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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 18-Jul-2023

https://doi.org/10.5902/1984644438252 

Artigo Demanda Contínua

As humanidades e a escola de Ensino Médio como espaço democrático

Humanities and high school as a democratic space

Maria Rute Depoi da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-9782-4601

Marcele Pereira da Rosa Zucolotto2 

Diego Carlos Zanella3 
http://orcid.org/0000-0002-2180-4011

1Técnica em assuntos educacionais no Instituto Federal Farroupilha, Jaguari, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: rutedepoi1@gmail.com

2Professora na Universidade Franciscana, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: marcelepr@hotmail.com

3Professor na Universidade Franciscana, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: diego.zanella@gmail.com


RESUMO

Este estudo de cunho teórico pretende abordar algumas reflexões sobre a importância do ensino de humanidades para a escola de ensino médio constituir-se de fato em um espaço democrático. Inicialmente, o texto enfatiza pontos da Lei nº 13.415/2017, oriunda da Medida Provisória nº 746/2016 que reformula o ensino médio brasileiro e que pode representar, entre outras questões, uma ameaça ao ensino de humanidades. Nesse sentido, embasado por Paiva (1987), Aranha (2006) e Libâneo (2012) traz algumas considerações a respeito da história da educação brasileira e sua organização escolar, a fim de se compreender como e com que ideais este espaço foi sendo construído em nossa sociedade ao longo dos anos. No decorrer do texto, enfoca-se na defesa das humanidades como um caminho para que a escola seja realmente um território democrático. Para tanto, reporta-se a Rouanet (1987), Saviani (1997), Morais (2014) e principalmente a algumas ideias de Nussbaum (2015), que enfatizam a necessidade de se priorizar as humanidades para viabilizar a opção pela democracia, apontando para a urgência de uma educação democrática. O estudo aponta ainda para o papel fundamental da escola com vistas ao contexto democrático e o quanto esta, com o aporte das humanidades, pode contribuir para a formação de cidadãos verdadeiramente comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Palavras-chave: Educação escolar; Humanidades; Democracia.

ABSTRACT

This theoretical study intends to address some reflections on the importance of teaching of humanities to the School of secondary education to constitute a fact in a democratic space. Initially, the text emphasizes points of Law No. 13.415/2017, originating from provisional measure No. 746/2016 that reformulates the Brazilian high school and that can represent, among other issues, a threat to the teaching of humanities. In this sense, grounded by Paiva (1987), Aranha (2006) and Libâneo (2012) brings some considerations regarding the history of Brazilian education and its school organization, in order to understand how and with what ideals this space was being built in our Society over the years. In the course of the text, it focuses on defending the humanities as a way for the school to truly be a democratic territory. To this end, it is reported to Rouanet (1987), Saviani (1997), Morais (2014) and especially to some ideas of Nussbaum (2015), which emphasizes the need to prioritize the humanities to enable the option for democracy, pointing to the urgency of a Democratic education. The study also points to the fundamental role of the school with a view to the democratic context and how much, with the contribution of the humanities, can contribute to the formation of citizens truly committed to building a more just and fraternal society.

Keywords: School education; Humanities; Democracy.

Introdução

Na atualidade, há uma crescente discussão acerca da necessidade de se preservar, ou não, no currículo escolar, o espaço para o ensino de humanidades, ou sustentar um ensino voltado basicamente para área técnica. É de conhecimento de grande parcela da sociedade que tal situação já vem ocorrendo em alguns países, sendo que no Brasil esta discussão coloca-se em meio à recente proposta de reforma do ensino médio, iniciada com a Medida Provisória nº 746/2016, sancionada pela Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017b) e reforçada com a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017a).

Cabe mostrar, já de início, que esta reforma do ensino médio caminha para um ensino que amplia a dualidade educacional ainda presente na sociedade brasileira. Diante desta, os estudantes poderão escolher seu itinerário formativo, sendo que somente língua portuguesa, matemática e língua inglesa serão disciplinas obrigatórias nos três anos do ensino médio. A filosofia, sociologia, educação física e artes serão obrigatórias como estudos e práticas, não se constituindo deste modo em disciplinas específicas. Nota-se que, neste contexto, as humanidades sofrem com a falta de espaço nas escolas, ao se promover uma formação voltada para o mercado de trabalho, portanto uma formação mais limitada, técnica e basicamente com vistas à formação de mão de obra, em detrimento de uma formação plena e voltada para a construção da cidadania.

Ao recorrermos, ainda que suscintamente, à história da educação brasileira, é perceptível o quanto esta foi sendo marcada por um forte dualismo no que diz respeito à constituição de uma escola destinada às elites, de formação erudita e outra com caráter tecnicista, eminentemente voltada para a formação de mão de obra. A educação sob a perspectiva da técnica, com vistas somente à profissionalização, geralmente, cumpre o papel de formação apenas para o mercado econômico. E em uma sociedade cada vez mais interessada na produção de sujeitos competitivos, visando prioritariamente o desenvolvimento do mercado, o espaço das humanidades corre sério risco de ser cada vez mais reduzido, ou até mesmo extinto dos processos escolares e educacionais.

Nesta direção, torna-se pertinente trazer uma conceituação de humanidades, para que seja possível compreender a necessidade de defendê-las na perspectiva de considerar a escola um ambiente democrático, de formação para cidadania. Para tanto, reporta-se a Rouanet (1987):

Proponho chamar de humanidades as disciplinas que contribuam para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária imediata, isto é que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidea, vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na tradição, ou simplesmente proporcionar um prazer lúdico. (ROUANET, 1987, p. 309).

Para Rouanet (1987), é difícil atribuir um consenso das disciplinas que pertencem às humanidades, considerando esta ampla definição, porém o autor cita como exemplos, as “línguas e culturas clássicas, seu objeto original; língua e literatura vernácula; principais línguas estrangeiras e respectivas literaturas; história; filosofia e belas artes” (ROUANET, 1987, p. 309). Pode-se dizer, em linhas gerais, que as humanidades são as disciplinas que tratam do ser humano e de todo capital cultural produzido pelos sujeitos.

Nesse sentido, por considerar que a escola precisa reafirmar-se como um espaço democrático e de formação de sujeitos para a cidadania, torna-se fundamental trazer contribuições de alguns autores que ratificam a importância das humanidades, entre eles Martha Nussbaum (2015), principalmente em sua obra “Sem Fins Lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades”, sobretudo no que se refere ao papel da escola neste contexto.

Assim, este estudo de cunho teórico pretende abordar algumas reflexões sobre a importância do ensino de humanidades para a escola de ensino médio. Como percurso teórico, este estudo dá-sea partir de dois eixos de reflexões, um primeiro, constituído com base em um breve histórico da educação brasileira e sua organização escolar principalmente no que se refere ao ensino médio brasileiro e o segundo eixo busca assentar a escola como espaço democrático e as humanidades como caminho para tal.

Contexto histórico da educação brasileira e o Ensino Médio

A educação brasileira, historicamente, foi marcada por um forte dualismo que separou uma escola erudita destinada à elite e outra, de caráter basicamente profissional, para os menos favorecidos economicamente. Ainda hoje é possível observar resquícios deste passado nem tão distante.

Segundo Paiva (1987), pode-se considerar como início das primeiras atividades educativas no Brasil a chegada dos jesuítas com o objetivo de cristianizar os indígenas, impondo-lhes, a pedido da Coroa Portuguesa, os padrões da civilização ocidental. Com a adoção do regime escravagista, os negros também foram objetos de catequização, de maneira não formal. Embora a educação jesuítica fosse voltada principalmente para as crianças indígenas, no ensino de leitura e escrita, através da catequese, jovens e adultos também sofreram este processo de aculturação.

Ainda de acordo com a autora, com a expulsão dos jesuítas e as reformas efetuadas pelo Marquês de Pombal, houve um retrocesso no processo educacional brasileiro, mas que veio a afetar mais as elites, pois eram os maiores beneficiários da escolarização, já que frequentavam as escolas e seminários implantados pela então chamada Companhia de Jesus (PAIVA, 1987). A vinda da família real portuguesa, em 1808, trouxe mudanças no panorama educacional brasileiro, pois se tornou necessário organizar o sistema de ensino que pudesse atender à aristocracia e preparar quadros que pudessem suprir as futuras demandas.

Em meados de 1824, é outorgada a primeira Constituição Imperial no Brasil que trata o Ensino Primário na forma de Lei. A instrução primária passa a ser gratuita a todos os cidadãos. Cidadania esta, entretanto, restrita aos livres e libertos, isso em um país pouco povoado, de caráter agrícola, esparso e escravocrata. Mas as Leis tratavam do assunto de forma pouco substancial, uma vez que a educação escolar não era encarada como prioridade política. Deste modo, a educação reserva-se à elite e, aos demais - escravos, índios e caboclos - “além do duro trabalho, bastaria a doutrina aprendida na oralidade e a obediência na violência física ou simbólica” (BRASIL, 2000, p. 13).

Consta em 1827 a criação de escolas de Primeira Letra em todas as cidades, vilas e lugarejos, escolas de meninas nas cidades mais numerosas, dispositivos estes que na prática nunca foram cumpridos. As primeiras escolas normais são criadas em 1830 no Rio de Janeiro e Bahia. Na capital do Império, em 1875, foram instituídas duas escolas normais, uma para cada sexo, transformadas em escolas únicas em 1880, quando iniciou realmente o desenvolvimento das escolas normais no Brasil (ARANHA, 2006).

Deste modo, o ensino, além de restrito a poucos, funcionava de forma desordenada. Para entrar no ensino secundário não era necessário cursar o ensino primário. Já o ensino secundário tinha sua frequência livre, sem organização hierárquica das matérias e das séries. Para o ingresso no ensino superior também não era necessário ter cursado o ensino secundário. Muitos intelectuais e pensadores da época manifestavam preocupação com o acesso à educação escolar e os altos índices de analfabetismo presentes no Brasil, como expressou Machado de Assis (1992, p. 345):

A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; destes uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. [...] 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado. [...] As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político.

E, mais tarde, Rui Barbosa (1883 apud BRASIL, 2000, p.13-14) em seu parecer sobre a reforma do ensino, comenta:

A nosso ver a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta, e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria. Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da nação; eis o formidável inimigo, o inimigo intestino, que se asila nas entranhas do país. Para o vencer, releva instaurarmos o grande serviço da ‘defesa nacional contra a ignorância’, serviço a cuja frente incumbe ao parlamento a missão de colocar-se, impondo intransigentemente à tibieza dos nossos governos o cumprimento do seu supremo dever para com a pátria.

Na primeira Constituição Republicana (1891), é retirada a referência à gratuidade ao ensino, além de condicionar o voto à alfabetização, isso em um país de maioria analfabeta. Esta Lei abriu mão da organização nacional da educação, deixando-a como competência dos Estados. Também nesta época aparecem algumas iniciativas autônomas de cursos noturnos, para instrução primária.

Com a república, as coisas começam a mudar. E a educação profissional, que tinha um caráter de ‘formação compulsória’, na medida em que se voltava para órfãos e desvalidos, passou para uma nova fase, tanto da parte da oferta quanto da procura. Da parte desta, a grande imigração, a urbanização, a industrialização e - por que não dizer? - a disponibilidade dos ex-escravos forjaram uma força de trabalho com perfil diverso do imperial, mais reivindicativa, mais associativa, a qual incluía, em seu peticionário, acesso irrestrito à educação, não só geral, mas também profissional. Da parte da oferta, a classe dominante, no Estado e fora dele, tinha todo o interesse numa educação profissional que, além de sua finalidade ostensiva, a preparação para o trabalho nas novas condições de urbanização e industrialização, também concorresse para a contenção das ‘ideias exóticas’ que punham em risco a necessária harmonia entre o capital e o trabalho.(LOMBARDI; SAVIANI, 2009, p.137).

Percebe-se, com Lombardi e Saviani (2009), o significativo interesse das classes dominantes em uma educação voltada para dar conta das demandas do trabalho urbano em crescimento naquele período, bem como para a limitação de tudo aquilo que pudesse vir a romper com a ordem e a conformidade social. No entanto, já nos anos 20, devido ao elevado número de analfabetos, à crescente urbanização e à necessidade de formação da mão de obra, surgem diversos movimentos que reivindicam reformas educacionais urgentes. Os movimentos operários contribuem para isso, com a crescente valorização dada à educação por estes grupos.

Nesta direção, a Constituição Brasileira de 1934 apresentou-se como um importante marco educacional, referendando a educação como “direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos” (BRASIL, 1934, Art. 149). Além disso, neste documento, foi a primeira vez que apareceram, juntos, os princípios que tratam da gratuidade e obrigatoriedade do ensino de primeiro grau: “ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória extensivo aos adultos” (BRASIL, 1934, Art. 150 § único). Depois disso, nunca o conceito de gratuidade e obrigatoriedade deixou de fazer parte de nossa Constituição. Apesar da existência desta prerrogativa, grande parte dos brasileiros encontrava-se, e ainda se encontra, à margem desta realidade. Cabe ressaltar que foi nesta Constituição (1934) também que, pela primeira vez, os poderes públicos foram obrigados a destinar um mínimo de investimento para a educação.

Tomando como base estes dados históricos, observa-se a elitização da educação e um grave descaso por parte dos poderes públicos em relação à grande parte da população brasileira. Criaram-se leis que garantiam o direito à educação, mas, na prática, a educação permanecia restrita a poucos, causa da dualidade que separou, historicamente, o trabalho intelectual do manual, ou seja, alguns são responsáveis por “pensar” e os outros, “servem” apenas para “executar” (LIBÂNEO, 2012).

A Lei nº 4.024/61, primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e, mais tarde, a Lei 5.379/67, que veio a constituir o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), mencionam, ainda muito timidamente, a educação escolar destinada a jovens e adultos, principalmente devido ao analfabetismo crescente. As finalidades da educação no MOBRAL consistiam em práticas e técnicas de ler, escrever, contar e motivar o aluno, com alvo à formação acelerada de mão de obra voltada para o mercado de trabalho, porém, com material padronizado e com conteúdo inteiramente acrítico. Através da educação, mais uma vez, buscou-se contribuir para a política de desenvolvimento instaurada na época (PAIVA, 1987).

Anterior a isso, segundo Paiva (1987), nas décadas de 50 e 60, surgem importantes movimentos de educação e cultura popular, em sua maioria inspirados em Paulo Freire, sendo que este chegou a integrar, em 1963, um grupo para elaboração do Plano Nacional de Alfabetização. No entanto, estes movimentos foram bruscamente interrompidos pelo Golpe Militar, uma vez que esses grupos propunham a conscientização, a participação e a transformação social como alternativas, por acreditarem que o analfabetismo é produto de uma sociedade injusta e não igualitária.

Com a ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985, a educação brasileira sofre mais um revés. Este período foi marcado pelo estímulo a uma educação meramente tecnicista, com vistas a atender às demandas do mercado, muitas vezes em função de interesses econômicos internacionais. Além, é claro, de toda a falta de liberdade estabelecida pela censura. Isso revela-se, novamente, em um extermínio do pensamento crítico que anteriormente começava a ser suscitado e, por consequência, um intenso descaso para com as humanidades.

No entanto, somente com a redemocratização, a partir da Constituição Federal de 1988, pode-se começar a perceber alguns avanços mais significativos para a educação brasileira, como trata o Art. 205, “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família” (BRASIL, 1988, p. 136) e ainda o Art. 208, ao trazer a “educação básica obrigatória [...] assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (BRASIL, 1988, p. 136).

Com base no exposto, pode-se identificar que o processo educacional brasileiro e a estruturação das escolas sofreram historicamente poucos avanços e muitos retrocessos. Estes retrocessos vão desde o descaso do Estado para com a formação de seus cidadãos, a morosidade legal na construção de uma Legislação Educacional Brasileira, um período de regime ditatorial e a constituição de uma grave bifurcação entre uma escola do conhecimento para as classes abastadas e outra do acolhimento social para os pobres (LIBÂNEO, 2012), aspectos esses que favoreceram a reprodução e a manutenção das desigualdades sociais.

Ao encontro desta perspectiva, cabe mostrar ainda que os avanços estabelecidos na Constituição Federal de 1988, ratificados com a Lei nº 9394, de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e com a Lei nº 11684, de 2008, que institui a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias durante os três anos do ensino médio, correm o risco de mais uma vez retrocederem, principalmente no que diz respeito à formação de sujeitos cidadãos com vistas à construção de uma sociedade democrática. Isto fica bastante evidente quando se trata do ensino médio no Brasil, principalmente quando se remete à recente Lei nº 13.415, de 2017 (BRASIL, 2017b), que advém da Medida Provisória nº 746, de 2016, a qual não foi amplamente discutida com a sociedade civil, deixando de fora a importante e necessária participação dos sujeitos que trabalham diretamente com a educação. Assim, a reforma colocada para o ensino médio brasileiro:

trata-se de uma contrarreforma que expressa e consolida o projeto da classe dominante brasileira em sua marca antinacional, antipovo, antieducação pública, em suas bases político-econômicas de capitalismo dependente, desenvolvimento desigual e combinado, que condena gerações ao trabalho simples e nega os fundamentos das ciências que permitem aos jovens entender e dominar como funciona o mundo das coisas e a sociedade humana. Uma violência cínica de interdição do futuro dos filhos da classe trabalhadora por meio da oficialização da dualidade intensificada do Ensino Médio e de uma escola esvaziada.(MOTTA; FRIGOTTO, 2017, p. 369).

É por este viés que tem sido interpretada a atual conjuntura educacional de nosso país, no que se refere ao ensino médio, em sua proposta de reforma sancionada pela Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017b). Assim, por meio desta, os estudantes “que até então cursavam as treze disciplinas obrigatórias do ensino médio” poderão agora escolher seu itinerário formativo que será dividido em áreas do conhecimento, a saber: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica profissional. Ressalta-se que as escolas não serão obrigadas a ofertar todas as áreas de formação e, diante do quadro de precariedade que acomete grande parte das instituições de ensino no Brasil, não é difícil concluir a quem será destinada uma formação mais ampla, propedêutica, e quais serão os sujeitos que serão encaminhados para uma formação mais limitada, técnica e basicamente com vistas à formação de mão de obra.

Entre os outros pontos da reforma, faz-se necessário aqui mencionar aquele que diz respeito às disciplinas obrigatórias, sendo que somente língua portuguesa, matemática e língua inglesa serão obrigatórias nos três anos do ensino médio. A filosofia, sociologia, educação física e artes não irão constituir disciplinas específicas obrigatórias, serão obrigatórias apenas como estudos e práticas. Nota-se que, mais uma vez, as humanidades sofrem com a falta de espaço nas escolas, ao se promover a formação para o mercado de trabalho em detrimento de uma formação para a cidadania. Além disso, a reforma propõe uma redução de 2.400 horas (considerando a carga horária total do ensino médio antes da Reforma) para 1.800 horas e isso implica uma correlata redução dos conteúdos a serem trabalhados, o que promove ainda mais precarização no ensino médio.

A reflexão aqui posta e explicitada por alguns pontos da nova reforma do ensino médio, como a ênfase em disciplinas como língua portuguesa, matemática e língua inglesa, a não obrigatoriedade das disciplinas de humanidades (filosofia, sociologia, educação física e artes), a separação dos itinerários formativos por áreas, a falta de recursos e investimentos em educação dos estados e municípios e, ainda, a possibilidade aberta a quem não possui curso de formação para professor ministrar aulas por meio de notório saber, traz, infelizmente, a probabilidade de reafirmar os dois tipos de escola a qual Libâneo (2012) já se referira, a do conhecimento para a elite e a do acolhimento para os pobres, com o risco elevado de perpetuar-se uma sociedade brasileira cada vez mais injusta e desigual. Com isso, confirma-se a perversão afirmada pelo autor inclusive nas políticas educacionais para o ensino médio, ao caminhar para um ensino que amplia e avigora a dualidade educacional na sociedade brasileira.

Nesta direção, o argumento de que há excesso de disciplinas esconde o que querem extrair do currículo - filosofia, sociologia e diminuir a carga de história, geografia, etc. E o medíocre argumento de que, hoje em dia, o aluno é digital e não suporta uma escola conteudista mascara o que realmente está a acontecer: uma escola degradada em seus espaços, sem laboratórios, sem auditórios, distanciadada arte e cultura, sem espaços de esporte e lazer e com professores esfacelados em suas carga-horárias, trabalhando em duas ou três escolas, em três turnos, para comporem um salário que não lhes permite que sejam satisfeitas nem mesmo suas necessidades básicas; um professorado que, de maneira crescente, adoece.

Ao lado da reforma do ensino médio, soma-se ainda a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017a), que pode ser entendida como uma política de uniformização e centralização curricular para a educação básica, incluindo, evidentemente, o ensino médio. O texto da BNCC defende um ensino baseado no desenvolvimento de “competências e habilidades” (BRASIL, 2017a, p. 15), explicitando que os conteúdos curriculares devem estar à serviço do desenvolvimento destas competências e habilidades. Ao considerar a competência como um “conhecimento mobilizado, operado e aplicado em situação” (BRASIL, 2017a, p. 15), parece bastante evidente que a Base fomenta a formação de indivíduos flexíveis, facilmente adaptados às necessidades do mercado, em detrimento de uma formação ampla e emancipatória dos cidadãos brasileiros. Algumas implicações disso são que:

para os alunos, não cabe compreender a realidade para fazer a crítica e se comprometer com sua transformação, mas sim desenvolver as “competências” que o mercado exige dos indivíduos. Lamentavelmente, é o que defende a BNCC com relação aos conteúdos escolares, quando apresenta que os conteúdos devem estar subordinados ao desenvolvimento das competências, definindo o conhecimento como uma soma das habilidades que os alunos devem ter, de forma que sejam capazes de empregar o conhecimento para encontrar novas formas de agir, não como meio de transformação social, mas como adaptação aos interesses do mercado, sobretudo, pela formação de mão de obra. (BRANCO et al., 2018, p. 59).

Deste modo, fica bastante inequívoco que a elaboração e a implantação da BNCC consolidam-se como mais um avanço dos ideais neoliberais no contexto das políticas curriculares nacionais para o ensino médio e contribuem para um ensino desvinculado das humanidades e das relações democráticas, afinal, volta-se prioritariamente para o mercado e seus interesses.

Macedo (2014) e Cassio (2018) consideram que a defesa de uma base nacional comum para o currículo tem sido entendida como uma via para a realização da qualidade da educação no Brasil. Entretanto, estes autores e até mesmo importantes instituições educacionais (ANPED, 2017) apontam que estes discursos ofuscam o que, de fato, parece ocorrer no campo educacional brasileiro. Estes autores mostram que o compromisso com a educação e a democracia, que deveriam ser prioritários, ficam secundarizados, em vista da prioridade dada a interesses privados, relações de poder e alianças entre partidos políticos. Nesta direção, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) realizou importantes críticas à BNCC relativas, inclusive, à metodologia utilizada para sua elaboração, com pouca abertura para participação popular, colocando-se como um documento que não reflete a diversidade do diálogo produzido no âmbito educacional (ANPED, 2017).A ANPED foi categórica com relação à Base:

Reiteramos nossa compreensão de que essa terceira versão da BNCC representa um retrocesso à educação brasileira, o que nos motiva a pensar a necessidade de resistência e de enfrentamento no âmbitopolítico dos cotidianos de nossas práticas escolares. Entendemos que a resistência e o enfrentamento necessáriossó́ serãopossíveis se consideramos a potência das práticas curriculares cotidianas que acontecem na diversidade de escolas brasileiras. (ANPED, 2017, p. 18).

Nesta direção, a escola e as vivências em seu cotidiano colocam-se como fundamentais no combate a discursos e práticas que forçam a educação para os interesses do mercado, tornando-a mera construção de ferramentas para enfrentá-lo. Backes (2018, p. 12) é enfático ao dizer que “o mercado não pode ser a referência para a educação de nossas juventudes”, afinal, a educação deve ser um projeto coletivo de construção de redes e relações muito mais humanas e democráticas.

A escola enquanto espaço democrático: as humanidades como caminho

O tópico anterior pontua alguns aspectos da educação brasileira e da organização escolar, os quais são necessários para que se compreenda a constituição da escola frente à necessidade de ser este um espaço democrático e de construção da cidadania. Para tanto, cabe enfatizar que a inclusão ou a reafirmação das humanidades assume papel essencial neste processo.

No período que antecedeu a redemocratização brasileira, entre o final dos anos cinquenta e o regime ditatorial, sob o viés desenvolvimentista da época, acreditava-se que a sociedade necessitava de técnicos e não de cidadãos eruditos para sua modernização. Como salienta Rouanet (1987, p. 305): “Precisávamos de químicos industriais e engenheiros eletrônicos, e não latinistas - essa era a síntese de nossa oposição às humanidades”. Sob este pretexto, no contexto da educação brasileira, ocorre a extinção da filosofia, do francês e do latim, a história perde o status de disciplina independente, a literatura deixa de ser importante instrumento para refletir sobre o mundo e, enfim, as humanidades começam a sair de cena e, com elas, as possibilidades de construção de um pensamento mais livre e crítico.

O fim da filosofia significou o fim de toda uma prática de reflexão questionadora que bem ou mal tinha se iniciado nos anos 60. O fim da história significou o fim de um estilo de pensamento que vê o presente como fluxo e, portanto, como algo transformável. O fim da literatura significou o empobrecimento do imaginário, que não podia mais fantasiar um futuro situado além do existente. O fim do latim e do francês significou o fim de instrumentos que com todos os defeitos do ensino tradicional comportavam perspectivas de evasão e transcendência: fuga temporal em direção a nosso passado cultural mais remoto, ou fuga espacial em direção a outro universo que não o da cultura anglo-saxônica dominante. (ROUANET, 1987, p. 307).

Isto posto, é pertinente salientar que, somente em 2008, com a alteração do art. 36 da LDB nº 9394/96 pela Lei nº 11.684/08, que o ensino de filosofia e sociologia tornaram-se disciplinas obrigatórias para os três anos do ensino médio, tendo em vista a necessidade de tais componentes para o exercício da cidadania (BRASIL, 2008). Como visto anteriormente, este recente avanço, entretanto, está novamente ameaçado com a determinação da Lei nº 13.415/2017 “que reforma o ensino médio” e com a proposta da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por mais uma vez colocarem em risco o ensino das humanidades na história educacional brasileira.

Nesta direção, enfatiza-se o quanto a escola, como importante instituição humana e social contemporânea, necessita enfrentar este desafio, que é (re)colocar as humanidades no seu devido espaço e importância, se pretender configurar-se com um ambiente democrático de formação para a cidadania. É urgente que todos os atores envolvidos nos processos educativos tenham a clareza do que está em jogo nesta reforma, para que se possa decidir sobre qual o tipo de escola e que sociedade queremos.

Em prol do ensino de humanidades, Rouanet (1987) defende-as em quatro significativos argumentos. Primeiro, porque as humanidades seriam um contraponto necessário à cultura tecnocrata, sem substituir a ciência e a técnica. Em segundo lugar, porque trazem a versatilidade ao espírito dos sujeitos. Como terceiro argumento, por auxiliar significativamente para o pensamento crítico e, por fim, porque são fonte de prazer. As humanidades, portanto, configuram-se essenciais para a construção da democracia e sua efetiva prática e devem ser colocadas como importante eixo de construção de conhecimentos não apenas nas escolas de ensino médio, mas em toda escola que se prioriza a construção de sujeitos notavelmente democráticos.

Concorda-se com Saviani (1997) quando este postula em sua pedagogia que a educação não é o principal determinante das transformações sociais e, sendo assim, a escola não é a única responsável por viabilizar a construção de uma sociedade democrática. Porém, pelas relações dialéticas com a sociedade, não se pode negar que tanto a educação como a escola possuem um papel de extrema relevância - e muitas vezes decisivo - para este processo da democracia em sociedade. Assim, a “educação, portanto, não transforma de modo direto e imediato e sim de modo indireto e mediato, isto é, agindo sobre os sujeitos da prática” (SAVIANI, 1997, p.82).

Além disso, em uma sociedade cada vez mais voltada para os interesses econômicos, fica realmente difícil reivindicar os espaços para uma educação humanizada. Porém, é imperioso conhecer e compreender que sociedade se quer construir e que cidadãos se pretende formar, para que seja tomada uma posição diante deste contexto. Como enfatiza Nussbaum (2015, p. 15):

Portanto, produzir crescimento econômico não significa produzir democracia. Nem significa criar uma população saudável, participativa e educada em que as oportunidades de uma vida boa estejam ao alcance de todas as classes sociais.

Em uma educação voltada exclusivamente para atender às demandas mercadológicas, a liberdade de pensamento pode ser algo perigoso. Por esta via, portanto, é compreensível e viável que o incentivo ao pensamento crítico seja gradativa e fortemente minimizado em importância, uma vez que, o que realmente interessa ao modelo de desenvolvimento econômico é que sejam formados trabalhadores obedientes e resignados a suas condições e onde somente a técnica prevaleça. Em contrapartida, uma educação voltada para a democracia precisa das humanidades como elemento essencial para conceber que o convívio em sociedade exige perceber o outro, da mesma forma que se perceber como cidadão (NUSSBAUM, 2015).

Educação é para gente. Antes de podermos planejar um sistema educacional, precisamos entender os problemas que enfrentamos para transformar alunos em cidadãos responsáveis que possam raciocinar e fazer uma escolha adequada a respeito de um grande conjunto de temas de importância nacional e internacional. (NUSSBAUM, 2015, p. 27).

A escola, como Nussbaum (2015) também salienta, não é a única instituição responsável pela constituição dos indivíduos, a família e a cultura também têm papel fundamental nesta construção. Porém, o que está posto tanto nos conteúdos curriculares como nas práticas pedagógicas influenciam consideravelmente “para criar cidadãos em e para uma democracia saudável” (NUSSBAUM, 2015, p. 45). É nesse sentido que se reafirma a necessidade do ensino de humanidades estar presente em todos os currículos escolares, não apenas no ensino médio, e o quanto são preocupantes as reformas educacionais instituídas pela Lei nº 13.415/2017 e pela BNCC, por claramente relegarem a segundo plano disciplinas que são tão essenciais para desenvolver um pensamento autônomo e crítico, fundamental para democracia social de nosso país.

Neste contexto, é temeroso pensar que mais uma vez se está diante da reafirmação de uma educação dualista, historicamente instituída pela desigualdade de acesso ao conhecimento, como enfatiza Saviani (1997):

A pressão em direção à igualdade real implica a igualdade de acesso ao saber, portanto, a distribuição igualitária dos conhecimentos disponíveis. [...] Assim, a transformação da igualdade formal em igualdade real está associada à transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais, dinâmicos e concretos. (SAVIANI, 1997, p. 74).

Pelo exposto e frente aos pontos já mencionados da nova reforma do ensino médio, fica cada vez mais difícil a busca de uma igualdade real para todos os sujeitos sociais. Como Saviani (1997) propõe, é necessário que se rompa o aspecto meramente formal de que “todos são iguais perante a lei”, mas que realmente seja possibilitado a cada cidadão condições de acesso a uma educação e a uma escola que contemple os diversos campos do saber.

Para Nussbaum (2015), porém, o que ocorre cada vez mais nas sociedades democráticas está na contramão disso. A autora denuncia que os países e seus sistemas de educação descartam de modo irresponsável competências necessárias para manter viva a democracia, sendo que essas competências passam pelo ensino de humanidades. Infelizmente, diante deste cenário, é provável que os países produzam “gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e realizações dos outros” (NUSSBAUM, 2015, p. 4).

Nesta direção, ao se defender a democracia e a busca por uma igualdade real é preciso que a escola possa construir sentido e dinâmica de vida para os estudantes, que signifique e ressignifique os conhecimentos acumulados em algo não apenas útil ao mercado, mas que faça de cada ser em construção uma pessoa essencialmente “humana”. Uma escola que não forme apenas para o trabalho, mas que também possibilite a formação para o exercício consciente da cidadania, sabendo que isso pressupõe uma luta constante, principalmente diante dos desafios e enfrentamentos que mais uma vez se impõem. Nesta direção, Saviani (1997) afirma que:

o processo educativo é passagem da desigualdade à igualdade. Portanto, só é possível considerar o processo educativo em seu conjunto como democrático sob a condição de se distinguir a democracia como possibilidade no ponto de partida e a democracia como realidade no ponto de chegada. Consequentemente, aqui também vale o aforismo: democracia é uma conquista; não um dado. (SAVIANI, 1997, p. 87).

Ao sustentar que a democracia não é algo dado, mas uma conquista, Saviani (1997) relembra da imprescindível necessidade da ação e da participação social e, para tanto, a escola constitui-se também em um dos espaços de luta fundamentais na contemporaneidade. Com isso, mais uma vez, destaca-se o ensino de humanidades como crucial neste processo, por assegurar um contraponto necessário às disciplinas mais técnicas e científicas do ensino médio, por viabilizar o olhar curioso e crítico sobre os saberes e, principalmente, por possibilitar perceber e apreciar o outro com empatia, com solidariedade, com humanidade.

Nesta perspectiva, para Nussbaum (2015), é necessário formar para a diversidade humana, religiosa e cultural. “Ainda que o conhecimento não seja garantia do bom comportamento, a ignorância é praticamente garantia do mau comportamento” (NUSSBAUM, 2015, p. 81). Esta afirmação torna-se relevante em face às disseminadas ondas de intolerância contra grupos ou minorias raciais, religiosos, sexuais, políticos, de classes que acometem o contemporâneo. Como a autora mesmo posicionou-se, talvez o acesso ao conhecimento não garanta que sejam desenvolvidos o respeito e a compaixão pelo outro, porém a falta dele dificulta ainda mais esta aprendizagem. Daí a temática deste texto abordar o ensino de humanidades como um dos caminhos a ser trilhados no ensino médio - e mesmo antes dele - para a superação de tantas formas de preconceitos que impregnam as sociedades de medos, irresponsabilidades, violências, indiferenças e desigualdades. Cabe salientar que, conforme dito anteriormente, as humanidades não são, evidentemente, o caminho milagroso para uma sociedade mais democrática e justa, o que este estudo procura ressaltar é que, sem elas, este caminho de fato pode se tornar bastante inconsistente, precário ou, no limite, impraticável.

Diante disso, ainda que alguns autores pontuem diversas fragilidades do sistema democrático, principalmente em nosso país, ainda tão jovem sob esta organização política, acredita-se que esta ainda é a opção mais coerente com os ideais de liberdade e igualdade. Reporta-se a Morais (2014) que se utiliza dos atributos da democracia ateniense ou dos ideais das revoluções do final do século XVIII para conceituar:

Em princípio, a democracia é a organização política da sociedade que permite alcançar o máximo de liberdade e igualdade possível para todos os cidadãos, e sua especificidade é o debate generalizado e o acesso de todos às decisões importantes. (MORAIS, 2014, p. 87).

Segundo Morais (2014), a liberdade aqui é defendida não apenas como direito formal de uma sociedade democrática, mas aliada a uma utilização consciente e pertinente desta liberdade. Ao enfatizar, principalmente, o que diz respeito à compreensão de que de todas as ações e escolhas advêm consequências, coloca-se, com isso, a necessidade de uma atuação baseada na responsabilidade e no conhecimento. Da mesma forma, torna-se imprescindível compreender que o não agir também acarretará em alguns resultados e estes podem, muitas vezes, ser bastante arriscados.

Não nascemos livres, nascemos com uma promessa de liberdade. E é por isso que educar para a liberdade é crucial. A liberdade deve fazer parte dos objetivos da educação, e a alfabetização e a prática da literacia são dois dos instrumentos por meio dos quais nos forjamos como seres livres. (MORAIS, 2014, p. 109).

Nesse contexto, pode-se afirmar que o desafio é grande e as dificuldades são inúmeras, mas aos sujeitos que trabalham com educação e que estão interessados na construção de uma sociedade mais democrática, justa e fraterna não há outro caminho que não seja enfrentar com perseverança estes desafios e dificuldades. Perceber a escola como um espaço de educação para a democracia demanda, de acordo com Nussbaum (2015): estimular a capacidade dos alunos de se colocarem no lugar do outro; desenvolver a preocupação para com o outro; ensinar que somos frágeis e impotentes ante os imprevistos e incertezas da vida; combater toda a forma de preconceito contra as minorias; ensinar o respeito ao outro em contraponto ao “nojo” e ao desprezo entre culturas; promover a responsabilidade pelas ações ou pela falta destas; desenvolver o pensamento crítico e a coragem para discordar. Para tanto, Nussbaum (2015) afirma que:

Toda sociedade traz em si pessoas que estão preparadas para conviver com os outros em termos de respeito mútuo e de reciprocidade e de pessoas que buscam o conforto da dominação. Precisamos compreender como produzir mais cidadãos do primeiro tipo e menos do segundo. Imaginar, falsamente, que nossa própria sociedade é internamente pura só serve para alimentar a agressão contra os estrangeiros e a cegueira com relação à agressão contra os nacionais. (NUSSBAUM, 2015, p. 29).

Com isso, para Nussbaum (2015), o Paradigma do Desenvolvimento Humano é a alternativa a um modelo que visa exclusivamente o desenvolvimento e crescimento econômico. Neste modelo, há o compromisso com a democracia, pois são de suma importância as oportunidades, ou “capacidades”, que cada um tem, em setores como a vida, a saúde, a integridade física, a liberdade política, a participação política e a educação.

Pensar a escola como possível território democrático exige o ensino de humanidades, não pode haver indissociabilidade entre a democracia e as humanidades. Diante destes tensionamentos, principalmente com as últimas propostas de reforma educacional brasileira, cabe enfatizar que, se o objetivo for uma sociedade menos desigual, com mais justiça e fraternidade entre os sujeitos e pautada pelos princípios da cidadania plena, há que se considerar o ensino de humanidades como fundamental nesta construção.

Considerações Finais

A partir das considerações levantadas ao longo deste texto pode-se vislumbrar o quanto as humanidades são necessárias para a construção de uma escola enquanto espaço efetivamente democrático. É necessário, todavia, considerar que ao longo dos anos a educação brasileira e a escola sofreram dificuldades para que o ensino de humanidades estivesse presente em seus currículos, causa, principalmente, do dualismo escolar que nos acompanha há muito tempo, ou seja, uma escola do conhecimento para as elites e outra destinada à classe trabalhadora de caráter profissionalizante.

A reforma para o ensino médio, juntamente com os ordenamentos da Base Nacional Comum Curricular colocam-se como importantes exemplos da situação de retrocesso educacional em que se vive hoje no Brasil, pois se configuram como políticas que buscam a construção de sujeitos para o trabalho, não para o pensamento crítico e democrático. Estas normatizações para o ensino médio estão em consonância com os ideais neoliberais, uma vez que, além de redirecionar o ensino para as demandas do capital, transforma a educação em mercadoria.

Diante deste cenário, cabe ratificar o papel fundamental que as humanidades podem protagonizar enquanto disciplinas voltadas para a formação integral do ser humano. O estímulo à criatividade, ao senso crítico, ético e estético são necessários para que a escola ocupe seu território de formação para a cidadania democrática. É um trabalho difícil, diante das circunstâncias atuais, quando, mais uma vez, o ensino de humanidades parece perder seu lugar na educação.

Com isso, é urgente a escola repensar sua posição, se pretende formar cidadãos apenas para as exigências do mercado econômico, ou se objetiva também constituir-se em um espaço de construção de sujeitos conscientes de seu papel social. Sendo assim, por todo o exposto, entende-se que o melhor caminho para uma sociedade se estruturar na democracia e conseguir minimamente enfrentar as injustiças e desigualdades pressupõe a luta pela manutenção ou, se for o caso, pela inclusão das humanidades nos currículos escolares.

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Recebido: 22 de Maio de 2019; Aceito: 27 de Janeiro de 2020; Publicado: 27 de Julho de 2020

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