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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 17-Ago-2023

https://doi.org/10.5902/1984644436963 

Artigo Demanda Contínua

Obra-Aula: processos, procedimentos e criação de uma artistagem docente

Class-Artwork: processes, procedures and creation of a teaching acting

Thiago Heinemann Rodeghiero1 
http://orcid.org/0000-0001-9706-7903

Carla Gonçalves Rodrigues2 
http://orcid.org/0000-0001-8642-8005

1Editor de imagens da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: thiagoalfa@gmail.com.

2Professora doutora na Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: cgrm@ufpel.edu.br


RESUMO

Este artigo versa sobre a contribuição que a arte contemporânea pode dar à prática docente. Objetiva-se evidenciar a possibilidade de uma Obra-Aula através da produção artística do pesquisador e como esta se relaciona com a artistagem (CORAZZA, 2013) e com uma estética sensível (LOPONTE, 2017). Ao perceber os vazamentos que a arte contemporânea ocasiona à educação, mostram-se os encontros e experimentações com os fazeres dessas duas áreas. Delineia-se aqui um plano de consistência nas fronteiras borradas da filosofia, da arte e da educação. Nas Filosofias da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010, 2011a, 2011b, 2015), encontra-se potência para manifestar as transformações dos significados hegemônicos incrustados nos significantes e nos signos. Partindo desse desenho, monta-se um agenciamento, responsável por evidenciar os picos de fuga das relações estabelecidas. Procuram-se referências de arte no fazer junto de Kaprow (2003, 2004, 2010), nas sensações de Malevich (GIL, 2010) e na zona invisível de Duchamp (PAZ, 2014), orientação para a prática artística do pesquisador na qual a representação de uma intenção em obra é rompida. O artigo se desenha em um método que se monta fazendo. Um passarinhar à moda de uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) que voa por um território encontrando suas forças. Pousando sobre os artistas referência e bicando frutos poéticos, ele canta uma Obra-Aula, que faz melodia com uma artistagem docente. Uma maneira de justapor elementos variados para pensar o impensado, bem como flautear o inflauteável.

Palavras-chave: Educação; Filosofias da Diferença; Arte Contemporânea

ABSTRACT

This article deals with the contribution that contemporary art can make to teaching pratice. The objective is to highlight the possibility of a Class-Artwork through the artistic production of the researcher and how this relates to the acting (CORAZZA, 2013) and with an sensive aesthetics (LOPONTE, 2017). In perceiving the leaks that contemporary art brings to education, the encounters and experiments with the doings of these two areas are shown. A plan of consistency is drawn on the blurred frontiers of philosophy, art, and education. In the Philosophies of Difference of Gilles Deleuze and Félix Guattari (2010, 2011a, 2011b, 2015), there is power to manifest the transformations of hegemonic meanings embedded in signifiers and signified. Starting from this design, an agency is set up, being responsible for evidencing the escape peaks of established relations. It is sought art references in to do together of Allan Kaprow (2003, 2004, 2010), in the sensations of Kazimir Malevich (GIL, 2010) and in the invisible zone of Marcel Duchamp (PAZ, 2014), orientation for the researcher artistic practice in which the representation of an intention in work is broken. The article is drawn into a method that is assembled by doing. A birding cartography mode (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) that flies through a territory meeting birding forces to pass. Landing on the reference artists and pecking poetic fruits, he sings a Class-Artwork, that makes melody with an acting and by sensive aesthetics training. A way of juxtaposing varied elements to think the unthought, as well as flute the influtable.

Keywords: Education; Philosophies of Difference; Contemporary art

Introdução

Este artigo versa sobre a contribuição que a arte contemporânea pode dar à prática docente. Objetiva-se evidenciar a possibilidade de uma Obra-Aula através da produção artística do pesquisador e como esta se relaciona com a artistagem (CORAZZA, 2013) e formação sensível (LOPONTE, 2017) docente. Ao perceber os vazamentos que a arte contemporânea ocasiona à educação, mostram-se os encontros e experimentações com os fazeres dessas duas áreas.

Delineia-se aqui um plano de consistência nas fronteiras borradas da filosofia, da arte e da educação. Nas Filosofias da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010, 2011a, 2011b, 2015), encontra-se potência para manifestar as transformações dos significados hegemônicos incrustados nos significantes e nos signos. Partindo desse desenho, monta-se um agenciamento, responsável por evidenciar os picos de fuga das relações estabelecidas.

Ao fazer variar o pensamento comum da comunicação de informações em contextos expressáveis, desvia-se dos elementos combinados e de um código entendível entre destinador e destinatário (DELEUZE; GUATTARI, 2011b). Encontrando os vetores que tensionam os movimentos de desterritorialização e reterritorialização (Idem, 2011a), a arte põe a educação a problematizar seus modelos hegemônicos (CORAZZA, 2013), valorizando o sensível (LOPONTE, 2017).

Procuram-se referências de arte no fazer junto de Kaprow (2003, 2004, 2010), nas sensações de Malevich (GIL, 2010) e na zona invisível de Duchamp (PAZ, 2014), orientação para a prática artística do pesquisador na qual a representação de uma intenção em obra é rompida. Buscam-se formas de fazer pensar com o público, experimentando-as ao invés de interpretá-las.

A prática artística desenvolvida pelo pesquisador, a Poética do Banal, em específico o vídeo Meu Pequeno Território da série de obras intitulada de Pequeno Território, encontra força em matérias-pensamentos que questionam os sentidos únicos que impossibilitam a variação ao apenas reproduzir algo já dado. Os objetos-lugares são considerados como resíduos da sociedade, e são mote para pensar uma obsolescência que oferece tensão ao fazer artístico. Os seus processos, procedimentos e criações usam, como agregado sensível (MACHADO, 2009), o próprio cotidiano em situações ainda impensadas: o que está visível e dizível (DELEUZE, 2016).

Colocando em heterogenia com uma educação que transcria, sem modelos e programação, ensaiada como num simulacro de um teatro de artistagens de Corazza (2013), a poética do pesquisador mostra exequíveis modos de um fazer docente como arte. Desta forma, os procedimentos possibilitam criar variações dos processos hegemônicos nas didáticas já sedimentadas, dando um fôlego com “novas e fortes lufadas de enunciação, que nos leva a pensar e a viver a Educação do mesmo modo que um artista pensa e vive a sua arte” (CORAZZA, 2013, p. 19).

O artigo se desenha em um método que se monta fazendo. Um passarinhar à moda de uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) que voa por um território encontrando forças. Pousando sobre os artistas referência e bicando frutos poéticos, ele canta uma Obra-Aula que faz melodia com a artistagem docente (CORAZZA, 2013), explorando a sensibilidade além do gosto (LOPONTE, 2017). Uma maneira de justapor elementos variados, “não pode[ndo] ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p. 29) para pensar o impensado ao “absorve[r] matérias de qualquer precedência” (ROLNIK, 2016, p. 65).

Nessa perspectiva, compõe-se uma Obra-Aula resultante dos cortes que atravessam as práticas dos processos poéticos e educacionais, ambas vistas na perspectiva de um pensamento encarnado em ação. Ao retirar das matérias-pensamento os procedimentos, o artista e o professor criaram suas práticas, dotando-se de potências. Neste espaço de experimentação, vislumbram-se ressonâncias e frequências dos acontecimentos cotidianos comuns, ganhando outras formas e usos.

Processo, procedimento e criação

Os processos pelos quais o artista e o professor são atravessados mostram as possiblidades de pôr em variação suas práticas, criando obras e aulas. Neles é possível perceber como diferentes elementos, em composição, entram em relação. Atravessados com energia, possibilitam vazar estruturas e, engendrando procedimentos, transformam as forças que ligam matérias, pensamentos e ações heterogêneas que os compõem.

Para o artista, o processo é o plano onde a composição ganha força de produção. É um conjunto justaposto de matérias, pensamentos, ações e modos de fazer que, envolvidos em procedimentos, engendram criações. Não existe um modelo único de como fazer arte, pois cada artista cria uma forma de compor suas ações. Pistas de como se dá esta movimentação surgem, e por elas o artista opera, sendo possível persegui-las e auferi-las. Nas referências poéticas que este artigo traz, evidenciam-se os seus percursos, dizendo como procederam e orientaram suas obras.

Ao despertar interesses comuns e situações não artísticas, Kaprow (2003; 2004; 2010) encontra modos de criar. Seu processo é um convite público de pensar e fazer, junto a procedimentos, uma arte contemporânea. Seus happenings e atividades dispensam a necessidade de uma técnica aprimorada, pois investem em ações que coletivamente formam uma arte em meio à vida. Ao invés de colocar o espectador passivo diante delas, ele o transforma em artista.

Deste modo, Kaprow engendra forças que ligam matérias artísticas, investindo em um pensamento coletivo possibilitado pelas diferentes formas que sua arte compõe. Seu processo envolve integrar o público em rotinas comuns que oferecem práticas artísticas a todos, tornando-o parte do ato e criador da obra. Ao desempenhá-las junto, dispensa o sentido único e o resultado pronto em prol de uma heterogenia.

Para apresentar estas obras que se fazem junto, o artista compartilha seus procedimentos com um público que é parte da criação. Uma lista do que precisa ser feito é entregue aos participantes dos happenings (acontecimentos mediados pelo artista, montando uma obra junto com o espectador). As atividades estão numa espécie de manual de regras (KAPROW, 2010) que diz ao espectador o que fazer ao invés de como fazer.

Ao criar os happenings, Kaprow oferece seus processos e procedimentos em obra, em uma arte que mostra sua criação em seus meios. Um investimento nas atividades não artísticas que servem de força e interesse ao fazer de artista (KAPROW, 2003), dispensando técnicas de um formalismo acadêmico que saturam as galerias e museus (Idem). É um trabalho aberto, em que é possível interagir com a sua construção.

Figura 1 : Obra Fluids, 1967 de Kaprow. Fonte: http://www.tate.uk. 

O artista quer uma arte em meio à vida, um jogo, uma brincadeira que, ao invés de competir, vê potência na diversão dos participantes envolvidos. Exemplo é a obra Fluids, de 1967, em que uma casa de cubos de gelo é montada. Os participantes recebiam a planta da casa e os cubos de gelo, ficando livres para proceder a sua montagem. O modo de como fazer a atividade é livre, pois, ao invés de ordens, são fornecidas orientações ao público, cabendo a ele decidir a forma de execução. Logo, o procedimento é a própria criação da obra, dando sentido à ação.

Deixando a sensação ser a obra, Malevich, ao invés de referir-se a algo já dado (uma representação mimética da natureza), coloca na tela um abismo que suga os significados postos, permitindo que o público experiencie a arte em potências singulares. O pintor desmonta a reprodução como peça central, extirpando os sentidos únicos, possibilitando o porvir. O público busca, em si, maneiras de acionar novas formas de perceber as sutilezas das pictoriedades suprematistas.

Suas obras evidenciam um processo que deposita na falta a sua grandeza, um esvaziamento de significados. Malevich diz: “atingi o zero das formas e fui até ao abismo branco” (apud GIL, 2010, p. 13). Logo, ao pintar um quadrado negro em um fundo branco, esvai as formas representativas miméticas da natureza que anteriormente ocupavam seu fazer, entregando ao público uma leitura que ainda carece de sentido.

Ao tornar insuportável sobrepor imagens representativas (GIL, 2010), o pintor coloca em xeque a produção da sua arte. Este processo levou Malevich a criar o suprematismo, que, segundo o próprio artista, é um “novo realismo colorido enquanto criação não-figurativa” (apud GIL, 2010, p. 12). Assim, ele remonta a dúvida levantada pela arte em sua época: até que ponto é compromisso do artista a intenção da obra? Ao desapegar dos seus temas rotineiros, entre elas a representação mimética da natureza e a sobreposição de imagens, possibilita inovar dentro de sua própria produção, dispensando os modelos adotados por ele mesmo.

Figura 2: Obras Quadrado Negro sobre Fundo Branco, 1915; Quadrado Negro e Quadrado Vermelho, 1915; O Vôo do Avião, 1915. Fonte: GIL, 2010

O procedimento torna-se peça central das obras do artista, pois constrói aos poucos uma linguagem, um alfabeto de não formas que diz sobre sensações (GIL, 2010). Cada nova forma vai assumindo uma pequena variação, dando contorno a novas maneiras de ler e criar sentidos. Ao dispensar a representação, estes fragmentos não compunham algo pronto e, sim, possibilidades para o público poder experienciar a sua arte.

Figuras são adicionadas e, conforme Malevich cria novas obras, varia discretamente (porém continuamente), mostrando a grande multiplicidade que pode ser assumida por sutis modificações. Ao acrescentar formas conforme avança com seu suprematismo, o procedimento que Malevich adota coloca força nas formas que não formam nem representam: dão um fôlego à criação por dispensar modelos prontos, miméticos e programados. Um abismo que sugou os sentidos já dados, dando lugar a novas sensações.

Ao deixar que o público entenda à sua maneira as obras, abre espaço às singularidades que permitem experienciar ao invés de interpretar. Assim a “sensação é uma força” (GIL, 2010, p. 23) que se edifica como significado e, ao invés de dizer sobre o que significa, diz sobre as possibilidades liberadas: um porvir de sentidos. Deste modo, a arte passa a ser um meio ao invés de um fim. Um objeto não quer apenas ser apreciado por sua técnica ou modelo de se fazer, mas, sim, possibilitar experimentações e dispensar sentidos únicos. Logo, para que sensações surjam nas pinturas suprematistas, as relações entre as não formas liberam o público de sentidos únicos e programados, dispensando formas de representação mimética (GIL, 2010).

Um processo como forma de arte é o que Duchamp fez ao criar seus ready mades, “objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte” (PAZ, 2014, p. 22). Um exemplo é A Fonte de 1917, um urinol assinado com o pseudônimo de R. Mutt, que o artista envia a uma exposição aberta (não somente a artistas, mas a qualquer um que se inscrevesse sem um critério prévio de seleção) e negado pela curadoria, que o julgou ofensivo e vazio. Ao saturar a necessidade de evoluir sua técnica de pintura, o artista cessa com o tecnicismo em prol de uma arte que põe o pensamento a criar novos sentidos.

Figura 3: Obra: A Fonte, 1917 de Duchamp Fonte:PAZ, 2014. 

Um objeto comum ganha um status artístico. Este processo requer um procedimento de escolha, envolvendo colocar determinados artefatos industriais em exposição. Duchamp não propõe uma peça qualquer e, sim, as que questionam o bom gosto (PAZ, 2014). Desprendidas de qualquer causa puramente representativa, revelam “que o seu interesse não é plástico, mas crítico ou filosófico” (Idem, p. 23).

Ao convidar o gesto do artista como seu procedimento, movimenta o que estava já sacralizado em sua estrutura, convoca seu fazer como uma forma de arte. O ato de escolher transforma os objetos em ready mades, dissolvendo “a noção de obra [...] [pois] a contradição é a essência do ato [...] porque não são obras, mas signos de interrogação ou de negação diante das obras” (PAZ, 2010, p. 22-23). Engendrado no próprio procedimento de criação, é a forma que Duchamp pensava e produzia.

Ao criar modos de fazer que dispensam técnicas formalistas (Idem), coloca a escolha dos objetos como tática artística. A criação então é um esforço de pensar um sentido em que público e artista constroem juntos um porvir arteiro além do já dado e representativo.

O Pequeno Território da Poética do Banal

Para a criação da série Pequeno Território, o artista investiu num recorte: um olhar a sua volta, aquilo que, em um primeiro momento, lhe surgia e lhe parecia estagnado. Foi feito um inventário-catálogo de objetos-lugares de sua casa-atelier. Posteriormente, captaram-se imagens em vídeo daquilo que se lançava rapidamente e facilmente aos olhos. Esta é uma etapa de registro de um território já conhecido, do que pode se ver sem esforço.

Os modos pelos quais são feitos os encontros entre matérias pensamento que desaguam na criação são vistos na produção artística do pesquisador. Na Poética do Banal, é possível “se entender sem precisar explicar. Não é a partir de ideias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum” (DELEUZE; PARNET, 1988, p. 33), esforçando-se para ver.

O banal é essa pré-linguagem, que o torna possível de ser visto e dito pela arte. Escondido, mas nunca oculto, carrega em si significados estagnados e inertes. Um comum que dificilmente é reconhecido por estar preso num decalque e referir-se sempre ao mesmo significado (DELEUZE; GUATTARI, 2011a). Ao dificilmente variar, impossibilita que seja evidenciado como novidade. Ele necessita perder sua invisibilidade, colocando-se em movimento ao questionar-se a si mesmo.

Uma poética pensada em torno das séries de um Pequeno Território, que arduamente revela um mundo obsoleto e abandonado. Assim, encontra potências para surgir em espaços possíveis, num meio que persiste em existir. Uma série de fotografias, vídeos e anotações compõem a Poética do Banal, deixando subir à superfície a pungência que cerca e alicerça os fazeres artísticos. Localiza, em seu processo, um mundo que está à disposição e coloca em vizinhança forças passarinheiras num espaço a ser descoberto através de procedimentos. Ao buscar as matérias pensamento contempla as sutilezas de um tempo/objeto/território, percebendo o que habita: um exercício diário de [re]existência “para a desorientação e a reorientação dos afetos” (ROLNIK, 2016, p. 68).

Figura 4: Fragmentos do vídeo Meu Pequeno Território da Série Pequeno Território, 2016;Link do Youtube: goo.gl/Rwm9vG. Fonte: Arquivo Pessoal (2016) 

Ao construir um espaço que comporta dois universos, o dado e o que ainda vai se dar, transita-se num experienciar. Durante o processo em que o pesquisador imergiu, foi possível perceber o que tinha força passarinheira e se escondia em formas que careciam de trabalho. No vídeo Meu Pequeno Território, o artista necessitou repetir um olhar para si diversas vezes para perceber pistas do que poderia deixar subir à superfície. Uma cor, um som, um pensamento, rastros que iam se formando conforme a obra se montava.

O banal estava escondido e, ao localizá-lo, inventam-se procedimentos “em função daquilo que pede o contexto em que se encontra” (ROLNIK, 2016, p. 66) e que compunham o processo, ganha novas formas perdendo sua banalidade. As cenas do vídeo montam um território a ser perseguido: perguntas que põem o artista a variar os caminhos. Exemplo é a cena do gato que atravessa a rua. Ao posicionar a câmera em sua janela, o felino surge e logo tenta sumir do campo do vídeo, sendo necessário procurá-lo.

O processo desta série de obras lança um pensar sobre as circunstâncias do fazer artístico do pesquisador. Colocando-se a simular o que o rodeia, possibilitou construir um espaço a ser habitado com novas intensidades. Abandonando usos organizados que lhe pertenciam, insere rumores (sentidos provisórios que desconstroem os significados postos) a ocupá-lo. Um lugar que pode se dotar de variações pelo abandono dos sentidos únicos.

A sua composição dá lugar à ação do artista, oferecendo um mundo possível de invenção através de forças passarinheiras que se ensaiam nas matérias pensamento. O processo então começa a construir possibilidades, pondo o próprio fazer a enunciar-se. Investindo na presença de uma estrutura, encontra maneiras de mostrar os seus porões (DELEUZE; GUATTARI, 2015).

Os procedimentos adotados neste processo de criação da série de obras do Pequeno Território colocam o artista-pesquisador a pensar o impensado. As práticas são feitas em etapas, “um breve roteiro de preocupações” (ROLNIK, 2016, p. 67), podendo mudar ou alterar sua orientação conforme os encontros que surgem. As formas pelas quais estas táticas são propostas colocam as ações a movimentar as sedimentações dos territórios que lhe habitam.

Utiliza-se de vários recursos expressivos (fotografias, vídeos e textos) para montar a série e, conforme se percebe o banal que habita, matérias pensamento são criadas e encontradas. Isto se evidencia em Meu Pequeno Território, um vídeo que segue anotações para compor suas cenas. Os procedimentos são fundamentais para expressá-las, pois são eles que no porvir propiciam encontros. São como rotas orientadas, táticas que o artista coloca a si como modo de pôr em variação as estruturas sedimentadas deste território.

Nestes modos de se fazer, são encontradas pistas e construídas perguntas que colocam a obra em construção constante. Em Meu Pequeno Território, elas foram descobertas durante a primeira etapa do procedimento, surgindo pela necessidade de desvendar o que ainda não se mostrava facilmente. Por que preciso desses objetos para poder dizer sobre o lugar que habito?

Uma primeira etapa do procedimento é feita: um recorte por objetos e lugares que cerceiam o artista. O caminho é incerto, pois desconfia de um percurso já dado e organizado, surgindo como um rumor a ser perseguido, ganhando forma pelas paixões e ações que o conduzem. Colocando-se em variação, as múltiplas saídas (ROLNIK, 2016) permitem percorrer o mesmo território de diversas maneiras.

Responsável por mostrar as formas de expressão e conteúdo, este primeiro momento do procedimento começa a supor um agenciamento (DELEUZE; GUATTARI, 2011b). Responsável por apontar as relações entre conteúdo e expressão, este aponta a desterritorialização que o arrebata, mas também seus “lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam” (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p. 31), podendo pensar sobre o conteúdo e expressão que o constituem.

Nesta primeira etapa, fez-se um inventário-catálogo de objetos e lugares que cerceiam o artista: a forma do conteúdo. Um olhar atento, que mostra tudo aquilo que rodeia e dá força a sua arte. Um procedimento que investe em mapear o que já está dado e é possível ser dito. Após este levantamento, a câmera é posicionada de forma a captar em vídeo o anteriormente listado. Uma maneira de dizer sobre aquilo que o rodeia: a forma de expressão.

O vídeo Meu Pequeno Território começa a ser descrito e dito, mostrando seus picos de desterritorialização. Quando o artista move a câmera pelo espaço, procura o que foi listado no inventário-catálogo dos objetos. O movimento que o artista faz ao buscar os seus interesses desdobra-se agora em um deslocar pelo espaço a fim de procurá-los. Um procedimento que leva a outro.

Uma segunda etapa surge, um investimento no deslocamento: andar-perambular entre esses objetos, reterritorializando em novos contornos. Algumas sutilezas são mostradas, principalmente no que o corpo do artista percebeu. Por que ele sempre anda de cabeça baixa? Por que olha seus pés ao invés do que está a sua frente? Por essas percepções corporais, adota-se uma tática de um posicionamento. Enquadrando os espaços percorridos, uma câmera olha para baixo e observa o comportamento do artista.

Apontada aos seus pés, a câmera revela as flores esmagadas no chão: o som dos passarinhos agora pede passagem. Ao perseguir o andar, outra cena se forma: algo quer fugir do território e voltar com novos contornos. Perguntas surgem durante os percursos por entre o espaço, impulsionando outras cercanias e relações futuras. Por que as flores esmagadas no chão ainda não tinham sido vistas? Por que o artista fuma em uma janela? Qual a necessidade de inseri-lo no vídeo? Ao perceber as desterritorializações em curso, é possível adotar variações no procedimento e perseguir novas rotas orientadas.

Neste momento, uma desterritorialização absoluta, mas negativa, mostra-se (DELEUZE; GUATTARI, 2011b), por ainda se referir aos estratos. Surgem dúvidas, questionamentos que tiram a significância como ponto mais alto abrindo uma porta para variação, para pôr o que está sedimentado em movimento. Um procedimento complementa o outro, é necessário apontar e mostrar o que está dado para começar a desconfiar de sua hegemonia.

Uma terceira etapa: ver o que se captou-desenhou e se questionou. Neste momento, percebe-se o que escapa durante a ação de catalogar e de perguntar. Precisa-se voltar ao mesmo território e se deixar impregnar pela máquina abstrata que vai ser construída, tudo aquilo que foge das significâncias e significados postos (DELEUZE; GUATTARI, 2011b). Assim, permite-se capturar os fragmentos soltos e sem encaixe definido que podem ganhar outros contornos.

Figura 5: Desenho dos rastros da Série Pequeno Território, 2016. Fonte: Arquivo Pessoal (2016). 

Logo, é possível perceber as novas relações que se formam e pensamentos que surgem pelo esforço de ver o já sedimentado. Ao permitir-se olhar o que está vazando da estrutura, retorna-se ao que é fundamental para desenhar um território. Os procedimentos vão criando a obra enquanto ela se pensa. Uma etapa não sobrepõe a outra, elas se justapõem para criar uma obra que pensa a si mesma.

Um agenciamento se constrói entre esses três procedimentos. Em sua natureza, segundo Deleuze e Guattari (2011b), ele é constituído de dois eixos, num primeiro, horizontal, “comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão” (Idem, p. 31). No conteúdo está o banal inventariado-catalogado, os objetos-lugares na casa-atelier, misturando-se e “reagindo uns sobre os outros” (Idem, p. 31), e na expressão as matérias pensamento que podem ser enunciadas: aquilo que foi possível se atribuir. No outro eixo, vertical, em uma parte se encontra o território já estabilizado, aquilo que já está significado, e em seu pico está a desterritorialização que é feita a partir deste agenciamento.

O Pequeno Território do artista passa a ser combinado, mas ainda é possível distinguir o que é o seu corpo e o que são os enunciados atribuídos a ele, movimentos de desterritorialização ainda relativos que se remetem aos estratos. Mesmo que o objeto-lugar funcione por si, também carece de uma matéria pensamento suficientemente forte que seja independente de sua referencialidade.

O banal começa a ganhar sua forma, mas a insistência de permanecer no território faz com que ainda se localize num local já dado entre estruturas que começam a se mostrar. A quarta etapa: olha-se o que foi desenhado-captado. Por que no chão havia flores? Por que o Beija-Flor vai até elas? Perguntas que começam a mostrar relações por vir, potências que começam a ganhar velocidade. O som surge, uma sinfonia cacofônica havia passado despercebida. O canto dos pássaros e o sino dos ventos estavam perdidos e sem despertar interesse durante a primeira experimentação.

Após novos traços e rotas no inventário-catálogo, adota-se uma segunda postura de captação e registro: novas imagens precisam ser feitas com um outro olhar. Ao assistir àquilo que escapou, surgem rastros de uma banalidade que precisou de esforço para ser vista. Assim, outras formas de dizer sobre aquilo que ao evadir-se se mostra forte e pode dizer sobre aquilo que ainda estava por vir.

Neste encontro possibilitado por esta “linha de força, silenciosa e imperceptível” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 276), se criam obras que se deixam guiar pelas intensidades e ressonâncias passarinhadoras encontradas pelo artista. Através dos procedimentos foi possível perceber como foi construído o processo, e de como as fotos, vídeos e textos que compunham a série foram criadas.

Ao produzir as obras, o artista-pesquisador seleciona um momento do seu pensamento, uma criação que transforma o seu território em pequenas variações. No vídeo Meu Pequeno Território, que compõe a série Pequeno Território, é possível perceber o recorte de um todo, uma parte que costura com os outros elementos da série. Nem tudo está dado, necessita que o espectador arranque as sensações para dar o seu sentido à arte.

Obra-Aula

Ao deixar-se capturar pelos signos emitidos das obras de Kaprow, Malevich e Duchamp para compor as referências da série Pequeno Território da prática Poética do Banal, acontece um pensamento sobre as ações ao invés de uma técnica elaborada. As formas pelas quais se processou e procedeu colocaram a variar possibilidades de convocar um público que, entre as lacunas disponíveis, cria novos sentidos. Deste modo, uma Obra-Aula começa a se desenhar pelos encontros com a produção do pesquisador e a ideia de artistagem docente de Corazza (2013), potencializando a formação de um docente sensível de Loponte (2017).

Ao inserir o seu fazer como forma de arte, o pesquisador se relaciona com o processo de Kaprow e Duchamp. Depositando no comum e no cotidiano a materialidade de suas obras, são encontradas então possibilidades de um outro mundo ainda por vir. Suprimindo o excepcional da criação, deixa-se de esperar a comida que cai do céu e consegue-se olhar à frente (DELEUZE; GUATTARI, 2015) novas maneiras de perceber a vida.

Na forma de proceder com a obra, aos poucos, o artista-pesquisador dispensa a representação de um mundo já visto e a forma já conhecida é tensionada a encontrar outros meios de se fazer dizer. Nesse aspecto, o processo de Malevich contribui no pensamento do Pequeno Território, onde, ao invés de mostrar o que rodeia o artista, opta-se por pensá-lo e evidenciar o fazer acima do seu resultado.

Os objetos e lugares são os responsáveis por colocar a Obra-Aula em movimento em suas potências e multiplicidades, permitindo que os agregados sensíveis (MACHADO, 2009) e os usos artísticos comuns sejam arrancados ao se formarem expressivamente. Tal como Duchamp, a escolha do que vai ser exposto tem a ver com um fazer pensar ao invés de tentar dar sentidos únicos e significados já postos.

Assim como Kaprow, que tinha uma lista de atividades cotidianas a serem desempenhadas, o procedimento do pesquisador também parte de um roteiro que pretende inventariar-catalogar tudo aquilo que lhe parece comum. Ao orientar-se por essas ações, novos sentidos podem ser tensionados, variando as formas de significar. Ao invés de dar ordens, é no implícito e indireto que se possibilita mudar (DELEUZE; GUATTARI, 2011b).

Estes objetos e lugares de modo algum são escolhidos por sua excepcionalidade e, por isso, aproximam dos procedimentos adotados por Duchamp na criação dos ready mades. Por se mostrarem comuns e esteticamente neutros (PAZ, 2014), seu significado parece estar sempre posto, mas, ao reinventá-los como objetos de arte, ganham novos olhares e contornos: além do que os olhos podem ver (Idem). É justamente no pensamento que se dotam de variações.

Um procedimento que precisa ser inventado em sua pragmática, e buscar na sua própria variação maneiras de dizer. Ao deixar que a falta de sentidos únicos sature, o Pequeno Território busca na escassez de formas a sua variação. Assim como Malevich, o pesquisador tinha a sensação como aliada para buscar modos de variação dentro de um conjunto limitado de peças. O significado único foi sugado para que rumores pudessem mudar o já posto.

Ao perseguir os processos, procedimentos e criação do referencial artístico e da poética do pesquisador uma pergunta surge: O que a arte contemporânea tem a ensinar às práticas docentes? Os processos, procedimentos e criação colocam a variar o que é dado como modelo. Ao estabelecer um recorte do que o rodeia, um docente pode pôr a funcionar outros modos educacionais. Mais do que pensar seus fazeres, é desenhá-las de maneira a encontrar as táticas que movem a criação.

Percebendo como a arte contemporânea engendra seus processos, o professor pode dotar-se de potências para inventar, orientado em suas práticas. Levantando os procedimentos que produzem suas aulas, podem-se estabelecer diferentes relações percorrendo caminhos por vir orientados em potências criadoras. Uma artistagem que leva em conta não somente a arte, mas os meios pelos quais ela se torna possível.

A Obra-Aula se cria ao colocar suas banalidades como formas extraordinárias. Os porões de sua estrutura agora estão expostos e discutem seus conflitos por eles mesmos (DELEUZE; GUATTARI, 2015). O artista-docente descobre um outro ambiente que estava junto a ele o tempo todo. Ao investir no fazer comum, abre-se espaço para habitar o já habitado com outras perspectivas.

Corazza (2013) propõe que o professor faça sua aula como um artista faz sua obra. Uma artistagem docente que dispensa os modelos estruturais educacionais de boa professoralidade (CORAZZA, 2013) e coloca no lugar a variação. Esta também põe a sala de aula como uma zona de experimentação e “nunca diz -‘faça como eu faço!’, mas convida: - ‘venha, faça comigo!’” (Idem, p. 32). Inexiste uma receita de como será feito, ou uma fórmula dada, a criação de uma Obra-Aula como uma artistagem cruza com o processo nas matérias pensamento do professor-artista, obtendo procedimentos que possam ser refeitos durante os atos.

Para Loponte (2017), faz-se necessário pensar uma prática docente que dispense os juízos da estética, investindo num fazer professoral além “das pretensões universais de beleza e sensibilidade” (p. 448). A autora diz que a capacidade de perceber o fazer de sala de aula como um modo de experimentar é uma forma de produzir novos sentidos de estética. Reivindicando um olhar que inclui as “pequenezas cotidianas” e as “práticas pedagógicas” (Idem, p. 448), a arte contemporânea dessacraliza o gosto e uma teoria geral da estética.

Para tanto, os processos precisam acompanhar as variações e os procedimentos dispensarem modelos prontos e instaurados. Nessa direção, a criação acontece na contramão do referir a algo já dado, investir no que ainda está por vir, dispensando formas prontas. Logo, ao construir uma Obra-Aula, o artista-professor localiza suas matérias e suas referências e as defini como suas (CORAZZA, 2013), transformando-as em pensamento. Assim, “a partir do contato com diferentes linguagens artísticas, o docente pudesse educar-se” (LOPONTE, 2017) e criar uma maneira independente do gosto e juízo estético sedimentado.

Um ato rotineiro passa a ser revelado como indispensável, uma forma de ver Pequeno Território por onde vive. Percebe-se que a Obra-Aula é uma força passarinhar ao invés de um modelo, precisando de um investimento procedimental no que está à volta para ser reinventada. Ao permanecer atento ao que o rodeia, dando novos usos ao que antes era invisível, “teria alcançado um limiar absoluto da desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p. 36) sem precisar referir-se aos modelos já dados, suportando a falta de sentido único e deixando a sensação operar as forças que a movem.

O que, então, dizer da criação? É trabalho em conjunto, em que público-aluno e artista-professor são responsáveis por agenciar as formas de conteúdo e expressão (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) do objeto arte-educação: uma Obra-Aula pensamento. Duchamp nos diz que as formas pelas quais vemos o mundo nos fazem pensar a arte (PAZ, 2014) e, ao estabelecer relações com coisas, ainda de modo algum relacionadas, é necessária “a sincronização de ritmos, a modulação de intensidades e as ressonâncias afetivas” (KASTRUP; PASSOS, 2013).

O Pequeno Território do artista-pesquisador se encarrega disto na medida em que olha para o seu próprio fazer fazendo. Assim, torna-se possível que uma Obra-Aula seja criada pela própria prática, investindo em observar como procede com seus processos para pensar sua criação. Ao invés de depender de um modelo ou de seguir um plano já organizado, orientar-se pelas maneiras de como e o que faz em sala de aula.

Ao pensar o seu fazer, o artista-professor encarregado de uma Obra-Aula encontra no seu cotidiano maneiras de criar. Ao investir nos seus processos, transforma o que estava sedimentado, colocando nos procedimentos força passarinhar de variação. Logo, procede-se de maneira a evidenciar um mundo por vir e pô-lo a ressoar em frequências que possibilitem mudar as formas de elementos até então banais.

Considerações gerais

Ao colocar em movimento processos e procedimentos de artista, uma força passarinhar é encontrada. Um método à moda de uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) que voa, bica, faz ninhos, encontra parceiros, adapta-se, caminha desengonçado, migra, suga néctar, imita e aprende. Cria trajetos por territórios e permanece à espreita das relações futuras, das flores que emanam ultravioleta. Desconfia e persegue em sua territorialidade as mais diversas e adaptadas formas.

Uma maneira de fazer pesquisa que voa longas distâncias, como os pássaros migratórios, vindos das mais diversas matérias que lhes serão férteis. Ao se abrir num “plano comum [que] envolve então ampliação e alargamento das subjetividades pela conexão com singularidades heterogêneas e semióticas até então estranhas” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 276), permite que novas existências sejam possíveis, que as experimentações sejam as bicadas, os voos, o alimento encontrado e a rota pela qual se migra. Assim a arte poderá convocar à educação um povo ainda por vir (DELEUZE; GUATTARI, 2015), propulsor para a produção e a criação de formas de vida (DELEUZE, 2016).

Enquanto procedimento investigatório da ação do passarinhar, foram adotados traçados do plano extensivo para a criação do conceito de uma Obra-Aula. Seu território então se enche de matérias pensamento, as rotas migratórias por onde já se andou, as frutas já bicadas, mas, ao colocá-las em funcionamento, é possível ver novos pontos que ganham forma, novas flores que emanam ultravioleta podem agora ser vistas.

A arte possibilita experimentações no mundo, bica cada fruta que encontra agitando significações já estabelecidas. Ao pensar sobre as zonas de aproximação do fazer de artista com a artistagem docente, esta pesquisa mostra maneiras de fugir dos moldes representacionais. Ao aproximar esses campos, novas invenções interagem e geram fagulhas propícias à criação pelos encontros que se mostram.

Ao passarinhar diante do caos, um recorte foi necessário para formar as rotas de voo. Um plano de consistência (DELEUZE; GUATTARI, 2011a) foi um espaço possível a ser povoado por novos afetos e trajetos. Contagiado, desorganizado e flauteando, seguiu-se numa orientação que estabeleceu aproximações com as matérias ao justapor: criou-se algo novo. Um trajeto, um deslocamento, algo que surge pelos mapas intensivos. Os espaços para que os conceitos pudessem encontrar suas potências e alimentos ao operar por afinidades que os movimentaram por lugares ainda desabitados e não sobrevoados.

Ao adotar uma abordagem de pesquisa teórico-filosófica para falar de uma prática artística-docente, foi necessário distribuir os afetos e dotar de potência as imanências. Um plano intensivo foi aos poucos sendo arrancado das relações que eram postas, “as forças intensivas subtendem as forças motrizes” (DELEUZE, 2011, p. 88). Compondo-a com as ações artísticas feitas pelo pesquisador (Prática Poética do Banal) e as suas referências artísticas (Kaprow, Malevich e Duchamp), novos trajetos evocaram fugas das linguagens dominantes e de uma educação presa em modelos (Artistagem de Corazza) que necessita de uma sensibilidade ao invés de uma racionalidade (formação estética de Loponte) que a contemporaneidade exige.

Engendrada em suas referências artísticas, o Pequeno Território do pesquisador é relacionado com a artistagem docente (CORAZZA, 2013) e a formação estética (LOPONTE, 2017). Portanto, uma Obra-Aula é possibilitada pelo cotidiano e pelo pensamento que “invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, comum e indiscernível; na qual não se pode dizer onde passam as fronteiras de uns e de outros” (CORAZZA, p. 26). Sem imitar, busca nas formas de criação dos artistas referência relações que montam aproximação de processos e procedimentos artístico-educacionais.

Referências

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: de ; Recebido: 18 de Fevereiro de 2019; : de ; : de ; Aceito: 09 de Julho de 2019; : de ; : de ; Publicado: 24 de Junho de 2020

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