Introdução
Este texto é resultado de um exercício de pesquisa qualitativa de cunho fenomenológico-hermenêutico realizado, durante o primeiro semestre de 2019, na disciplina “Análise Textual Discursiva”, sob a responsabilidade das autoras, desenvolvida em uma turma que integra pós-graduandos do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências (PPGEC); do Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental (PPGEA); e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Intencionamos, com este artigo mostrar como fazer um movimento analítico a partir da redução nomotética1 de uma das categorias oriundas da análise realizada segundo a metodologia da Análise Textual Discursiva - ATD, proposta por Moraes e Galiazzi (2016). Em síntese, a ATD consiste na produção de unidades de significado (unitarização), seguida da aproximação de sentidos, em processos recursivos de categorização. A produção de metatextos descritivos é etapa final da metodologia de análise, momento em que as informações empíricas são articuladas com interlocutores teóricos selecionados para uma melhor compreensão do fenômeno em estudo.
O que moveu o exercício de pesquisa coletiva foia pergunta fenomenológica: O que é isso que se mostra de Educação Ambiental nos resumos de teses do Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental (PPGEA).
A primeira etapa da pesquisa consistiu na unitarização de 26 resumos de teses do PPGEA do período compreendido entre os anos de 2014 e 2018. Cada participante foi responsável pela unitarização de um dos resumos, tendo como foco a questão de pesquisa, resultando em trezentas e vinte e quatro (324) unidades de significado. Essas unidades de significado foram aproximadas por sentidos para que chegássemos às categorias iniciais. De processo similar decorreram as categorias intermediárias as quais, novamente aproximadas, originaram as categorias finais. Neste processo de categorização foi feita a redução de sentidos com foco na questão de pesquisa. As treze (13) categorias intermediárias foram reagrupadas em cinco (05) categorias finais, assim denominadas: educação estético-ambiental; problematização; teorização; transformação e reconhecimento do outro.
Este texto pretende mostrar o processo de análise que realizamos, usando as premissas da Análise Textual Discursiva - ATD, metodologia proposta por Roque Moraes e Maria do Carmo Galiazzi (2016), e seus procedimentos de cunho fenomenológico-hermenêutico. O primeiro deles é o de desviar-se de pré-teorizações e pré-conceitos, deixando que o fenômeno se mostre em suas possibilidades de aparecer. Esta é a intenção de epoché, que significa suspensão de qualquer julgamento. Um segundo aspecto da uma pesquisa fenomenológica é atentarmos para o que se mostra, ou seja, a presença, no caso do exercício realizado no decorrer da disciplina, para o que está dito no corpus de análise. Nessa perspectiva, queremos reforçar a importância de focar nas manifestações e não nos conceitos, por meio da sua descrição, o que demonstraremos a seguir.
Antes, porém, de nos determos na descrição, chamando atenção para a questão orientadora sobre a pesquisa em Educação Ambiental que se mostra no PPGEA, engendramos ainda movimentos de inclusão e exclusão no processo de categorização. Na inclusão, abarcamos todas as unidades de significado produzidas. Na exclusão, foram retiradas do corpus as unidades de significado que abarcavam aspectos das pesquisas relatadas nos resumos que não remetiam ao campo da Educação Ambiental. Estas unidades de significado, retiradas do corpus, abordavam aspectos metodológicos da pesquisa, delimitação dos sujeitos investigados, e apresentação de teóricos, porém sem estarem vinculadas diretamente ao campo da Educação Ambiental. Este foi o primeiro movimento de redução eidética realizado. Das trezentas e vinte e quatro (324) unidades de significado, permaneceram duzentas e trinta e oito (238) unidades de significado.
Para ilustrar a redução eidética realizada na ATD trazemos a obra Bull of Picasso (Figura 1), como experiência estética (NEVES, 1999). Esta interessante obra de Picasso é composta por uma sequência de onze litografias que se inicia pela imagem de um touro feita em um estilo bem acadêmico, transformando-se até chegar a um estilo abstrato. A imagem do touro passa por um processo artístico progressivo e redutor que chega à essência do animal, no esboço (imagem) final da obra.
Analogamente, no exercício de ATD realizado, o que permaneceu de unidades de significado vai nos conduzir ao que consideramos essencial neste fenômeno. Foi o que percebemos como característico da pesquisa em Educação Ambiental nas categorias resultantes da análise: educação estético-ambiental; problematização; teorização; transformação e reconhecimento do outro.
Como o artigo pretende mostrar o processo analítico, vamos descrever apenas uma das categorias que alcançamos compreender, a que denominamos de Problematização. Essa categoria reuniu as categorias intermediárias com suas denúncias de silenciamentos, de disputas, de conflitos, de crises e de alienações bem como os enfrentamentos apontados como necessários pelos pesquisadores.
A descrição: movimento descendente para a compreensão
Para dar continuidade ao processo analítico, após o processo de unitarização e de categorização, procedemos à etapa da descrição da categoria. Dos vinte e seis (26) resumos, dezesseis (16) apresentaram questões que marcaram conflitos, contradições, crises, disputas, relações de poder e enfrentamentos2, que passamos a descrever a seguir.
Um dos resumos versou sobre o reconhecimento da necessidade de a Educação Ambiental ampliar os fundamentos de sua razão de ser, a fim de auxiliar na compreensão sobre a condição e a existência humana. A tese defendida foi a de que os fundamentos da Educação Ambiental não podem prescindir de uma profunda compreensão acerca da existência humana e que devem promover outras formas de lucidez sobre a condição humana. A justificativa para esse posicionamento resgatou uma problemática antiga, porém atual, que é colocada por questões existenciais do mundo contemporâneo, a saber, o antropocentrismo e a soberba cientificista que, entre outras consequências, promovem o individualismo e o apagamento do outro que permite que sejamos, historicamente, aquilo que somos. (Coruja-soberba).
Outro resumo aponta para as ações da rede de tutela da fauna silvestre, tendo por fundamento a Educação Ambiental Crítica e Transformadora em uma interlocução para a desobjetificação dos animais. Destacou-se o papel da Educação Ambiental crítica e transformadora na construção desse novo paradigma ético, cultural e legislativo e compreendeu-se que os direitos dos animais são uma zona de silêncio no campo da Educação Ambiental, que a legislação de proteção aos animais e tipificação de crimes é ineficaz e precisa de readequações. Depreende-se, outrossim, que os crimes estão especialmente relacionados ao cativeiro de passeriformes e que os agentes possuem papel essencial como educadores ambientais na reconstrução do cenário ético, cultural e legislativo do tratamento dos animais silvestres brasileiros. (Coruja-do-banhado).
Com a mesma preocupação, outro resumo atentou para a vida e permanência de animais em cativeiros, verificando e problematizando em que medida a noção de Educação Ambiental pode despertar certa perplexidade ao ser constatada a manutenção de ambientes cativos que insistem em servir a uma cultura antropocêntrica, que não se coaduna com os novos paradigmas contemporâneos que presumem, dentre outros entendimentos, a responsabilidade moral para com os demais seres vivos, bem como e especialmente, a salvaguarda da ética e dos Direitos Animais. Formulou-se a tese de que a Educação Ambiental pode/deve desconstruir noções e conceitos que normatizam/normalizam tanto a permanência quanto a exploração de animais vivos em cativeiros. (Coruja-do-mato).
A temática de gênero esteve presente em outra pesquisa sobre a discursividade que coloca em operação o conceito de gênero no discurso do desenvolvimento sustentável, produzindo alguns efeitos para o campo da Educação Ambiental. Nas enunciações do Programa de Educação Ambiental do Porto de Rio Grande (ProEA/PRG), a estatística e a preocupação com o futuro foram importantes estratégias colocadas em funcionamento para a relevância e integração do gênero em ações de cunho ambiental. O gênero deixa de ser apenas um conceito que irá se preocupar com a igualdade entre homens e mulheres para ser um dispositivo que busca capturar certa população de mulheres no desejo de governar. Frente a tal discursividade que articula o gênero ao discurso do desenvolvimento sustentável, a Educação Ambiental se torna em meio aos jogos de poder e interesses dos variados contextos sociais, econômicos, políticos, educacionais e ambientais, um campo de saber potente para pensar sobre essas temáticas. (Coruja-de-gênero).
Um problema abordado, em uma das pesquisas, tomou a natureza como formação discursiva. Foi investigada a fabricação de conceitos de natureza e também da figura cultural do gaúcho em três enunciados: "Uma campeira conexão / Uma urbana desconexão"; "Um duplo campeiro"; e "Natureza-Tempo". O primeiro nos traz os traços de uma modernidade que binariza o sujeito: um humano campeiro conectado à natureza, e seu duplo, um humano urbano e desconectado da natureza. O imagético nos trouxe a necessidade da delimitação da natureza em áreas protegidas. O segundo enunciado apresentou um duplo campeiro, ou um duplo modo de ser campeiro no espaço rural, dentro do que tomamos por natural e por cultural. Já no enunciado de Natureza-Tempo sustentou um tempo para o Pampa, um tempo como possibilidade de existência estética, num exercício em relação ao que é tomado por natureza. (Coruja-do-pampa).
Muitas das pesquisas realizadas no PPGEA têm como foco a análise de instituições, ações no entorno da região da cidade do Rio Grande/RS, único porto marítimo do Rio Grande do Sul. São históricos os conflitos e as desigualdades promovidas na expansão do Porto devido a sua modernização para implementação da indústria naval. Um dos resumos conta um pouco desta história. O município do Rio Grande/RS, localizado no extremo sul do Brasil, constituiu-se primeiramente como um porto em virtude de sua posição estratégica para a Coroa Portuguesa. Durante sua expansão, os migrantes instalaram-se em seu entorno constituindo diversos bairros. Esta história é constituída de conflitos e desigualdades ambientaisque vêm sendo imputadas a essas comunidades. Esta pesquisa ocorreu no momento de modernização portuária e implementação da indústria naval impulsionadas pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O processo de licenciamento foi oriundo de um conflito ambiental com uma entidade da sociedade civil, uma Organização Não Governamental - ONG, em que após acórdão judicial, a Superintendência do Porto do Rio Grande (SUPRG) ficou obrigada a realizar o licenciamento ambiental. Constatou-se nesta pesquisa que as ações realizadas pelo Programa de Educação Ambiental do Porto do Rio Grande (ProEA/PRG) buscaram mediar o diálogo entre a comunidade e os agentes públicos e privados, atuando na gestão empresarial dosriscos sociais e gestão social dos territórios.(Coruja-de-navio).
Outra pesquisa nasceu da percepção de que o município do Rio Grande/RS, marcado pela desigualdade ambiental em razão da superposição de empreendimentos e instalações das mais diversas naturezas, responsáveis por danos e riscos ambientais, é um município que se destaca na arrecadação tributária. Assim, passou-se a apresentar e analisar o direito fundamental ao meio ambiente como uma dimensão do princípio da dignidade humana, e a partir daí, descreveu-se a relação estreita entre Estado e Direito e as consequências desse relacionamento sobre o tratamento da questão ambiental no Brasil; revelou-se a face injusta do sistema tributário brasileiro, instrumento de aprofundamento das desigualdades socioambientais; reorientou-se a tributação com fins ambientais, a partir da compreensão do município do Rio Grande como modelo de desenvolvimento econômico e industrial no país, propondo-se um novo sentido, conforme a Constituição Federal, a partir do paradigma democrático, para que cumprindo sua função social, servisse de concretização de políticas públicas ambientais. Ainda, reconheceu-se a participação do Estado, voltado ao mercado, no sucateamento ambiental programado, sugerindo-se a destinação do percentual de receita do Imposto sobre Produtos Industrializados a políticas públicas ambientais, especialmente nas denominadas zonas de sacrifício, como se caracteriza o município do Rio Grande. (Coruja-de-tributo).
Não são poucas as pesquisas desenvolvidas no PPGEA com temas sobre os desafios da pesca artesanal frente aos modelos de desenvolvimento no país, o que se reflete em conflitos, cujas consequências colocam em risco a reprodução social, cultural e econômica dos trabalhadores.
Uma das pesquisas realizadas analisou a organização de classe dos pescadores artesanais em uma comunidade pesqueira situada na cidade de Pelotas/RS. A investigação consistiu em compreender o processo contra-hegemônico expresso nas diferentes formas de organizações sociais presentes naquele espaço na luta pela cidadania. Foi possível entender que essa cidadania se encontra pautada na necessidade do reconhecimento de sua cultura, de seus direitos, ao respeito aos seus territórios tradicionais e à melhoria da qualidade de vida dos membros da comunidade e a luta dos movimentos está pautada na luta pela justiça ambiental. Nestas organizações, as lideranças e intelectuais orgânicos desempenham um importante papel de organização das massas e no desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores. É nas organizações sociais, criadas como atos-limites em função das situações-limites que se apresentam aos pescadores artesanais dessa comunidade, que a organização de classe vai poder se desenvolver por meio da consciência de classe, pois é na participação, através do diálogo que as contradições que os impedem de ser mais se tornam mais visíveis. É nesse processo organizacional que a autonomia e a emancipação dos sujeitos pode ocorrer. São, portanto, as mediações deste processo de desenvolvimento humano presente na organização de classe dos pescadores artesanais que nos mostram o caráter educativo da organização de trabalhadores. (Coruja-de-espinha).
A escola também emerge como espaço de pesquisa no PPGEA. Em um dos resumos se mostra a busca de compreender a função social da Educação Ambiental na formação dos professores em um curso de Pedagogia pelo Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - PARFOR. A questão central do estudo indagou sobre a influência da Educação Ambiental frente ao predomínio conservador da Educação, legitimado por interesses político-ideológicos que favorecem a reprodução hegemônica do arbítrio cultural da classe dominante. A pesquisa mostra que a Educação Ambiental na formação de professores do referido curso é secundária e reproduz concepções conservadoras de educação, sociedade e natureza. No que diz respeito ao currículo, embora configure-se como uma proposta progressista, o mesmo é limitado quanto à possibilidade de desenvolver processos educacionais emancipatórios dado ser um instrumento burguês. (Coruja-de-escola).
As escolhas alimentares de adolescentes foi tema de outra tese, em que ocorreu a denúncia das contradições próprias à lógica do modo de produção hegemônico que tem degradado a qualidade dos alimentos. A mercantilização onipresente, a alienação, a não sustentabilidade e a injustiça ambiental caracterizam as relações que o capital impõe à natureza e à sociedade. A mais marcante contradição de sua economia baseada na supremacia do lucro, na concentração de riqueza e poder e nas desigualdades distributivas é a distorção da ontologia do alimento, que deixa de ser elemento essencial à vida e à saúde para servir aos interesses privados, os quais lhes exploram o fetiche de mercadoria. Compreendeu-se que as contradições da própria realidade produzem condições para a formação de contradições na consciência, afastando-a da compreensão crítica dos fenômenos e processos da natureza-sociedade. A tese mostrou contradições próprias à consciência ingênua, que constituem barreiras à ruptura com a comida-mercadoria e à superação do modo hegemônico de produzir e consumir alimentos. A mais evidente revela que a comida-mercadoria não é reconhecida como um problema pelos estudantes adolescentes e, assim, não é questionada. (Coruja-de-feira).
Ainda no contexto escolar, outra pesquisa investigou os processos de formação continuada na Educação Básica. Os resultados demonstraram que os professores e gestores reconhecem o espaço formativo na escola como um diferencial no seu desenvolvimento profissional e pessoal, que oportuniza diálogos e reflexões coletivas. As experiências da Educação Integral em tempo integral romperam com a cultura do isolamento, contribuindo nas relações entre professores, e entre professores e estudantes e motivaram questionamentos acerca do tempo, da inovação e das questões sociais e ambientais. Os docentes e gestores demonstraram interesse em constituir uma educação integral que valorize as dimensões sociais, emocionais, físicas, intelectuais, a curiosidade e os interesses das crianças e jovens em detrimento de aspectos de um ensino mecanicista, reducionista e enfadonho. A Educação Ambiental Crítica foi evidenciada nas questões sociais e ambientais das condições concretas vividas dentro e fora da instituição, demarcando posicionamento crítico em não realizar atividades ambientais pontuais, já que ela está presente de modo integrado e complexo nos documentos e na vida cotidiana da escola, nos seus modos de fazer e de saber. A escola integral busca valorizar o diálogo, a criticidade, a participação e a cidadania, aspectos pertinentes também à Educação Ambiental. (Coruja-de-giz).
Com foco nos alunos, o bullying foi tratado em outra pesquisa desenvolvida no PPGEA. O resumo afirma que raros são os programas de intervenção para esse tipo de violência. Em 2007, o Governo Federal criou o Programa Mais Educação (PME), o qual tem por objetivo promover a educação integral dos alunos nas escolas através de atividades socioeducativas em articulação com a comunidade, escola e família. Foi defendida a tese de que as escolas que participam do PME possuem estratégias que contribuem para o enfrentamento do bullying e, por isso, possuem menos casos deste tipo de violência em relação às escolas que não participam do programa. Os resultados evidenciaram elevada prevalência de alunos envolvidos com o bullying, sendo estatisticamente significativa a maior ocorrência entre meninas, destacando-se a sala de aula e o recreio como os locais de maior prevalência. Por fim, pode-se comprovar que o PME atua como uma estratégia micropolítica e microssocial que pode contribuir com a educação ambiental para o enfrentamento da violência escolar e bullying. (Coruja-menina-feia).
Em uma das teses foi estabelecido como objetivo geral a realização de um mapeamento das perspectivas da Educação Ambiental (EA) a partir das proposições das teses do PPGEA, extraídas de seus resumos. Tomou-se a definição do ambiente como espaço construído socialmente em relações de disputa entre grupos antagônicos, com predomínio de um (uns) sobre outro(s), que se materializaria na forma de um quadro de injustiça ambiental preferencialmente sobre os grupos sociais mais vulneráveis. Por sua vez, também está no resumo que o campo da pesquisa em EA também se configuraria um espaço social em disputa, em que os grupos sociais se fazem representar por meio de perspectivas discursivas. (Coruja-de-biblioteca).
No mesmo sentido de problematização, outro resumo aponta para a discussão da crisesocioambiental na qual se circunscreve a humanidade como consequência necessária do desenvolvimento da sociedade enquanto expressão da tensão entre classes, e cuja resolução exige a transformação radical do modo de socialização a partir de alternativas anticapitalistas. A determinação material-social da dominação de classe não opera apenas sobre o senso comum, mas as formas mais sofisticadas de conhecimento (como a ciência e a filosofia) também estão eivadas de interesses de classe, o que implica afirmar, enquanto hipótese, que no campo da Educação Ambiental os processos de produção de conhecimento se dão de modo que a ideologia burguesa afasta os pesquisadores, mesmo no interior da perspectiva crítica, da compreensão acerca dasrelações fundantes da crise ambiental. Deste modo, a tese afirmou que o conhecimento que se produz, no campo da Educação Ambiental, em uma perspectiva crítica, enfrenta interferências da ideologia burguesa que lhe dificultam apontar para a superação radical das relações sociais capitalistas como meio de superação à crise engendrada por tais relações. Assim, o termo "crítica", no campo da Educação Ambiental, tornou-se insuficiente para designar a perspectiva que trabalha com a denúncia de uma crise que tem na sociabilidade burguesa sua causa, e que reivindica alternativas pós-capitalistas como único horizonte capaz de deter o fluxo de destruição humana e ambiental imposto pela forma e pelo ritmo de produção material da vida social no planeta.(Coruja-burguesa).
Em síntese, o conjunto de resumos da categoria Problematização mostrou contradições em espaços investigados muito diferentes. De estudos filosóficos ao ambiente portuário, à paisagem do Pampa, aos hábitos alimentares, à formação de professores e às próprias pesquisas realizadas no PPGEA, sobressaiu a denúncia da contradição em um modo de ser e agir dentro de uma lógica de poder dos que são e podem mais frente aos que são e podem menos. Este é o fenômeno que se mostrou no movimento descendente de análise, por meio da ATD, nos resumos de um conjunto de teses produzidas no PPGEA.
Considerando o Touro de Picasso (Figura 1) e as reduções eidéticas que pretendemos ressaltar, apontar contradições, nessa lógica, é uma das formas de desenvolver pesquisas no âmbito do PPGEA, o que pode constituir uma das características desse programa de pós-graduação. Certamente não é a única, mas se mostrou preponderante nos resumos analisados, lembrando que este foi o exercício de uma das categorias apenas.
O movimento analítico na ATD não termina com a descrição. Ele exige interpretação e isto requer buscar interlocutores para compreender melhor este fenômeno, alcançando assim à teorização para uma maior compreensão do tema. Apresentamos a seguir outro movimento para ampliar nossa compreensão sobre sentidos atribuídos à problematização, o movimento em direção ascendente da descrição à interlocução teórica.
Problematização na pesquisa: movimento ascendente em direção ao conceito
Para este movimento de compreensão, buscamos por diferentes significados atribuídos à palavra problematização tomando por base autores que se vinculam a epistemologias diferentes, mesmo tendo constatado que as teses analisadas buscaram fundamentos teóricos especialmente na Educação Ambiental Crítica Transformadora proposta por Carlos Frederico Loureiro.
Para dar início ao movimento em direção ao que dávamos por sentido à palavra quando atribuímos este nome à categoria, buscamos ver como esta palavra está referenciada em dicionários de uso comum da Língua Portuguesa. Por aí iniciamos o movimento de pesquisa e não encontramos a palavra dicionarizada nas edições mais recentes dos dicionários Houaiss (2009) e Aurélio (2010); somente as palavras “problema”, “problemático” e “problematizar” foram as que mais se aproximavam de “problematização”.
Considerando problematização como a ação de problematizar, observamos que a palavra problematizar, segundo Houaiss e Villar (2009) pode remeter a três significados diferentes. O primeiro deles significa dar o caráter de problema a algo insignificante. O segundo, problematizar é tornar difícil e problemático o que não é. O terceiro, problematizar é pôr em dúvida, questionar.
A problematização está no cerne da Educação Ambiental Crítica como problematização da realidade, de nossos valores, atitudes e comportamentos em práticas dialógicas, afirma Loureiro (2007, p. 69).Fundamentadas neste referencial teórico é que são apresentados os conflitos, as denúncias, as crises socioambientais, as lutas e seus enfrentamentos em muitos dos resumos analisados. Este entendimento do termo ecoa na construção lógica do método do materialismo histórico. O mesmo autor aponta para esta origem: A necessidade de problematizar a formação humana, buscando qualificá-la como educação humana plena, onilateral, - e podemos trazer aqui a educação ambiental tem sido objeto de estudos na pedagogia histórico-crítica. (2016, p. 75). O verbete que consta no glossário da pedagogia histórico-crítica elaborado por Demerval Saviani (2016) articula e aproxima os dois sentidos de problematização ao afirmar que
Daí decorre um método pedagógico que parte da prática social onde professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social, cabendo aos momentos intermediários do método identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse) (SAVIANI, 2016. http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_pedagogi a_historico.htm).
Paulo Freire é referência no que concerne às proposições de uma educação problematizadora. Freire aponta para a necessidade de uma ação pedagógica que parta da realidade concreta do educando para, pelo diálogo, problematizar o seu mundo. “O que se pretende com o diálogo é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível relação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la e transformá-la” (FREIRE, 1983b, p. 52).
Encontramos em Santos (2016) outro interlocutor o qual, a partir de viés pós-crítico, aponta para a ação de problematizar em Freire quando argumenta que a ação de problematizar acontece a partir da realidade que o cerca; a busca de explicação e solução visa a transformar aquela realidade, pela ação do próprio sujeito, isto é, por meio da práxis. Nesta busca de explicação o sujeito também se transforma na ação de problematizar e passa a perceber novos problemas na sua realidade. A proposta do patrono da educação brasileira gira em torno de dois momentos: o de codificação, representado pelas situações existenciais dos educandos; e o de descodificação, que consiste na análise crítica da situação codificada. A problematização acontece no segundo momento.
Para Santos (2016), é importante ter em mente que o pós-estruturalismo contesta a autonomia do sujeito. E em sua tese busca articular a problematização via radicalização do fenômeno da linguagem por meio de um processo de ‘desconstrução’, aproximando assim problematização do modo de desconstruir proposto pelo filósofo Derrida. Assim o resumo de sua tese apresenta a problematização no campo da Educação Física escolar em outra matriz teórica:
No currículo cultural da Educação Física, os conteúdos de ensino não são definidos a priori no planejamento uma vez que decorrem da relação dialógica entre os sujeitos participantes do processo pedagógico. A partir de “elementos disparadores” e “elementos provocadores”, a problematização tece a tematização, permitindo que o currículo em ação assuma um caráter rizomático. Quanto mais se problematiza, maiores são as chances da tematização manter-se atenta ao processo de fixação simbólica, dada a intensificação da circulação dos discursos sobre as práticas corporais e seus representantes. Sob essas circunstâncias, a ação didática do(a) professor(a) é continuamente (re)centralizada, colocada em devir. Enquanto vetor que intenciona a desconstrução, a problematização permite ampliar as possibilidades de significação; suspender os regimes de verdade com que os significados operam nas diferentes épocas e contextos; atualizar a relação do sujeito consigo próprio e com o mundo, potencializando a produção de novos problemas e conceitos. Entretanto, em determinados momentos, as problematizações não enveredam para exercícios arquegenealógicos das práticas corporais, ou mesmo, chegam a apartar-se dos acontecimentos referentes às manifestações tematizadas e da voz do sujeito subjugado. Reconhecemos que as investidas contra-hegemônicas da proposta cultural da Educação Física não escapam das marcas deixadas pela maquinaria escolar. Nesse contexto, para que as diferenças possam afirmar-se, a artistagem do currículo exige que os(as) professores(as) enfrentem e se posicionem politicamente ante as inúmeras redes de força que se estabelecem nas escolas e na sociedade mais ampla e que, por vezes, tensionam ao fechamento em identidades hegemônicas. (SANTOS, 2016, p. 8)
Gallo (2006), vinculado a epistemologias pós-estruturalistas, ao apresentar um método de ensino de Filosofia para o Ensino Médio, conceitua a problematização como parte de um método de ensino em quatro etapas, sensibilização, problematização, investigação e conceituação. Sobre problematização ele afirma:
Trata-se de transformar o tema em problema, isto é, fazer com que ele suscite em cada um o desejo de buscar soluções. Na etapa anterior, o objetivo era apenas afetar, chamar a atenção, motivar - se quisermos usar uma expressão pedagógica um tanto ou quanto em desuso. Nesse segundo momento, tendo a atenção mobilizada pela questão, o objetivo é problematizá-la de vários aspectos e em várias perspectivas. Podemos, nesta etapa, promover discussões em torno do tema em pauta, propondo situações em que ele possa ser visto por diferentes ângulos e que seja problematizado em seus diversos aspectos. Nesta etapa, estimulamos o sentido crítico e problematizador da filosofia, exercitamos seu caráter de pergunta, de questionamento, de interrogação. Desenvolvemos também a desconfiança em relação às afirmações muito taxativas, em relação às certezas prontas e às opiniões cristalizadas. Quanto mais completa a problematização, mais intensa será a busca por conceitos que possam nos ajudar a dar conta do problema. (GALLO, 2006, p. 27).
Num editorial da revista Pro-Posições, em homenagem a Michel Foucault, Gallo (2014) utiliza as palavras problematizar e problemática para apresentar os artigos da edição. Abre o dossiê com dois artigos que problematizam a recepção e os usos de Foucault na Educação. Para apresentar o próximo texto, escreve que o autor do artigousa o nome de uma obra intitulada “Para esquecer Foucault” lançada logo após a morte do filósofo para problematizar seus usos na pesquisa em Educação. Para a indicação do próximo artigo, Gallo (ibidem) escreve que o autor problematiza o que denomina "excessos de governo" nas instituições escolares. Para indicar o artigo seguinte, escreve: Após problematizar os efeitos dessas práticas de governo, o autor propõe uma reflexão em torno das possibilidades de não ser governado, de assumir uma postura crítica e de realizar a construção de si mesmo. E para o último bloco apresenta que está composto por três artigos que, por diferentes modos, dialogam com a produção teórica do "último Foucault" para problematizar aspectos do campo educacional. Em cada um deles usa a palavra problemática.
Problematizar, pois, implica numa atitude filosófica que vê como problema aquilo que em geral é aceito com naturalidade, com tranquilidade. Este também parece ser o sentido dado à problematização dentro do léxico de Foucault, pois a problematização, embora tenha sido enfatizada mais em seus escritos tardios, está presente nos livros “As palavras e as coisas”; “Vigiar e Punir”; e “A História da Sexualidade”. É Vinci (2015, p. 206), ao estudar a problematização em Foucault quem afirma que
a problematização não surge como um conjunto de regras diretivas do pesquisar, mas um ato diretor do pensamento, ou o próprio pensamento em ato. Problematizamos algo não apenas quando fazemos nossos mestrados ou doutorados, mas também quando boicotamos uma marca, por exemplo, ou quando recusamos assumir certas posições em sala de aula. O conceito de problematização, dessa maneira, assume amplos contornos, para além daqueles postos por questões metodológicas. Inseri-lo em nosso trabalho implicaria em assumir o caráter político daquilo que fazemos, cada pequeno analítico gesto como um verdadeiro acontecimento de proporções incomensuráveis no campo social, diluindo assim as fronteiras entre teoria e prática.
Este exercício para a compreensão da palavra ao conceito poderia ter continuidade, entretanto entendemos que alcançamos nosso objetivo de mostrar a descrição em uma atitude fenomenológica em que a ATD possibilitou que o fenômeno da problematização se mostrasse a partir da atribuição do nome à categoria, desde um movimento descendente de descrição dos resumos até o movimento em direção ao conceito. Também mostramos neste artigo o movimento ascendente para promover a interpretação.
Considerações finais
O exercício apresentado neste artigo foi realizado junto a pesquisadores iniciantes, pós-graduandos dos programas de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, os quais estão envolvidos, em seu processo formativo, com a produção de informações que constituirão o corpus de análise de suas pesquisas em nível de mestrado e doutorado. Toda pesquisa requer densidade e coerência teórico-metodológica. A disciplina Análise Textual Discursiva, ofertada anualmente aos programas da FURG pretende instigar os pós-graduandos a realizarem suas pesquisas com tais quesitos.
Desenvolvemos o processo analítico proposto na Análise Textual Discursiva buscando enfatizar sua premissa fenomenológica, assinalada na pergunta que atenta para que o fenômeno se mostre a partir do que o pesquisador consegue descrever. Foi também apresentada à redução eidética como modo de identificar aspectos próprios do fenômeno em estudo, sem o que ele deixa de ser o que é ou como se mostrou ao pesquisador. Na perspectiva fenomenológica também foi feita a descrição dos resumos.
O enfoque hermenêutico da ATD foi trabalhado nos dois movimentos analíticos: do conceito à palavra, movimento descendente de descrição ao movimento ascendente da palavra ao conceito.
Compreendemos, neste processo analítico, que a problematização é um dos pontos focados nas pesquisas produzidas no PPGEA, mesmo que se oriente a partir de problemas situados em epistemologias distintas, como foi mostrado tanto na problematização abordada nas pesquisas inseridas na Educação Ambiental Crítica como nas pesquisas pós-estruturalistas.
Esperamos, com este artigo, inspirar pesquisadores com temáticas inseridas no campo da Educação Ambiental a assumir a problematização com vistas a questionar intenções e ações de pesquisa. Mesmo que o resultado deste exercício tenha como foco resumos de teses em Educação Ambiental, estende esta possibilidade a outros campos de pesquisa.
E para fechar o círculo hermenêutico que pretendemos mostrar, lembrando que para Foucault problematizar era tornar difícil o que poderia parecer fácil demais (VINCI, 2015), retornamos do conceito à palavra, pois, foi este um dos sentidos dicionarizados apresentados no artigo. Com isso entendemos ter alcançado o objetivo do artigo que foi o de mostrar um exercício de análise na ATD.