainda não significado), e (2) o fato de ter como decorrência a produção de escritura, que (3) parte sempre da vida (por isso “biografema”). A decorrência, mencionada na segunda peculiaridade, dá-se por conta, justamente, da primeira: ora, se nos detemos em algo que ainda não tem significado, o que podemos fazer se não criar um?

O biografema e os traços biografemáticos

A noção de biografema, conforme já dissemos, é encontrada em Barthes (1984; 2004a; 2005a; 2005c). Nesta seção, apresentamo-la, pois a sua consistência fundamenta o método que aqui propomos. O Método Biografemático se apropria dos autores do mesmo modo em que Barthes (2005a) se apropria de Marquês de Sade, Fourier e Inácio de Loyola, em Sade, Fourier, Loyola: ao invés de se deter os elementos em que cada um desses autores é reconhecido (pornografia: Sade; socialismo utópico: Fourier; mística da obediência: Loyola), Barthes se detém em algo até então não percebido, identificando o que faz com que esses autores se transformem em escritores, ou melhor, o que faz de suas escritas, escrituras. Diz que Sade, por exemplo, faz escritura porque inventa a língua do crime (BARTHES, 2005a, p. 18), que faz com que o seu texto valha por si mesmo, independentemente dos seus conteúdos (ditos obscenos, violentos, perversos). Com isso Barthes inventa um novo Sade, e, por essa razão, faz biografema. Concebe Sade não como o autor da pornografia (não o limita a isso), mas como escritor, produtor de escritura, a partir de detalhes que até então eram foscos e desprovidos de sentidos, tais como o regalo branco (ou como os vasos de flores de Fourier ou os olhos espanhóis de Inácio):

O que me vem da vida de Sade não é o espetáculo, embora grandioso, de um homem oprimido por uma sociedade em razão do fogo que ele carrega, [...] é, entre outras coisas, essa maneira provençal com que Sade chamava ‘milli’ (senhorita) Rousset, ou ‘milli’ Henriette, ou ‘milli’ Lépinai, é seu regalo branco quando abordou Rose Keller, seus últimos jogos com a pequena roupeira de Charenton (na roupeira é a roupa que me encanta; o que me vem da vida de Fourier é seu gosto pelos ‘mirlitons’ (bolinhos parisienses aromatizantes), sua simpatia tardia pelas lésbicas, sua morte entre os vasos de flores; o que me vem de Loyola não são as peregrinações, as visões, as macerações e as constituições do santo, mas somente ‘os seus belos olhos, sempre um pouco marejados de lágrimas’ (BARTHES, 2005a, p. XVI).

Se Barthes reúne, então, um escritor maldito, um filósofo utopista e um santo jesuíta, não é, simplesmente, para provocar o leitor através de uma inusitada relação, mas para enfatizar um modo outro de se apropriar de um autor. Apropriar-se de um autor, em Barthes (2005a, p. XVI, XVII), é o mesmo que amá-lo. E se existe a possibilidade de amarmos um sujeito do texto, esse sujeito é sempre disperso: podemos amar traços biografemáticos desse suposto sujeito.

Nesse sentido, a ideia do Método é inventariar traços biografemáticos de autores, para com eles fazer biografema. Dito isso, precisamos fazer, desde já, uma distinção entre biografema e traços biografemáticos. Os traços são detalhes que passam despercebidos pelos biógrafos e pesquisadores em geral (o regalo branco de Sade, os vasos de flor de Fourier, os olhos de Loyola), justamente porque são vazios de significação prévia. Esses traços, numa perspectiva barthesiana, podem se tornar disparadores de escrituras. Biografema, por sua vez, é, precisamente, a escritura que foi disparada por traços biografemáticos. Portanto, um corpo futuro. Nesse sentido, ter a intenção de identificar traços biografemáticos é legítimo, pois pode se constituir num momento da pesquisa. Porém, o mesmo não podemos dizer do biografema: embora tenhamos a intenção de produzir escritura biografemática, não há como antevê-la, simplesmente porque ela é da ordem da invenção e não da identificação.

Isso não quer dizer que o biografema seja falso ou menos importante, uma vez que, nesta perspectiva, a ficção não se opõe ao real, pelo contrário, constitui-o. Se, nesta fundamentação, usamos a expressão “inventariar” para a tarefa dos traços biografemáticos é porque, desde o início, a tarefa não se resume ao identificar. Em outros termos: a invenção não se dá apenas após a identificação dos traços, mas ocorre desde sempre.

É importante também fazermos uma distinção entre o biografema e a biografia: enquanto a grafia (da biografia) tem significado, o grafema (do biografema) não. A potência de um biografema é a sua proliferação na escritura; a potência (ou a impotência) da biografia é a de estabelecer a vida última, verdadeira, plena de significação. Nesse sentido, a pesquisa biografemática pode ser entendida como um modo de lidar com a biografia sem se limitar à história referenciada, o que, em outras palavras, quer dizer história de vida do Sujeito6. O biógrafo, nessa perspectiva, não narra, de maneira linear, cronológica, coerente, a sua própria vida (nem a de ninguém), mas produz vidas: o biógrafo como um inventor de vidas.

Barthes (2005c, p. 170-172) também distingue o biógrafo do biografólogo: o primeiro é aquele que faz história de vida; o segundo é aquele que faz escrita de vida. Nesse caso, quando um escritor inventa vidas é mais adequado que o chamemos de biografólogo. Ao propormos o Método Biografemático, queremos vir a funcionar, justamente, como pesquisadores-biografólogos.

O biografólogo como um escritor de vidas, que faz biografema a partir daquilo que sobra da biografia. Mas “sobra” num sentido afirmativo, num sentido de Acontecimento (terminologia deleuziana): o biografema como o Acontecimento da biografia. Sobra como as cabeças erguidas nos romances de Kafka, identificadas/inventariadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977) em Kafka: por uma literatura menor: são sobras na medida em que se constituem em detalhes que somente adquiriram sentido na escrita desse texto; e se constituem em traços biografemáticos na medida em que surgem de uma zona indiscernível onde é impossível distinguir a realidade da ficção. Ou seja, já não podemos dizer o que pertence, de fato, à obra kafkaniana e o que é devedor da imaginação de Deleuze e Guattari.

Os traços biografemáticos, como já sugerimos, são detalhes insignificantes transformados em disparadores de escritura. São aqueles que instigam um texto; e que funcionam encantando o escritor. São casos de inflexões: aquilo que passa despercebido pelas interpretações diversas acaba por se valorizar na nova escritura. Nas palavras de Barthes (2005a, p. XVII):

Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua obra.

O que passa para a obra de um autor (de Proust, por exemplo) pode ser entendido como a sua vida, porém, trata-se de uma vida desorientada, que não coincide com a vida das biografias convencionais, justamente por ser constituída por detalhes que se encontram fora dos fatos comumente consideráveis: a vida de Proust sendo reinventada (redescoberta), pelo próprio protagonista de Em busca do tempo perdido (1967), a partir da sensação provocada pela degustação de uma madeleine mergulhada em uma xícara de chá. O biografema, como diz Haroldo de Campos (2006), acontece quando a vida e a obra encontram-se, tornam-se indiscerníveis. Trata-se do encontro entre a ficção e o real, entre o imaginário e a história.

Outro elemento a ser destacado é o aspecto sensual existente nos biografemas, sinalizado por Barthes (2005c): são os biografemas que convidam e mesmo seduzem o leitor a produzir um novo texto. É nesse ponto que o leitor percebe algo nunca percebido antes e passa a desejar escrever um novo texto. É por isso que, mesmo sendo impossível prever a produção de biografemas, ainda assim é perfeitamente legítimo dizer que é justamente essa produção incerta que se constitui no motor de uma pesquisa cujo método é o Biografemático.

Como operacionalizar o Método Biografemático

Após apresentarmos, nas seções 1, 2 e 3, os elementos constitutivos do Método Biografemático, nossa intenção, agora, passa a ser mostrar possibilidades de tal método operacionalizar-se. Para isso, articulamos nosso tema ao que Deleuze e Guattari (1992) chamam de personagem conceitual, figura estética e tipo psicossocial. Para nós, são formas de operacionalizar o Método e, com isso, possibilitar a escritura biografemática. Isso porque, conforme buscamos argumentar, ao nos apropriarmos de um autor e/ou de sua obra a partir de um personagem conceitual, de uma figura estética ou de um tipo psicossocial, não estamos limitando nossa apropriação ao Sujeito do texto.

O personagem conceitual diz respeito às condições pré-filosóficas para se povoar o plano filosófico (plano de imanência); a figura estética é a condição para o povoamento do plano artístico (plano de composição); e o tipo psicossocial é condição do ato de fala (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 87-90). Apesar de definirmos cada um deles, é preciso não perdermos de vista o modo como eles possibilitam o Método Biografemático, já que nos apropriarmos de um personagem conceitual ou de uma figura estética ou de um tipo psicossocial é, necessariamente, não nos apropriarmos do autor enquanto Sujeito, o que é condição para a tarefa de encontrar (inventar) traços biografemáticos ao invés de traços biográficos ou meramente explicativos e retóricos. Ou seja, estamos entendendo que, ao nos apropriarmos de um personagem conceitual, de uma figura estética ou de um tipo psicossocial, estamos nos apropriando de traços biografemáticos dos autores e das obras aqui em questão. Deleuze e Guattari (1992) apresentam esses três conceitos em O que é a filosofia.

O personagem conceitual, a figura estética e o tipo psicossocial

A vontade de potência, em Nietzsche, é um conceito; porém, antes disso, tem pressupostos implícitos. Tais pressupostos, pré-conceituais, são os personagens conceituais. Nem sempre são nomeados, mas nem por isso devem ser ignorados. Por vezes, têm nome próprio: Nietzsche, por exemplo, é um personagem conceitual da obra deleuziana. Nietzsche, personagem conceitual, não é o mesmo Nietzsche, sujeito alemão, que morreu em 1900; em Deleuze, é um personagem conceitual porque instiga a criação de conceitos. É precisamente isto que os personagens conceituais fazem: eles intervêm na criação de conceitos, operam movimentos conceituais (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 85). Pensando no biografema, podemos dizer que Nietzsche, personagem conceitual de Deleuze, é aquilo que permaneceu, em Deleuze, da obra produzida em nome do sujeito alemão que morreu em 1900. Quando fazemos anedotas envolvendo a liga das meias de Kant ou o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas, não estamos nos remetendo “simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo. [...] [As anedotas] manifestam, antes, os personagens conceituais que o habitam” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. p. 96). Em outros termos, quando inventamos traços biografemáticos de um autor ou de elementos de sua obra, não estamos nos remetendo ao Sujeito, ao autor, mas, no caso da filosofia, aos personagens conceituais que habitam o plano filosófico.

Enquanto os personagens conceituais são potências de conceitos, as figuras estéticas são potências de afectos e perceptos (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 87- 88). As figuras estéticas “não têm nada a ver com a retórica. São sensações: perceptos e afectos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992p. 229). Ou seja, não dizem respeito ao dito, ao escrito, mas dizem respeito justamente ao que excede disso. Perceptos e afectos se diferenciam das percepções e afecções. O dito diz respeito a essas últimas, que, por suas vezes, estão do lado do ordinário, daquilo que é reconhecível, identificável; que pode ser compartilhado, comunicado, entendido. Os afectos e perceptos transbordam as afecções e percepções e dizem respeito ao extraordinário, justamente por serem da ordem do singular, do raro, do não repetível. Enquanto que a percepção e a afecção tangem somente o que o homem já qualificou, os perceptos e afectos independem da história, do vivido; independem também, no caso do romance, da narrativa. Afectos e perceptos “são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213). Tipos psicossociais têm sentimentos pessoais, mas figuras estéticas têm apenas afectos e perceptos, que fazem, aliás, vacilar os esconderijos pessoais, denominados, justamente, tipos psicossociais. Quando o que está em questão são as figuras estéticas, “o que conta não são as opiniões dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caráter”, mas são “os compostos de sensações que esses personagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 243).

Dentre os três personagens (personagens conceituais, figuras estéticas e tipos psicossociais), os terceiros são os únicos que testemunham, de fato, uma terceira pessoa (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 86). Criamos tipos psicossociais quando estabelecemos territórios: gêneros, identidades, raças; patologias. O sentido desses tipos é, justamente, tornar perceptíveis essas formações, mas também tornar perceptíveis os processos que as fazem vacilar. O filósofo, o artista, o cientista, mas também o advogado, o médico, o professor são tipos psicossociais. Eles são os sujeitos das biografias, que levam em consideração apenas aquilo que remete à vida do tipo psicossocial. A biografia, nesse sentido, não é uma escrita da vida, mas é a escrita da história de um tipo psicossocial. Tudo aquilo que não tem significado já estabelecido tende a ser desconsiderado; tudo aquilo que transcende as percepções do vivido (conceitos, perceptos, afectos) é ignorado. Entretanto, precisamos notar que o tipo psicossocial, assim como o personagem conceitual e a figura estética, também não se reduz ao autor, ao Sujeito. Ao mesmo tempo em que todo mundo é constituído por traços psicossociais, ninguém, absolutamente ninguém, é um tipo psicossocial. Talvez o maior problema das biografias esteja na sua ingenuidade: ela escreve sobre um tipo psicossocial como se estivesse escrevendo, de fato, sobre um verdadeiro autor.

O resultado do Método biografemático

A apresentação de considerações acerca de operacionalizar o Método a partir de personagens conceituais, figuras estéticas e tipos psicossociais é aqui entendida como resultado por se tratar da expressão de condições necessárias para a emergência de escrituras biografemáticas. É importante, porém, não confundirmos resultados deste artigo (apresentação de considerações) com resultados do Método, que se expressariam na própria produção de biografema.

Chegamos a nove considerações, algumas complementares e outras independentes:

  • Ao estudarmos um texto filosófico, procuremos por personagens conceituais; ao nos apropriarmos de um romance, procuremos por figuras estéticas; ao estudarmos essas duas possibilidades, procuremos, ao mesmo tempo, por tipos psicossociais, afinal, segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 90), os personagens conceituais e as figuras estéticas se constituem a partir de traços desse tipo; aliás, surgem precisamente no instante em que esses traços são transcendidos;

  • Quando nos limitamos a conservar traços psicossociais, estamos desistindo do caminho biografemático;

  • Algumas obras não querem receber uma apropriação biografemática. Geralmente, são aquelas que descrevem personagens a partir de traços estereotipados que, para concebê-los, precisamos lançar mão apenas de nossos conhecimentos já adquiridos;

  • Entendemos que os autores (sujeitos históricos), numa perspectiva biografemática, são levados a um grau zero, de onde partem para se transformar (se o movimento for filosófico) num personagem conceitual. Nesse sentido, quando tomamos um autor a partir de seu personagem conceitual ou ainda como um personagem conceitual, acabamos por reinventar tal autor;

  • Se um narrador ou um personagem romanesco funcionar ao modo de uma figura estética, não importa se o nome do narrador ou do personagem coincida com o nome daquele que assina o livro;

  • Um procedimento que podemos usar para identificarmos/inventarmos traços biografemáticos é aquele que se dá a partir da seguinte pergunta barthesiana7: o que nos vem da obra tal?; isto é, o que nos toca, independentemente da sua carga conotativa?;

  • Não é o personagem conceitual, a figura estética e o tipo psicossocial que são biografemas; tomar um autor, a partir dos personagens conceituais que povoam o plano de imanência (no caso da filosofia); das figuras estéticas que povoam o plano de composição (no caso da arte); e dos tipos psicossociais que integram uma obra (no caso dos personagens ordinários), é um modo de reinventar esse autor e, assim, de produzir biografema;

  • Considerando que, no Método Biografemático, ficção e real confundem-se, os traços biografemáticos podem ser extraídos tanto da vida do autor quanto de figuras, personagens, conceitos que movimentam as obras. Tanto as figuras, os personagens, os conceitos são percebidos como reais, quanto os autores são percebidos como ficções;

  • Notamos, então, que o Método Biografemático não nega e/ou ignora a biografia, aliás, esta e aquele sequer estão em oposição. Enquanto o Método Biografemático se ocupa dos procedimentos de apropriação de um autor, a biografia se ocupa do levantamento de informações históricas sobre um Sujeito. Nesse sentido, a biografia aqui se constitui apenas em um dos materiais ocupados pelo Método Biografemático.

Considerações finais

Concebemos o Método Biografemático como um modo de garantir que toda vez que um autor seja tomado como objeto de escritura, que seja tomado sempre de modo inédito. É que o Método não se apropria dos detalhes já significados, mas se apropria dos detalhes vazios de significação. Nesse caso, os detalhes mencionados não são identificados, mas são inventariados. É importante reiterarmos que a questão da biografemática é esta: produzir texto ao invés de denunciar a veracidade dos posicionamentos.

Uma vez os traços inventariados, a questão que passa a se impor é a de produzirmos escritura biografemática a partir desses pormenores (pormenores que nos tocam por força de seus vazios em matéria de sentidos estabelecidos). O que o resultado do Método Biografemático nos possibilita é escrever por impulsão de um dos traços inventariados, garantindo uma escritura singular, ainda que tal singularidade não funcione como aval de qualidade. Além disso, o fato de uma escritura como essa ser singular, não significa que seja concebida, pelos leitores, como um biografema (o empreendimento não implica classificações).

Por fim, ressaltamos que a potência do Método Biografemático está em seu caráter afirmativo: não implica um ignorar as biografias e as histórias de vidas escritas tradicionalmente; pelo contrário, envolve um ocupar-se delas; um recuperar os detalhes que elas deixam escapar. De quebra, o Método ainda mostra que é possível contribuir com o campo educacional sem, necessariamente, lançar mão do formato acadêmico; e que a produção escritural é uma atividade privilegiada, por não limitar a aprendizagem à mera apreensão de conteúdos e, ao mesmo tempo, favorecer a inventividade.

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1A expressão “Método Biografemático” é originalmente usada por Sandra Mara Corazza (2010).

2Por “Forma”, entendemos tudo aquilo que já tem existência. São os objetos já estabelecidos e identificáveis. Vale tanto para objetos físicos quanto para objetos mentais. O critério, para ser Forma, é: já existe? Acontece que o mundo já formado jamais deixa de povoar os fluxos das matérias não formadas: uma Forma é sempre passageira.

3Nesse quesito, o Método Biografemático se avizinha do Procedimento Erótico: a transgressão “não acontece se não houver uma Forma. [...] É que a Transgressão diz respeito a um processo de insistência, nunca de abandono. Para transgredir é necessário insistir com as Formas que nos aborrecem; [...] na esperança de que essas sejam desmontadas” (FEIL, 2011, Orelha esquerda).

4A crítica, para Barthes (2004b, p. 404), não é dialética, no sentido de pressupor o confronto entre teses opostos. “Criticar (fazer crítica) é pôr em crise”. Ou seja, não é da ordem da contradição, mas da inflexão.

5O novo, o inédito, para Barthes (2005b p. 21, 22), não é decorrente de uma negação das coisas que já existem; é da ordem do Sutil: “é somente ao lutar com o real (a prática poética, romanesca) que a fantasia se perde como fantasia e atinge o Sutil, o Inédito = Proust fantasiou o Ensaio, o Romance, mas escreveu uma Forma Terceira”.

6Vida e pensamento, na perspectiva deste artigo, não pertencem e não dependem de um Sujeito; vida e pensamento transcendem-no.

7Ao dizermos “pergunta barthesiana”, referimo-nos ao modo como Barthes (2005, p. XVI, grifo nosso) define o biografema: “O que me vem da vida de Sade não é o espetáculo, [...] é, entre outras coisas, essa maneira provençal...”.

Recebido: 09 de Outubro de 2017; Aceito: 05 de Janeiro de 2018; Publicado: 07 de Agosto de 2019

Correspondência Gabriel Sausen Feil - Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) - Campus São Borja - Rua Ver. Alberto Benevenuto n°. 3200, CEP 97670-000. São Borja, Rio Grande do Sul, Brasil.

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