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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.5902/1984644435680 

Artigo Demanda Contínua

A privatização da educação brasileira e a BNCC do Ensino Médio: parceria para as competências socioemocionais

The privatization of brazilian education and the BNCC for Secondary Education: partnership for the socioemotional skills

Rafael Rodrigo Mueller¹  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0001-6637-2948

André Cechinel²  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0002-6620-3447

¹Professor doutor na Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, Santa Catarina, Brasil.rrmueller@unesc.net

²Professor doutor na Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, Santa Catarina, Brasil.andrecechinel@unesc.net


RESUMO

Este artigo pretende discutir as consequências da parceria entre o Ministério da Educação (MEC) e órgãos nacionais e internacionais que assumiram o papel de reguladores transnacionais de políticas de educação em diversos países, especialmente os chamados países “em desenvolvimento”. Para tanto, pretende-se analisar como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Instituto Ayrton Senna (IAS) influenciam a educação brasileiraa partir da recém aprovada Base Nacional Comum Curricular (BNCC),como forma de demonstrar objetivamente a relação entre essas instituições e sua lógica privada e comercial que tem influenciado as políticas públicas nacionais centrada, em grande medida, no conceito de competências socioemocionais. Portanto, o estudo utiliza como referência central para tal articulação a própria BNCC, em especial a do ensino médio, uma vez que essa etapa da educação básica é aquela em que as categorias trabalho e educação estão mais intensas e concretamente relacionadas.

Palavras-chave: Educação Brasileira; Base Nacional Comum Curricular

ABSTRACT

This paper intends to discuss the consequences of the partnership between the Brazilian Ministry of Education (MEC) and national and international agencies that have assumed the role of transnational regulators of education policies in several countries, especially the so-called “developing” countries. In order to do so, we intend to analyze how the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) and the Ayrton Senna Institute (ASI) objectively influence national education Brazilian education from the recently approved National Curricular Common Base (NCCB) as a way of objectively demonstrating the relationship between these institutions and their private and commercial logic that has influenced national public policies centered to a large extent on the concept of socioemotional skills. Therefore, the study uses BNCC as central reference for such articulation, especially the one of secondary education, since this stage of basic education is one in which the categories of work and education are more intense and concretely related.

Keywords: Brazilian Education; National Common Curricular Base

Introdução

No dia 30 de maio de 2017, o Brasil formalizou o seu desejo em aderir a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Tal desejo não é recente, pois desde 1994 vem acompanhando regularmente 23 comitês e grupos de trabalho, já cedendo a 31 dos instrumentos jurídicos acordados por seus membros e desde 2007 é considerado pela organização como um parceiro engajado (BBC, 2018). Pode-se perceber o impacto interno de tal adesão quando em 2015, no Relatório Econômico sobre o Brasil, a OCDE recomendou a constituição de uma regra de gastos nacional, fato que resultou na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 de 2016, restringindo os gastos públicos com educação e saúde pelos próximos 20 anos.

Para além do âmbito estritamente econômico, a observância de regras impostas pela organização ao Brasil pode ser percebida na esfera educativa a partir de recomendações específicas e pela interferência em políticas públicas educacionais, mais bem explicitadas pela tríade trabalho, educação e qualificação profissional, a qual é permeada pelo nó górdio da relação entre competências e habilidades em todos os níveis educacionais. No país, tal relação historicamente vem se objetivando em grande parte a partir da década de 1990, constatação visível pelas diversas pesquisas e publicações entusiastas e críticas desta condição, ampliada nos anos 2000 e potencializada na presente década pela inserção da demanda educacional das competências socioemocionais (OCDE, 2015).

Considerando o histórico de aderência constante do Brasil aos ditames da OCDE e, em termos específicos, ao contexto da educação nacional, pretendemos, a partir da presente pesquisa, analisar o avanço da privatização da educação pública no Brasil por meio da relação entre o Ministério da Educação (MEC), a OCDE e organizações sociais privadas como o Instituto Ayrton Senna (IAS). O estreitamento desta relação dá-se a partir das proposições feitas pelo IAS em consonância com as deliberações da OCDE em termos de ações voltadas à educação brasileira referentes a incorporação, em toda sua estrutura, de competências socioemocionais necessárias para enfrentar os desafios do século XXI. Segundo a OCDE (2015), para além das competências cognitivas tradicionais estreitamente vinculadas a qualificação profissional, as competências socioemocionais, tais como perseverança, sociabilidade e autoestima, são imprescindíveis para o bom desenvolvimento profissional. No Brasil, o IAS em atuação conjunta com o MEC vem promovendo o debate sobre tais competências a partir do Fórum Internacional de Políticas Públicas: educar para as competências do século XXI ocorrido entre os dias 24 e 25 de março de 2014. Neste evento estiveram presentes representantes de 14 países vinculados a OCDE, sendo que ao final do referido fórum, obteve-se certas diretrizes voltadas à educação do século XXI, dentre estas destacamos aquelas especificamente centradas na questão de nossa pesquisa: “Assim como as competências cognitivas, competências socioemocionais são maleáveis; por isso, podem ser objeto de políticas públicas” e “Formuladores de políticas públicas de todo o mundo, incluindo cinco ministros e seis vice-ministros de Educação, reconhecem a importância das competências cognitivas e socioemocionais para bons resultados na vida dos indivíduos” (FÓRUM INTERNACIONAL, 2014). A síntese do presente debate iniciado no fórum se encontra no documento produzido pela OCDE intitulado Competências para o progresso social: o poder das competências socioemocionais (2015).

Desde então, só vimos o aprofundamento da inserção do debate sobre as competências socioemocionais nas diversas etapas da educação básica brasileira, principalmente pelas parcerias firmadas entre o IAS e as secretarias estaduais de educação, em particular as dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, conforme dados do próprio instituto. Como fato concreto do avanço de tal debate em âmbito estrutural da educação brasileira, em 2017 foi aprovada pelo congresso nacional a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica que incorpora em seu conteúdo as competências socioemocionais como parte das competências essenciais a serem desenvolvidas pelos estudantes. Nesse sentido, vimos o crescente incremento de um rol de competências que se articulam a partir de uma lógica de educação que, em última instância, serviria exclusivamente enquanto meio para o desenvolvimento do mercado de trabalho, condição constatada nos diversos documentos produzidos pela OCDE e pelo IAS.

Despertou-nos o interesse em pesquisar, para além da aparência fenomênica, os elementos teóricos e ideológicos propagados pelo referido organismo multilateral e pela organização social privada que, historicamente, assim como outras organizações internacionais, vem assumindo a função de reguladores nacionais e transnacionais das políticas públicas para a educação de diversos países, principalmente os ditos em desenvolvimento. Para tanto, pretendemos analisar diversos documentos institucionais produzidos pela OCDE e pelo IAS e, centralmente a BNCC do Ensino Médio, como forma de demonstrar objetivamente a relação entre essas instituições e como sua lógica privada e mercantil vem influenciando as políticas públicas nacionais, fato que a nosso ver, transparece um processo de privatização da educação pública brasileira.

A tríade MEC/OCDE/IAS: fomentando as competências para a educação do século XXI no Brasil

Em novembro de 2016, o presidente Michel Temer anunciou o novo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Tal conselho é um colegiado composto por representantes da sociedade civil que tem por missão, a partir do assessoramento direto ao presidente, discutir políticas públicas e propor medidas que possam estimular o desenvolvimento do país. Conforme o próprio CDES (2018), é o único conselho que trata de todas as áreas de atuação do Poder Executivo. Dentre os diversos membros do respectivo órgão consultivo, consta o nome de Viviane Senna, presidenta do Instituto Ayrton Senna (IAS) desde a sua fundação em 1994. Segundo dados do IAS (2018), esta organização social beneficia anualmente 1,5 milhão de crianças e jovens, forma 45 mil educadores e atua em 600 munícipios em 16 estados brasileiros. Nesse sentido, o IAS, por meio de um de seus braços institucionais, o laboratório de inovação educacional EduLab21, produz, sistematiza e dissemina, novos conhecimentos sobre as competências para o século XXI criando uma base de acesso que possa auxiliar tecnicamente na criação de políticas públicas no âmbito da educação (IAS, 2018). Tendo por base proporcionar educação de qualidade a crianças e jovens, o instituto tem visado nos últimos anos o aprimoramento do que chamam de Educação Integral: “é aquela que prepara para a vida, oferecendo condições para que todos os alunos desenvolvam as competências cognitivas e socioemocionais necessárias para aprender, viver, conviver e trabalhar no século 21”, sendo que o EduLab21 atua centralmente para “promover a educação integral nas redes públicas de ensino no Brasil, com foco no ensino fundamental e médio” (EduLab21, 2016). Nesse caso, a ampla defesa do conceito de Educação Integral por parte do instituto se fundamenta no desenvolvimento de competências essenciais para o século XXI, em particular, as competências socioemocionais.

A atuação e abrangência do IAS junto à educação brasileira, particularmente a partir de 2014 quando firma acordo com o Ministério da Educação (MEC), se dá em grande medida com o respaldo da OCDE. Nesses termos, a parceria do IAS com a OCDE se dá mediante acordos de cooperação do instituto com dois braços desta última: o Centre for EducationalResearchandInnovation (CERI) e a Global Network ofFoundationsWorking for Development (netFWD).

O objetivo constante por parte da OCDE e do IAS é a influência direta na orientação de políticas educacionais globais (BALL, 2014) que possam assegurar o projeto mais amplo de formação centrado em competências e habilidades voltadas a atender as demandas do mercado globalizado, sempre preocupados com a inclusão substancial de uma massa populacional dos países em desenvolvimento no espectro do conceito de população economicamente ativa, assegurando assim níveis satisfatórios em longo prazo de desenvolvimento econômico aos países membros da organização multilateral. Desta forma, há uma incessante preocupação com crianças, jovens e adultos advindos de um grupo populacional desfavorável em termos de condições socioeconômicas, e seus respectivos níveis de escolarização, o que sugere a intervenção objetiva por parte dos diversos atores envolvidos em tal processo (gestores, educadores, organizações sociais, entidades representativas) visando a transformação de tal condição por meio de políticas públicas que oportunizem condições consideradas dignas de trabalho, educação, saúde, moradia etc. Tal preocupação expressa em suas entrelinhas um processo que vem se avolumando no Brasil desde a década de 1990 com o sistemático avanço de políticas neoliberais junto aos governos federais: o que inicialmente apresenta-se como uma salutar parceria entre os entes federais e privados, indica de fato a real intervenção destes últimos (organizações sociais e organismos multilaterais) naquilo que cabe ao Estado enquanto direitos garantidos constitucionalmente, nesse caso em particular, o acesso a uma educação socialmente referenciada.

A preocupação explícita por parte da OCDE e IAS no que se refere ao desenvolvimento e implementação de políticas educacionais que em sua origem tenham um referencial pautado pelo aprimoramento de competências cognitivas (letramento, conhecimentos lógico-matemáticos e científicos) e não cognitivas (perseverança, autonomia, curiosidade etc.)(SANTOS; PRIMI, 2014), é um indicativo objetivo da necessária vinculação entre educação e economia como forma de combater desigualdades centradas nos indivíduos e não na lógica mercantil-empresarial. Esses indivíduos que já são e que ainda podem fazer parte da população economicamente ativa devem ser aprimorados por um processo contínuo e efetivo de escolarização centrado em políticas públicas que concebam essa mesma população enquanto um ativo imprescindível para o desenvolvimento social e o crescimento econômico, conforme a fala do então Ministro da Educação José Henrique Paim durante o Fórum Internacional de Políticas Públicas, promovido pela OCDE e MEC em 2014: “O desenvolvimento de competências tem consequências sobre a desigualdade social: promover as competências certas por meio da educação é uma ferramenta importante que governos devem considerar para diminuir as lacunas entre resultados educacionais, econômicos e sociais” (FÓRUM INTERNACIONAL, 2014, p. 02).

Sob vários aspectos, podemos considerar o fórum internacional de 2014 como o marco referencial para a parceria que se estabeleceu e vem se fortalecendo entre o MEC, a OCDE e o IAS, em particular entre os dois últimos, tendo em vista o número de publicações e estudos veiculados pelas inúmeras organizações sociais relacionadas ao IAS, dentre elas: o Movimento Todos pela Educação, o Movimento pela Base Nacional Comum e o Itaú Social, braço educacional do Banco Itaú. Ainda em 2014, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão vinculado ao MEC voltado para a Pós-Graduação stricto sensu, lançou um edital público do Programa de Apoio à Formação de Profissionais no Campo das Competências Socioemocionais (n. 44/2014) em parceria com o Instituto Ayrton Senna. O programa visa incentivar pesquisas sobre o desenvolvimento de competências e habilidades socioemocionais na educação, fomentando a produção acadêmica e formação de professores, sendo que referido edital aprovou dez projetos prevendo o financiamento anual de até R$ 566.440,00 para cada um destes. Este projeto, firmado entre o MEC e o IAS, é resultado das articulações feitas durante o fórum mundial como forma de demonstração objetiva de que o governo brasileiro se coloca em plena sintonia com as demandas advindas da OCDE em termos de acomodar em sua estrutura curricular educacional e na formação continuada de professores, as tendências globais para a educação do século XXI, centradas em uma neoliberal.

Desde então, uma série de projetos e parcerias com estados brasileiros foram capilarizando, até o âmbito escolar, as concepções de competências socioemocionais e de educação integral: em 2014, o IAS em parceria com o CERI/OCDE e a Secretaria de Estado do Rio de Janeiro publica um amplo relatório intitulado Desenvolvimento socioemocional e aprendizado escolar: uma proposta de mensuração para apoiar políticas públicas. Esse relatório descreve o planejamento, a execução e os resultados obtidos a partir do Projeto de Medição de Competências Socioemocionais, o qual envolveu cerca de 25.000 alunos de escolas públicas do ensino fundamental e médio. O objetivo deste projeto foi “elaborar um instrumento confiável para a mensuração de competências socioemocionais em larga escala e validá-lo empiricamente através da aplicação piloto em uma amostra representativa de alunos da rede estadual de educação do Rio de Janeiro” (SANTOS; PRIMI, 2014, p. 05).

Já o programa Letramento em Programação constituiu-se por meio da formação de educadores, criando possibilidades de inserção de alunos no universo digital utilizando ferramentas gratuitas de programação computacional. Criado em 2015, o projeto chegou a mais de 700 estudantes em quatro municípios dos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul por meio da formação de educadores. Conforme o próprio instituto, para além da prática da programação “os alunos e educadores desenvolvem, de maneira integrada, competências cognitivas e socioemocionais fundamentais para a vida no século 21, como criatividade, resolução de problemas, colaboração e persistência” (IAS, 2018). Ainda em 2015, o instituto desenvolve o programa Gestores em Rede que atua em parceria com onze municípios de sete estados brasileiros. A partir de uma plataforma online centrada em encontros virtuais e presenciais, o instituto medeia a troca de experiências entre os diversos gestores participantes. O propósito do programa é “a construção conjunta de um repertório robusto de estratégias de boas práticas da gestão educacional, a ser compartilhada com um maior número de redes de ensinos” (IAS, 2018).

Em 2016, preocupados em promover a educação integral de alunos matriculados nos três primeiros anos do ensino fundamental, o IAS concebe em parceria com as redes de ensino de três municípios, uma série de referenciais pedagógicos e ferramentas de gestão que contribuem para a construção políticas públicas de alfabetização, onde não somente se desenvolva o letramento clássico, mas também o “letramento corporal, científico e socioemocional” (IAS, 2018). Tal projeto intitulado Gestão da Política de Alfabetização, em 2017 atua em seis municípios de seis estados distintos, mais um conjunto de 21 municípios agrupados por meio de um arranjo de desenvolvimento da educação, da região de Florianópolis, capital de Santa Catarina. Ainda nesse mesmo estado, inspiradaem uma proposta concebida originalmente no estado do Rio de Janeiro, é firmada uma parceria entre IAS, Secretaria de Educação de Santa Catarina (SED-SC), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Federação das Indústrias de Santa Catarina (FIESC), a partir da Proposta de Educação Integral para o Ensino Médio. Desde 2017, esta prevê o suporte à Secretaria de Educação para a elaboração de modelos de currículo, formação de professores e avaliação orientados para a promoção da educação integral, sendo inicialmente implantada em quinze escolas do estado, número que foi ampliado para trinta em 2018. Segundo o instituto, o objetivo da proposta é “oferecer oportunidades para os estudantes se desenvolverem com autonomia, e tem como premissa uma matriz de competências e conceito de educação integral que prevê a ampliação do tempo na escola” (IAS, 2018).

Ao final do ano de 2017, instituiu-se no Brasil a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que tem entre suas principais premissas, o desenvolvimento de uma educação integral (BNCC, 2017). Nesse sentido, o documento compreende que a educação deve centrar-se primordialmente em questões voltadas à “formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva” (BNCC, 2017, p. 14), sendo que ambas as dimensões citadas dizem respeito aos conteúdos relacionados às competências cognitivas e não-cognitivas (socioemocionais). Constatamos a partir dos elementos conceituais presentes no texto da BNCC, a forma como historicamente os preceitos desenvolvidos e defendidos pela OCDE e IAS vão sendo incorporados no núcleo formativo e orientador da educação pública brasileira via a integração curricular e pela consequentemente necessária formação de professores. Pensando nestas questões, o IAS (2018) desenvolve um guia digital intitulado BNCC: construindo um currículo de educação integral no qual expõe “uma análise exclusiva que relaciona 10 competências gerais descritas na BNCC às competências socioemocionais cientificamente identificadas como importantes de serem consideradas e desenvolvidas no contexto escolar brasileiro”. O objetivo é auxiliar os atores envolvidos na elaboração dos currículos das redes de ensino municipais e estaduais como forma de garantir o compromisso com a educação integral indicada pela BNCC.

Concentrando o seu foco de atenção no desenvolvimento e efetivação da BNCC junto à educação brasileira, o IAS promove em maio de 2018 em parceria com o Itaú Social o Ciclo de debates em Gestão Educacional: a formação de professores no contexto da BNCC. O evento contou com a participação de especialistas de países como Finlândia, Singapura e Estados Unidos, além da presença do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED). Diante do contexto apresentado, pretendemos analisar com maior profundidade a forma como a OCDE e o IAS, com a anuência do MEC, influenciam o desenvolvimento e constituição da BNCC a partir de seus pressupostos conceituais imprescindíveis para a educação do século XXI: a educação integral vinculada às competências socioemocionais.

Os impactos da tríade sobre a educação brasileira: a Base Nacional Comum Curricular

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasileira (Lei n. 9.394/1996),

os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.

A fim de dar conta, então, da construção de uma base nacional comum capaz de nortear os currículos das diferentes redes e sistemas de ensino das Unidades Federativas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) constituiu uma comissão bicameral por meio da Portaria CNE/CP nº 11/2014, presidida pela Conselheira Márcia Angela da Silva Aguiar (Câmara de Educação Superior - CES/CNE), doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Como dito, em linhas gerais, a tarefa da comissão bicameral consistia em conduzir o “processo de definição das diretrizes que orientarão os currículos de todas as etapas da educação básica no país - ou seja, o que deverá ser ensinado aos estudantes em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas” (MARIUZZO; MORALES, 2018, p. 6).

No entanto, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a chegada no novo Ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho, “em 1º de julho de 2016, a Presidência do CNE propôs ao Conselho Pleno uma reestruturação de todas as Comissões, inclusive de suas relatorias e presidências” (AGUIAR, 2018, p. 9-10). Com isso, a partir da Portaria CNE/CP nº 15/2016, assume a presidência da comissão o conselheiro Antonio Cesar Russi Callegari, que além de ter sido Secretário Municipal de Educação de São Paulo e Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, também é diretor de Operações do Serviço Social da Indústria (SESI-SP), diretor da Faculdade SESI-SP de Educação e membro do Conselho de Governança do Movimento Todos pela Educação (TPE). A mesma câmara passou de um para dois relatores: um deles é o Conselheiro da Câmara de Educação Superior, Joaquim José Soares Neto, que já foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e é membro da organização Movimento pela Base; já outro é o Conselheiro da Câmara de Educação Básica José Francisco Soares, que também foi presidente do INEP e é membro do Conselho de Governança do Movimento Todos pela Educação. Por fim, a comissão passou ainda por duas outras mudanças posteriores de composição com as portarias CNE/CP nº 9/2017 e CNE/CP nº 11/2017, que, no entanto, mantiveram a presidência de Antonio Cesar Russi Callegari. Callegari só manifestaria seu desejo de deixar o posto de presidente da comissão em junho de 2018, alegando identificar na proposta diversos problemas sobre os quais não poderia se calar (apud SEMIS, 2018). Assume, em seu lugar, o presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e membro do conselho consultivo do INEP, Eduardo Deschamps. Como o próprio Callegari admite nesse momento, o novo Ensino Médio brasileiro, ao abandonar a configuração anterior das diferentes disciplinas, como veremos mais adiante, corre o risco de formar “uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes, cada vez mais raros e mal remunerados” (apud SEMIS, 2018).

Além das constantes modificações e reestruturações dos membros que integram as comissões, bem como das posteriores manifestações contrárias, embora tardias, de Cesar Callegari, o cenário conturbado que caracteriza o contexto de discussão e aprovação da BNCC ganha contornos ainda mais problemáticos durante a sessão de aprovação da Base pelo Conselho Nacional de Educação, em 15 de dezembro de 2017. Em sua avaliação final tanto do processo de discussão quanto do texto da BNCC, as conselheiras Aurina de Oliveira Santana, Malvina Tania Tuttman e Marcia Angela da Silva Aguiar - a última, vale lembrar, presidente da comissão bicameral quando de sua constituição inicial - decidiram pelo pedido de vistas e posterior voto em separado contrário à aprovação do documento. Segundo o voto da Conselheira Márcia Angela da Silva Aguiar, o texto final da BNCC apresenta “lacunas e incompletudes, abdica do seu papel como órgão de Estado; fragiliza a formação integral dos estudantes, além de ferir a autonomia dos profissionais da Educação” (apud AGUIAR, 2018, p. 21). O tom de reprovação permanece o mesmo nos outros dois pareceres, que reafirmam a precariedade democrática do processo. O voto de Malvina Tania Tuttman é claro nesse sentido:

reitero o meu posicionamento contrário ao Parecer, por ser favorável ao diálogo democrático e republicano (...). Concluo, afirmando que lutarei para que o diálogo democrático e republicano aconteça em todos os espaços e recantos do Brasil, inclusive neste colegiado (apud AGUIAR, 2018, p. 21).

Em sua apresentação redigida para o texto final da BNCC, em contradição com os pareceres das conselheiras acima citados, o então Ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho, cuja formação localiza-se na área de Administração de Empresas, declara que “a BNCC é fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade brasileira e encontra-se organizada em um todo articulado e coerente fundado em direitos de aprendizagem” (BRASIL, 2018, p. 5). O documento estrutura-se, como ficamos sabendo desde o texto introdutório, sobre dez competências gerais para a Educação Básica, que devem se inter-relacionais nas três etapas da Educação Básica no sentido de promover a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e a formação de atitudes e valores, conforme indicado na própria LDB. A título de exemplo, a primeira das competências gerais afirma o seguinte:

Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva (BRASIL, 2018, p. 9).

Como no caso desta, as outras nove competências serão acionadas em diferentes momentos do texto, operando como pontos articuladores de tudo o que está posto na Base.

Segundo o texto, por competência entende-se “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8). Parece haver, por parte dos leitores mais críticos da BNCC, uma espécie de consenso de que não só essa definição de competência acentua certa instrumentalização tecnicista do currículo, como também carece de um vínculo mais claro com a ideia de formação integral que o documento insistentemente cita também sem conceituar. Em 14 de maio de 2018, a ANPEd, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, emite uma nota criticando, entre outros pontos - como a falta de legitimidade da proposta e o esvaziamento do currículo -, exatamente a vagueza da noção de competência ali elaborada. Segundo a ANPEd (2018),

(...)a ênfase na aprendizagem para desenvolver competências, sabemos, está articulada com as políticas que o Banco Mundial e outros organismos internacionais vêm desenvolvendo nos últimos tempos, e tem a ver com pensar a escola como se fosse uma empresa.

Nesse sentido, a centralidade da noção de competência, que permanece sem uma definição clara e direcionada à lógica de meios e fins e de um saber fazer-

por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (...), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BRASIL, 2018, p. 13)

é prova da sintonia da BNCC, entre outros, com processos educativos instrumentais e restritivos e procedimentos de avaliação possivelmente mais padronizados e estandardizados (DOURADO; OLIVEIRA, 2018, p. 40).

Que as competências e habilidades sejam, também, competências e habilidades socioemocionais não devemos estranhar. Se o Instituto Ayrton Senna (IAS) recomenda para a educação básica brasileira a presença constante dos chamados big five, os cinco principais domínios da personalidade humana, “Abertura a Novas Experiências, Extroversão, Amabilidade, Conscienciosidade e Estabilidade Emocional” (SANTOS; PRIMI, 2014, p. 16), a BNCC, por sua vez, insiste em formulações que parecem responder justamente a essas e outras demandas relacionadas às competências socioemocionais, a ideia de engajamento sendo aqui palavra-chave: deve-se “conceber e pôr em prática situações e procedimentos para motivar e engajar os alunos nas aprendizagens” (BRASIL, 2018, p. 17); “aprender a aprender nos campos da ciência, cultura, trabalho, informação e vida pessoal e coletiva” (BRASIL, 2018, p. 482); “engajar na busca de solução de problemas que envolvam a coletividade, denunciando o desrespeito a direitos, organizando e/ou participando de discussões, campanhas e debates, produzindo textos reivindicatórios, normativos (...)” (BRASIL, 2018, p. 505); “ao engajar-se mais criticamente, os jovens podem atualizar os sentidos das obras, possibilitando compartilhá-las em redes sociais, na escola e diálogos com colegas e amigos “(BRASIL, 2018, p. 513). A oitava e a décima das dez competências gerais para a Educação Básica resumem bem o que são as competências socioemocionais e de que modo elas atravessam a BNCC como um todo: “conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas”; “Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (BRASIL, 2018, p. 10).

Um outro ponto nevrálgico da BNCC que tem recebido inúmeras críticas diz respeito ao esvaziamento formativo provocado durante o Ensino Médio pela eliminação de quase todas as disciplinas do currículo, à exceção de português e matemática. Em outras palavras, como se sabe, para além da lógica das competências e habilidades que compõem as quatro áreas do conhecimento - Linguagens e suas tecnologias, Matemáticas e suas tecnologias, Ciências da natureza e suas tecnologias e Ciências humanas e sociais aplicadas -, a BNCC mantém apenas português e matemática como disciplinas obrigatórias, reduzindo as disciplinas anteriores como história, geografia, sociologia, filosofia, educação física, artes etc. a meros temas transversais que aparecem diluídos aqui e ali sob a forma de habilidades. Conforme destaca mais uma vez a nota publicada pela ANPEd (2018),

reconhecer apenas a matemática e a língua portuguesa como disciplinas curriculares e transformar as demais disciplinas do atual currículo em componentes e temas transversais, traz certamente um enorme prejuízo do ponto de vista da formação humana e técnico-científica para os estudantes.

Ora, essa redução curricular assume um caráter explicitamente tecnicista que contrasta uma vez mais com os pressupostos de formação integral destacados pelo próprio documento, que, aliás, parece confundir - embora afirme que não o faça - o que significa formação integral - que sob conceituação alguma poderia prescindir da arte, literatura, filosofia, sociologia, educação física etc. para a sua promoção - com formação em tempointegral, que se refere especificamente ao número de horas que a pessoa permanece na escola para a formação. Seja como for, fica difícil conceber, por um lado, como um processo educativo centrado em uma perspectiva claramente cognitivista e em apenas duas disciplinas, português e matemática, poderia promover qualquer ideia de educação integral. Por outro lado, o motivo da centralidade de português e matemática parece bastante claro: sob o pressuposto conveniente de um conceito de interdisciplinaridade capaz de acolher em si todas as disciplinas, busca-se por meio da BNCC maior sintonia com os exames conduzidos pelo Pisa e pela OCDE. Nas palavras de Maria Helena Guimarães de Castro, secretária executiva do MEC, “a interdisciplinaridade é tendência no mundo todo. No exame (internacional) do Pisa não se vê, em ciências, o que é biologia, química ou física, tudo está ligado” (apud CAFARDO, 2018). Nessa lógica, tudo está ligado, menos, a princípio, matemática e português.

Por fim, em determinada etapa do Ensino Médio, o afunilamento curricular se acentua ainda mais e os alunos devem escolher perseguir apenas uma entre as quatro áreas do conhecimento - Linguagens e suas tecnologias, Matemáticas e suas tecnologias, Ciências da natureza e suas tecnologias e Ciências humanas e sociais aplicadas -, acrescidas de uma quinta opção, Formação técnica e profissional. A tese sustentada pelo documento é a de que o aluno deve ser protagonista de sua própria formação, podendo escolher o aprofundamento formativo segundo seus interesses pessoais e a partir do que viu em seu processo escolar: “essa nova estrutura valoriza o protagonismo juvenil, uma vez que prevê a oferta de variados itinerários formativos para atender à multiplicidade de interesses dos estudantes” (BRASIL, 2018, p. 467). Sabe-se, no entanto, que esse protagonismo juvenil, divulgado pelo governo inclusive em propagandas televisivas, tem seus limites. Como os itinerários formativos serão organizados segundo “a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”(BRASIL, 2018, p. 467), e tendo em vista que o Brasil aprovou recentemente a Emenda Constitucional 95, que limita por 20 anos os gastos públicos, tudo indica que os sistemas de ensino e as unidades escolares não conseguirão ofertar todos os cinco itinerários formativos na maioria dos casos, o que deixará o aluno à mercê das reais possibilidades das escolas mais próximas de sua casa. Para ser bastante claro, os contextos escolares mais precarizados, sem um amplo investimento financeiro em contratações e infraestrutura, estão fadados a replicar essa precariedade sob a forma de um ou outro itinerário formativo capaz de ser viabilizado na estrutura já existente. Eduardo F. Mortimer (2018), professor da Faculdade de Educação da UFMG e conselheiro da SBPC, resume a questão da seguinte maneira:

O que salta aos olhos na lei do Ensino Médio é a não obrigatoriedade de as escolas ofertarem todos os cinco itinerários formativos. (...) O grande problema da falta de professores no ensino médio, que toca todas as regiões do país, principalmente nas áreas de física e química, evapora-se como num passe de mágica. As escolas, não sendo obrigadas a oferecer todos os itinerários, poderão simplesmente optar por não oferecer, por exemplo, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, pois isso baixa o custo do ensino e resolve o problema da falta de professores nessa área. Com certeza as escolas particulares para classe média e alta irão ofertar todos itinerários. Porém, para a escola pública, ofertar certos itinerários significa ter professores da área. Isso vai aumentar ainda mais o fosso que separa as escolas particulares da elite das escolas públicas destinadas a população de baixa renda, ao não permitir que estudantes pobres cursem certas áreas - principalmente a de ciências naturais, nas quais há deficiência de professores. A medida condena essa população, que chega com muito esforço e dificuldade ao ensino médio, a cursar apenas os itinerários ofertados por escolas da sua região.

Assim, por trás do discurso neoliberal de escolha individual, liberdade, flexibilidade, criatividade, heterogeneidade e pluralidade - palavras que afloram a todo o momento no texto da BNCC -, surge a preocupação em torno de um alinhamento com as políticas internacionais de avaliação do desempenho estudantil, pautadas via de regra nas disciplinas de português e matemática, e a possibilidade de uma reestruturação da escola que não demande investimento financeiro público. Como dito acima, o risco que se corre é alargar ainda mais o fosso entre a formação oferecida pelos estabelecimentos escolares capazes de dar conta dos cinco itinerários - provavelmente escolas particulares - e as unidades que, sem investimento público, permanecerão precariamente inseridas na reforma do ensino médio, tendo de se ajustar ao imediatamente possível. Garantir o direito da juventude e até mesmo suas escolhas, significaria, nesse caso, assegurar uma escola pública de qualidade que vise a diminuir as desigualdades sociais que são, como sabemos, também resultado de um processo de escolarização profundamente desigual. Sobre isso, em particular, a BNCC tem pouco a dizer.

Considerações finais

No último processo avaliativo do PISA em 2015 o Brasil obteve um resultado aquém do esperado, considerando o avanço em termos de políticas públicas para os países vinculados a OCDE. Entre os 72 países que aplicaram a avaliação, o país obteve a 63ª posição em ciências, 59ª em leitura e 66ª colocação em matemática. Porém, ao estratificarmos os dados obtidos pelo país por suas dependências administrativas (municipal, estadual, privada e federal), o desempenho dos jovens vinculados à rede federal supera e muito a média nacional, pois conforme o Instituto Federal de Brasília (IFB), se esse extrato fosse considerado isoladamente como um país, ele estaria na 11ª posição, à frente de países como Coréia do Sul, Estados Unidos e Alemanha (IFB, 2016). No item Leitura, os jovens da rede federal ficaram em 2º lugar ficando atrás somente de Singapura. Esses dados, imprescindíveis enquanto um critério de mensuração da qualidade da educação do país, não foram considerados em nenhum momento como um dado basilar para a proposta de formulação da BNCC ou para a reforma do Ensino Médio (Lei 13.415 de 2017). Contrariamente, essas políticas públicas se constituíram tendo por base o debate estabelecido por organizações sociais como o Instituto Ayrton Senna, Movimento pela Base Nacional Comum, Movimento Todos pela Educação, Fundação Lehmann e Itaú Social, sendo que todas estão pautadas pelas orientações educacionais ditadas pela OCDE.

Desde 2014, acompanhamos o estreitamento da relação entre Ministério da Educação (MEC), Instituto Ayrton Senna (IAS) e Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) exposto centralmente a partir do Fórum Internacional ocorrido em Brasília e promovido pelo MEC e IAS. Neste evento, discutiu-se em grande medida as competências e habilidades necessárias para enfrentar os desafios do século XXI, e dentre estas, as competências socioemocionais foram elencadas como centrais nesse processo. Dito isso, reiteramos as diversas formas de articulação, em nível global e nacional, de agentes privados a partir das políticas educacionais brasileiras, sendo que estas articulações, por sua vez, têm sérias consequências para o desenvolvimento do sistema nacional de Educação, principalmente em termos de acirrar processos de marginalização e precarização das condições sociais.

A constituição de uma elite intelectual (thinktanks) financiada por organizações sociais e organismos multilaterais privados influencia e reorienta diretamente a constituição de políticas públicas nos países em desenvolvimento baseadas em experiências supostamente positivas (benchmarking) no âmbito educacional provenientes de países desenvolvidos, como no caso dos EUA, Finlândia e Cingapura. O referencial que sustenta estas iniciativas, só leva em consideração o aspecto econômico relacionado à educação, em termos de privilegiar o investimento financeiro e dar mais eficiência e celeridade aos processos de escolarização, nesse caso em específico no Brasil, a reconfiguração curricular por meio da BNCC. Segundo dados do próprio Instituto Ayrton Senna: “A transferência de conhecimentos do campo da gestão para o setor público foi um dos grandes diferenciais das nossas soluções, promovendo eficiência, eficácia e efetividade em prol de uma educação de qualidade” (IAS, 2016).

O tratamento empresarial recebido pela educação brasileira por meio das políticas públicas supracitadas e de seus vínculos com agentes como OCDE e IAS produz como resultadodiferentes formas de marginalização e exclusão. No caso específico da BNCC, por exemplo, para além de mencionar apenas uma única vez, ao longo de todo o documento, a Lei n. 10.639/03 - cujo Art. 26-A define que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” -, não há qualquer discussão, entre outros, sobre Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola e Educação a Distância. Com efeito, a única coisa dita é que as diferentes modalidades de ensino citadas terão de se adequar às mudanças ali propostas, como se não houvesse nelas qualquer singularidade e como se não demandassem um debate teórico e político aprofundado acerca de seu lugar decisivo no contexto educacional brasileiro. Essas omissões não nos deixam dúvidas: elas correspondem, na verdade, a uma forma de marginalização e invisibilização num país que, conforme indica a nota da ANPEd (2018), “arrasta atrás de si um longo e profundo histórico de desigualdades educacionais não resolvidas”.

Vale notar que todo o esforço noticiado pelas organizações sociais nacionais e pela OCDE junto à educação pública do país dá-se sem qualquer relação com pesquisadores da área ou com os órgãos oficiais nacionais de pesquisa em educação como, por exemplo, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Todo o conjunto de estudos historicamente sistematizados e de pesquisas em âmbito nacional e regional sobre o desenvolvimento da educação brasileira é desconsiderado para a formulação de políticas educacionais como as da Base Nacional Comum Curricular e da reforma do Ensino Médio. Mesmo com a manifestação aberta de entidades que defendem a educação pública, gratuita e socialmente referenciada em diversas instâncias governamentais, o lobby privado realizado diretamente junto ao governo federal é amplamente mais eficiente e poderoso quando observamos na formação do Conselho Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) em 2016, vários representantes das organizações sociais privadas anteriormente citadas.

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Recebido: 16 de Novembro de 2018; Aceito: 22 de Fevereiro de 2019; Publicado: 14 de Maio de 2020

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