SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Fatores Potencializadores e/ou Dificultadores do Processo de Inclusão de alunos com deficiência nas aulas de Educação FísicaUsos da noção de rapport au savoir na pesquisa educacional e psicopedagógica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 12-Set-2023

https://doi.org/10.5902/1984644441084 

Artigo Demanda Contínua

O mito da democracia racial brasileira no discurso de educadores da RME-Belo Horizonte: Silenciamentos e Ausências1

Brazilian myth of racial democracy in the discourse of educators of the County shools of Belo Horizonte: Silences and absences

Miria Gomes Oliveira1  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-2237-8499

Silvia Regina de Jesus Costa2  , Doutoranda
http://orcid.org/0000-0002-1503-0144

1Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. miriagomes@hotmail.com

2Doutoranda na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. silviarjcosta@gmail.com


RESUMO

Este artigo apresenta reflexões sobre o mito da democracia racial brasileira no discurso de educadores da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.Os dados aqui apresentados foram coletados em áudio com oito educadores de duas escolas, através de entrevistas elaboradas através de questões semiestruturadas, tendo em vista conhecer e discutir as práticas pedagógicas em consonância com as diretrizes das leis 10.639/03 e 11.645/08. Para isso, será discutido o mito da democracia racial brasileira, tomando as reflexões de Florestan Fernandes, (1966); Gomes(2005), 2013; Guimarães (1999, 2002, 2005); Munanga(1999) e as definições de racismo implícito e explícito, abordados por Rosemberg e Silva(2003). E as reflexões críticas da Análise do Discurso em Van Dijk 2003; Orlandi(2015); Silva e Oliveira(2016), dentre outros. Foi notada a carência de formação e a ausência de práticas voltadas para a educação étnico-racial, aliadas ao discurso da democracia racial brasileiro. Verifica-se que o mito da democracia racial se desvela, nas falas dos professores, através da negação do racismo assim como na ausência de práticas pedagógicas que questionem a sua reprodução na escola.

Palavras-chave: Educação Racial; Discurso; Mito da democracia racial

ABSTRACT

This paper presents reflections on the myth of Brazilian racial democracy in the discourse of educators of the Belo Horizonte County Schools Network. The data presented were collected in audio with eight educators from two schools, through interviews elaborated through semi-structured questions, aiming to know and discuss the pedagogical practices in accordance with the guidelines of the laws 10.639 / 03 and 11.645 / 08. For this, we will discuss the myth of the Brazilian racial democracy, taking the reflections of FLORESTAN FERNANDES, 1966; Gomes, 2005, 2013; GUIMARÃES, 1999, 2002, 2005; MUNANGA, 1999 and, the definitions of implicit and explicit racism, addressed by ROSEMBERG AND SILVA, 2003. Also, the reflections of Critical Discourse Analysis as in VAN DIJK 2003; ORLANDI 2015; Silva and Oliveira 2016, among others. It was noted the lack of teacher education to attend the laws and the absence of practices focused on ethnic-racial education, allied to the discourse of Brazilian racial democracy. The myth of racial democracy is unveiled in the teachers' speech through the denial of racism as well as in the absence of pedagogical practices that question its reproduction in schools.

Keywords: Racial Education; Discourse; Myth of Racial Democracy

Introdução

Este artigo apresenta reflexões sobre a presença do mito da democracia racial brasileira na fala de educadores da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. Durante a realização das entrevistas semiestruturadas, falamos sobre a Lei 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem as diretrizes para o ensino da Arte, da História e das Culturas afro-brasileiras e africanas no Ensino Básico no Brasil e solicitamos que nos relatassem as práticas pedagógicas voltadas para a discussão da diversidade racial e a relação dessa temática com a disciplina por eles lecionada.

Para isso, discutirmos o mito da democracia racial brasileira, tomamos as reflexões de Florestan Fernandes (1966); Gomes (2005, 2013); Guimarães (1999, 2002, 2005); Munanga (1999), e as definições de racismo implícito e explícito abordados por Rosemberg e Silva (2003). E as reflexões críticas da Análise do Discurso em Van Dijk (2003); Orlandi (2015); Silva e Oliveira (2016), entre outros.

Os dados aqui apresentados foram coletados em áudio com oito educadores de uma escolada RME-BH. As entrevistas foram elaboradas através de questões semiestruturadas, tendo em vista conhecer e discutir as práticas pedagógicas em consonância com as diretrizes da lei supracitada. Notamos a carência de formação e a ausência de práticas voltadas para a educação étnico-racial, aliadas ao discurso da democracia racial brasileiro.

O mito da democracia racial

Para discutir o Mito da Democracia Racial, é importante, inicialmente, ressaltar o conceito de raça que nos orienta: raça como uma categoria social. Ressignificada pelo Movimento Negro, raça é um marcador social que define diferenças culturais e determina desigualdades econômicas entre a população negra e branca no Brasil. Não se trata, portanto, do conceito biologizante, demarcado por diferenças genéticas inexistentes. Os processos de racialização fenotípica se estabeleceram ao longo dos tempos, de diferentes formas, em todo o planeta em que vivemos. No Brasil, esse processo é marcado pela cor da pele: quanto mais retinta, mais sujeito ao racismo e à discriminação social estará o indivíduo.

As reflexões sobre o Mito da Democracia Racial inauguradas por Florestan Fernandes em sua tese de doutoramento e presentes em seu livro A integração do Negro na Sociedade de classes(2008)2 embasam pesquisas de diversos campos do conhecimento dedicados ao entendimento das formas como o racismo opera no Brasil a partir do nascimento do Estado-Nação brasileiro (GOMES 2005,2013;GUIMARÃES,1999,2002,2006; MUNANGA,1999). Os autores apontam fatos históricos e questões políticas internas e externas que nos levam a compreender o Mito da Democracia Racial como uma expressão sinônima de negação do racismo que estrutura a sociedade brasileira, mantendo as desigualdades de oportunidades entre brancos e negros. Ainda que maioria, a população negra3 ainda é pouco representada em cargos e posições sociais de poder e prestígio e enfrenta, diariamente, a violência simbólica do racismo.

Para entendermos a expressão Mito da Democracia Racial é necessário compreendermos a propagação do termo democracia racial no Brasil no início do século XX. De fato, a expressão Democracia Racial surge como possibilidade para a resolução dos antagonismos econômicos, sociais e religiosos que demarcaram exclusões sociais em diferentes regiões do mundo ao longo do século XIX, em processos de racialização biologizantes (características fenotípicas) e/ou processos de racialização religiosa. A concepção eugenista4 e o discurso da verdade científica despontam como bases de ideologias racistas que influenciarão na definição do que seja raça ao longo do século XX.

A busca por uma identidade nacional única que sustentasse a delimitação do território nacional brasileiro, além da imposição da língua portuguesa, esbarrava no dilema da tríade da origem da população brasileira, representada pelos europeus brancos, pelos negros escravizados trazidos do continente africano e pelos povos nativos da América do Sul.

Guimarães (2002, p.139) ao analisar o termo Democracia Racial, problematiza a divulgação da imagem internacional do Brasil como um paraíso racial. O termo retratava uma suposta igualdade de oportunidades entre negros e brancos, negando o racismo e a consequente exclusão social gerada no pós-abolição, quando mais de 5 milhões de negros foram condenados à incidente exploração do trabalho na lógica capitalista. Com isso, a população de negros recém-libertos e os brancos da sociedade republicana seriam considerados iguais e não se dividiriam por fatores de ordem racial que pudessem trazer insatisfação e mais revoltas sociais. De acordo com essa ideologia, negros e brancos reconheceriam seus papeis sociais e conviveriam emharmonia. Nesta sociedade imaginária, as oportunidades seriam distribuídas de forma justa e apenas o mérito ou esforço individual seria necessário para que negros e brancos pudessem alcançar a mesma estabilidade socioeconômica e valorização cultural de suas identidades. Guimarães(2002,p.140) interpreta essemitocomoaidealizaçãodeuma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza e prestígio (e) em que o mérito individual não seriam empanados pela pertença racial ou decor.

A negação do racismo como ideologia estruturante das desigualdades sociais ainda é muito presente no Brasil. Essa negação opera como ideologia fundante do discurso do racismo à brasileira. Dentre suas consequências, está a dificuldade dos brasileiros em se reconhecerem racistas e o silenciamento diante das contribuições das culturas afro-brasileiras e africanas na constituição do estado-nação brasileiro, suas heroínas e heróis.

Note-se a diferença entre as políticas raciais adotadas nos Estados Unidos e África do Sul e no Brasil. Enquanto os dois países sustentavam um sistema legal de segregação - Jim Crow nos EUA e Apartheid na África do Sul - o Brasil não possuía mecanismos legais de segregação (GUIMARÃES, 2005). Nem o Regime de Segregação Racial, nos Estados Unidos da América do Norte, nem o Apartheid na África do Sul, eram vistos na Europa no Brasil como políticas raciais plausíveis de serem implantadas no início do século XX, em um Brasil de população marcadamente negra - como até hoje. Ao contrário de explicitar a separação, a exclusão e a hierarquização entre negros e brancos, a opção por uma política de mestiçagem esconderia as maiorias étnicas do país tendo em vista o clareamento da população diante da abertura a imigrantes europeus e asiáticos brancos.

Além disso, as guerras provocadas por conflitos de racismo antissemita na Europa levavam à busca de outras soluções para o defeito de cor dos brasileiros. A mestiçagem faria do Brasil um paraíso racial já que não existia um dispositivo legal de separação explícita entre as populações negra e branca. Diante deste cenário mundial, Freyre (1933) encampou e ajudou a disseminar o discurso da democracia racial brasileira usando a expressão democracia social:

Freyre forja a idéia de democracia social‘ainda nos anos 1930, contra o fato patente da ausência de democracia política, quer no Brasil ou em Portugal. Ou seja, põe-se o desafio de traçar a inserção luso-brasileira no concerto das nações democráticas, contra todas as semelhanças e simpatias dos regimes autocráticos de Vargas e de Salazar com o fascismo. Sua linha de argumentação apoia-se no fato de que a cultura luso-brasileira é não apenas mestiça, como recusa a pureza étnica, característica dos regimes fascistas e nazistas da Itália e da Alemanha. Do ponto de vista ‗social‘, portanto, estes regimes seriam democráticos, posto que promovam a integração e a mobilidade social de pessoas de diferentes raças e culturas. (GUIMARÃES 2006 p.7 - grifo doautor).

Com isso, Gilberto Freyre foi responsável em divulgar, ampliar e reafirmar o discurso da democracia racial através das suas obras (GUIMARÃES 2006; CARDOSO 2013). Ainda que não tenha mencionado, em seus escritos, a expressão democracia racial, a prerrogativa sobre a construção da democracia racial através de Gilberto Freyre se deve à sua visão harmônica e natural sobre as relações entre as diferentes etnias presentes no Brasil:

(Freyre) vai mostrando como, no dia a dia, essa estrutura social, que é fruto do sistema de produção, se recria. É assim que a análise do nosso antropólogo-sociólogo-historiador ganha relevo. As estruturas sociais e econômicas não são apresentadas apenas como condicionantes de ação, mas como processos vivenciados por pessoas também movidas por emoções. (CARDOSO, 2013, p.79)

Nesta visão, as desigualdades raciais não constituem conflitos nas dinâmicas sociais. A plasticidade e harmonia presentes na ideia de mestiçagem e de mérito tentam inviabilizar as resistências e lutas ideológicas em torno do conceito de raça, retirando a compreensão de que nossa desigualdade social e econômica é consequência do racismo estrutural que fundamenta as nossas instituições. A superestrutura opera junto com a infraestrutura: a miscigenação é prova de que no Brasil não existe racismo contra negros invisibiliza o racismo que opera a favor das desigualdades socioeconômicas.

De fato, os lugares e papéis sociais, reservados aos negros no Brasil pós-abolição os mantêm à margem. Como demonstra Fernandes (2008), no clássico A integração do Negro na Sociedade de classes, na prática, o processo de racialização que os inferioriza justifica as desigualdades materiais. Ao ressaltar o fato de que a população negra está à margem da sociedade de classes, ocupando lugares sociais de difícil sobrevivência, Florestan (2008) deixa ver a farsa da democracia racial e seu entendimento sobre a divisão social do brasil não em classes, mas em castas (FERNANDES, 2008, p.302).

O autor desmente a suposta democracia racial ao mostrar que a segregação econômica e política da população negra brasileira é sustentada pelo racismo. As desigualdades sociais no país são demarcadas pelo conceito de raça. Ao abordar a divisão pelo viés da raça, sua obra rompe com o discurso meritocrático e revela as desigualdades de oportunidades entre negros e brancos, denunciando os privilégios encobertos pelo mito da democracia racial.

Um marco importante para o entendimento das relações étnico-raciais, a obra de Fernandes é basilar ao Movimento Negro de Afirmação Identitaria no Brasil por desmistificar a democracia racial e denunciar a luta de classes estabelecida após a abolição. O foco da resistência ideológica se volta para a percepção das estratégias de operação do racismo, da reprodução dos valores simbólicos, culturais e materiais da sociedade escravocrata como impedimentos reais à ascensão econômica e à valorização social da cultura negra.

De acordo com Orlandi (2015), um discurso não se limita à transmissão de informações, mas de ideologias que reproduzem valores e sentidos negativos ou positivos sobre os sujeitos que falam de diferentes lugares sociais. São sentidos gerados nos processos de identificação do sujeito diante de argumentações sobre sua subjetivação e sobre a construção do que seja a realidade social. Nesta visão, os discursos se materializam de forma explícita em signos e narrativas ou de forma implícita, entre ditos e não-ditos, silenciamentos, ausências.

O conceito de racismo implícito e explícito nos ajudam a entender os modus operandi da ideologia racista brasileira (ROSEMBERG, SILVA, 2003). Explicitamente, o racismo pode ser medido pelas desigualdades sociais e pelos baixos indicadores de direito à educação, moradia, emprego, saúde e qualidade de vida da população negra. O racismo explícito pode ser ouvido em discursos que: inferiorizam os corpos negros; marginalizam suas práticas culturais (baile funk, pagode), estilos musicais (Hip-hop, Rap, Soul), religiões (umbanda,candomblé) e expressões artísticas (literatura, danças africanas e afro-brasileiras, pintura, arquitetura, etc).

Ao analisarmos as falas dos nossos sujeitos de pesquisa, notamos que, no contexto escolar, o racismo subjaz a discursos, práticas e ações pedagógicas e apresentam-se de forma explicita ou implícita. Sustentados pela negação enfática da presença do racismo, discriminação ou preconceito na escola e na crença da suposta igualdade racial entre os estudantes, suas falas reverberam a ideologia de uma inexistente democracia racial no Brasil. Esse estudo busca, assim, refletir sobre as negações, os apagamentos e silenciamentos que constituem o mito da democracia racial brasileira, tendo em vista desmascará-lo.

O que dizem os educadores?

Os dados apresentados neste artigo foram coletados através de gravação em áudio de entrevista semiestrutura com oito educadores da Escola Municipal Carolina de Jesus: a diretora e sete professes em exercício docente. Dentre eles, apenas três já estiveram envolvidos com a implementação da Lei nº 10.639/2003.

A Escola Municipal Carolina Maria de Jesus se localiza na segunda região de Belo Horizonte com a maior população negra, cerca de 73%5 . Observamos que a comunidade no entorno possui uma variedade de organizações - locais de lazer, igrejas, grupos de danças, times de futebol, entre outros. Cada uma dessas organizações possui suas estratégias sociais, culturais e simbólicas, que contribuem para formação das personalidades dos estudantes.

Sobre o perfil dos estudantes, são em sua grande maioria negros e pobres, cerca de 70% são autodeclarados negros e de classe econômica socialmente desfavorecida.

Ao procedermos a análise de dados, percebemos efeitos de sentido racistas implícitos e explícitos, verbalizados e subentendidos, em meio a alusões, negações e contradições. Por outro lado, notamos também a desestabilização do discurso da democracia racial diante da afirmação identitaria e de discursos de resistência que admitem as implicações do racismo à brasileira sobre os processos de formação da subjetividade dos educandos no contexto escolar.

Durante a entrevista semiestruturada, perguntamos à direção (D) escolar se havia alguma ação, algum projeto, algum planejamento para a implementação da Lei nº 10.639/2003. Ela nos respondeu:

D: … não tem, atualmente, nós não temos projeto, assim com cara de projeto…escrito... …mas todos os professores têm uma mesma visão, então, não existe na escola discriminação. Os professores não permitem. A gente não, por exemplo, os nossos, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino, que tem opção sexual diferente são extremamente respeitados. Tanto pelos colegas quanto pelos professores. Nunca teve um problema com nossos alunos assim. Nunca. Você entendeu? E isso tudo passa pelos professores, porque os professores lidam muito bem com isso. Então assim, nós já tivemos vários, várias coisas, mas isso ficou. Entendeu? Então existe uma coisa, assim, muito bacana na escola com relação a isso. Com relação aos alunos, professores, sabe? (MARIA, D.)6

A ausência de um projeto que reconheça a importância da temática e que oriente práticas na escola é justificada pela inexistência de racismo e aparece ligada ao preconceito de gênero. O mito da democracia racial se mostra como um argumento que sustenta e nega o racismo. O fato de não constar, no projeto político pedagógico da escola, um planejamento para implementação das diretrizes para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino da História, da Arte e das Culturas negras denota, ainda, o racismo institucional enraizado nas gestões escolares, caracterizando-se como racismo implícito.

Sua fala demonstra uma das implicações mais perversas do mito da democracia racial: a justificação da ausência de debates em torno do racismo à brasileira e de práticas pedagógicas que questionem as representações negativas e apontem estratégias de enfrentamento de estereótipos, estigmas e preconceitos raciais vividos pela população negra no Brasil. Trata-se, assim, de uma estratégia discursiva de negação sobre a questão racial que alimenta a naturalização das desigualdades sociais produzidas e sustentadas pelo racismo à brasileira.

No entanto, uma contradição deve ser ressaltada em sua fala. Ao afirmar que isso tudo passa pelos professores, porque os professores lidam muito bem com isso a diretora assume que o conflito racial está presente. Resta aos professores lidarem muito bem com as situações.

Já a professora de Ciências 1 (P.C.1), ao ser indagado sobre a Lei nº 10.639/2003, deixa ver o seu desconhecimento:

P.C.1: Não... lembrar dos números das leis/ eu sou péssimo. (PAULA, P.C.1)7

Em relação às suas práticas pedagógicas, afirma:

P.C.1: Gênero sexual, por exemplo se trabalha em ciências quando se ensina o corpo, comportamento também, aí eu tento agir um pouco em cima disso também. Quando se aborda, quando se fala em fisiologia, mostrar independente da cor da pele, independente do sexo, o corpo ele funciona da mesma forma para todos. Então, eu tento utilizar esses conceitos da própria biologia até para mostrar que não existe nenhuma diferenciação maior entre homens, mulheres, negros e brancos etc (PAULA, P.C.1).

Ainda que, na pergunta não tenhamos mencionado diversidade de gênero, a professora de ciências, assim como a diretora, entende diversidade como uma questão de gênero. A professora retrata os aspectos didáticos pedagógicos expressos entre a diversidade de gênero e diversidade étnico-racial, assuntos específicos, com a mesma orientação da igualdade, negando às diferenças inerentes as temáticas: gênero e raça. Desse modo demostra uma negação das diferenças no âmbito social entre raças, demostrada pela explicação de igualdade biológica entre negros e brancos. Não apresenta argumentos de valorização da identidade social negra que possa justificar a igualdade entre raças e não apresenta argumentos de desconstrução do preconceito racial.

Assim como P.C.1, a professora de Educação Física (P.E.F.) também desconhece a Lei nº 10.639/2003:

P.E.F - Por número assim eu não me lembro... (CARLA, P.E.F)8

Sobre as práticas pedagógicas para a educação das relações étnico-raciais, P.E.F. responde:

P.E.F - Olha não tem, assim, um momento específico para abordar. Se surge algumas questões que são mais polêmicas, eu paro, discuto, converso com os alunos. Quando a gente está introduzindo um novo conteúdo, aí eu falo um pouco dessa participação de pessoas diferentes, por exemplo, um esporte que não é específico de um público, então assim, não tem um momento específico para isso. Ou porque teve uma demanda naquele momento// (CARLA, P.E.F.)

Note-se que a P.E.F. não tem para si uma orientação clara, um planejamento curricular ou unidade de ensino específica dedicados às práticas pedagógicas da educação das relações étnico-raciais. Ele ressalva: algumas questões que são mais polêmicas, eu paro, discuto, converso. Acolhe a demanda latente em sala de aula. Em nosso entendimento, essa sensibilidade em parar é fundamental para a suspenção do curso naturalizado do racismo na escola. Com isso, o professor garante espaço à discussão. Ela, então, cita o momento em que introduz novos conteúdos mas logo depois reafirma que não tem um momento específico para isso. Em situações polêmicas ou dissolvidas em diferentes conteúdos, fica a sensação de escamoteamento do racismo como uma discussão localizada já que questões referentes à diferença são pontuais e são resolvidas como demandas de um momento, um flash. Além disso, o legado negro a ser ensinado nas escolas não parece estar presente dentre os conteúdos novos considerados.

As falas de P.C.1 e P.E.F. não apresentaram exemplos precisos de práticas pedagógicas comprometidas com a educação para a diversidade e para as relações étnico-raciais no Brasil. Suas falas mostram, desconhecimento dos pressupostos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2014) e a ausência de práticas pedagógicas que valorizem a identidade negra. Silenciam ou negam a dimensão simbólica do racismo na construção de identidade dos estudantes e nesse sentido, seus argumentos resvalam na manutenção do Mito da Democracia Racial.

A Professora de ciências 2, (P.C.2) conhece a Lei n° 10.639/2003 e ao ser indagada sobre as Educação para as relações étnico-raciais, retrata sobre o trabalho que se aproxima da temática nas duas escolas em que leciona. Ao ser questionado sobre a importância das práticas pedagógicas sobre educação para as relações étnico-raciais, pondera:

P.C.2 -Assim, abordar nos termos de determinar//dentro do próprio conteúdo de ciências, não tem assim um tópico para poder falar disso, mas a gente lida com essas situações o tempo todo. E dentro da biologia, claro, a gente tem um discurso com relação a isso, e tem uma abordagem científica também que até tenta desnaturalizar muita coisa que às vezes// que eles taxam como preconceito. E muitas coisas dessa aí de diversidade, seja ela física e tudo mais, muitas coisas são explicadas pela biologia, pela genética. Então quando surgem essas questões, quando surge a necessidade de falar disso, um dos argumentos que são utilizados são argumentos científicos (...). (TATIANA, P.C.2)9

P.C.2 assume a ausência de um tópico voltado para a implementação da Lei mas traz a discussão sobre a concepção biologizante de racismo. Porém, não esconde que a gente lida com essas situações o tempo todo. Observe-se que ele se confunde ao se referir às diversidades físicae tudo mais mas lança mão da autoridade do discurso científico ao afirmar que muitas coisas são explicadas pela biologia, pela genética- ainda que não explicite o papel do fenótipo como aspecto que fundamenta a explicação biológica anti-racista. Dessa forma, percebemos que o professor contribui para a destituição do estatuto de verdade de perspectivas científicas eugenistas que regeram a produção de conhecimento eurocêntrica do século XIX.

Ao ser indagado sobre a presença do preconceito racial, ele apresenta um argumento interessante: são os estudantes quem tem uma visão diferente de antigamente. Seu depoimento:

P.C.2 - Eu acho que as coisas melhoraram bastante, sabe? /.../mas em geral, nas duas escolas em que eu trabalho, essa questão do racismo, do preconceito, eu acho que os meninos eles têm hoje, apesar deles serem essa coisa desordenada toda, eu acho que eles têm uma visão muito diferente do que as pessoas antigamente tinham, eu acho que eles têm uma mente muito mais aberta para essas coisas, para essa diversidade toda, acho que eles aceitam muito melhor isso do que as pessoas antes aceitavam/.../ e, essa coisa de ter tanta informação essas mudanças que têm acontecido, para esse lado eu acho que elas foram positivas.(TATIANA, P.C.2)

De certo modo, o argumento de que as coisas melhoraram e que osalunos dessa geração aceitam e estão mais abertos, isenta a escola da responsabilidade em discutir questões relativas à diversidade. Além disso, aceitar sugereuma tolerância imposta aferida à circulação de informação.

Por fim, a fala do professor de matemática, (P.M.) exemplifica o mito da democracia racial brasileiro em sua expressão explícita

P.M. - Não. Não. Não porque eu acho que é outro assunto. Que eu fico vendo às vezes em reuniões isso é citado, mas eu fico olhando, assim, eles (os alunos) se resolvem tão bem, sabe, que eu não vejo, assim, necessidade. (PAULO, P.M.)10

P.M. justifica a ausência de práticas relacionadas às orientações da Lei por ser um outro assunto, que não se inseri em seus conteúdos e em função da falta de necessidade pois os alunos resolvem entre eles. Discutir relações raciais, como apontado em reuniões de professores não tem necessidade porque, em última instância, não existe racismo. Nesse sentido a professora nega o racismo ao mesmo tempo em que dissimula as marcas e diferenças indenitárias presentes em sua sala de aula.

Considerações finais

O mito da democracia racial foi notado no discurso dos docentes da RME-BH através da negação do racismo ora de forma explícita, ora de fora implícita. De forma implícita, através do silenciamento do conhecimento negro no currículo oficial. De forma explícita, o mito se mostra como argumento que justifica a ausência de práticas pedagógicas voltadas para a educação das relações étnico-raciais e as diretrizes da Lei nº 10.639/2003. Essa ausência contribui para a manutenção da naturalização do preconceito racial no ambiente escolar. A negação impossibilita a valorização das identidades sociais dos estudantes e silencia as contribuições negras para a história brasileira. Os dados apontam, ainda, para a necessidade de abordarmos o termo diversidade sob a ótica dos estudos interseccionais das mulheres negras (CRENSHAW 2002; COLLINS, 2017) sob o risco de escamoteamento do racismo como aspecto fundante da desigualdade econômica neste país.

O discurso implícito tem sua raiz ideológica na crença de igualdade racial, se manifesta no desconhecimento dos docentes, em sua grande maioria, da Lei nº 10.639/2003, na ausência escrita e prática da temática no projeto político pedagógico, pelo silenciamento discursivo da raça como parte da composição da identidade dos estudantes. Assim como a aparente falta do limite entre diversidade racial e diversidade de gênero nas narrativas dos educadores. Observamos que essas formas discursivas se destacam entre os professores, mas que existem outras formas discursivas sociais que retratam o racismo.

Nesse sentido, mapeamos discursos racistas implícitos e explícitos na fala dos nossos sujeitos de pesquisa. Implícitos, aqueles que afirmam o mito da democracia racial, que negam a existência do racismo contra a população negra no Brasil, seja através do não-reconhecimento ou de silenciamentos diante do debate que o racismo brasileiro requer ou através da ausência de práticas pedagógicas relacionadas à desconstrução do racismo e produção da valorização da identidade negra no Brasil. Esses elementos discursivos alimentam e fortalecem a estrutura racista do discurso racista da elite econômica e culturalmente hegemônica na escola.

Para além da negação enfática do racismo, discriminação ou preconceito na escola e na crença da suposta igualdade racial entre os estudantes. Desse modo esse discurso se pauta na ideologia de uma existente democracia racial. Observamos que essas formas discursivas se destacam entre os professores, mas que existem outras formas discursivas sociais que retratam o racismo.

Notamos ausência dos discursos que questionam as diferenças culturaise econômicas que mantem a exclusão social da população negra do Brasil. A reprodução e manutenção do racismo, através dos silenciamento e ausências nas práticas pedagógica, é um dos nossos desafios contínuos para demonstrar que a negação da questão racial e uma armadilha discursiva (OLIVEIRA e SILVA, 2016).

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 003/2004, de 10 de março de 2004. Relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Do parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em: Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157- norma-pl.html. Acesso em: 15 fev. 2017. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012. Brasília, 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federai de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 13 jul. 2013. [ Links ]

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n º 171/1993. Altera a redação do art. 228 da Constituição Federal (imputabilidade penal do maior de dezesseis anos). Disponível em: Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14493 . Acesso em: 20 de fev. 2017 [ Links ]

COLLINS, Patrícia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo. jan/jun. 2017 v.5, n.1 (2017). p. 6 a 17. [ Links ]

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Comunicação e Expressão. Florianópolis, Santa Catarina, v.7, n.12, p.171-188, 2002. [ Links ]

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008, v. 1. [ Links ]

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala:formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003. [ Links ]

GATTI, Bernadette. Grupo focal nas ciências sociais e humana. São Paulo: LibreLivros, 2005. [ Links ]

GOFFMAM, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. Data da Digitalização: 2004. Data Publicação Original: 1891. 4º edição. Editora LTC. [ Links ]

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 236 p. (Coleção Educação paratodos) [ Links ]

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva . O jogo das diferenças:o multiculturalismo e seus contextos. 4.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. [ Links ]

GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. Classes Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. [ Links ]

GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo Social, Revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 269-287, 2006. [ Links ]

GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34 , 1999. [ Links ]

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica , 1999. [ Links ]

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins. A Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu: Limites e Contribuições. Educação & Sociedade, a. XXIII, n. 78, p. 15-36, abr. 2002. [ Links ]

OLIVEIRA, Míria Gomes de; SILVA, Paulo Vinicius Baptista. Educação Étnico-Racial e Formação Inicial de Professores: a recepção da Lei 10.639/03. Educação e Realidade, v. 42, p. 183, 2016b. [ Links ]

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. [ Links ]

ROSEMBERG, Fúlvia; SILVA, Paulo Vinícius Baptista.; BAZILLI, Chirley. Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n.1, p. 125-146, jan.-jun. 2003. [ Links ]

SILVA, Paulo Vinicius Batista. O silêncio como estratégia ideológica no discurso racista brasileiro. Currículo sem Fronteiras, v. 12, p. 110-129, 2012. [ Links ]

SILVA, Paulo Vinicius Baptista.; ROSEMBERG, Fúlvia. Brasil: lugares de pretos e brancos na mídia. In.: VANDIJK, T. Racismo e Discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008. [ Links ]

SKIDMORE, Thomas E. . Fato e mito: descobrindo um problema racial no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.79, p. 5-16, nov. 1991. [ Links ]

VAN DIJK, Teun. Introdução. In.: VAN DIJK, T. Racismo e Discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008. [ Links ]

VAN DIJK, Teun; HOFFNAGEL, Judith; FALCONE, Karina (Org.). Discurso e poder. 2. ed. São Paulo: Contexto , 2015. [ Links ]

1 Pesquisa de mestrado intitulada Deslocamentos Discursivos sobre a Educação das Relações Raciais no Brasil: Tensões e silenciamentos no Contexto Escolar da Rede Pública de Belo Horizonte, FaE/UFMG (2017).

2 A obra A integração do Negro na Sociedade de classes do referido autor, Florestan Fernandes foi originalmente lançada em 1966, porém o texto relido neste artigo é datado em 2008.

3 A partir do Censo Demográfico de 1872, o IBGE começou a usar as categorias: preto, pardo, branco e caboclo. A partir de 1991, o IBGE incluiu uma quinta categoria, indígena, passando-se então a falar de cor ou raça, em vez de, simplesmente, cor.

4 Petean (2012) aponta, no seu artigo “O racismo universalista no Brasil: eugenia e higienização moral da Sociedade”, os sentidos e significados para o termo higienização. O autor compreende higienização moral como parte política de branqueamento no contexto brasileiro.

5 De acordo com População por Raça/ Cor por Região Administrativa (Novo Limite) – Belo Horizonte, 2010. Fonte: IBGE – Censo (2010).

6 Nome fictício para assegurar a identidade do sujeito.

7 Nome fictício para assegurar a identidade do sujeito.

8 Nome fictício para assegurar a identidade do sujeito.

9 Nome fictício para assegurar a identidade do sujeito.

10 Nome fictício para assegurar a identidade do sujeito.

Recebido: 12 de Novembro de 2019; Aceito: 28 de Janeiro de 2020; Publicado: 21 de Dezembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons