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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 19-Jul-2023

https://doi.org/10.5902/1984644434018 

Artigo Demanda Contínua

Estudo sobre análise de discurso como procedimento metodológico na pesquisa documental

A study on discourse analysis as a methodological procedure in documental research

Denise Simões Rodrigues¹  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-3271-1021

Maria Lúcia Melo²  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-5090-7394

¹Professora doutora na Universidade do Estado do Pará. Belém, Pará, Brasil. dssr@uol.com.br

²Professora doutora na Universidade do Estado do Pará. Belém, Pará, Brasil. luc-m@uol.com.br


RESUMO

Neste artigo é abordada a técnica de análise de discurso no processo de pesquisa científica. A temática faz parte de uma investigação científica mais abrangente que está sendo realizada sobre os métodos de referência teórica e seus compatíveis metodológicos no campo da pesquisa científica. Por isso, é apresentado o conceito científico de análise do discurso, assim como elencado os pontos importantes do emprego da tendência teórica Análise Crítica de Discurso e seu emprego na Etnometodologia da Conversação. Assim, com o objetivo de socializar esse processo metodológico, a concentração está em suas principais etapas, ou seja, nos procedimentos mais relevantes de como realizar uma análise do discurso no processo de pesquisa científica. Por fim, é discutida a validade e a importância dessa técnica nas pesquisas científicas, preferentemente nas que se caracterizam como qualitativas, na medida em que dá prevalência a uma hermenêutica dos discursos analisados e ara melhor entendimento, apresentamos alguns exemplos de aplicação prática da Análise do Discurso Crítica (ACD).

Palavras-chave: Pesquisa Qualitativa; Técnica de Pesquisa; Análise de discurso

ABSTRACT

In this paper, we cover the technique of discourse analysis in the process of scientific research. This theme is part of a broader scientific investigation being conducted on theoretical reference methods and their compatibilities in the field of scientific research. For that purpose, we present the scientific concept of discourse analysis, as well as a listing of important points in employing the theoretical trend of Critical Discourse Analysis and its application in Ethnomethodology of Conversation. Thus, aiming at the socialization of this methodological process, our focus lies in its principal stages, i.e. procedures most relevant to carrying out discourse analysis in the process of scientific research. Lastly, we discuss the validity and the importance of this technique in scientific research, preferably qualitative research, since it gives prevalence to the hermeneutics of analyzed discourses and for a better understanding, we present some examples of practical application of Critical Discourse Analysis (ACD).

Keywords: Qualitative Research; Research Technique; Discourse Analysis

Introdução

Neste texto nos reportamos sobre a Análise de Discurso enquanto procedimento metodológico aplicado, especialmente nas pesquisas qualitativas, prevalentemente naquelas que optam por referenciais teóricos críticos e/ou que objetivem elucidar a ideologia subjacentes aos discursos dos textos analisados ou nas falas dos depoimentos dos sujeitos da informação de uma determinada pesquisa. Além da contribuição ao debate metodológico acadêmico, é nosso objetivo propor uma breve revisão teórica sobre a análise de discurso como técnica de pesquisa que venha esclarecer aos leitores sobre a natureza da técnica, suas vantagens e limitações no processo de cotidiano da pesquisa.

O artigo está estruturado em quatro (4) partes. Inicialmente, procuramos conceituar a Análise de Discurso1 (AD) enquanto um procedimento metodológico de pesquisa, atualmente bastante aplicado nas investigações científicas qualitativas contemporâneas em vários campos das Ciências Sociais, particularmente na Linguística, Sociologia, Ciência Política, Antropologia Cultural, Pedagogia e demais áreas do conhecimento científico. A seguir, discorremos sobre as duas tendências teóricas da AD, ressaltando as dimensões que lhes são mais significativas e que, por isso, devem ser preferencialmente consideradas quando da aplicação desse procedimento metodológico nas pesquisas científicas documentais que investigam aspectos da linguagem e do social-histórico. A escolha dessas tendências se deve também ao nosso intuito de atender às solicitações feitas pelos discentes no decorrer das orientações de seus trabalhos.

Como este texto apresenta alguns resultados de uma pesquisa mais ampla que estamos realizando sobre técnicas qualitativas, de um projeto de investigação científica sobre os grandes referenciais teóricos e seus compatíveis metodológicos, consideramos importante elencar etapas que devem ser operacionalizadas no processo de aplicação prática, quando se elege na pesquisa científica a técnica de análise de discurso. Para melhor entendimento, apresentamos alguns exemplos de aplicação prática da Análise do Discurso Crítica (ACD). E por fim, à guisa de considerações finais, procuramos realizar um breve balanço crítico sobre suas vantagens e desvantagens apontadas sobre o uso da ACD.

Conceituação

A Análise de Discurso (AD) é atualmente empregada para designar uma técnica de análise ou um método de procedimento, aplicado em pesquisas qualitativas, preferentemente, como parte do repertório metodológico compatível com determinados referenciais teóricos que se preocupam em desvendar e/ou desmistificar as ideologias dos discursos analisados. Seja como uma técnica ou um método de procedimento de análise, não existe uma única forma de AD, mas várias maneiras de realizá-las, dependendo da tendência teórica que orienta a sua forma prática de aplicação.

De todo modo, as mais variadas tendências comungam da ideia de que a linguagem não é um simples meio de descrever as ações humanas, mas uma forma de organizar e construir o mundo social em que vivemos e, portanto, um poderoso instrumento não-neutro de dar ordem e de agir sobre a sociedade, servindo para reproduzir a ordem social dominante e/ou para transformá-la, dependendo das condições materiais de existência dos sujeitos-falantes e do nível de desenvolvimento social-histórico do contexto em que os discursos são socialmente construídos.

  • A revisão bibliográfica realizada aponta que a Análise de Discurso se define por quatro premissas básicas:

  • A preocupação com a produção e os efeitos dos sentidos dos discursos enquanto uma linguagem em seu uso, sócio-culturalmente contextualizado e historicamente datado;

  • A concepção de linguagem enquanto uma mediação e, ao mesmo tempo, uma construção do mundo social;

  • Propõe e considera o discurso enquanto uma organização do conhecimento que constrói o mundo social;

  • Estabelece uma ênfase no discurso enquanto uma ordem de ação no mundo social, tanto para reproduzi-lo quanto para transformá-lo.

Deste modo, o discurso é considerado para se referir a toda ordem de texto falado ou escrito e sócio-culturalmente contextualizado, seja quando ocorre nas conversações das pessoas, seja nos depoimentos dos entrevistados; num discurso oralizado ou não; um texto de um filme; de uma novela; de uma composição musical; de um artigo de jornal ou de um livro, científico ou não.

Portanto, os analistas tomam o discurso como tópico e material próprio de análise, interessados que estão em desnudá-lo de suas aparências, em busca da essência real, ou seja, do que está nas “entrelinhas” do texto, com vistas a desvendar as ideologias subjacentes, inerentes às falas, veiculadas nos discursos analisados, isto é, os sentidos dos discursos e seus efeitos sociais.

Dessa forma, a conceituação de AD evidencia a necessidade de um esforço de inteligibilidade, interpretação e compreensão por parte do analista-pesquisador, para transcender o simples significado literal ou a frequência com que as palavras aparecem no texto, para compreender a produção de significado contextual do discurso, tomado como unidade-estrutural de análise, visando apreender os sentidos significativos, construídos e atribuídos pelos próprios sujeitos no mundo social em que convivem.

Tendências teóricas da análise de discurso

A maioria dos estudiosos da técnica metodológica da Análise de Discurso já elencou mais de cinquenta tipos de se fazer Análise de Discurso. Todavia, na tentativa de sintetizar essas várias formas, podemos considerá-las nas seguintes tendências principais: Sociolinguística Interacional; Etnografia da Comunicação; Análise da Conversação; Psicologia Discursiva e Análise Crítica de Discurso. Dentro dos limites deste artigo nos deteremos nas contribuições da AD à Etnometodologia Analítica da Conversação e Análise Crítica do Discurso, objetivando oferecer alguns exemplos práticos de pesquisa documental e fazendo apenas breves referências sobre os autores e suas obras relativas a essas tendências.

AD da etnometodologia analítica da conversação

Nessa tendência, as categorias da AD devem emergir dos próprios participantes no momento de compreender as interações sociais que estabelecem entre si. Essa tendência analisa os discursos das conversas em uso pelos falantes, na perspectiva deles e não das categorias ou ideias prévias, definidas pelos Analistas (pesquisadores), dando prevalência aos intercâmbios verbais, ou seja, as conversas corriqueiras para se estudar as propriedades estruturantes da situação, socialmente contextualizada.

Essa forma de AD é bastante empregada pela Etnometodologia, particularmente pela tendência “Analítica da Conversação”, por isso, defende a ideia de que o discurso dos falantes, só é compreendido, em cada situação social específica, onde o discurso é socialmente construído, na medida em que, cada situação dada, é contingencial e, portanto, o discurso também o é, ou seja, se modifica em cada contexto situacional em que é produzido. Sob esse aspecto conceitual, as ideias de Watson e Gastaldo (2015) são muito interessantes, uma vez que dão ênfase às situações de interação social no cotidiano, à materialidade do discurso em seu contexto, possibilitando a abertura da análise de campos diversificados e, muitas vezes, conflituosos no espaço social.

Análise crítica do discurso

Essa tendência de AD é denominada de Análise Crítica do Discurso (ACD), e dá ênfase ao estudo das ações sociais manipuladoras que os sujeitos sociais põem em prática através do discurso, tais como: abuso de poder, controle social, dominação, desigualdades sociais, processo de marginalização e exclusão social. Para os analistas dessa tendência, o discurso é uma prática social que se exerce para exclusão e dominação e, portanto, a sua análise deve revelar como o discurso atua nesses processos, exigindo do próprio analista uma atitude interpretativa e crítica sobre as formas discursivas de dominação, objetivando contribuir no processo de formação da consciência crítica.

O método ou a técnica de Análise do Discurso, dependendo da tendência teórico-metodológica na qual se filia, orienta a sua prática por uma das duas tradições que fizeram escola na AD, ou seja, pela Escola Anglo-Saxônica (Escola Inglesa) ou pela Escola Francesa Pós-Estruturalista/Neomarxista da Europa Continental. Nossa opção será pela Escola Francesa (Pós-Estruturalismo/Neomarxismo), onde estão presentes os aportes da Teoria Crítica da chamada escola de Frankfurt, bem como as contribuições de Mikhail Bakhtin (1995) e Michel Foucault (1995), para o processo de construção de uma Análise Crítica do Discurso, e que apresenta outros signatários, entre eles, os teóricos, Michel Pêcheux (2009; 2011) e Eni Orlandi (2005).

A Escola Francesa concebe o discurso como um conjunto de instrumentos que pode regular as relações sociais dos sujeitos na Sociedade, concebendo a linguagem como um mecanismo de controle para submeter os sujeitos das classes subalternas a um processo de dominação. Seus principais teóricos estão interessados em um olhar histórico-crítico dos discursos, como no caso de Foucault (1995, p.52-59), cuja produção teórica está articulada em forma de uma crítica tridimensional, ou seja, em uma análise dos diferentes saberes enquanto práticas discursivas que escamoteiam a verdade, para melhor exercer seu controle e dominação cultural; uma análise dos discursos enquanto manifestações das relações de poder; e por fim uma análise da constituição do indivíduo como sujeito de desejos que oculta e desvela a verdade na relação de si e para si, sintetizando três ordens de discurso, ou seja, do ser-saber; do ser-poder e do ser-consigo próprio.

Bakhtin (1995) enfatiza as ações sociais descritas nas práticas discursivas para desvelar os processos de abuso do poder, a afirmação do controle social, a dominação, as desigualdades, a marginalização, a segregação e exclusão social, que subjazem nos discursos dos sujeitos-falantes e, por isso, influenciou profundamente a Análise Crítica do Discurso (ACD), especialmente nos trabalhos que têm como suporte o materialismo histórico.

Segundo essa Escola, a prática de ACD deve considerar 3 elementos básicos:

  • A seleção dos textos-discurso ou textos-fonte: devem-se verificar quais os tipos de textos que configuram o discurso. Assim, só devem ser considerados textos, aqueles que têm valor para uma coletividade, ou seja, que envolvam crenças e valores compartilhados. Portanto, o texto não é considerado em si mesmo, mas como parte de uma instituição ou comunidade reconhecida que define, para uma área social, as condições do exercício da função enunciativa;

  • O Posicionamento social, ideológico e político do sujeito-enunciador: deve-se verificar a origem social do sujeito que constrói o discurso, ou seja, o lugar que ocupa na sociedade, isto é, o seu status social, assim como dos destinatários. Deve-se verificar também, os tipos de discursos que podem ser ditos e as circunstâncias históricas de enunciação legitimadoras de tal posicionamento;

  • O corpus do texto: deve-se verificar qual a materialidade dos textos, ou seja, se são orais ou escritos e de que tipos: artigos, histórias infantis, literatura de cordel, documentos, informes, reportagens de jornais, brincadeiras infantis, entrevistas, comunicados, estudos, palestras, conversações transcritas, planos ou projetos institucionais, entre tantas outras possibilidades.

A Análise Crítica do Discurso (ACD) distingue-se das outras modalidades de AD, porque objetiva despertar e/ou expandir o nível de conscientização dos leitores sobre as ideologias subjacentes aos discursos literais dos falantes, a fim de que, tais sujeitos-leitores possam contribuir no processo de transformação de uma determinada situação social degradante para essa coletividade ou sociedade em geral.

A ACD adota uma concepção tridimensional do discurso, ou seja, o discurso como prática textual, de modo a se explicar as regras de produção do texto, ou seja, um estudo da organização das informações, da coerência e coesão lógica textual. O discurso, como prática discursiva, exige uma explicação das relações entre o texto e o contexto, ou seja, como o texto reproduz e/ou modifica o contexto social no qual é produzido. E, em sua terceira dimensão, adota o discurso como prática social, ou seja, em sua relação dialética com as estruturas sociais que se, por um lado, configuram o discurso; por outro, são confirmadas e/ou questionadas pelo (s) discurso (s), o que exige analisar as condições materiais de produção e as implicações sócio-políticas e ideológicas dos discursos e de seus autores em relação dialética à totalidade social em suas múltiplas e concretas determinações históricas e culturais.

Principais elementos considerados na ACD2

  • Atos da Fala: o analista deve analisar os atos da fala constantes nos discursos, ou seja, quais as ações e os efeitos que os discursos analisados estão expressando e produzindo, do ponto de vista socialmente significativo para os sujeitos-enunciadores;

  • Pragmática: os analistas dos discursos devem se concentrar também nas conversas informais e não apenas nos documentos formais, buscando os significados como são assinalados pela informação contextual que os falantes assumem nas conversas. O importante é identificar os efeitos de implicação das falas dos sujeitos dos discursos, bem como identificar o tipo de conhecimento que o falante presume ser compartilhado pela audiência e, separadamente, reconhecer o efeito de certas expressões, em função de sua forma linguística, socialmente situada;

  • Retórica: o analista deve levar em consideração a estrutura argumentativa e formal do texto em análise, ou seja, tipos de argumentos, figuras retóricas, sequências táticas dos temas e formas estilísticas que o ajudem a identificar o poder de persuasão dos discursos analisados;

  • Repertórios Interpretativos: o analista deverá identificar o repertório temático contido nos discursos analisados. Isto que permite verificar como os falantes confrontam as conversações e como definem planos pela colocação estratégica dos temas;

  • Polaridades e Desconstruções: o analista deve identificar as oposições existentes nos discursos analisados, ou seja, como se define o singular/ plural; consciente/ inconsciente; dependência/ independência; dominante/ subordinado; incluído/ excluído, o que lhe permitirá uma análise crítica para desmistificar as ideologias subjacentes aos discursos analisados. Dessa perspectiva, é analisado o papel do discurso na construção e manutenção das desigualdades sociais, consolidando ou intensificando tais desigualdades, bem como na implementação das estruturas de dominação e mecanismos de exclusão social, sustentados pelos discursos, ou pelo contrário, se estão questionando tais estruturas em favor de uma ação socialmente transformadora.

Um olhar sobre os documentos e a produção das representações sociais sobre o outro e processo de elaboração identitária: os acervos e a literatura

Há alguns anos nos dedicamos a pesquisar a história da educação na Amazônia Paraense e para alcançar nossos objetivos recorremos aos acervos do Arquivo Público do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e dos repositórios virtuais das IES e da Capes e ao emprego de ACD. Nossas pesquisas dão ênfase ao processo de elaboração identitária cultural tomando a cultura como memória (FERREIRA, 1994/95), propondo a relevância da linguagem na estruturação do social-histórico, portanto, apoiada na teoria da instituição imaginária da sociedade como propõe Castoriadis (1982).

Muitas vezes, não obtemos repostas suficientes desses arquivos, visto que os documentos encontrados não proporcionam os resultados esperados, então, um bom material de análise são os romances sobre a época em análise. Em razão desse fato, optamos pela a análise dos romances regionais na captura do acontecer histórico nas tramas da ficção para analisar o processo identitário, utilizando a literatura em busca de desvelar a matriz dos preconceitos difundidos sobre o amazônida. Dois autores nos guiam nessa empreitada: Peter Gay (2010) e Antônio Cândido (1976).

O historiador Gay (2010, p. 24), a respeito da utilização da ficção em seus ensaios, escreveu: “para compreender o que a ficção tem a oferecer ao pesquisador, ele deve aprender o que a fez acontecer. É por isso que os ensaios que seguem inserirão as ficções na literatura e na política de seu tempo, bem como no autor que lhes deu existência”. Em Cândido (1976), apoiamo-nos para a análise sociológica do discurso. A necessidade de estabelecer recortes ao produto da criação literária conduz a escolha de alguns parâmetros com o objetivo de ordenar o material sobre o qual incidirá prioritariamente o olhar: o sentido da vida, da existência e como essa busca se traduz em representações sócio-histórico-culturais e são expressas na linguagem dos atores sociais3.

A disseminação dos estereótipos e preconceitos, em especial sobre as classes desfavorecidas e incultas da população, a princípio realizada de modo aleatório, tornou-se posteriormente alvo de ação organizada a partir do aparato escolar e dos meios de comunicação da época. Amparados em uma razão concreta - a precariedade da educação especialmente dos mais pobres - a intelectualidade à época propõe o ideário positivista como saída para preparar moral e civicamente os indivíduos. O ensino de ofícios torná-los-ia produtivos pelo trabalho, com o objetivo de extirpar a mácula da indolência e da preguiça, assim como inculcar bons hábitos e valores ajudaria a superar as condições de abastardamento físico e moral da população, e enfim, torná-los cidadãos dignos. Assim, buscamos na literatura do século XIX elementos que permitissem visualizar esses atores sociais, pelas imagens construídas sobre eles e reflexivamente (GIDDENS, 1991) apropriadas pela sociedade4

A criação literária ao expressar, individual e coletivamente, a busca do sentido da existência, constitui por excelência o instrumento que permite ao indivíduo ordenar os fragmentos da vida cotidiana e assim tecer sua própria humanidade.

O estudo das identidades culturais pelos sociólogos apresenta alguns pontos aglutinadores das ideias: os componentes étnicos e culturais e a noção de processo como essenciais à compreensão do conceito, cuja fluidez é constatada por todos. Selecionamos inicialmente a conceituação proposta por Domingues (1992), onde se constata que as identidades são destacadas como realidades complexas, vivas e constituídas pelo simbolismo cultural em que estão entrelaçadas aos processos de cognição e disputas no campo do poder. Logo:

As identidades não são, portanto, a reunião de atributos dados para todo o sempre. São realidades vivas, em que permanente processo de elaboração, que se desdobra nas coordenadas dos processos cognitivos e de significação simbólica, nas definições axiológicas e normativas tendo como pano de fundo as relações de poder entre grupos e atores coletivos. (DOMINGUES, 1992, p.270).

Ao se estudar como as identidades culturais se apresentam em determinado contexto social-histórico, é fundamental levar em conta como são construídas e estão em permanente fluxo transformador, tendo um propósito claro na constituição do sentido que orienta o indivíduo na vida social. É a partir das identidades que se estabelecem as amarras que ancoram esse indivíduo ao tecido social, que orientam a sua participação nos diversos grupos que estruturam a vida em sociedade. Servem ao propósito essencial de formatar o pertencimento à sociedade e estabelecer marcos a partir dos quais se instalam as semelhanças e as diferenças que, por sua vez, explicitam a inclusão ou exclusão dos atores sociais. As identidades são destacadas como realidades complexas, vivas e constituídas pelo simbolismo cultural onde estão entrelaçadas aos processos de cognição e disputas no campo do poder.

Descrito sempre como um indolente, adepto da ociosidade e dos prazeres fáceis, o amazônida foi estigmatizado como um ser inferior por natureza, incapaz de absorver a civilização que lhe era oferecida pelo homem branco. Essa imagem negativa cristalizou-se. O século XIX aprofundará essa imagem e, ao desqualificar não brancos, justificará a instituição do trabalho compulsório como único meio de fazer avançar a civilização na Amazônia. A literatura pode nos ajudar a entender a elaboração desses estereótipos que se difundiram no cotidiano, uma vez que:

A linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo. A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas de símbolos historicamente mais importantes deste gênero. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 61)

Para Orlandi (2005),

O conceito de discurso é o da linguagem em interação, ou seja, aquele em que se considera a linguagem em relação as suas condições de produção, ou dito de outra forma, é aquele em que se considera que, a relação estabelecida pelos interlocutores assim como o contexto, são constitutivos da significação de que se diz. Estabelece-se, assim, pela noção de discurso, que o modo de existência da linguagem é social: lugar particular entre língua (geral) e fala (individual), o discurso é lugar social. (ORLANDI, 2005, p.157)

A vida social apresenta-se como um mundo de uma realidade intersubjetiva, um mundo onde o sujeito participa com os outros através da linguagem que se apresenta como criação do coletivo anônimo, é o imaginário instituinte, é o imaginário social. “Na e pela linguagem temos acesso a uma dimensão estritamente lógica, suporte do processo de representação simbólica da vida social” (CASTORIADIS, 1992, p. 91). A criação literária, ao expressar individual e coletivamente a busca do sentido da existência, constitui o instrumento que permite ao indivíduo ordenar os fragmentos da vida cotidiana e assim tecer sua própria humanidade.

Castoriadis (1982), escrevendo sobre a produção de uma nova linguagem pelos revolucionários bolcheviques durante a Revolução de 1917 na Rússia, alertava que todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus materiais - mesmo que seja só para preencher as fundações de novos templos, como o fizeram os atenienses após as guerras médicas. A análise de Castoriadis (1982) sobre a produção de uma nova linguagem pelos revolucionários bolcheviques durante a Revolução cita:

O exemplo do “Soviete dos comissários do povo ”: criava-se uma nova linguagem e, acreditava-se, novas instituições. Mas até que ponto tudo isso era novo? A revolução criava uma nova linguagem e tinha coisas novas a dizer; mas os dirigentes queriam dizer com palavras novas coisas antigas (CASTORIADIS, 1982, p. 147, grifos nossos).

Os documentos da administração colonial comprovam a violência a que eram submetidos os índios ou mestiços pelos colonos brancos. Lamentava-se que populações tão indolentes e ociosas tivessem à sua disposição tanta fartura mal aproveitada (GONDIM, 1994, p. 114). A ideia de terra sem um povo digno de sua riqueza enraizou-se na mente dos governantes e reverberou na própria constituição da população local (SCHWARTZ, 2000, p. 109).

Na Amazônia, essa percepção de incapacidade das populações de origem nativa em aceitar duras jornadas de trabalho compulsório, sempre resistindo, constituía o foco da categorização da sua incapacidade para a civilização. Mas, ainda assim foi o trabalho dessas populações que erigiu, em cerca de dois séculos, Belém, com seus edifícios públicos e igrejas que sobressaiam entre as acanhadas moradias dos colonos e o precário arruado de cabanas dos muito pobres. Foram essas pessoas que acudiram ao chamamento da agitação política antes e após a Independência, na primeira metade do século XIX, culminando com a explosão revolucionária Cabana, postulando a condição de brasileiro.

Como e a partir do que essas identidades são construídas? Em alguns casos individuais, as linhas divisórias ou são inexistentes ou se embaraçam de tal modo, que a ideia de pertencimento a uma cultura nacional, mesmo definida como plural, perde seu valor como viga mestra do conceito, se torna ineficaz como âncora conceitual. Isso pode ser observado em situações de grave convulsão social, onde ser amigo ou inimigo pode definir a sobrevivência do sujeito mediante a clara instituição de sua diferença em relação ao outro.

Após a independência, ao assinar os manifestos, os ativistas políticos acresciam aos seus nomes palavras com o objetivo de corroborar a legitimidade de suas postulações: brasileiro nato ou adotivo, ou vítima da independência. Acresceram também nomes de animais ou vegetais. Uma completa identificação podia conter vários elementos, incluindo-se títulos, patentes militares, fontes de renda. Alguns acrescentavam apenas a expressão Brazileiro Nato após a assinatura, como é o caso de Antonio Pedro Vinagre, um dos líderes da revolução Cabana, e como é possível constatar no documento muitos outros seguiram seu exemplo:

Honório José dos Santos, Brazileiro Nato, victima da Independência, Cavalheiro da Imperial Ordem do Cruzeiro, Elleitor de Parochia, Juiz de Facto e Escripturario da Mesa d’Arrecadação das Diversas Rendas Nacionais desta Provincia; José Bernardino Nunes Brasileiro Nato, com loja aberta ; Boaventura Ferreira Bentes, Brazileiro Nato e Tenente do Batalhão de Caçadores n 15 de 1 Linha; Joaquim Gomes do Carmo Ketne, Brazileiro Nato, artista; Manoel da Fonseca Luzarte de Macedo, Brazileiro Nato, Elleitor de Parochia, Juiz de Facto, e professor de ensino mutuo (...). (BRASIL, 1833, s/p, grifos nossos).

A radicalização política em 1822-23 promoverá clara divisão na utilização do termo patriota, pois haverá aqueles que se intitulam patriotas da legalidade, para quem os rebeldes serão os monstros, os facinorosos, os anarquistas, membros do partido insurgente, gentalha que se intitula Povo e Tropa. É possível, portanto, distinguir que, para quem exercia o poder e seus partidários, o povo, ingênuo e crédulo, precisa ser salvo de si mesmo, protegido pela parte instruída, preparada para conduzi-lo - os homens constitucionais e proprietários, amantes da ordem e da legalidade.5

A expressão formação discursiva foi introduzida por Foucault (1995, p. 35) e desenvolvida por Maingueneau (2000, p. 69) para designar conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas, com o objetivo de contornar unidades tradicionais como “teoria”, “ideologia” e “ciência”. Pêcheux (2011;2009) popularizou seu uso na análise do discurso com ênfase no marxismo, buscando associar a interpretação aos conceitos de classes sociais e suas consequentes posições políticas e ideológicas, realçando a produção coletiva e social do discurso. Assim,

As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória. (...) Sentido, Sujeito e Ideologia: o sentido é assim uma relação determinada do sujeito - afetado pela língua - com a história. É o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados (ORLANDI, 2005, p.43-47).

Os romances de Herculano Marcos Inglês de Sousa (1973; 1988), publicados nas décadas finais dos Oitocentos retratam a vida na sociedade amazônica. Para efeitos de análise da estruturação identitária do ‘caboco’ como ator social, e do revolucionário cabano em particular, apresentamos alguns excertos de suas obras. Em O Cacaulista, publicado em 1875, o tapuio dissimulado, conhecedor dos meandros da sociedade dos brancos, foi assim descrito:

Mendes era um homem velho, conhecia-se, mas seria impossível determinar-lhe uma idade; tinha os cabelos negros de ébano, e poucas rugas sulcavam-lhe a fronte; supunham alguns que teria setenta anos, outros porem chegavam até a dizê-lo mais velho que século. Era baixo e robusto, os cabelos ásperos e corredios, a tez cor de cobre e as feições grosseiras indicavam bem sua origem; (...) a desconfiança estava-lhe estereotipada na fisionomia, e as palavras raras e malsoantes contribuíam para formar-lhe um exterior pouco atraente. (...) quando se precisava de uma testemunha falsa, procurava-se o Mendes do Paraná-miri, como o chamavam em Óbidos; ele nunca se recusava, mas contassem que teriam que pagar caro; nas eleições estava o tapuio sempre disposto a pegar no pau pró ou contra qualquer partido, e como o seu braço era vigoroso, nunca deixava de ser procurado (SOUSA, 1973, p.41).

O olhar do autor que descreve uma situação potencialmente violenta nos anos da revolução Cabana, não omite o preconceito, considerando as décadas que separam o texto do acontecer histórico. Quem é o cabano? Os documentos oficiais apresentam listas de presos e classificados pela idade e cor da pele (os matizes dos sucessivos cruzamentos interétnicos), a maioria analfabetos que traduziram na luta sangrenta os séculos de brutal opressão de que foram vítimas. Um conto de Inglês de Sousa - A quadrilha de Jacó Patacho - publicado em coletânea, em 1876, descreve os tempos de barbárie que assolaram a Província do Pará. O trecho a seguir narra à noite que antecede o ataque adentro de uma casa de pequenos lavradores, próxima a Belém, onde o chefe do bando pediu pousada:

Saraiva! Esse era o nome do famigerado tenente de Jacó Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha infligia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baia do Sol e das águas do Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde, o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade? (SOUSA, 1988, p. 91).

A destruição provocada pela revolução arruinou a Província e em seus anos finais, bandos armados atacavam povoados sítios isolados e praticavam saques, espancamentos e violações, espalhando terror e morte. Mas os bandos de salteadores foram predominantemente identificados no rosto do caboco de pele escura e feições, onde a maldade podia ser visualizada sem esforço. Eram os facinorosos das manchetes de jornal e descrições disseminadas na vida social.

Em outro conto, O Rebelde, Sousa (1988) discorre sobre a Cabanagem e os revolucionários a partir da comparação com a Revolução de 1817 ocorrida em Pernambuco. O personagem, um menino, fala sobre seu amigo mulato e a ação transcorre com um primeiro estranhamento: a cor e a idade do amigo, um velho ex-revolucionário de 1817. Pela ficção é possível avaliar como os mais abastados percebiam os movimentos de contestação à ordem vigente, o medo da violência transferida para a cor e supostos enigmas da vida do mulato.

Eu não passava de um curumin de onze anos, curioso e vadio como um bom filho do Amazonas. Paulo da Rocha orçava pelos cinquenta, parecendo muito mais velho. Pois, apesar dessa enorme desproporção de idades, ligava-nos uma amizade terna, inexplicável para toda gente. O velho, ríspido e severo, era extremamente bondoso para comigo. Não sei que imã oculto me atraía para aquele mulato de cabeça branca, de quem meus pais não gostavam, e que inspirava a quase toda população da vila uma antipatia mesclada a horror. (SOUSA, 1988, p. 99).

Após descrever o cotidiano de rejeição, repulsa e medo ao velho mulato, Sousa (1988) descreve como a ameaça revolucionária cabana afetava o cotidiano da vila:

Não se falava senão na Cabanagem, o pobre velho, rebelde de 1817, era esquecido pelos rebeldes do tempo. Todos os dias tapuios desertavam do serviço dos patrões e fugiam em alguma canoa furtada descendo o rio para irem se encontrar com os “brasileiros”. (SOUSA, 1988, p.105).

Mas ao comparar a Cabanagem com o movimento pernambucano de 1817, ela a define nas palavras do mulato:

(...) uns pobres diabos que a miséria levou à rebelião uns pobres homens cansados de viver sob o despotismo duro e cruel de uma raça desapiedada! Uns desgraçados que não sabem ler e que não tem pão... e cuja culpa é só terem sido despojados de todos os bens e de todos os direitos (...) em 1817 defendíamos a causa da humanidade, a causa do futuro. (SOUSA, 1988, p. 108).

Para Sousa (1988), os cabanos eram vítimas de uma dupla alucinação religiosa e patriótica. A Cabanagem seria um grito primal por liberdade. Encontramos aí uma tentativa de explicar a violência inaudita dos saques e mortes dos bandos como o de Jacó Patacho pela insanidade?

Impossível lembrar os ideais de liberdade de um movimento do qual só os atos nefandos ganharam o espaço da memória escrita. Poucos mencionam o fato de, ao final do movimento revolucionário ser duramente reprimido, os homens de cor, os cabocos, tapuios ou negros, foram submetidos à servidão nos Corpos de Trabalhadores sem remuneração pelo trabalho. É a literatura que possibilita acesso ao conhecimento do trânsito das ideias da sociedade, aos estereótipos que surgem e se consolidam e que, ao fazermos uso da ACD, podemos desvelar a invisibilidade que perdurou por tanto tempo na narrativa histórica oficial.

E ler, em um ensaio de José Veríssimo, esta constatação e lamento sobre o caboco ribeirinho:

A feição dominante do caráter desta gente é uma falta completa, absoluta, de energia e de ação. Todos os seus defeitos decorrem deste e neste se podem resumir. Vivem sob uma espécie de fatalismo inconsciente, e falece-lhes a ambição de tentar sequer sair deste estado. O tapuio principalmente por ter, ou por seu gênio esquivo e desconfiado ou por motivo de cor, vivido mais afastado da nossa sociedade, ou ainda porque não estivesse apto para a civilização, ou por todas estas causas juntas, chegou a um abatimento moral lastimoso. Para ele não existe o dia de amanhã. (VERÍSSIMO, 1970, p. 21-22).

Eminente intelectual, dedicado aos problemas da educação brasileira, Veríssimo (1970) acreditava que o caminho para a mudança deveria ser através da educação. Tais características eram traços que inferiorizavam o povo brasileiro. A educação ampla e eficiente da população, especialmente das classes mais carentes, não só proporcionando capacidades intelectuais, e sim desenvolvendo o caráter, fortalecendo o aspecto moral e ético desses indivíduos para, assim, consolidar, estreitando os laços do amor à pátria. Para Veríssimo (1970) era tarefa urgente formar o caráter nacional. Fortalecer a brasilidade e o espírito nacional. Fortalecer a identidade nacional.

Considerações finais

Alguns teóricos das Ciências Sociais têm apontado que, como os procedimentos de ACD são eminentemente interpretativos, a sua validade científica está comprometida, visto que existe certa perda de objetividade, princípio característico do discurso científico. Outros colocam que os discursos são da ordem da consciência, ou seja, descrevem os sujeitos através do que eles dizem de si próprios e, por isso, não seria uma atitude procedimental válida cientificamente.

Os defensores das vantagens da ACD, entretanto, definem que o procedimento não se estrutura somente a partir da análise literal das palavras, mesmo no caso da análise de conteúdo que dá ênfase à frequência com que as palavras aparecem nos discursos dos falantes. A análise de discurso enfatiza a produção dos sentidos, procurando desvelar o que está oculto nas entrelinhas do discurso, através de um esforço hermenêutico crítico da linguagem constituída nos discursos analisados. E como a linguagem é um processo que constrói a própria realidade social (CASTORIADIS, 1982), então, a ACD é um procedimento que permite ao pesquisador partir da realidade concreta dos falantes, ou seja, do que realmente fazem e constroem no mundo social e em que convivem, ou seja, partindo da cotidianidade de suas ações, para submetê-las à uma reflexão crítica em relação dialética à totalidade do social-histórico mais amplo. Dessa forma, tais defensores da técnica de ACD, enfatizam que a linguagem não está na cabeça dos sujeitos, mas no mundo social, no coletivo anônimo, pois é através dela que se constrói e se transforma o próprio mundo em que vivemos.

A linguagem passa a ser considerada não como uma simples descrição que fazemos de nós mesmos, mas fundamentalmente, como uma forma de construção de nosso mundo social, na medida em que a fala tem efeitos de ação sobre os sujeitos e sobre a própria vida social. Além do que, toda fala é datada historicamente e socialmente contextualizada. A análise do contexto possibilita ao pesquisador investigar contradições, conflitos dentro de um campo específico do poder na sociedade, saturado, muitas vezes, de explicações oficiais, podendo enfim dar voz aos que foram silenciados nessas falas oficiais.

E finalmente, conclui-se que, embora a linguagem enquanto prática social seja determinada pelas estruturas sociais do contexto social-histórico, essa relação não é mecânica, e sim dialética e, portanto, o discurso afeta também as estruturas sociais, contribuindo, tanto para sua reprodução, como para sua transformação social. E a ACD em sua perspectiva crítica, ou seja, Neomarxista/Pós-Estruturalista é, metodologicamente, capaz de apreender essas contradições sociais da realidade, expressas de forma velada ou implícita na linguagem, veiculada nos discursos produzidos pelos sujeitos que, ao falarem, agem, constroem e transformam o próprio mundo social em que vivem e, ao mesmo tempo, são também por este, socialmente transformados.

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1Para facilitar a leitura usaremos as seguintes abreviaturas sempre que necessário: AD (Análise de Discurso) e Análise Crítica de Discurso (ACD).

2Optamos pela posição de Maingueneau (2010, p. 64) para quem a fronteira entre AD e ACD é indecidível. “Não se pode opor uma análise do discurso que não tenha nenhuma dimensão crítica(...) na verdade, a análise do discurso, de fato, é, por sua própria natureza, portadora de uma dimensão crítica”.

3Parâmetros de Análise propostos pelo autor: 1 - a análise das representações sociais; 2 - a busca do sentido da existência; 3 - a linguagem; 4 - o contexto sócio-histórico-cultural; 5 - o poder, a política e os atores sociais (CÂNDIDO, 1976, p. 6-15).

4O conceito de reflexividade é aqui usado no sentido que lhe atribui Giddens (1991, p. 45): a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente o seu caráter.

5As expressões em itálico foram colhidas nos periódicos da época, em particular no jornal Correio Official Paraense, números 32 e 33. Coleção de Documentos sobre a Cabanagem no Pará, 1834-1836. I.H.G.B. Lata 286- Livro 5.

Recebido: 31 de Julho de 2018; Aceito: 11 de Novembro de 2019; Publicado: 13 de Maio de 2020

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