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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub Aug 29, 2023

https://doi.org/10.5902/1984644441328 

Artigo Demanda Contínua

Didáticas decoloniais no Brasil: uma análise genealógica

Decolonial didactic methods in Brazil: a genealogical analysis

Alder de Sousa Dias1  , Docente, Doutorando
http://orcid.org/0000-0003-0996-0000

Waldir Ferreira de Abreu2  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0002-0245-9072

1Docente na Universidade Federal do Amapá, Campus Mazagão, Amapá, Brasil. Doutorando na Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil. alderdiass@yahoo.com.br;alder.dias@unifap.br

2Professor doutor na Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil. awaldir@ufpa.br


RESUMO

O artigo tem por objetivo realizar uma genealogia das didáticas decoloniais no Brasil. Resulta de uma pesquisa bibliográfica e de um levantamento documental ancorados, principalmente, em referenciais da Rede Modernidade/Colonialidade e da Didática no Brasil. Aponta-se que a origem da decolonialidade, como razão des-colonial, remonta aos anos 1950 e consolida-se em 1998. No Brasil, identificou-se como marcos entre a decolonialidade e a Pedagogia as teses de Oliveira (2010) e Mota Neto (2015). Elege-se como marco a anteceder uma didática decolonial a publicação de “Didática Crítica Intercultural: proposições”, em 2012. Conclui-se que é delineamento central para a constituição de didáticas decoloniais no Brasil a opção pela transmodernidade e que é preciso decolonizar a didática. Tarefa ainda por fazer.

Palavras-chave: Didáticas decoloniais; Pedagogias Decoloniais; Genealogia

ABSTRACT

This paper makes a genealogy of the decolonial didactic methods in Brazil. It results from a bibliographical research and a documental survey, anchored mainly to Coloniality-Modernity Network and Didactics in Brazil references. The origin of decoloniality as a decolonial reason dates back to the 1950s and is consolidated in 1998. In Brazil, the theses of Oliveira (2010) and Mota Neto were identified as milestones between decoloniality and Pedagogy. (2015). The publication of “Intercultural Critical Didactics: propositions” was chosen as a landmark to precede a didactic didactic in 2012. Lastly, the option for transmodernity is a central design for the constitution of decolonial didactics in Brazil, and it is necessary to decolonize the didactics - a task still to be done.

Keywords: Decolonial didactic methods; Decolonial Pedagogy; Genealogy

Introdução

O artigo tem por objetivo realizar uma genealogia das didáticas decoloniais no Brasil com base na razão des-colonial (MALDONADO-TORRES, 2008). Para isso recorreu a campos temáticos e categorias conceituais distintos, sem adentrar nos pormenores conceituais destas temáticas. Contudo, não se pode avançar no texto sem pontuar sumariamente os conceitos de colonialidade, modernidade e decolonialidade, dada a centralidade que possuem para o objeto do artigo.

A colonialidade consiste em “... um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista” (QUIJANO, 2010, p. 84), que se alicerça na classificação étnico-racial da população mundial, que operou no passado e perdura em nosso presente em todos os planos da existência social. Surge e mundializa-se com a conquista das Américas, por isso é constitutiva da modernidade.

Esta, por vez, surge factualmente quando a Europa, desde o ano de 1492, passa a colocar-se pretensamente como centro e as demais culturas como suas periferias, o que proporcionou a organização de um mundo colonial e o usufruto de suas vítimas (povos originários conquistados, violentados, colonizados) em nível pragmático e econômico (DUSSEL, 1994; 2000; 2012). Do ponto de vista decolonial, esta modernidade perdura. Apenas alargou-se a quantidade de países a tomar lugar de centro fora das circunscrições territoriais europeias.

A decolonialidade surge no mesmo movimento genealógico da colonialidade e da modernidade como mito sacrificial, mas sendo compreendida a um só passo como atitude e razão des-colonial. “A atitude des-colonial nasce quando o grito de espanto ante o horror da colonialidade se traduz em uma postura crítica ante o mundo da morte colonial e em uma busca pela afirmação da vida daqueles que são mais afetados por tal mundo” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66-67, tradução nossa). Logo, trata-se de uma atitude de resistência ético-política ante às formas de poder perpetradas pelos conquistadores e que tem sua gênese na conquista das terras atualmente denominadas de Américas, desde o ano de 1492.

A razão des-colonial consiste em uma postura ético-política e teórica a ser assumida que delineia bases para o conhecimento e para um humanismo de reconhecimento das alteridades em nível planetário (MALDONADO-TORRES, 2008). É desde essa ancoragem que o presente artigo situa-se, pois, desde o ano de 2010, o Brasil vem apresentando um significativo crescimento das produções stricto sensu que têm por uma de suas referências a decolonialidade. São teses e dissertações oriundas de diversas áreas, como Administração, Agronomia, Antropologia, Arquitetura e Urbanismo, Artes, Ciência Política, Comunicação, Direito, Educação, Engenharia, Filosofia, Geografia, História, Letras, Museologia, Psicologia, Saúde, Sociologia, Teologia, entre tantas outras.

Esse dado adquire maior relevância social e científica, porque a decolonialidade implica em desprendimento para com a racionalidade oriunda do grego, do latim e das seis línguas imperiais europeias (italiano, espanhol, português, inglês, francês e alemão), e, ao mesmo tempo, exige abertura às inúmeras possibilidades encobertas como bárbaras, primitivas e místicas pela genealogia imperial gerada por essa mesma racionalidade (MIGNOLO, 2008).

Portanto, são teses e dissertações que tendem a apontar caminhos outros com potencial para, como afirma Mignolo (2008), reintroduzir línguas, memórias, economias, organizações sociais - incluindo-se aí pedagogias -, considerando a alteridade de classes, grupos, povos e culturas que tem sido negada e invisibilizada, por séculos, pela colonialidade, em suas diferentes maneiras.

Para efeito de demonstração dessa crescente produção stricto sensu no Brasil relacionada à decolonialidade, veja-se a área da Educação. Em levantamento realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Catedi/Capes) - para fins de delinear a relevância da pesquisa da qual resulta esse artigo -, ao considerarem-se apenas teses e dissertações cujo termo decolonial conste como descritor de pesquisa, tem-se, no ano de 2011, apenas uma dissertação de mestrado. Em 2012, não há registro de nenhuma tese ou dissertação. Em 2013, surge mais uma dissertação. Daí em diante, o crescimento é significativo, veja-se respectivamente: 2014, três produções; 2015, doze produções; 2016, onze produções; 2017, trinta e duas produções; e, em 2018, quarenta e nove teses/dissertações.

Toda essa produção stricto sensu demanda traçar uma genealogia decolonial em Educação, mais precisamente, sobre as didáticas decoloniais no Brasil, como tarefa de relevância científica e social, sobretudo porque resulta no delineamento de marcos referenciais outros, mas que foram obliterados pela razão moderna até nossa atualidade.

Nesse sentido, concorda-se com Mignolo (2008, p. 251, tradução nossa) ao afirmar que: “Sem essa genealogia, o pensamento decolonial nada mais seria do que um gesto cuja lógica dependeria de qualquer uma das várias genealogias fundadas na Grécia e em Roma, que foram reinscritas na modernidade imperial europeia...”.

Ante os dados expostos, levanta-se uma questão central: que marcos apontam para a constituição de uma genealogia de didáticas decoloniais no Brasil? Questão que se traduz no objetivo geral do artigo: realizar uma genealogia das didáticas decoloniais no Brasil.

Procedeu-se metodologicamente com uma pesquisa bibliográfica e com um levantamento documental no Catedi/Capes e em repositórios de programas de pós-graduação em Educação de universidades brasileiras. Os principais referenciais bibliográficos são: produções de integrantes da Rede Modernidade/Colonialidade (M/C), como Maldonado-Torres (2008), Mignolo (2008; 2014a; 2014b), Dussel (1980; 2012a; 2012b; 2014); produções sobre a Didática no Brasil, com foco para Candau (1996; 2001; 2018), Candau e Koff (2006), Candau e Leite (2007); entre outros. Em relação ao levantamento documental, analisaram-se teses, que em nossa compreensão, são referenciais genealógicos para as didáticas decoloniais no Brasil, com destaque para Oliveira (2010) e Mota Neto (2015).

Ao desenvolver uma genealogia das didáticas decoloniais no Brasil, destacam-se no artigo três seções principais: “Do Pós-Colonialismo à Decolonialidade”: que delineia a origem da decolonialidade enquanto razão, desde o pós-colonialismo à instituição da Rede M/C; “Da Decolonialidade às Pedagogias Decoloniais no Brasil”: que trata de uma genealogia da decolonialidade e da sua relação com a Pedagogia, com foco para o contexto brasileiro; “Da Didática Crítica Intercultural às Didáticas Decoloniais no Brasil”: a advogar que a Didática Crítica Intercultural constitui-se em um antecedente crítico importante para a constituição de didáticas decoloniais no Brasil e que se faz imperativo decolonizar a didática pela transmodernidade.

Do pós-colonialismo à decolonialidade

Está claro que a decolonialidade, enquanto energia de resistência/atitude des-colonial, remonta à conquista das Américas, cronologicamente situada desde o ano de 1492. Do ponto de vista de uma sistematização teórica, a razão des-colonial tem sua gênese em um período muito mais recente. Remonta aos anos 1950, com Aimé Césaire com “Discurso sobre o Colonialismo”, a 1957 com Albert Memmi, ao publicar “Retrato do Colonizado precedido de retrato do colonizador”, e a 1961, quando Frantz Fanon lança “Os condenados da terra”.

Como explicitado na Introdução, não se tem a pretensão de adentrar nos pormenores conceituais destes autores. Nesse momento, o intento é o de adotar uma firme decisão: situá-los como autores pós-coloniais. De um lado, tem-se Memmi - da Tunísia, país africano colonizado pela França -, que lutou pela independência de seu país, mesmo migrando para a metrópole e adotando cidadania francesa. De outro, tem-se Césaire e Fanon, representando o pós-colonialismo, desde o lado do Caribe, como apontam Neves e Almeida (2012).

Esta decisão justifica-se porque - mesmo em trabalhos que objetivam abordar a constituição da Rede M/C - tem-se adotado a compreensão de que o pós-colonialismo é “...um conjunto de contribuições teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais, que a partir dos anos 1980 ganharam evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da Inglaterra” (BALLESTRIN, 2013, p. 90). Nessa cronologia, Césaire, Memmi e Fanon são apresentados não como autores pós-coloniais, mas como antecedentes/precursores do pós-colonialismo, e isso não pode ser tratado como trivialidade intelectual, que não seja digna de uma crítica decolonial.

Em nossa compreensão, tal abordagem não rompe com a superioridade da racionalidade moderna no sentido das inúmeras expressões de colonialidade. Ao contrário, reforça o status do que Mignolo (2014) tem denominado de teo e ego-política do conhecimento e do entendimento como marco da hegemonia da modernidade ocidental, centrada em sua diversidade interna, fechada para a alteridade em suas muitas instâncias de exterioridade, e, obviamente, sem afirmar saberes constituídos em distintas histórias locais, inclusive as que provêm da experiência da colonialidade, como é o caso das contribuições de Césaire, Memmi e Fanon.

Assim, a sumária genealogia que se apresenta tem como marco do pós-colonialismo os anos de 1950, visto que, no que se refere à decolonialidade - energia de resitência/atitude des-colonial e razão des-colonial -, concorda-se com Mignolo (2014a, p. 26, tradução nossa) ao afirmar que: “os textos de Aimé Cesairé e Frantz Fanon podem considerar-se fundadores dos discursos de libertação e do pensamento decolonial”.

Mais tardiamente, no período de 1960 a 1980, é que se tem a evidência genealógica do centro - considerando-se criticamente a relação de poder/saber da geopolítica do conhecimento -, representado pela Inglaterra e Estados Unidos, mais precisamente no âmbito dos estudos culturais e literários, inclusive com um marco cronológico importante: a fundação do Centro de Estudos Culturais contemporâneos, na Universidade de Birminghan (Inglaterra) (BAPTISTA, 2018).

Na esteira da referência anglo-saxã - de centro do poder/saber -, surgem, na década seguinte, os Estudos Subalternos, conforme aponta Ballestrin (2013, p. 92): “Na década de 1970, formava-se no sul asiático, o Grupo de Estudos Subalternos...”, que, na década de 1980, “... tornou-se conhecido fora da Índia, especialmente através dos autores Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakrabarty Spivak” (p. 92).

De acordo com Baptista (2018, p. 104): “Inspirados nos Estudos Subalternos asiáticos, funda-se no início dos anos de 1990, o Grupo Latino-americano dos Estudos Subalternos nos Estados Unidos”, tendo seu manifesto publicado no ano de 1993.

Contudo, inúmeras críticas de membros do Grupo causam sua instabilidade. Ballestrin (2013) destaca a perspectiva de imperialismo dos estudos culturais pós-coloniais e subalternos, pois sua base teórica (Foucault, Derrida, Gramsci e Guha) permanece eurocêntrica, o que, em tese, dificulta o aprofundamento e a radicalização da crítica. Ademais, um espelhamento do contexto indiano para o contexto latino-americano ocultaria, no debate, sua própria trajetória histórica de dominação e de resistência.

Para Baptista (2018, p. 105), “essas e outras críticas, como o rompimento com a episteme do Norte, levaram à dissolução desse grupo sobre Estudos Subalternos em 1998 e, daí, nasce o Grupo Modernidad/Colonialidad - M/C”.

De nossa parte, ao ancorar-se em Grosfoguel (2013, p. 42, tradução nossa), opta-se pelo termo rede em vez de grupo, conforme o autor esclarece:

Primeiro, gostaria de esclarecer que não existe um grupo de modernidade/colonialidade, isso é uma ficção. Por favor, escreva como estou dizendo. É uma grande ficção, não existe tal coisa. O que existe é uma rede, e é uma rede muito frágil. As pessoas acreditam que este é um grupo e que pensamos igual. Não, aqui ninguém pensa igual. A rede é heterogênea e em seu interior existem fortes críticas.

Entre os principais representantes da Rede M/C, menciona-se Catherine Walsh, Zulma Palermo, Aníbal Quijano (falecido em 31 de maio de 2018), Enrique Dussel, Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres, Arturo Escobar, Ramón Grosfoguel e Santiago Castro-Gómez. A esse respeito, apresenta-se um quadro baseado no de Ballestrin (2013), que aponta de modo mais detalhado os integrantes dessa Rede, suas áreas de pesquisa, nacionalidade, vínculo institucional e país de trabalho:

Quadro 1 Integrantes da Rede M/C 

INTEGRANTE PAÍS DE ORIGEM ÁREA VÍNCULO
Aníbal Quijano Peru Sociologia Universidad Nacional de San Marco (Peru)
Enrique Dussel Argentina Filosofia Universidad Nacional Autónoma de México (México)
Walter Mignolo Argentina Semiótica Duke University (EUA)
Immanuel Wallestein EUA Sociologia Yale University (EUA)
Santiado Castro-Gómez Colômbia Filosofia Pontificia Universidad Javeriana (Colômbia)
Nelson Maldonado-Torres Porto Rico Filosofia University of California, Berkeley (EUA)
Ramón Grosfoguel Porto Rico Sociologia University of California, Berkeley (EUA)
Edgardo Lander Venezuela Sociologia Universidad Central de Venezuela (Venezuela)
Arturo Escobar Colômbia Antropologia University of North Carolina (EUA)
Fernando Coronil Venezuela Antropologia University of New York (EUA)
Catherine Walsh EUA Linguística Universidad Andina Simón Bolívar (Equador)
Boaventura Santos Portugal Direito Universidade de Coimbra (Portugal)
Zulma Palermo Argentina Semiótica Universidad Nacional de Salta (Argentina)

Fonte: Ballestrin (2013, p. 98).

Como se pode observar, tendo-se por referência Ballestrin (2013), a heterogeneidade dos membros da Rede M/C perpassa por sete diferentes nacionalidades, seis áreas do conhecimento, doze universidades espraiadas em oito países, das quais seis situam-se na América Latina (Argentina, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela) e as outras seis estão situadas dos EUA.

Apesar de não ser objeto deste artigo, não se pode deixar de registrar alguns pontos para reflexão e quiçá para estudos posteriores: (1) a ausência de intelectuais brasileiros na Rede M/C, dado já apontado por Ballestrin (2013); (2) há uma inexpressiva presença de mulheres na Rede, pois Zulma Palermo e Catherine Walsh são as únicas que a integram (Cf. Quadro 1); (3) ainda sobre a questão de gênero, é importante considerar que Zulma Palermo e Catherine Walsh adentraram à Rede M/C posteriormente - respectivamente em 1999 e em 2001 (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), portanto, não se pode dizer que são (co)fundadoras, o que pode indicar que não ocupam papel de referência entre os integrantes; e (4) apenas elas ocuparam-se recentemente com o tema da pedagogia em perspectiva decolonial, o que talvez seja um reflexo, nessa Rede, das construções sociais e culturais sobre o masculino e o feminino, que inclusive tendem a apontar o trabalho educativo como profissional para o feminino e como trabalho secundário para o masculino (SOUZA, 2010).

Considerando o teor já exposto nessa seção e como esforço de síntese didática, apresenta-se uma ilustração dessa sumária genealogia desde o pós-colonialismo à criação da Rede M/C.

Fonte: Autoria própria com base em Mignolo (2014a), Neves e Almeida (2012), Ballestrin (2013) e Baptista (2018).

Figura 1  Do Pós-Colonialismo à Decolonialidade: uma sumária genealogia 

Nas próximas linhas, o foco será explicitar o movimento genealógico da Decolonialidade (ancorada na Rede M/C) às pedagogias decoloniais no Brasil.

Da Decolonialidade às pedagogias decoloniais no Brasil

Nessa seção, o foco inicial será para Zulma Palermo e Catherine Walsh, considerando suas produções sobre pedagogias decoloniais no âmbito da Rede M/C. Contudo, é preciso destacar a profícua produção de Enrique Dussel, que desde antes da instituição Rede M/C, a partir da filosofia da libertação e da ética da libertação, apontou trabalhos no sentido de uma pedagógica latino-americana (DUSSEL, 1980), situando Paulo Freire como “... um educador da ‘consciência ético-crítica’ das vítimas, dos oprimidos, dos condenados da terra, em comunidade” (DUSSEL, 2012a, p. 427).

Mas voltando-se o foco para as duas integrantes da Rede M/C e suas produções sobre pedagogias decoloniais, tem-se que, no Brasil, o texto mais evidenciado de Walsh é “Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver”, que se constitui em um capítulo de uma coletânea de textos organizados por Candau (2009).

No caso de Palermo, o destaque é para o livro “Para una Pedagogía Decolonial”, prefaciado por Walter Mignolo e publicado em 2014, pela Editora Del Signo, de Buenos Aires, que faz parte da Série “El desprendimiento”, a reunir “[...] diversos ensaios pela ideia do ativo abandono das formas de conhecer que nos sujeitam, e modelam ativamente nossas subjetividades nas fantasias das ficções modernas” (MIGNOLO, 2014b, p. 7, tradução nossa).

Contudo, cabe uma reflexão por paralelismo: por mais consolidado que esteja, “...o pós-colonialismo anglo-saxônico não é prerrogativa de autores diaspóricos ou colonizados das universidades periféricas” (BALLESTRIN, 2013, p. 91). Da mesma maneira, ter como objeto de estudo a decolonialidade latino-americana não é prerrogativa, ou seja, não é exclusividade dos integrantes da Rede M/C.

São muitos os sujeitos que se engajam em projetos “outros” de sociedade e de processos educativos, em distintas situações, que se colocam contra a pedagogia da matriz modernidade/colonialidade e que propõem pedagogias críticas alinhadas ao projeto decolonial, evidenciando suas especificidades, sem perder de vista o diálogo com o todo. Nesse sentido, corrobora Palermo (2014, p. 139, tradução nossa):

Estas situações dialógicas tornadas ato por distintos agentes, de distintas pertinências no espaço educativo e disciplinar tornaram visíveis, ao mesmo tempo, os problemas específicos e as expectativas gerais em direção a uma ordem transformadora de saber. Uma ordem nascida do diálogo, que evite a reprodução do pensamento único desprendido das relações de poder definitivamente vigentes na pedagogia do controle e da autoridade, na ‘pedagogia da crueldade’.

Dessa práxis decolonial engajada, surgem expressões de resistência-luta-produção intelectual, como é o caso das pedagogias decoloniais, que, nos dizeres de Walsh (2009 p. 27), são:

[...] pedagogias que dialogam com os antecedentes crítico-políticos, ao mesmo tempo em que partem das lutas e práxis de orientação decolonial. Pedagogias que [...] enfrentam o mito racista que inaugura a modernidade [...] e o monólogo da razão ocidental; pedagogias que se esforcem por transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônica-espiritual que foi, e é, estratégia, fim e resultado do poder da colonialidade.

Nesses termos, as pedagogias decoloniais são pedagogias alinhadas à decolonialidade, contrárias à colonialidade em suas inúmeras formas e à modernidade, em seu sentido negativo, enquanto mito sacrificial. São pedagogias que visam à proposição de sociedades e de processos educativos outros, isto é, que considerem positivamente a alteridade e a pluriversalidade que marca o gênero humano em todos os quadrantes do planeta.

Por esse motivo, faz-se muito mais pertinente o uso do termo no plural: pedagogias decoloniais, do que seu uso no singular, haja vista que os sujeitos e os contextos são pluriversos por natureza. Ideia reforçada por Arroyo (2012) ao defender que, para outros sujeitos, é preciso outras pedagogias.

Inclusive, não que seja necessário, mas a própria matriz do conhecimento moderno pode reforçar essa ideia, tal como afirma um filósofo da educação alinhado a uma epistemologia euro-norte-americana e moderna, “...quando vamos para o âmbito prático, não temos pedagogia e sim pedagogias” (GHIRALDELLI JR., 2012, p. 10, destaque nosso).

Seguindo essa lógica e trazendo o debate decolonial para a Pedagogia, ainda que tardiamente, o Brasil tem se ocupado dessa discussão. De acordo com pesquisas, aponta-se que a primeira tese em Educação a ter como suporte teórico a decolonialidade foi “Histórias da África e dos africanos na escola. As perspectivas para a formação dos professores de História quando a diferença se torna obrigatoriedade curricular”, de autoria de Luiz Fernandes de Oliveira, defendida em 08 de abril de 2010, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Em nossa perspectiva, apesar de não ter como objeto de pesquisa as pedagogias decoloniais, compreende-se que a tese traz avanços à decolonialidade no contexto brasileiro. Isso porque Oliveira (2010), ao ancorar-se na abordagem de pedagogia decolonial de Catherine Walsh, que surgiu no âmbito dos movimentos sociais indígenas andinos, torna original tal abordagem a partir de sua reinterpretação à educação das relações étnico-raciais no Brasil, mais precisamente desde a implementação da Lei 10. 639/2003. Eis um salto de relevância às pedagogias decoloniais que precisam ser (re)inventadas, considerando-se os diversos condicionantes sócio-históricos de povos e grupos que sofrem das mazelas da modernidade/colonialidade, incluindo-se aí o próprio povo brasileiro.

Outro marco central ao debate entre a decolonialidade e a Pedagogia é a tese “Educação Popular e Pensamento Decolonial Latino-Americano em Paulo Freire e Orlando Fals Borda”, de João Colares da Mota Neto, produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Instituto de Ciências da Educação, da Universidade Federal do Pará, e defendida no ano de 2015.

Metodologicamente, consiste em uma tese teórica que não apenas sustenta-se nos marcos referenciais da decolonialidade. O autor aponta limitações das formulações teóricas da Rede M/C, por exemplo: em relação ao economicismo de Quijano e Wallerstein; a demasiada ênfase ao racismo e a pouca crítica ao capitalismo de Maldonado-Torres; e a discordância com Walsh sobre a maneira de compreender o legado de Paulo Freire à decolonialidade (MOTA NETO, 2015).

O autor alcança os objetivos propostos pela tese, os quais se destacam, nesse texto, apenas dois: a análise da constituição de uma concepção decolonial nos pensamentos de Orlando Fals Borda e Paulo Freire - estes compreendidos como antecedentes do debate decolonial - assim como a explicitação de pressupostos de uma pedagogia decolonial como expressão da educação popular, fazendo avançar ainda mais as pedagogias decoloniais para além do contexto andino.

Assim, colocam-se ambos os autores - Oliveira (2010) e Mota Neto (2015) - como marcos genealógicos ao debate da decolonialidade em relação à Pedagogia. O primeiro por fazer avançar as pedagogias decoloniais de Walsh nos marcos da educação das relações étnico-raciais a partir da implementação da Lei 10. 639/2003 e o segundo autor, principalmente, por desenvolver uma nova definição de pedagogias decoloniais desde a educação popular latino-americana, por delinear pressupostos teórico-metodológicos decoloniais e por situar Freire e Fals Borda como antecedentes da decolonialidade. A seguir, apresenta-se uma ilustração com a finalidade didática de abordar esses principais marcos genealógicos.

Fonte: Autoria própria com base em Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), Oliveira (2010) e Mota Neto (2015).

Figura 2 Marcos genealógicos da Decolonialidade e a Área da Pedagogia no Brasil 

A seguir, analisam-se algumas produções próprias da Didática, compreendida como campo e disciplina ligada à Pedagogia (HEGETO, 2014), tendo-se por foco principal a perspectiva denominada de Didática Crítica Intercultural, que, de acordo com a perspectiva abordada neste trabalho, constitui-se no principal antecedente crítico para o debate das didáticas decoloniais.

Da didática crítica intercultural às didáticas decoloniais no Brasil

Primeiramente, parte-se do pressuposto de que não foi e não é pretensão da Didática Crítica Intercultural tornar-se uma didática decolonial. Mesmo assim, assume seu lugar de destaque como antecedente crítica das didáticas decoloniais no Brasil, sobretudo por sua contribuição para o reconhecimento das alteridades negadas, das culturas do cotidiano da escola e pela aproximação teórica com Catherine Walsh, como uma das integrantes da Rede M/C.

Destacar esse pressuposto, desse modo, é condição central para seguir com a análise e evitar uma crítica infundada fora do condicionante histórico-social e teórico de constituição da Didática Crítica Intercultural.

Desde o ponto de vista de uma razão des-colonial - tal como propõe Maldonado-Torres (2008) - defende-se que um condicionante a contribuir na genealogia de didáticas decoloniais, no contexto brasileiro, é a constituição da Didática Crítica Intercultural, que remonta à década de 1980.

O primeiro marco genealógico da Didática Crítica Intercultural remonta à organização da coletânea de textos intitulada de “A Didática em Questão”, publicada no início dos anos 1980, pois, como afirma Candau (1996, p. 9, destaque nosso), “Esta publicação reúne os principais trabalhos apresentados no Seminário A Didática em questão, promovido pelo Departamento de Educação da PUC/RJ, com o apoio do CNPq, e realizado no período de 16 a 19 de novembro de 1982”.

No primeiro capítulo desta coletânea, de autoria de Candau (1996), são explicitados os fundamentos de sua proposta de didática. No corpus do texto, a autora analisa o ensino da didática no Brasil. Destaca dois períodos: de 1960 a 1970 e de 1970 a 1980, que, respectivamente, correspondem ao ensino de ênfase no tecnicismo e no mito da neutralidade e ao ensino com ênfase na política (deixando-se de lado a dimensão técnica).

Ante a polarização entre o técnico e o político, Candau (1996) propõe a articulação orgânica das dimensões humana, técnica e político-social do processo ensino-aprendizagem no que denominou de Didática Fundamental.

Em uma releitura de Candau (1996), delineiam-se algumas características da Didática Fundamental, de modo que o autor: compreende o objeto de estudo da didática, isto é, o processo ensino-aprendizagem configurado à sua multidimensionalidade (técnica, humana e política); tem na materialidade e seus determinantes o ponto de partida para a análise da prática pedagógica; repensa as três dimensões do processo ensino-aprendizagem, situando-as à especificidade da prática pedagógica em questão; tende para a práxis propositiva, na medida em que realiza análise e reflexão sobre as práticas pedagógicas; explicita sua politicidade ao posicionar-se a favor da transformação social a partir da busca de um melhor processo ensino-aprendizagem aos usuários da educação escolar, principalmente, aos das escolas públicas (maioria da população); enfatiza o trabalho colaborativo entre diferentes profissionais da educação escolar (professores e especialistas); e aborda o currículo em sua interação concreta com a população e suas demandas.

Tais características apontam para a atualidade crítica à sociedade capitalista e às políticas educacionais que precarizam não apenas o processo ensino-aprendizagem que ocorre na educação escolar, mas o sistema educacional brasileiro em sua inteireza.

Considerando a historicidade de sua Didática Fundamental no contexto das reformas neoliberais dos anos 1990, determinadas por organismos multilaterais, a autora agrega três pontos críticos: o cotidiano escolar, o saber docente e a relação entre escola e cultura (CANDAU, 2018).

É no bojo dessa historicidade que a autora evidencia sua postura de intelectual epistemologicamente sempre em movimento. Um indicativo é a criação do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura (s), cuja autora faz a seguinte menção:

É importante salientar que em 1996, surge o GECEC - Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura (s), vinculado ao Departamento de Educação da PUC-Rio, que coordenamos e através dele vimos desenvolvendo sistematicamente pesquisas que aprofundam desde diferentes pontos de vista estas relações. (CANDAU, 2018, p. 11).

Acompanhando essa historicidade, chega-se aos anos 2000, e, em trabalho apresentado no Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, a autora afirma que a didática dos anos 1980 esteve atrelada à matriz teórica da modernidade no sentido das utopias e das metanarrativas (CANDAU, 2001).

Diante dessa crítica e considerando a incorporação do cotidiano escolar, do saber docente e da relação entre escola e cultura, a autora passa a utilizar referenciais da corrente teórica denominada de pós-modernidade, na perspectiva de buscar elementos para repensar a pedagogia e a didática, sem descaracterizar sua Didática Fundamental e agregando temáticas emergentes, principalmente a cultura e o cotidiano escolar (CANDAU, 2001).

Ainda nos anos 2000, a autora passa a agregar outro referencial teórico. Desta vez, oriundo da produção intelectual crítica da América Latina. Trata-se da parceria acadêmica realizada com Catherine Walsh, como visto anteriormente, integrante da Rede M/C.

Em outubro de 2007, realizamos um seminário presencial, no Rio de Janeiro, com a professora Catherine Walsh, em que discutimos e aprofundamos a perspectiva desenvolvida pelo grupo “Modernidade/Colonialidade”, especialmente em suas relações com a educação. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 21).

Portanto, o seminário de 2007, realizado pelo GECEC, contando com a presença de Walsh, apresenta-se como um marco genealógico, a partir do qual se aponta a Didática Intercultural Crítica como antecedente de uma possível didática decolonial.

Destaca-se, mais uma vez, a capacidade de reinvenção intelectual de Candau. Isto porque depreende-se que, a partir do contato com Catherine Walsh, agrega o referencial praxiológico da Interculturalidade Crítica aos seus estudos e pesquisas. Para reforçar tal argumento, destaca-se que nesse mesmo decênio, Candau e colaboradores produzem inúmeros trabalhos resultantes de pesquisasa explicitar fundamentos e práticas de uma didática em perspectiva intercultural, entre eles, destacam-se: Candau e Koff (2006), Candau e Leite (2007).

Contudo, de acordo com nossa análise, o principal marco genealógico para uma didática decolonial é a publicação, no ano de 2012, da coletânea “Didática Crítica Intercultural: aproximações”, que, organizada por Candau, conta com textos elaborados no âmbito do GECEC, nos quais se apresenta a perspectiva de uma didática crítica intercultural, conforme afirma a própria autora: “Os trabalhos incluídos nesta publicação, elaborados no contexto do GECEC, expressam nosso caminhar na perspectiva de construir uma didática crítica e intercultural” (2018, p. 14).

A esse ponto, cabe ilustrar, panoramicamente, uma genealogia da didática desenvolvida por Candau(1996; 2001; 2018), Candau e Koff (2006), Candau e Leite (2007) e Oliveira e Candau (2010), cuja relevância, conforme nossa análise, situa-a como antecedente das didáticas decoloniais.

Fonte: Autoria própria com base em Candau (1996; 2001; 2018), Candau e Koff (2006), Candau e Leite (2007) e Oliveira e Candau (2010).

Figura 3 Genealogia da Didática Crítica Intercultural 

A Didática Crítica Intercultural alicerça-se em três teses fundamentais:

1.A educação escolar, configurada a partir da modernidade, está instada a ser “reinventada” para enfrentar as questões atuais de um mundo complexo, desigual, diverso e plural. 2.A perspectiva crítica da Didática, que teve um amplo e significativo desenvolvimento no nosso país, especialmente a partir dos anos 80, está hoje desafiada por questões que exigem novos desenvolvimentos, buscas, preocupações e pesquisas. 3.É a partir do enfoque intercultural que apostamos na construção deste processo de ressignificação da Didática. (CANDAU, 2018, p. 111).

Nota-se claramente um movimento de atualização, isto é, de uma Didática Fundamental à uma Didática Crítica Intercultural, mantendo-se as características da primeira e agregando a Interculturalidade Crítica decolonial de Catherine Walsh como tentativa de se (re)construirem processos de ensino-aprendizagem, considerando interseccionalidades que envolvem relações de saber-poder, questões étnicas, de gênero, entre outras.

Contudo, cabe destacar que Candau (2018) não deixade lado o referencial teórico da pós-modernidade, que, apesar de crítica, permanece eurocêntrica, em-si-mesmada e tautológica. Em outras palavras, para além desse neologismo, a pós-modernidade alinha-se à colonialidade e à modernidade, de acordo com o referencial decolonial de Dussel (2014), explicitado anteriormente.

Assim, compreende-se que a militância da autora a levou a incorporar a interculturalidade crítica em sua proposta de didática, haja vista assumir que: “O importante é reconhecer a existência de diversos saberes e conhecimentos no cotidiano escolar e procurar estimular o diálogo entre eles, assumindo os conflitos que emergem desta interação” (CANDAU, 2018, p. 131).

Ao chegar nesse ponto da análise, ainda que não seja o objetivo central do texto, não é possível fugir ao debate sobre algumas (não) relações entre a Didática Crítica Intercultural e a possibilidade teórica de uma didática decolonial.

Conforme visto anteriormente, nota-se que a interculturalidade crítica tem sido assumida como uma ancoragem da proposição de didática de Candau (2018). Em outras palavras, de maneira consciente e livre, a opção é pela interculturalidade crítica, o que é compreendido inclusive dado o histórico de militância da autora. A opção tomada não foi pela decolonialidade.

De fato, compreende-se que interculturalidade crítica e decolonialidade são projetos de luta/resistência distintos, embora se retroalimentem, conforme aponta Walsh (2009):

“...a interculturalidade crítica e a decolonialidade...” são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir. (WALSH, 2009, p. 25).

Outro dado que merece destaque é que - a despeito da incorporação da interculturalidade crítica - a Didática Crítica Intercultural permanece na esteira da modernidade/colonialidade, mais especificamente com foco na pós-modernidade, tal como explicitado anteriormente.

De nosso ponto de vista, considerando-se a constituição de uma didática decolonial não está em jogo apenas uma mudança de referência teórica de A para B. Apesar disso, faz-se importante delinear alguns apontamentos críticos que a decolonialidade faz da pós-modernidade. Nas palavras de Dussel (2014, p. 74):

Diferentemente dos pós-modernos, nós não propomos uma crítica da razão com tal; mas aceitamos sua crítica de uma razão violenta, coercitiva e genocida. Não negamos o núcleo racional do racionalismo universalista do Iluminismo, somente seu momento irracional como mito sacrificial. Não negamos a razão, em outras palavras, mas a irracionalidade da violência gerada pelo mito da modernidade. Contra o irracionalismo pós-moderno, afirmamos a ‘razão do Outro’.

Compreende-se que ter como elemento central de uma teoria decolonial a pós-modernidade é, no mínimo, um contrassenso, pois tal prática não ajudaria a romper com o controle do Norte para com o Sul. Ajudaria, sim, a criar, manter e/ou reforçar a colonialidade, inclusive a do saber. A decolonialidade preconiza a libertação dessa histórica amarra. Assim, não se trata apenas da mudança de referencial teórico, mas do processo de construção de uma sociedade não mais universal, mas pluriversal. Em síntese, o que está em jogo é a utopia da decolonialidade denominada de transmodernidade, que para Dussel (2014), é definida da seguinte maneira:

Trans-modernidade (como projeto de política, econômica, ecológica, erótica, pedagógica e libertação religiosa) é a correalização do que é impossível cumprir para a modernidade por si mesma: isto é, uma solidariedade incorporativa que é chamada analética, entre centro e periferia, homem/mulher, diferentes raças, diferentes grupos étnicos, diferentes classes, civilização/natureza, cultura ocidental/cultura do Terceiro Mundo, etc. (DUSSEL, 2014, p. 74-75, tradução nossa, destaque nosso).

Sobre os termos Sul e o Trans no contexto da transmodernidade, Dussel (2012b, p. 28) explicita: “O Sul não é e nem será pós-moderno. ‘Trans’ se refere ao que está para além da modernidade, a outra Época do mundo (que já não é eurocentrada, surge desde o Sul e inclui o Norte: é o planetário)”.

De outro modo, compreende-se que apropriação por assimilação da pós-modernidade implica parcialidade e limitações quanto ao intento radical de transformação por não romper com a modernidade/colonialidade. Inclusive, esse é o principal motivo de Dussel (2012b, p. 28) afirmar que o termo: “‘Post’ traduzido para ‘pós’ indica a última etapa crítica da modernidade europeia (ainda uma hipótese eurocêntrica, somente do Norte: é o particular com pretensão infundada de universalidade)”.

Nesse sentido, considerando os condicionantes estruturais em que a Pedagogia - área do conhecimento - tem sido hegemonicamente realizada no Sul, ou seja, como pedagogias da crueldade (PALERMO, 2014), é preciso que uma didática decolonial - como campo da Pedagogia - tenha por opção o desprendimento como elemento que: “...conduz a teorias críticas decoloniais e à pluriversalidade não eurocentrada de um paradigma-outro” (MIGNOLO, 2014a, p. 81).

Assim, buscando esse desprendimento rumo à transmodernidade, por meio de uma didática decolonial, reforça-se a seguinte ideia-chave: é preciso assumir a transmodernidade como projeto de libertação decolonial.

O ponto de partida teórico e geopolítico da decolonialidade, então, não é a pós-modernidade, mas a transmodernidade de Dussel (1993), que se ancora fundamentalmente no reconhecimento material e ético-político da alteridade dos sujeitos negados em seus modos concretos de se fazer “no” e “com” o mundo ante o projeto da colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial. Pela transmodernidade, não se nega o projeto de modernidade eurocentrada, considera-se sua positividade semântica como razão emancipadora, mas transformando-a em razão libertadora. (DIAS; ABREU, 2019, p. 1230).

Nesses termos, afirma-se: é preciso “decolonizar...” Decolonizar as relações humanas em geral e tudo o que delas desdobra-se, como as relações de gênero, o trabalho, o lazer, as relações culturais, das quais provêm o fenômeno da educação... Nessa esteira, cabe decolonizar a didática em direção à transmodernidade, como projeto utópico decolonial.

Considerações Finais

Em linhas gerais, realizou-se uma análise genealógica das didáticas decoloniais no contexto brasileiro. Tal processo iniciou com uma definição: a decolonialidade é, ao mesmo tempo, energia de resistência/atitude e razão decolonial. Como energia/atitude, sua origem remonta ao ano de 1492, quando se inicia o processo de conquista das Américas. Como razão, sua origem remonta aos anos 1950, com os estudos pós-coloniais iniciados por Albert Memmi, Aimé Césaire e Frantz Fanon. Deste ponto em diante, houve alguns desdobramentos, tais como a consolidação dos estudos pós-coloniais anglo-saxônicos, a constituição do grupo de estudos subalternos do sul asiático, a criação do Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos e, em 1998, a instituição da Rede M/C.

Deste processo genealógico, confere-se destaque para Zulma Palermo e Catherine Walsh, integrantes da Rede M/C a produzir sobre pedagogias decoloniais. No Brasil, a relação entre a decolonialidade e a Pedagogia adentra ao espaço das produções stricto sensu. Nesse caso, até onde chega nosso olhar, situa-se Luiz Fernandes de Oliveira como o primeiro a defender uma tese em Educação tendo por suporte teórico a pedagogia decolonial andina de Walsh. Outro destaque é João Colares da Mota Neto, que em 2015, propõe uma nova definição de pedagogia decolonial, desde os marcos da educação popular latino-americana. Também situa elementos teórico-metodológicos desta pedagogia e atesta que Orlando Fals Borda e Paulo Freire são antecedentes críticos da decolonialidade.

Ainda em diálogo entre a decolonialidade e a Pedagogia, mas adentrando ao campo da Didática, aponta-se que, no ano de 2012, houve a publicação de uma coletânea de textos organizada por Vera Maria Ferrão Candau, intitulada de “Didática Crítica Intercultural: proposições”. De acordo com a perspectiva deste trabalho, esse dado é principal antecedente crítico para construírem-se didáticas decoloniais, sobretudo pela inserção das culturas do cotidiano escolar, pelo reconhecimento das alteridades negadas e pela aproximação com a Rede M/C, por meio de Catherine Walsh e de outros autores.

Por fim, explicitam-se alguns elementos que podem ajudar na constituição de didáticas decoloniais, tais como a opção radical pela decolonialidade e seu projeto transmoderno de sociedade. Por isso, conclui-se afirmando que é preciso decolonizar a didática. Tarefa ainda por fazer.

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Recebido: 26 de Novembro de 2019; Aceito: 15 de Abril de 2020; Publicado: 25 de Setembro de 2020

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