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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.5902/1984644447997 

Artigo Demanda Contínua

Pautas didáticas na construção da profissionalidade docente

Teaching guidelines in the construction of teaching professionality

Nair Aparecida Rodrigues Pires¹  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0001-6707-1119

Clermont Gauthier²  , Professor
http://orcid.org/0000-0003-1998-7506

¹Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. nair.pires@yahoo.com.br

²Professor associado na Université Laval, Québec, Canadá. clermont.gauthier@fse.ulaval.ca


RESUMO

Diante da necessidade de profissionalização da formação do professor de música, este artigo tem como objetivo refletir sobre as Pautas Didáticas, um conjunto de dispositivos de formação, resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do estágio de pós-doutorado. Tomando como eixo da formação a reflexão e a profissionalidade docente, entendida como aquilo que é específico para o desempenho da ação docente (comportamentos, atitudes, conhecimentos, habilidades, valores), foi desenvolvido um projeto no estágio supervisionado, no primeiro semestre de 2019. Para a etapa de Interação com a escola, as Pautas Didáticas tiveram foco no espaço escolar (estrutura, funcionamento e projeto pedagógico), na didática em sala de aula (gestão da classe e gestão dos aprendizados), na relação ética (valores, princípios, dilemas e tensões) e no reconhecimento dos aprendizados adquiridos (escrita reflexiva). Nos momentos de organização e socialização dos dados, foram disponibilizados aos licenciandos aportes teóricos e conceituas para subsidiar a análise de situações, dilemas e problematizações. Ao estimular a reflexividade, esses dispositivos caracterizam uma abordagem profissionalizante, uma vez que permitem identificar comportamentos, atitudes, escolhas metodológicas, formular pontos de vista, formalizar e refletir sobre elementos da prática docente observada, desenvolver postura crítica e ética diante de ações e escolhas pedagógicas, levantando pistas para a organização de propostas situadas de intervenção didática.

Palavras-chave: Pautas didáticas; Formação de professor; Profissionalidade docente

ABSTRACT

In view of the need to professionalize the training of music teachers, this article aims to reflect on the Didactic Guidelines, a set of training devices, the result of research developed within the scope of the postdoctoral internship. Taking teaching professionalism as an axis of training, understood as what is specific to the performance of the teaching action (behaviors, attitudes, knowledge, skills, values), a project was developed in the supervised internship, in the first semester of 2019. For the stage of Interaction with the school, the Teaching Guidelines focused on the school space (structure, operation and pedagogical project), classroom teaching (class management and learning management), the ethical relationship (values, principles, dilemmas and tensions) and in the recognition of the lessons learned (reflective writing). In the moments of organization and socialization of data, theoretical and conceptual contributions were made available to undergraduates to support the analysis of situations, dilemmas and problematizations. By stimulating reflexivity, these devices characterize a professional approach, since they allow identifying behaviors, attitudes, methodological choices, formulating points of view, formalizing and reflecting on elements of the observed teaching practice, developing a critical and ethical posture in the face of actions and pedagogical choices, raising clues for organizing proposals for didactic intervention.

Keywords: Didactic guidelines; Teacher training; Teaching professionality

Introdução

Este artigo tem como objetivos refletir sobre as Pautas Didáticas e apresentar algumas formas de uso no Estágio Supervisionado de cursos de formação de professores (licenciaturas e pedagogia). As Pautas Didáticas constituem resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do estágio de pós-doutorado, na Faculté des Sciences de L’éducation, da Université Laval (CA), sob a supervisão do segundo autor. O conceito de Pautas Didáticas cunhado pelos autores se baseia no significado da palavra pauta como roteiro ou agenda, acepção que se aproxima daquela utilizada na área de Comunicação. Nesse sentido, Pautas Didáticas constituem um conjunto de dispositivos de formação que contribuem para a aprendizagem da docência em ação; um roteiro didático que destaca elementos importantes a serem observados, registrados, refletidos e interpretados pelos licenciandos no momento do encontro com as escolas de educação básica; uma agenda de ações - que requer para o seu desempenho a mobilização de conhecimentos, atitudes, comportamentos, valores - que contribui para a construção da profissionalidade dos futuros professores.

O interesse em construir as Pautas Didáticas surgiu da experiência como professora de Estágio Supervisionado e de Metodologia da Educação Musical no curso de Licenciatura em Música, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e como pesquisadora do campo da formação docente e da didática. Como professora do Estágio Supervisionado em um curso de licenciatura percebi, por um lado, a dificuldade de construir com os licenciandos a identidade profissional do professor de música, uma vez que a maioria deles se reconhece como músico instrumentista; e por outro lado, de desconstruir crenças sobre o que é ensinar música em diferentes contextos sociais, particularmente, em escolas de educação básica. A identidade reconhecida pelos licenciandos reforça a compreensão de que o ensino de música é o ensino do instrumento e que, portanto, ensinar música é o ensino da partitura e de alguns componentes da linguagem musical (altura, duração, timbre, intensidade, ritmo, melodia, harmonia). Além disso, a mesma concepção contém a ideia de que basta saber música para ensinar música, o que causa um desinteresse pelo aprendizado dos conhecimentos didáticos pedagógicos.

No momento de interação com as escolas de educação básica, apesar de haver atividades de observação do espaço escolar e de sala de aula, a maior dificuldade reside na problematização das relações interpessoais, das condições do ambiente escolar, do currículo e as implicações na prática do professor em sala de aula. Além disso, as discussões durante as aulas na universidade e os relatórios finais denotam a fragilidade dos conhecimentos didáticos para organizar práticas situadas de ensino, com objetivos claros para a condução dos processos de ensino e de aprendizagem. A ausência desses conhecimentos estimula a crença de que o ensino de música é uma prática externa e desvinculada da cultura escolar e a aula de música é uma improvisação pedagógica.

As implicações da formação deficitária para o exercício da docência nos cursos de licenciatura vêm sendo discutidas pela literatura internacional do campo da formação de professores, seja pela defesa da profissionalização da profissão (profissionalidade e profissionalismo), da formação e/ou dos saberes docentes (BOURDONCLE, 2000; ZEICHNER, 2008; TARDIF, 2011; ALTET, 2012; GAUTHIER at al., 2013; GAUTHIER; BISSONNETTE; RICHARD, 2013; SHULMAN; SHULMAN, 2016; ROLDÃO, 2017; NÓVOA, 2019).

Já as disciplinas de Metodologia da Educação Musical I e II, com carga horária de 30 horas, cada uma, têm o foco no ensino de propostas de pedagogos musicais como Dalcroze, Orff, Willems, Schafer, Paynter, Swanwick, Self, dentre outros. De maneira geral, essas propostas pedagógicas são utilizadas mais como subsídio para construção de atividades do que como conhecimentos a serem utilizados para a organização de currículos contextualizados de música. De fato, o conhecimento de propostas metodológicas produzidas em outros contextos históricos ajuda na compreensão de diferentes concepções, objetivos, enfoques e abordagens de ensino de música. Porém, como afirma Pires (2020, p. 142),

esse conhecimento não pode ser tomado como estático para subsidiar práticas a serem replicadas nos diferentes espaços sociais. Ao contrário, o conhecimento metodológico precisa ser transformado e utilizado como matéria-prima para a construção de práticas situadas de ensino de música.

As experiências como docente evidenciaram a necessidade de se fortalecer o conhecimento didático para a organização do ensino no âmbito dos cursos de formação de professores de Música, e essa problemática suscitou algumas questões: Como potencializar a reflexão sobre o espaço escolar e sua influência na prática docente em sala de aula? Como analisar a prática pedagógica do professor a partir da observação de sala de aula? Como a dimensão ética pode ser abordada no processo de aprendizagem da docência? Como trazer à consciência os conhecimentos adquiridos ou em construção? Que dispositivos formativos podem mediar a aquisição de conhecimentos profissionais da docência? Como construir a profissionalidade docente, no âmbito da formação inicial, articulando teoria e prática?

Essas questões impulsionaram a realização da pesquisa de pós-doutorado, que culminou com a construção de um tipo de dispositivo de formação - Pautas Didáticas -, que foi testado no estágio supervisionado no âmbito de um projeto1 que teve como eixo a construção da profissionalidade docente por meio de processos de reflexão. Como apontam Pimenta e Lima (2008, p. 228), “o estágio com pequenos projetos possibilita que os estagiários vivenciem um processo em todas as suas etapas de diagnóstico, planejamento, execução e avaliação, em um espaço de tempo com começo, meio e fim...”.

No âmbito desse artigo, será apresentado o quadro conceitual de referência da pesquisa, quatro Pautas Didáticas (Pauta de observação do espaço escolar, Pauta de observação da sala de aula, Pauta de formação da ética profissional e Pauta de reconhecimento dos aprendizados) e algumas formas de uso no Estágio Supervisionado.

A profissionalidade e a reflexão como referencial da formação docente

A universitarização da formação docente vem impondo aos cursos de formação de professores (re)pensar a formação profissional por uma perspectiva profissionalizante, isto é, com foco na “compreensão das práticas e dos lugares reais de seu exercício” (BOURDONCLE, p. 143, 2007). Podemos dizer que a formação docente é profissional porque os cursos de licenciatura e pedagogia formam profissionais para o exercício de uma profissão - professor; e profissionalizante, porque a formação precisa dialogar com o campo de trabalho, lócus de aprendizado da profissão. Nesta perspectiva, capacitar o profissional para o desempenho de suas atividades pressupõe construir a profissionalidade requerida pela profissão, ou seja, tudo aquilo que é específico para o desempenho da ação profissional.

Desde a formação inicial, tornar-se professor requer a constante reflexão sobre o que se faz, como se faz e por que se faz como se faz na prática pedagógica na sala de aula, e essa aprendizagem docente relaciona-se com a construção da profissionalidade. Na definição clássica trazida por Sacristán (1995, p. 64), a profissionalidade compreende “o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”.

Ao analisar diversas acepções do conceito de profissionalidade, Gorzoni e Davis (2017) afirmam que a profissionalidade docente está associada a diversos aspectos, tais como:

o conhecimento profissional específico; a expressão de maneira própria de ser e atuar como docente; o desenvolvimento de uma identidade profissional construída nas ações do professor e à luz das demandas sociais internas e externas à escola; a construção de competências e o desenvolvimento de habilidades próprias do ato de ensinar conquistadas durante a formação inicial e/ou continuada e também ao longo das experiências de trabalho do professor. (DAVIS, 2017, p. 1396)

Por meio de mediadores (análise de práticas) que ajudam na tomada de consciência, a profissionalidade se constrói a partir da experiência e da prática no campo de trabalho, apoiada em saberes teóricos, saberes da ação e saberes éticos. A dimensão teórica (saber) tem como objetivo subsidiar a organização das ações práticas, dotar o licenciando de variados pontos de vista para o exercício de uma ação contextualizada e oferecer perspectivas de análise de contextos e práticas de ensino. A dimensão prática (saber-fazer) é o momento do desenvolvimento de ações planejadas e intencionais no campo de trabalho que, alimentadas pela teoria, também produzem teoria. A dimensão ética (saber-ser) se relaciona ao desenvolvimento da compreensão do ser e estar na profissão docente, das ações e escolhas da prática pedagógica, por meio da problematização da realidade, do raciocínio e da produção de juízos sobre a ação e para a ação.

De acordo com Roldão (2007), o que caracteriza e distingue o docente de outras profissões é a ação de ensinar, isto é, a atividade de ensino é uma especificidade profissional do professor. Gauthier et al. (2013, p. 341) descrevem o ensino como uma tarefa complexa “que obriga o professor a julgar, que o força a agir e, portanto, a tomar decisões, muitas vezes em situação de emergência, uma tarefa que implica a elaboração e a aplicação de regras por parte dele, que exige reflexão”. Ao desempenhar a atividade de ensino, Sacristán (1995) considera a habilidade de produzir juízos como elemento de definição profissional dos professores, e a capacidade reflexiva como fator essencial para determinar a qualidade de intervenção dos professores. Se a atividade de ensino (dotada de caráter relacional, interativo e contingente) é a que caracteriza a profissão professor e a produção de juízos por meio da reflexão crítica é o que define o profissional e atesta a qualidade do seu trabalho, a formação profissional do professor precisa tomar esses elementos como centrais à organização das experiências curriculares.

O encontro interinstitucional (universidade e escolas de educação básica) favorece compartilhar saberes, crenças, formas de fazer, de ser e de estar na profissão e permite adquirir conhecimentos em situações reais do trabalho docente. Nessa perspectiva, a diversificação de contextos escolares e de experiências de aprendizado da docência é fundamental para perceber a singularidade da cultura escolar, dos ritos e regras, da estrutura e das formas de funcionamento e, por outro lado, compreender aquilo que é comum às escolas de educação básica e à profissão professor. Há também a necessidade de se ter experiências formativas nas diferentes etapas e modalidades de ensino da educação básica, uma vez que cada uma delas requer um conjunto de conhecimentos, capacidades e habilidades que se traduz em formas de ser e de estar na profissão que lhe são próprias. Isso significa dizer que, falar de profissionalidade é pensar em profissionalidades, em identidades profissionais que se constroem sempre em relação aos contextos de trabalho e aos processos de socialização profissional.

Com relação à reflexão, Schön (1992) defende a sua incorporação à formação de professores por meio de dois processos: 1-reflexão-na-ação, que significa refletir sobre a ação docente em tempo real, ajustar comportamentos, formular e testar hipóteses em prol da melhoria da compreensão e aprendizado do aluno; um processo que se dá a partir do pensamento sobre a ação docente e não exige palavras; 2- reflexão sobre a reflexão-na-ação, significa adotar um olhar retrospectivo sobre a reflexão-na-ação, buscando compreender escolhas, ajustamentos e sua pertinência didática; esse processo é uma ação, uma observação, uma descrição que exige o uso de palavras (discurso oral ou escrito).

Zeichner (2008) realiza uma análise crítica sobre a reflexão como conceito estruturante na formação inicial docente, e apresenta como possibilidade de operacionalização o desenvolvimento de um trabalho focado

na ajuda aos licenciandos para compreenderem as razões e as racionalidades que estão subjacentes às diferentes escolhas que são feitas nas salas de aula em que realizam seus estágios, encorajando seus professores-tutores a falar sobre o que eles fazem e gostariam de fazer e de como eles adaptaram suas práticas de ensino para ir ao encontro das necessidades de seus alunos (...). Mesmo quando os estagiários não são capazes de agir de acordo com os resultados de suas análises, eles atingem um nível de consciência que os ajuda a enxergar possibilidades, a ver que o que é não é inevitável e isso reflete visões muito particulares. (ZEICHNER, 2008, p. 544)

Defendendo a necessária conexão da reflexão com a luta por justiça social, Zeichner (2008) destaca que, para além dos aspectos políticos do ensino, os professores precisam saber o conteúdo que são responsáveis por ensinar e saber conectá-los aos conhecimentos prévios dos alunos; aprender sobre seus alunos - o que sabem e podem fazer, sua cultura; saber fazer a gestão dos aprendizados e gestão da classe; e, acima de tudo, saber tomar decisões conscientes das consequências políticas que as diferentes escolhas podem ter.

Discutindo o uso da reflexão como possibilidade de articulação teoria e prática, Gatti et al (2019, p. 187) afirmam que, na formação docente, o conhecimento-base deve se constituir a partir do conjunto de “experiências e análises de práticas concretas que permitam constante dialética entre a prática profissional e a formação teórica e, ainda entre a experiência concreta nas salas de aula e a pesquisa, entre os professores e os formadores universitários”. Isso significa inserir o futuro professor num contexto de ação e reflexão teórica para ressignificar e transformar a ação.

A reflexão como meio de compreensão de razões e racionalidades e de articulação teoria e prática de que falam os autores se efetiva, sobretudo, a partir de uma experiência ética que possibilite analisar princípios, valores e juízos que norteiam as ações, entendendo por que as coisas são como são. Para tanto, múltiplos conhecimentos precisam ser mobilizados, (re)construídos e ampliados, sejam eles teórico, ético, pessoal, situacional, contextual.

Tomando por base a reflexão como forma de articulação teoria e prática e a profissionalidade docente como fonte da aprendizagem da docência foram elaboradas as Pautas Didáticas, dispositivos formativos voltados à profissionalização da formação do professor para atuar em escolas de educação básica. Esses dispositivos podem ser utilizados no Estágio Supervisionado, na etapa de interação com as escolas de educação básica, ou em outros espaços curriculares de cursos de formação de professores que permitam desenvolver atividades de observação e análise de contextos e práticas.

A proposta de Pautas didáticas

As Pautas Didáticas constituem um conjunto de dispositivos de formação mobilizado para favorecer a aprendizagem da docência, por meio de processos de observação, registro e reflexão crítica. Como afirma Sacristán (1995, p. 80), “os procedimentos de autoanálise, de observação crítica da prática e a investigação na ação procuram favorecer uma compreensão crítica da atividade docente, e não uma mera reprodução de esquemas pré-estabelecidos”.

A interação com a escola campo de estágio é a etapa em que o licenciando tem contato com os professores em ação em um espaço real de trabalho, com suas complexidades, dilemas e singularidades. É o encontro com o outro (outros colegas, professores, profissionais da educação, alunos, pais), consigo mesmo (capacidade de enfrentar frustações, de envolver-se pessoalmente, de identificar pontos fortes e fracos), com a instituição escolar (estrutura, funcionamento, currículo, cultura) e com a ética da profissão professor. A simples inserção no espaço escolar não garante aos licenciandos a apreensão da complexidade do exercício profissional e, nesse sentido, dispositivos formativos ajudam a potencializar a observação e interpretação do contexto, acontecimentos cotidianos e diferentes formas de fazer e de ser professor.

Ao discutir sobre o uso de dispositivos formativos em contextos de formação no Brasil, Gatti et al. (2019, p. 196) afirmam que os casos de ensino, o portfólio, os diários reflexivos e os memoriais de formação são frequentemente utilizados, mas “o emprego de recursos audiovisuais e de observação das práticas de ensino ainda são pouco presentes na formação inicial e continuada de professores no país”. Para subsidiar a etapa de interação com a escola no Estágio Supervisionado foram construídos quatro dispositivos de formação, que aqui serão analisados: Pauta de observação do espaço escolar, Pauta de observação da sala de aula, Pauta de formação da ética profissional (utilizada nos dois momentos de observação), Pauta de reconhecimento dos aprendizados (utilizada ao final desta etapa).

Pauta de observação do espaço escolar

A fase de observação do espaço escolar é o momento de diagnosticar o campo de trabalho docente, levantar dados e informações, identificar problemas e possibilidades, descrever, analisar e interpretar fatos em relação aos objetivos da instituição. Como assinalam Pimenta e Lima (2008, p. 226), “o diagnóstico é uma análise cuidadosa, acompanhada de estudos, entrevistas, observações para que possamos compreender a vida na escola, seus problemas e perspectivas”. Por meio da Pauta de observação do espaço escolar são realizadas observações buscando identificar, relacionar e problematizar elementos da estrutura (física, material, recursos humanos, condições do ambiente), do funcionamento (rotinas e regras) e do projeto pedagógico, o PPP da escola (arte no currículo e relações interpessoais). Os dados são coletados com a ajuda deste dispositivo de formação e descritos no diário de campo, lugar que permite registrar impressões, fatos, acontecimentos, dilemas, sentimentos, angústias, dúvidas.

Quadro 1 Pauta de observação do espaço escolar 

Nome da escola:
Endereço:
Categoria administrativa: ( ) pública ( ) privada
Sistema de ensino: ( ) federal ( ) estadual ( ) municipal
Nível de ensino da escola: ( ) EI ( ) EF 1 ( ) EF 2 ( ) EM
Número de alunos: ( ) EI ( ) EF 1 ( ) EF 2 ( ) EM
Turnos: ( ) manhã ( ) tarde ( ) noite
Comentário sobre a localização da escola:
Recursos Físicos Espaço Quantidade
Sala de aula
Sala de reunião
Sala de professores
Sala de música
Sala de informática
Cantina
Secretaria
Pátio
Quadra
Banheiro
Biblioteca
Outros
Recursos Materiais Material Quantidade
Instrumentos musicais ( ) Percussão ( ) Sopro ( ) Teclado
Data show
Televisão
Aparelho de som
Livros de música
Computador
Outros
Recursos humanos Professores ( ) M ( ) H
Professor(a) de Arte ( ) Sim ( ) Não
Linguagem ( ) Música

( ) A. Visuais
( ) Teatro

( ) Dança
Formação
Outros profissionais da educação:
Condições do ambiente Qualidade Muito + ou - Pouco
Arejado
Claro
Organizado
Limpo
FUNCIONAMENTO
Rotinas Entrada e saída da escola
Recreio
Calendário (eventos, atividades programadas)
Uso dos banheiros
Uso da biblioteca
Relação professor/alunos
Relação aluno/aluno
PPP DA ESCOLA
Arte no currículo ( ) parte comum Etapa/ano
Linguagem
Número de horas
( ) parte diversificada Tipos de atividades artísticas
Relações interpessoais Ações de cooperação entre os profissionais da educação
Ações de cooperação entre professores
Tipos de atividades que vinculam a escola à comunidade
Estilo de liderança da diretoria:

( ) centralizador ( ) democrático
Reuniões pedagógicas/conselho de classe

( ) sim ( ) não
Horas reservadas para planejamento __________

Fonte: Elaboração dos autores.

Diante do conjunto de dados a serem coletados pelo grupo de licenciandos, cada um dos membros pode ficar responsável por uma das três categorias (estrutura, funcionamento, PPP) e depois, coletivamente, podem analisar e divulgar os resultados. Caso haja necessidade de esclarecimento de alguma situação observada, o grupo de licenciandos realiza conversas informais ou pequenas entrevistas com o professor supervisor, diretor, coordenador pedagógico ou outro profissional da educação que possa contribuir com a formação. O processo de coleta de dados é também orientado pelo professor supervisor da escola campo de estágio, que se reúne com os estagiários e organiza os horários e as atividades a serem desenvolvidas. Como coformador, o professor supervisor exerce papel fundamental na construção da profissionalidade dos futuros professores, contribuindo para o processo de inserção na cultura escolar e o aprendizado de gestos profissionais da docência.

A coleta de dados sobre o espaço escolar é sustentada por leituras e reflexões teóricas, nos momentos presencias na universidade. Estudos sobre cultura escolar, profissão professor, estágio supervisionado na formação de professor, ética profissional, observação não-participante são temas que ajudam problematizar e compreender a realidade observada. Após a coleta e sistematização, os dados são analisados à luz de questões norteadoras como: De que maneira a estrutura interfere no funcionamento, e vice-versa? Que lugar a música ocupa na cultura escolar e no projeto pedagógico da instituição? Que elementos caracterizam a cultura escolar? Que problemas são identificados e que consequências podem ter para o desempenho da atividade docente?

A reflexão sobre a relação entre estrutura, funcionamento e projeto pedagógico é fundamental para entender a instituição escolar como um todo articulado e construir um olhar mais crítico, para além da simples descrição de dados. Além disso, contribui para situar a prática do professor em sala de aula e levantar pistas para elaborar as intervenções didáticas. Ao final da análise, os dados sistematizados podem ser socializados em Seminários Dialogados, estratégia didática em que as apresentações dos grupos de estagiários são permeadas por reflexões coletivas.

Pauta de observação da sala de aula

De acordo vários autores, ao exercer a atividade de ensino os professores desempenham duas funções articuladas e complementares, que se constituem o coração da vida na sala de aula: a gestão da classe e a gestão dos aprendizados (SHULMAN, 1986; TARDIF, 2011; ALTET, 2012; GAUTHIER et al., 2013; GAUTHIER; BISSONNETTE; RICHARD, 2013). Nesse sentido, a prática docente consiste justamente em fazer convergir as duas funções da melhor maneira possível, uma vez que elas se constituem dimensões centrais da profissão professor. Assim, o ensino explícito dessas funções didáticas deve nortear as atividades formativas dos cursos de formação de professores. No caso das licenciaturas em música, a gestão da classe tem sido uma função negligenciada na formação didático-pedagógica do professor, e a gestão dos aprendizados é abordada de maneira frágil e carece de melhor estruturação e contextualização, sobretudo no que concerne ao desenvolvimento do conhecimento curricular (PIRES, 2015a).

Apesar de outros autores reconhecerem a dupla função, dupla agenda ou duplo papel do professor na atividade de ensino, somente nas obras de Gauthier e colaboradores encontramos uma pesquisa sistemática sobre esse assunto, com descrição detalhada de estratégias didáticas dos momentos de planejamento, interação e avaliação (GAUTHIER et al., 2013; GAUTHIER; BISSONNETTE; RICHARD, 2013). A gestão da classe diz respeito a um conjunto de regras e disposições necessárias à manutenção de um ambiente favorável ao ensino e ao aprendizado dos alunos, que se define em relação às variáveis do contexto de trabalho: atividades, tempo disponível, organização material e social, desenvolvimento intelectual e social dos alunos, influências culturais e socioeconômicas. Já a gestão dos aprendizados engloba o conjunto de operações que o professor utiliza para fazer aprender aos alunos o conteúdo de ensino: planejamento, interação com os alunos e avaliação dos aprendizados. Esse é o momento em que o professor desenvolve o programa de ensino e busca garantir o aprendizado dos alunos.

Evidentemente, as duas funções acontecem de maneira interligada no desempenho da atividade de ensino. O professor que não domina os conteúdos de sua disciplina ou não os apresenta de maneira organizada, provavelmente terá problemas comportamentais (alunos desatentos, desinteressados, conversando entre eles) em sua sala de aula. Da mesma maneira, o professor que não faz uma boa gestão da classe, que perde muito tempo na transição de uma atividade à outra, que não antecipa possíveis problemas de desatenção, pode ter seu tempo de ensino diminuído, comprometendo a aprendizagem dos alunos. Por outro lado, o professor que circula em sua sala de aula durante a realização de exercícios individuais e que proporciona feedback sobre a performance dos alunos, pode contribuir para manter a concentração durante as atividades, aumentando as chances de aprendizagem dos alunos.

A gestão da classe e a gestão dos aprendizados podem ser abordadas com base no ensino explícito, estratégia de ensino estruturada em etapas sequenciadas e profundamente integradas, em que o professor busca, de maneira intencional, apoiar o aprendizado dos alunos através de uma série de ações desenvolvidas em três grandes momentos: 1- planejamento; 2- interação em sala de aula; 3- acompanhamento e consolidação. (GAUTHIER; BISSONNETTE; RICHARD, 2013). Na etapa de interação com os alunos, Archer e Hughes (2011) afirmam que a aula baseada no ensino explícito se estrutura em três partes: 1- abertura; 2- desenvolvimento; e, 3- encerramento.

Com base nessa literatura, a Pauta de observação da sala de aula reúne elementos para a reflexão da gestão da classe - características do espaço, regras de funcionamento e formas de interação; e da gestão dos aprendizados - estratégias didáticas utilizadas na abertura, desenvolvimento e fechamento da aula. Segundo Altet (2012, p. 54), os instrumentos de reflexão de práticas permitem construir a profissionalidade docente pelo desenvolvimento de “uma metacompetência: o saber analisar”. A partir deles é possível ler práticas e situações, explicitar saberes da prática e formalizar saberes sobre a prática.

Quadro 2 Pauta de observação da sala de aula 

Nome da escola ___________________________________________________________
Turma_________________ Turno _______________
Número de alunos_______
Dia_______/_____/______ Horário ______________
Disciplina____________________________
GESTÃO DA CLASSE
Espaço - Como o mobiliário está disposto dentro da sala de aula (carteiras em fileiras, grande círculo, pequenos círculos, em “u”)?
- A disposição do mobiliário facilita o deslocamento do professor e dos alunos?
- Existe espaço suficiente para o desenvolvimento das atividades?
- A sala de aula é arejada e iluminada?
- Existem recursos didáticos à disposição do professor?
- O espaço é silencioso e agradável?
Funcionamento - Existem regras claras sobre como se comportar em sala de aula? Como elas são comunicadas?
- O professor mantém um nível de ordem e de atenção que facilita a aprendizagem? Como?
- O professor estabelece rotinas e procedimentos claros (uso do banheiro, do celular, tom de voz, etc.)
- As normas da turma enfatizam a responsabilidade individual e coletiva?
- Como os alunos são organizados para trabalhar (individualmente, em grande grupo e/ou em pequenos grupos)?
- O professor começa e termina a aula no tempo previsto?
- Existem interrupções externas à sala de aula?
- Quais as estratégias utilizadas pelo professor para lidar com a indisciplina dos alunos?
Formas de interação - Como é organizada a fala das pessoas (fala uma pessoa de cada vez, várias ao mesmo tempo)?
- Como os alunos e o professor falam uns com os outros (interrompendo, aguardando a vez de falar, etc.)?
- Como o professor e os alunos lidam com opiniões diferentes das suas (discutem, se alteram, negociam)?
- Como os alunos interagem uns com os outros?
- Todos os alunos recebem o mesmo tempo de atenção do professor?
- Como os alunos pedem ajuda (levantando a mão, es perando que o professor se aproxime deles, perguntando a um colega)?
- Ao chegar à sala, o professor cumprimenta os alunos?
- O professor utiliza um tom de voz adequado?
GESTÃO DOS APRENDIZADOS
Abertura - O professor desperta a atenção dos alunos? Como?
- O professor apresenta de forma clara os objetivos de aprendizagem da aula? Como?
- O professor retoma os conhecimentos prévios? Como?
- O professor faz um planejamento da aula ou de um conjunto de aulas
- sequências didáticas?
Desenvolvimento - O professor deixa claro quais procedimentos serão desenvolvidos?
- O professor explica de maneira clara o conteúdo a ser ensinado (um conceito, ideia, habilidade, valor)?
- As atividades escolhidas pelo professor favorecem o aprendizado dos alunos?
- O encadeamento das atividades é pensado do simples para o complexo?
- O professor dá feedback aos alunos que perguntam, apresentam dificuldade ou dúvidas?
- O professor utiliza exemplos e contraexemplos para aumentar a compreensão dos conteúdos pelos alunos?
- O professor usa estratégias variadas para fixar o conteúdo (trabalhos em grupos, trabalho individual)?
- O professor utiliza materiais didáticos adequados às necessidades de aprendizado dos alunos?
- O professor repete o conteúdo como forma de aumentar sua retenção? Como?
- O professor avalia os aprendizados ao longo do processo por meio de perguntas, atividades, tarefas para fazer em casa? Como?
- O professor dá tempo aos alunos para pensar depois de fazer uma pergunta?
- O professor supervisiona o trabalho dos alunos? Como?
- O tempo dado aos alunos para desenvolver cada atividade é suficiente?
Encerramento - O professor faz um resumo dos conteúdos ensinados ao final da aula?
- O professor anuncia os conteúdos da próxima aula?
- O professor dá tarefas para fixação dos conteúdos?

Fonte: Elaboração dos autores.

Em se tratando da gestão da classe, os licenciandos são estimulados a refletir sobre os elementos da prática pedagógica; a relação entre o estabelecimento da rotina das atividades, de regras e acordos e a resposta dos alunos a esses combinados; a forma de lidar com os dilemas e conflitos na sala de aula e a interferência nos comportamentos dos alunos; a organização do ambiente da sala de aula e o fluxo das atividades. Quanto à gestão dos aprendizados, eles são incentivados a analisar as estratégias didáticas utilizadas na abertura (objetivos de aprendizagem e sua relação com os conhecimentos prévios dos alunos), no desenvolvimento (tipos de atividades e sequenciamento, organização do tempo em relação ao objetivo de ensino, materiais didáticos, formas de avaliação) e no fechamento das aulas (tarefas, estratégias de fixação do conteúdo).

A fase de observação de sala de aula é apoiada por reflexões teóricas que ajudam compreender a profissão em ação, as relações entre as singularidades do espaço e do currículo escolar e os constrangimentos e possibilidades da prática do professor em sala de aula. Nesse momento, as reflexões sobre o espaço escolar são retomadas e conectadas às análises da prática docente em sala de aula, para ampliar a compreensão da relação entre esses elementos. Os dados coletados são descritos no diário de campo, incorporando-se a eles percepções, sentimentos, dilemas e tensões. Após a análise dos dados, os resultados são socializados em Seminários Dialogados, que podem conter reflexões sobre diferentes estilos de ensino e suas implicações na aprendizagem dos alunos. Como apontam Gauthier, Bissonnette e Richard (2013), existem diferentes formas de ensinar em escolas de educação básica, porém umas se mostram mais eficazes do que outras para fazer aprender aos alunos.

Pauta de formação da ética profissional

No que diz respeito à profissão professor, Caetano e Silva (2009, p. 54) afirmam que “a noção de ética gira em torno de princípios e valores, orientando a ação e o estabelecimento de regras para o bem, nomeadamente o bem do aluno”. Distinguindo ética e moral, Estrela e Caetano (2012, p. 222) consideram que “a ética se situa no campo abstrato dos princípios e sua fundamentação, enquanto que a moral se situa no plano normativo da aplicação desses princípios a situações particulares”.

A dimensão ética da docência se refere ao fato de “esta profissão estar voltada para a formação de outras pessoas, prática que reclama reflexão crítica constante sobre seu significado e implicações no conjunto de valores necessários ao convívio em sociedade” (FARIAS et al., 2011, p. 89). A preocupação com a dimensão ética não é recente e, atualmente, ela ganha destaque associada ao debate sobre o professor como um profissional e a defesa da profissionalização desta profissão. Os princípios éticos se fazem presentes nas interações entre professores e alunos, professores e pais, o próprio docente e seus pares, alunos e alunos, além destes com os gestores e demais profissionais da educação.

A atividade de ensino impõe situações que demandam ao profissional assumir posicionamentos e atitudes, tomar decisões éticas que colocam em confronto diversas perspectivas, sentimentos, ações. O ensino é uma prática social que visa à realização de determinados objetivos educativos e, sua compreensão requer o entendimento do contexto institucional (em que a prática se desenvolve) e das pessoas que interpretam os significados e objetivos do espaço escolar. Nesse sentido, o ensino também se configura uma prática moral e ética, “que depende dos julgamentos de quem o realiza sobre o significado e as consequências de sua prática”. (FRANCO; LISITA, 2014, p. 45). De acordo com as mesmas autoras,

como prática moral, o ensino realiza-se como possibilidade de concretização de valores e intenções postos pela sociedade em que ocorre. Em uma dimensão ética, o ensino supõe uma atitude crítica em relação a esses mesmos valores e intenções. Essa atitude crítica, do plano da ética, é fundamental para uma concepção de ensino como prática social humana que não pretenda meramente a reprodução dos valores e das práticas sociais vigentes - marcados pelas desigualdades e injustiças sociais -, mas sua transformação na direção de práticas sociais mais humanas, justas e dignas”. (FRANCO; LISITA, 2014, p. 45).

A Pauta de formação da ética profissional contém espaços para preencher valores ou princípios éticos, significados, exemplos e contraexemplos de formas de agir na escola. Na etapa de interação com a escola, a dimensão ética é abordada por meio de atividades que ajudam a construir um olhar crítico sobre as situações observadas e a tomar consciência de aspectos e problemas de caráter ético. Divididos em pequenos grupos na sala de aula da universidade, cada grupo escolhe uma situação observada - entre diretor e professores, professor e seus pares, professor e alunos - e o conteúdo ético subjacente, discute significados a partir de um referencial teórico que fundamente os argumentos e aponta possíveis exemplos e contraexemplos de formas de agir na escola.

Quadro 3 Pauta de formação da ética profissional 

Conteúdo ético Significados Formas de agir na escola
Exemplos:
Contraexemplos:

Fonte: Elaborado pelos autores.

A dimensão ética também pode ser abordada por meio de dilemas e tensões, ancorada pela Pauta de formação da ética profissional. Da mesma maneira, cada grupo escolhe um dilema ou tensão, o valor subjacente a ele (por exemplo, justiça) e elabora significados (com base em um referencial teórico), exemplos e contraexemplos de formas de agir com justiça. O processo de reflexão ética pode ser desencadeado por dilemas reais vividos pelos alunos ou por aqueles extraídos da literatura que, num sentido amplo, devem agregar dificuldades e problemas que se constituam em experiências subjetivas de conflito, questionamento e incerteza. (CAETANO; SILVA, 2009).

Ao longo dessa etapa, alguns dilemas podem ser propostos pelo professor da universidade para estimular a reflexão. No caso do curso de Música, podem ser trabalhados os seguintes dilemas: 1- relacionado ao PPP da escola - o professor de música deve atender às solicitações da escola de realizar uma prática artística polivalente, ou ele deve se recusar e trabalhar somente com sua área específica de formação? 2- ligado à atividade de ensino em sala de aula - como valorizar as experiências musicais dos alunos e, ao mesmo tempo, garantir uma interpretação mais elaborada e crítica deste conhecimento? A reflexão sobre esses e outros dilemas podem aumentar a consciência dos futuros professores para deliberar sobre suas escolhas e ações.

Ao observar o espaço escolar e a sala de aula, valores éticos como justiça, respeito, compromisso, envolvimento, responsabilidade e seriedade podem ser analisados pelos licenciandos. A observação refletida permite perceber que a postura do professor, a forma como ele se relaciona com o conhecimento e com os alunos interfere, de maneira positiva ou não, em todo o processo pedagógico. Como afirma Pires (2015b), “a relação ética com o conhecimento gera interesse, disposição para aprender, participação e envolvimento” (p.58).

O exercício de elaboração de julgamentos sobre acontecimentos do espaço escolar, sobre a relação do professor com os alunos, sobre as formas de ensino e de avaliação adotadas pode se configurar uma possibilidade de formação da consciência ética, inerente à profissionalidade docente. Como assinalam Gauthier at al. (2013, p. 391), o professor “tem a responsabilidade ética dos meios. Ele deve empregar os melhores meios possíveis para levar o aluno a aprender”. Do ponto de vista da ética profissional, ela deve ter “uma ética da cultura, que leva em conta a responsabilidade que tem o professor de apoiar o aluno em seu esforço para construir um mundo sensato” (GAUTHIER et al., 2013, p. 391).

Pauta de reconhecimento dos aprendizados

Como finalização da etapa de interação com a escola, os licenciandos são estimulados a avaliar o processo de aprendizagem da docência, explicitando o que reconhecem como aprendizado adquirido no processo de inserção no espaço escolar. Assim como Ricoeur (2006), acreditamos no potencial do reconhecimento como agente transformador e, diante disso, a Pauta de reconhecimento dos aprendizados permite registrar conteúdos adquiridos da profissionalidade docente, seja teórico, prático e/ou ético. Como a interação se dá na universidade (com o professor, com os colegas da turma, com os membros do grupo de estágio) e na escola (com o professor supervisor, diretor e outros profissionais da educação, com os alunos e suas famílias) é importante destacar que todas essas relações e experiências delas advindas são fonte de aprendizado da docência.

Quadro 4 Pauta de reconhecimento dos aprendizados 

Nome:
A etapa Interação com a escola é a fase do estágio supervisionado que tem como objetivo promover um encontro formativo com o campo do trabalho docente. Nesta etapa, a interação se dá de diferentes maneiras: com o professor coordenador (universidade), com os licenciandos (do grupo de estágio e da turma, nos momentos de socialização), com o professor supervisor e outros profissionais da educação (escola), com as crianças e suas famílias. Há também o encontro consigo mesmo, com suas angústias, dúvidas, frustrações, pontos fortes e fracos.

A Pauta de observação do espaço escolar e a Pauta de observação da sala de aula foram construídas com o objetivo de guiar o olhar do observador para: 1- o contexto no qual se desenvolve a prática pedagógica dos professores e suas implicações; 2- a atividade de ensino em si, com foco na gestão da classe e gestão dos aprendizados.

A partir das experiências vivenciadas na universidade, na escola de educação básica e no grupo de estágio, escreva uma narrativa sobre as lembranças do vivido, do experimentado, sobre aquilo que, de fato, te tocou de alguma maneira. Para tanto, reflita sobre situações, dilemas ou momentos de interação que você reconhece como aprendizados importantes para a construção da sua profissionalidade docente.

Fonte: Elaboração dos autores.

A escrita reflexiva exige um retorno sobre a experiência vivida com vistas a sua reelaboração, reavaliação e reconstrução. Ao examinar as possíveis aprendizagens, os licenciandos acabam imersos num processo retrospectivo de identificação de conhecimentos profissionais, de reconhecimento de si, do outro e pelo outro. O movimento de construção de diferentes olhares sobre a experiência, por meio do processo de reflexão e reconstrução dos fatos, contribui para o desenvolvimento pessoal e profissional dos futuros professores.

A partir da análise das narrativas dos licenciandos é possível observar indícios do que está em construção na profissionalidade deles - seja conhecimentos, habilidades, atitudes, destrezas, comportamentos, valores. O que emerge como aprendizados reconhecidos se transforma em pistas para novas abordagens didáticas mais aprofundadas, ou o retorno a determinados conteúdos menos estáveis da profissionalidade em construção.

Considerações finais

Este artigo teve como objetivos refletir sobre as Pautas Didáticas e apresentar algumas formas de uso no Estágio Supervisionado de cursos de formação de professores (licenciaturas e pedagogia). Tomando como referente da formação profissional do professor os conceitos de profissionalidade docente e de reflexão, aspectos como relação teoria e prática, análise crítica e ética de contextos, práticas e aprendizados adquiridos (mais ou menos estáveis) foram abordados por meio da utilização de Pautas Didáticas, dispositivos de formação construídos para mediar a aprendizagem da docência em escolas de educação básica.

A Pauta de observação do espaço escolar tem como foco elementos da estrutura, funcionamento e PPP da escola, e o entendimento de suas relações e implicações na prática docente. A Pauta de observação de sala de aula destaca componentes da gestão da classe (espaço, funcionamento, formas de interação) e da gestão dos aprendizados (abertura, desenvolvimento e encerramento da aula), e fornece pistas para a análise de práticas e de estilos de ensino. Já a Pauta de formação da ética profissional, utilizada durante os momentos de observação do espaço escolar e da sala de aula, apresenta o conteúdo ético, significados, exemplos e contraexemplos de formas de agir na escola, e ao promover a reflexão sobre escolhas, atitudes, comportamentos, tensões e dilemas, permite desenvolver a forma de pensar, julgar e deliberar do futuro professor. Como finalização dessa etapa, a Pauta de reconhecimento dos aprendizados apresenta uma pequena síntese do processo e convida os licenciandos para produzir uma narrativa reflexiva em torno da experiência de interação com a escola, identificando aprendizados (conhecimentos, atitudes, comportamentos, valores, crenças) da docência, a partir do retorno às experiências vividas. A produção da narrativa reflexiva possibilita a articulação de conhecimentos teóricos e práticos e, ao trazê-los à consciência, sua reelaboração constrói conhecimentos profissionais, fortalecendo a profissionalidade emergente.

Cumpre ressaltar que, o uso de Pautas Didáticas para a aprendizagem da docência precisa estar integrado a um processo formativo bem sequenciado e articulado, com pressupostos e objetivos claros, de forma a promover o desenvolvimento de conhecimentos profissionais. O conjunto de dispositivos formativos pode se constituir importante instrumento de profissionalização da formação docente, dos saberes e das pessoas (estagiários). Isso porque, eles permitem identificar comportamentos, atitudes, escolhas metodológicas, formular pontos de vista, formalizar e discutir elementos da prática docente observada, construir postura crítica e ética diante de situações pedagógicas. Ao estimular a reflexividade, as Pautas Didáticas caracterizam uma abordagem profissionalizante, em que o conhecimento se constrói pela tomada de consciência das implicações éticas das escolhas e ações no exercício da profissão docente; ao considerar a escola de educação básica como espaço de ressignificação de valores e práticas, de modos de pensar e agir por meio de processos de reflexão, promove a articulação teórica e prática e uma formação mais profissionalizante aos futuros professores.

A atividade de ensino, considerada a caracterizadora da profissão professor, pressupõe o desenvolvimento de ações planejadas e intencionais baseadas em um saber, um saber-fazer e um saber-ser (ética profissional). As escolhas, atitudes, dilemas e tensões da profissão em ação precisam ser incorporadas aos processos de reflexão para contribuir com o desenvolvimento da consciência profissional e da capacidade de julgamento do futuro professor. Ao conceber o ensino como uma atividade profissional complexa, seu aprendizado pressupõe uma inserção reflexiva no campo profissional. No desempenho da atividade docente, a estrutura, o funcionamento e o currículo das instituições impõem limites às práticas pedagógicas dos professores, mas mesmo assim, eles possuem autonomia para estabelecer regras, rotinas e procedimentos em sala de aula (gestão da classe), para escolher a forma de estruturar e desenvolver o currículo em ação (gestão dos aprendizados). Daí a importância de oferecer aos futuros professores possibilidades de reflexão e análise para a compreensão de contextos, práticas e de si mesmos como profissionais em formação.

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1 Para mais informações sobre o desenvolvimento das etapas do projeto e a análise de alguns dados, consultar Pires (2020).

Recebido: 03 de Julho de 2020; Aceito: 05 de Agosto de 2020; Publicado: 25 de Setembro de 2020

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